Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
24120/19.9YIPRT.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: INJUNÇÃO
CONTRATO ADMINISTRATIVO
COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 05/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: É admissível o recurso ao procedimento de injunção visando cobrar crédito emergente da execução de contrato público. Se for deduzida oposição, a competência para o julgamento da acção cabe aos tribunais administrativos, seguindo-se a forma de processo declarativo, prevista no artigo 35.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 24120/19.9YIPRT.E1

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Centro de Jardinagem (…), Lda., apresentou requerimento de injunção contra Município de Setúbal com vista à cobrança de um crédito no montante de € 186.376,54, resultante da execução de quatro contratos de fornecimento de bens ou serviços no período compreendido entre 02.08.2017 e 07.03.2019. A requerente indicou o Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal como sendo o competente na hipótese de o processo ser objecto de distribuição.


O requerido deduziu oposição, na qual invocou a inadequação do procedimento de injunção devido ao facto de o crédito invocado emergir, não de uma transacção comercial abrangida pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17.02, mas sim de um contrato administrativo, sujeito às especiais normas da contratação pública. O requerido invocou ainda a incompetência do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal em razão da matéria, considerando que, nos termos do disposto na al. f) do artigo 4.º do ETAF, a competência para dirimir o litígio cabe à jurisdição administrativa.


Em face da oposição, os autos foram distribuídos ao Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal.


Notificada do teor da oposição, a autora exerceu o contraditório, dizendo, em síntese, o seguinte: 1) O Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17.02, foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10.05, o qual “faz abranger, pelo procedimento de injunção, também os atrasos de pagamento devidos em contratos públicos, desde que iniciados depois da sua entrada em vigor”, pelo que não se verifica a invocada inadequação do procedimento de injunção; 2) Da adequação do procedimento de injunção resulta a competência material dos tribunais judiciais em caso de oposição, pois a forma de processo comum é deles exclusiva; 3) O réu deverá ser condenado em multa e indemnização por litigância de má-fé.


O réu pronunciou-se sobre o pedido de condenação em multa e indemnização por litigância de má-fé, pugnando pela sua improcedência.


Em seguida, o Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal proferiu decisão em que se declarou incompetente em razão da matéria, absolvendo o réu da instância.


A autora recorreu desta decisão, tendo formulado as seguintes conclusões:


I. O tribunal a quo declarou-se materialmente incompetente para julgar o presente litígio por se tratar de uma transacção comercial emergente de um contrato público.


II. O mesmo tribunal ordenou a pronúncia das partes quanto ao pedido de litigância de má fé apresentado pela requerente, tendo omitido a decisão quanto a este pedido.


III. O regime do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio (“DL n.º 62/2013”), que reformou o procedimento de injunção, aplica-se a atrasos de pagamento no âmbito de transacções comerciais, independentemente da natureza do contrato de que emergem (agora fazendo aplicar aquele mesmo regime também a contratos públicos).


IV. Este âmbito de aplicação resulta da interpretação conjugada das disposições dos n.ºs 1, do art.º 2.º, da alínea b) do art.º 3.º, do n.º 1 do art.º 10.º e do art.º 14 (a contrario sensu), todos do DL N.º 62/2013.


V. No âmbito deste regime, são os tribunais judiciais os competentes para conhecer do processo em caso de oposição, uma vez que o diploma se refere a “processo comum” enquanto forma de processo exclusiva dos tribunais judiciais, distinguindo-se: por um lado, do “processo especial”, forma alternativa nos tribunais judiciais – quis o legislador afastar a possibilidade de conversão em acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias e, por outro lado, do “processo declarativo” próprio dos tribunais administrativos e fiscais (que corresponde hoje à sua forma única) – mesmo na anterior versão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), em vigor à data da elaboração do DL n.º 62/2013, se referia a Lei ao “processo de declaração”, nas formas “ordinária”, “sumária” e “sumaríssima” (35.º/1 do CPTA naquela redacção), nunca comum.


VI. Em suma: quisesse o legislador remeter a resolução destes casos, em simultâneo, para os tribunais administrativos e fiscais e ter-se-ia referido também a “processo de declaração/declarativo” e “conforme os casos”,


VII. Ora, o legislador não o fez, não podendo fazê-lo agora o aplicador-intérprete, por força do número 3 artigo 9.º do Código Civil («na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados») – o legislador quis escrever o que se lê:


VIII. Os tribunais administrativos são incompetentes para julgar causas emergentes do processo de injunção, independentemente da natureza do contrato, uma vez que o objecto é sempre o mesmo: dívidas resultantes de transacções comerciais;


IX. O tribunal competente para apreciar o presente processo é o mesmo a quem se dirige o requerimento de injunção: o Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, aplicando-se-lhe, após a oposição do requerido, a forma de processo comum, que só existe no processo civil.


