Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2489/17.5T8STR.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: CONDUÇÃO AUTOMÓVEL
CANNABIS
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do RJSORCA, à seguradora cabe alegar e provar que, para além de ter dado culposamente causa ao acidente, o condutor se encontrava sob influência de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, nos termos previstos nos artigos 81.º, n.ºs 1 e 5 e 157.º do CE.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2489/17.5T8STR.E1


I. Relatório
(…) Plc – Sucursal em Portugal, S.A., com sede na Rua (…), 41, em Lisboa, instaurou contra (…), residente na Rua (…), em Alpiarça, a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final a condenação do R. no pagamento da quantia de € 84.413,07, acrescida de juros vencidos desde 16.12.2016 e dos vincendos até integral pagamento.
Em fundamento alegou ter ocorrido acidente de viação no dia 01.06.2014, no qual intervieram o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 29-(…)-99, conduzido pelo R., e o tractor agrícola de matrícula 47-18-(…), então conduzido por (…). Do embate, cuja ocorrência ficou a dever-se a culpa exclusiva do condutor do ligeiro, resultou a morte da passageira, tendo a demandante despendido na regularização do sinistro, designadamente no pagamento das indemnizações devida à sucessora da falecida e ao proprietário do tractor, incluindo as demais despesas que discrimina, a quantia que aqui reclama.
O R. foi submetido a exame toxicológico, tendo acusado a presença de canabinóides no sangue, produto estupefaciente que influenciou a sua condução e que foi determinante para a ocorrência do acidente e respectivas consequências, assistindo à autora o direito de regresso que pretende exercer.
*
Citado, o R. apresentou contestação, alegando não ter sido o único responsável pela produção do acidente nem pelas graves consequências que dele resultaram, uma vez que o tractor se encontrava equipado com um carregador frontal de garfos de grande dimensão, colocado na dianteira, à altura do vidro e tejadilho do veículo conduzido pelo contestante, o que não é permitido, tendo sido este equipamento a atingir a passageira e a provocar-lhe a morte.
Alegou ainda que apresentava um valor canabinóides mais de dez vezes inferior ao limite permitido, em medida não susceptível de influenciar a sua capacidade de condução, não se verificando por isso os pressupostos do direito de regresso.
*
Teve lugar a audiência prévia no âmbito do qual foi proferido saneador tabelar, tendo os autos prosseguido com delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamação das partes.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento, tendo sido a final proferida sentença que, na procedência da acção, condenou o R. a pagar à autora a quantia de € 84.413,07, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, desde 12.03.2018 até efectivo e integral pagamento.

Inconformado, apelou o R. e, tendo desenvolvido nas alegações que apresentou as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes necessárias conclusões:
“A- Cumprindo o ónus a seu cargo, o recorrente especifica que os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados são os seguintes: (factos 11, 12, 15, 16, 17, 24 e 25);
B- Não existem no processo meios probatórios, nem foram produzidas provas em sede de audiência de julgamento, que permitissem julgar provados tais factos;
C- Relativamente a estes pontos da matéria de facto que se entende terem sido erradamente julgados, temos que todos se reconduzem à presença de canabinóides no sangue e à sua suposta influência na condução do recorrente, isto é, o alegado nexo causal entre a condução sob influência de canabinóides e a ocorrência do acidente;
D- Quer a decisão tomada acerca dos aludidos pontos da matéria de facto, quer a motivação que conduziu à decisão, estão francamente erradas, padecendo de um erro de base que determina a necessidade de alterar radicalmente a decisão proferida sobre a matéria de facto (o que, ao abrigo do artigo 662.º do CPC), se requer;
E- O erro de base consiste na pura e simples omissão e desconsideração da taxa de concentração de canabinóides apresentada pelo recorrente;
F- Em ponto algum da matéria de facto ou da respectiva motivação é referida a taxa ou concentração de canabinóides que o ora recorrente apresentava;
G- No caso em apreço a quantidade apresentada foi de 4,3 ng/ml) (relatório doc. junto à PI), a qual é manifestamente inferior ao limite permitido, que é de 50 ng/ml, medida a partir da qual se impõe a realização de exame de confirmação;
H- Se o ora recorrente tivesse sido submetido a rastreio prévio, nem sequer seria sujeito a exame de confirmação;
I- Apurou-se que a quantidade apresentada pelo R. era mais de 10 vezes inferior ao nível de concentração permitido de 50 ng/ml, pelo que, não se pode concluir pela efectiva susceptibilidade de influenciar a capacidade de condução do arguido;
J- Neste sentido, atente-se no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03/05/2018, proferido nos autos com o n.º 7907/16.1 T8SNT.L1-2:
Sumário: Para efeitos de direito de regresso da seguradora (art.º 27-c do DL 291/2007), não é suficiente que um condutor que deu causa a um acidente acuse a presença no sangue de 2 ng/ml de canabinóides [ou seja, o ∆9-tetrahidrocanabinol (THC)] e 0,7 ng/ml do seu metabolito activo [que é o 11-hidroxi-∆9- tetrahidrocanabinol (11-OH-THC)]…”.
K- A posição tomada pela sentença sob recurso é a de que seja qual for a quantidade de estupefaciente no organismo do condutor, tanto basta para que este tenha de reembolsar a seguradora daquilo que ela pagou ao lesado;
L- Da sentença sob recurso não consta uma única referência à quantidade de canabinóides que o ora recorrente apresentava – bastando-se com afirmações genéricas;
M- Só uma quantidade de estupefaciente que ultrapasse um limite legal pode ser relevante para que se possa considerar que um condutor acusou estupefacientes – Também neste sentido o ac. do TRE de 07/01/2016, proc. 1050/13.2GCFAR.E1;
N- De tudo quanto vem exposto, importa extrair a necessária conclusão de que a decisão tomada na sentença recorrida relativamente aos aludidos pontos da matéria de facto provados (pontos 11, 12, 15, 16, 17, 24 e 25), relativos à condução sob influência de estupefacientes, está errada;
O- Impõem a sua alteração, a total ausência de prova relativamente à referida condução sob influência de estupefacientes – pois, como se viu, a sentença recorrida nem sequer refere qual a concentração de tais produtos que o recorrido apresentava e o facto constante dos autos, da taxa apresentada pelo ora recorrente ser de 4,3 ng/ml; conforme relatório do serviço de química e toxicologia forenses junto à PI. a fls. 21;
P- Manifestamente inferior ao limite permitido, o qual é de 50 ng/ml;
Q- Pelo que não era lícito à sentença recorrida dar por provados tais factos, donde decorre a necessidade dos mesmos serem considerados não provados;
R- Não se apurou, pois, qualquer nexo de causalidade entre a reduzidíssima quantidade de canabinóides apresentada pelo recorrente e a produção do acidente;
S- Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o art.º 81.º, n.º 5, do CE, norma esta que tem de ser conjugada com as normas que regulam os procedimentos a seguir em ordem a detectar o estado de influenciado por canabinóides e que determina que os resultados só podem ser considerados positivos quando os valores obtidos forem iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo V (art.º 16 da Portaria nº 902-B/2007, de 13/8), ou seja, de 50 ng/ml para o grupo dos canabinóides;
T- Pelo que foi feita uma errada interpretação e aplicação do mencionado n.º 5 do art.º 81º do CE;
U- Para efeitos de direito de regresso da seguradora (art.º 27, al. c), do DL 291/2007), não é suficiente que o condutor que deu causa a um acidente acuse a presença no sangue de 4,3 ng/ml de canabinóides, impõe-se, pelo contrário, que o valor obtido seja igual ou superior às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo V (art.º 16 da Portaria nº 902-B/2007, de 13/8), ou seja, de 50 ng/ml para o grupo dos canabinóides;
V- No caso em apreço, tal não sucedia, pelo que também o artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 291/2007 foi violado, na medida que que não se verificava o alegado pressuposto do direito de regresso - o consumo de estupefacientes, em valores iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo V (art.º 16 da Portaria nº 902-B/2007, de 13/8), ou seja, de 50 ng/ml para o grupo dos canabinóides.