X. Em resposta à oposição do réu, a autora peticionou, ainda, a condenação daquele por litigância de má fé tendo, posteriormente, o tribunal a quo ordenado a notificação do réu a fim de este se pronunciar quanto a essa pretensão, apesar de, na sentença recorrida, não se pronunciar quanto a essa pretensão.


XI. Pelo exposto, a sentença recorrida, ao determinar incompetente o tribunal a quo para decidir o litígio, interpretou erradamente a legislação e, por isso, violou os arts. 10.º/4 do DL n.º 62/2013, 35.º/1 e 9.º/3 do CPTA.


XII. De acordo com as referidas normas, deveria o tribunal a quo ter-se considerado competente para decidir o litígio.


XIII. O art. 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil prevê a nulidade da sentença nos casos de omissão de pronúncia, isto é, quando o juiz «(…) deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)».


XIV. Conforme se retira do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-10-2017 (Revista n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1 -1.ª Secção): «A expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia.»


XV. Ora, no momento em que o tribunal a quo ordenou notificar o réu para este se pronunciar sobre a referida pretensão da autora, considerando-se (como é) competente para decidir sobre esse pedido, ainda que não se considerasse competente para o pedido principal.


XVI. Face ao exposto, sendo competente para decidir essa pretensão, a sua não apreciação constitui nulidade da sentença, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.


Não foram apresentadas contra-alegações.


O recurso foi admitido.



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As questões a resolver são as seguintes:


1 – Nulidade da decisão recorrida;


2 – Admissibilidade da injunção quando o crédito tenha origem num contrato público;


3 – Tribunal competente;


4 – Litigância de má-fé.



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Os factos relevantes para a decisão do recurso são os acima enunciados.



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1 – Nulidade da decisão recorrida:


A recorrente sustenta que a decisão recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, porquanto não se pronunciou sobre o pedido de condenação do recorrido em multa e indemnização por litigância de má-fé.


O artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, estabelece que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Ou seja, no fundo, quando o juiz não cumpra o disposto no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, que dispõe que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.


No caso dos autos, atento o disposto no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, o tribunal a quo tinha o dever de decidir o pedido de condenação por litigância de má-fé formulado pela autora. A circunstância de se ter julgado materialmente incompetente para o julgamento da acção, absolvendo o réu da instância, não o eximia de decidir aquele pedido. Não o tendo feito, a decisão recorrida padece da nulidade prevista na 1.ª parte do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.


Atenta a regra da substituição ao tribunal a quo, estabelecida no artigo 665.º, n.º 1, do CPC, o tribunal ad quem deverá decidir o referido pedido. Fá-lo-á no ponto 4.


2 – Admissibilidade da injunção quando o crédito tenha origem num contrato público:


O artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10.05, estabelece que este diploma se aplica a todos os pagamentos efectuados como remuneração de transacções comerciais. O artigo 3.º define transacção comercial como aquela que ocorre entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração [al. b)], e entidade pública como uma entidade adjudicante definida no artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos [al. c)]. O artigo 5.º regula as transacções comerciais entre empresas e entidades públicas.


O artigo 2.º, n.º 1, al. c), do Código dos Contratos Públicos, considera as autarquias locais como entidades adjudicantes.


É, pois, fora de dúvida que os créditos invocados pela recorrente contra o recorrido resultam de transacções comerciais para os efeitos previstos no Decreto-Lei n.º 62/2013.


Consequentemente, é admissível o recurso ao procedimento de injunção por parte da recorrente. Estabelece-o expressamente o artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 62/2013, de acordo com o qual o atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos nesse diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida. Chega-se à mesma solução através da conjugação do disposto nos artigos 13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 62/2013, segundo o qual as remissões legais ou contratuais para preceitos do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17.02, se consideram efectuadas para as correspondentes disposições daquele diploma, relativamente aos contratos a que o mesmo é aplicável nos termos do artigo seguinte, e 7.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 01.09, que define a injunção como a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17.02.


Note-se, por fim, que a decisão recorrida não pôs em causa a admissibilidade do recurso ao procedimento de injunção por parte da recorrente. Não retirou dessa admissibilidade foi a consequência que a recorrente pretende ao nível da competência do tribunal em razão da matéria. Tratamos desta questão no número seguinte.


3 – Tribunal competente:


A recorrente sustenta a tese de que a competência para o julgamento da acção emergente da dedução de oposição ao procedimento de injunção cabe, em qualquer caso, aos tribunais judiciais, e nunca aos tribunais administrativos, apelando ao disposto no artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 62/2013, o qual dispõe que, para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum. Segundo a recorrente, a referência à forma de processo comum inculca que a competência cabe sempre aos tribunais judiciais, pois esta forma de processo é deles exclusiva. Se pretendesse atribuir a competência em causa aos tribunais administrativos quando se tratasse de transacções comerciais emergentes de contratos públicos, o legislador teria previsto a aplicabilidade do “processo declarativo”, previsto no artigo 35.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Conclui a recorrente que os tribunais administrativos são sempre incompetentes para julgar causas emergentes do processo de injunção, independentemente da natureza do contrato, uma vez que o objecto é sempre o mesmo: dívidas resultantes de transacções comerciais.


A recorrente não tem razão.


As questões relativas à delimitação da competência material dos tribunais administrativos face aos tribunais judiciais têm de ser resolvidas com base nas normas jurídicas que regulam essa competência, que a recorrente pura e simplesmente ignora na sua argumentação.


Resulta dos artigos 211.º, n.º 1, da Constituição, e 64.º do CPC, que a competência material dos tribunais judiciais é residual: nela se compreendem as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. Portanto, se houver norma que atribua competência aos tribunais administrativos para o julgamento de determinada causa, estará afastada a competência dos tribunais judiciais.


A norma que define o âmbito da competência material dos tribunais administrativos e fiscais é o artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Interessa-nos o disposto na alínea e) do n.º 1, de acordo com a qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. Esta norma inclui, pois, no âmbito da competência material dos tribunais administrativos e fiscais, a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à execução de contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.


Perante esta norma, que tem como escopo precisamente a delimitação da competência material dos tribunais administrativos e fiscais, é claro que o julgamento da presente acção se enquadra nessa mesma competência. Estamos perante créditos que, sem prejuízo de serem qualificados como resultantes de transacções comerciais nos termos definidos pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, emergem da execução de contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por uma pessoa colectiva de direito público.


Não é a circunstância de o artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 62/2013 falar em “processo comum” e não em “processo declarativo” que afasta a aplicabilidade da norma fundamental sobre a competência dos tribunais administrativos e fiscais, que é o citado artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Trata-se de mera flutuação terminológica, que não tem a consequência que a recorrente dela pretende retirar em matéria de delimitação da competência material dos tribunais administrativos e fiscais, solução essa que, saliente-se, constituiria uma significativa e injustificada distorção das regras gerais sobre tal competência.


Diga-se, por último, que a jurisprudência dos tribunais administrativos que conhecemos sobre a questão que nos ocupa é unânime no sentido de que a competência material destes últimos não é afastada pela circunstância de o crédito emergente da execução de contrato público ter sido reclamado através do procedimento de injunção, seguindo-se, na hipótese de haver oposição, o processo declarativo previsto no artigo 35.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – acórdãos do Tribunal Central Administrativo do Sul de 07.11.2013 (proc. n.º 09992/13; relator: Paulo Pereira Gouveia), 05.06.2014 (proc. n.º 10080/13; relator: Rui Pereira); 26.02.2015 (proc. 08987/12; relatora: Helena Canelas) e 09.05.2019 (proc. n.º 105/12.5BELLE; relatora: Alda Nunes); acórdãos do Tribunal Central Administrativo do Norte de 11.02.2015 (proc. n.º 0047/14.5BEBRG; relator: Rogério Martins) e 06.11.2015 (proc. n.º 280/12.9 BEBRG; relatora Helena Ribeiro).


Concluindo este ponto, o Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal é materialmente incompetente para o julgamento desta acção, não merecendo censura a decisão recorrida na parte em que declarou essa incompetência e, em consequência, absolveu o réu da instância.


4 – Litigância de má-fé:


Na sua oposição, o recorrido invocou a inadequação do procedimento de injunção e a incompetência do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal em razão da matéria. O primeiro meio de defesa é improcedente, mas o segundo procede e, por si só, inviabiliza a presente acção. Sendo assim, não há fundamento para concluir que a dedução de oposição por parte do recorrido tenha constituído um expediente dilatório, destinado a adiar o pagamento, como a recorrente alega, improcedendo o pedido de condenação do recorrido em multa e indemnização por litigância de má-fé.



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Sumário:


(…)



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Decisão:

Delibera-se, pelo exposto:

- Suprir a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia, julgando improcedente o pedido, formulado pela recorrente, de condenação do recorrido em multa e indemnização por litigância de má-fé;

- Confirmar a decisão recorrida em tudo o mais, julgando o recurso improcedente;

- Condenar a recorrente nas custas.

Notifique.

Évora, 07 de Maio de 2020

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Barata