Conclui pela procedência do recurso, com o decretamento da sua absolvição do pedido.
Contra-alegou a A. e, estribando-se na sentença, defendeu a manutenção do decidido.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões submetidas à apreciação deste Tribunal:
i. Determinar se ocorreu erro no julgamento da matéria de facto;
ii. Decidir se à autora assiste o direito de regresso nos termos do art.º 27.º, n.º 1, al. c), do RJSORCA e que aqui veio exercer.
*
Impugnação da matéria de facto
O recorrente diz terem sido mal julgados os pontos 11, 12, 15, 16, 17, 24 e 25. da matéria de facto, alegando não terem sido produzidas provas que sustentem tal julgamento, tendo tal erro como pressuposto a omissão e indevida desconsideração da taxa de concentração de canabinóides apresentada pelo recorrente, a qual é manifestamente inferior ao limite permitido, que é de 50 ng/ml, medida a partir da qual se impõe a realização de exame de confirmação.
É a seguinte a factualidade impugnada:
11. [O R. circulava] Com os reflexos e sentidos tolhidos pelo consumo de estupefacientes.
12. Motivos pelos quais, sem qualquer outra justificação, saiu da sua faixa de rodagem e invadiu a faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário ao seu.
15. Após a ocorrência do acidente o ora Réu foi submetido ao teste de pesquisa de substâncias no sangue, tendo acusado a presença de canabinóides.
16. O R., devido aos efeitos de canabinóides, conduzia desatento e alheado às características e condições da via na qual circulava e ao trânsito que se processava ao seu redor.
17. Com os reflexos e discernimento diminuídos e afectados.
24. O R. sabia que o consumo de Canábis o poderia influenciar negativamente, como influenciou, na condução automóvel e, não obstante, não se absteve de conduzir.
25. Agiu deliberada, livre e conscientemente com acentuada falta de cautela, sabendo que ao iniciar a condução nas circunstâncias em que o fez, punha em causa a segurança rodoviária, fazendo perigar a integridade física e a vida da pessoa que circulavam consigo e de todos os restantes utentes da via em que seguia.

Em ordem a justificar a decisão, ficou consignado na sentença ora impugnada:
“A convicção do tribunal resulta dos documentos juntos e dos depoimentos das testemunhas.
Foram relevantes os seguintes documentos:
(…) O Relatório Final do Serviço de Química e Toxicologia Forenses do INML, junto a fls. 21, que se mostrou relevante para a prova do nº 15 dos factos provados;
Foi igualmente relevante a certidão da sentença proferida no Proc.º 310/15.2GEALR, do Juízo Local de Almeirim, transitada em julgado em 18.04.2018, que condenou o R. como autor material de um crime de homicídio por negligência, relativamente à existência dos factos, nos termos do art.º 623.º do CPC.
(…)
Quanto aos factos dos nºs. 10, 11, 16, 17, 18, 24, 25 e 26 dos factos provados, importa considerar que o R. havia consumido canabinóides, revelado na pesquisa que foi feita no seu sangue, logo após o acidente. A sua demonstração resulta do teste que lhe foi feito no hospital onde foi após o acidente, tal como consta do Relatório Final do Serviço de Química e Toxicologia Forenses do INML, junto a fls. 21, e que resultou provado na sentença do processo-crime. Atribui a responsabilidade do desfecho do acidente ao tractor, mas admite ter nele embatido quando circulava na faixa contrária, sendo certo que deveria conhecer o traçado da via, pois reside na zona (embora noutra localidade).
A matéria relativa à condução sob influência de canabinóides e à forma como o acidente ocorreu foi considerada provada também com base no senso comum e na experiência do homem médio, sabendo-se pelos inúmeros estudos científicos publicados e é pacífico que as substâncias psicotrópicas influenciam o comportamento dos indivíduos que as consomem, sendo, aliás, essa a razão do seu consumo. Desta forma, por maioria de razão, influencia, como o comprovam estudos científicos comumente conhecidos e amplamente divulgados, a condução de qualquer indivíduo, diminuindo os reflexos, originando um atraso na reacção aos elementos externos e no controle dos movimentos, e não permite avaliar de forma correcta as situações, nem a elas reagir adequada e tempestivamente.
Ora, no caso dos autos, o R. conduzia de forma desatenta, com velocidade superior à adequada, dando causa ao acidente, sendo certo que realizava um percurso aparentemente conhecido. Tal comportamento apresenta-se temerário e que é compatível com a condução sob influência de canabinóides.
A convicção do tribunal resultou também do depoimento das testemunhas (…), militar da GNR, que elaborou o auto de participação de acidente, de fls. 16 e esteve no local e fez o aditamento quando se apurou da existência de substâncias psicotrópicas (…)”

Começando a reapreciação da prova produzida partindo do relatório pericial junto a fls. 21 dos autos, dele consta que, realizado teste ao sangue colhido do ora apelante a seguir ao acidente, acusou 0.8 ng/ml de tetra-hidrocanabinol ou THC, única substância determinante de um estado de influenciado[1], e 4.3 ng/ml (nano gramas por mililitro) de TCH-COOH, que se explica ser “um metabolito sem acção farmacológica, cujo período de concentração se pode prolongar por vários dias após o consumo de canábis”, afigurando-se ainda pertinente fazer notar que, tal como assinalado no referido relatório, as ditas substâncias assim detectadas não estão incluídas no âmbito da acreditação do Serviço de Química e Toxicologia Forenses da Delegação Sul do INML que procedeu à análise.
Quanto à sentença condenatória proferida no âmbito do processo criminal que correu termos no Tribunal Judicial da comarca de Santarém, Juízo de Competência Genérica de Almeirim, sob o n.º 310/15.2 GEALR, encontrando-se imputada ao ali arguido, ora réu/apelante, a prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 69.º, n.º 1, al. a) e 137.º, n.ºs 1 e 2 do CP, resultou provado que antes de se deslocar para Lisboa, pelas 23:00 h do dia anterior àquele em que ocorreu o acidente, o ali arguido havia consumido pólen de haxixe (sem qualquer informação quanto ao modo de ingestão), tendo ainda ingerido cervejas durante essa noite, dando-se igualmente por assente que “imprimia ao veículo uma velocidade superior a 60 Km/h”, “Na Rua de (…) perdeu a direcção do veículo sucessiva e reiteradamente, o qual invadiu a hemi-faixa esquerda de rodagem, onde veio a embater na roda dianteira do lado direito do tractor agrícola (…)”, “em consequências directa e necessária da conduta praticada pelo arguida, (…) sofreu lesões (…) que determinaram a sua morte”, que “não agiu com a diligência e consideração a que se encontrava obrigado e era capaz relativamente ao tráfego rodoviário, deveres inerentes ao exercício da condução automóvel que incluem a abstenção de consumir produtos estupefacientes e ingerir bebidas alcoólicas”, afirmando-se finalmente que tinha previsto e estava ciente que “as bebidas alcoólicas que ingerira, o estupefaciente que consumira e o cansaço que sentia fossem susceptíveis de determinar que pudesse vir a colidir com outras viaturas”. Por força da referida sentença encontram-se provados por presunção que, todavia, pode nestes autos ser ilidida, “os factos que integram os pressupostos da punição, os elementos do tipo legal de crime e, bem assim, os que respeitam à forma do crime (cfr. o art.º 623.º do CPC). Assim, por não ilidida a presunção, tem-se por assente os factos acima mencionados, designadamente que na noite anterior o aqui réu havia consumido (não se sabe como, sendo certo que, sabe-se, não é de todo indiferente o modo de consumo)[2] pólen de haxixe, e ainda que previra a susceptibilidade/possibilidade do consumo do haxixe, ingestão de bebidas alcoólicas e cansaço da noite sem dormir poderem determinar um acidente não se tendo abstido, ainda assim, de conduzir. Não se diz que aquando da colisão o arguido estivesse sob influência do pólen de haxixe qua havia consumido horas antes, tal como não resulta que estivesse sob a influência do álcool, pois para que assim se considerasse era necessário que estivesse provada uma TAS superior à legalmente permitida, pelo que tais factos não podem dar-se assentes por presunção face a tal meio de prova.
Diz-se na fundamentação que “(…) no caso dos autos, o R. conduzia de forma desatenta, com velocidade superior à adequada, dando causa ao acidente, sendo certo que realizava um percurso aparentemente conhecido. Tal comportamento apresenta-se temerário e que é compatível com a condução sob influência de canabinóides”.
Antes de mais, não está dado como assente que o réu conhecia o percurso nem, salvo melhor opinião, a circunstância de residir na “zona, ainda que em diferente localidade” autoriza tal ilação. Depois, a condução desatenta e com velocidade superior à adequada pode ter diversas causas, afigurando-se não poder ser aproveitado como facto base para se concluir que o arguido se encontrava sob a influência de produtos estupefaciente.
Vejamos, pois, se tal facto emerge da demais prova produzida nos autos.
Consagrado ao direito de regresso o art.º 27.º do DL preceitua, para o que aqui releva, que “1. Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:
(…)
c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos”.
Fundamento da acção de regresso na alínea que se analisa são determinadas situações atinentes à pessoa do condutor que se considera acarretarem um sensível agravamento dos riscos normalmente associados à circulação, extravasando, portanto, do que se deve considerar abrangido pelas obrigações assumidas pela seguradora no âmbito de um contrato que é também comutativo, sob pena de grave desequilíbrio em desfavor desta.
Impondo a lei às seguradoras que antecipem o ressarcimento dos lesados, atenta a dimensão social do contrato de seguro, concede-lhe, em contrapartida, e como forma de restabelecer, de algum modo, o equilíbrio do contrato, o direito de repercutir o dispêndio na esfera jurídica do lesante, dele reclamando o reembolso do que pagou a título de indemnização.
Aceitando-se que a redacção da al. c) do art.º 27.º que se analisa, quando confrontada com o teor do anterior art.º 19.º, al. c), do DL 522/85, de 31 de Dezembro, favorece uma interpretação que se basta com a verificação objectiva de cada uma das situações ali previstas, tal ocorre porque e na medida em que representam um perigo presumido dos normais riscos da circulação, potenciando um agravamento sensível desses riscos, dispensando-se assim a demonstração de um concreto e efectivo nexo causal entre a circunstância verificada e o acidente.
A norma em causa assume, no entanto, uma natureza remissiva, impondo que se recorra ao art.º 81.º do CE para se determinar quando é que o condutor apresenta uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, sendo certo que só ultrapassado este limite se pode considerar que se encontra sob a influência do álcool, que constitui assim pressuposto do direito de regresso da seguradora. E se assim é em relação à alcoolemia afigura-se -interpretação que se afigura a mais consentânea com os critérios interpretativos consagrados no art.º 9.º do CC, designadamente quando manda ter em conta a unidade do sistema jurídico- que idêntico entendimento terá de ser perfilhado quando esteja em causa o consumo de estupefacientes. Dito de outro modo, se nem toda a taxa de alcoolemia é relevante para efeitos de se considerar que influencia a condução, só sendo de reconhecer o direito de regresso da seguradora quando exceda o limite legal, o mesmo é dizer, quando estivermos perante um ilícito contraordenacional ou de natureza criminal, isso mesmo deverá entender-se quando, ao invés de uma taxa de alcoolemia, o condutor culpado do acidente – cuja conduta tenha sido causal do acidente – acusa o consumo de produtos estupefacientes, o que sucederá quando se prove que conduzia sob a influência destas substâncias proibidas[3].
Afirmou-se na decisão que “O CE considera infracção muito grave a condução sob influência de substâncias psicotrópicas, independentemente da quantidade apresentada, ao contrário do que se encontra definido para o álcool (…). Para a lei o que releva é o consumo só por si, considerando relevante a alteração que provoca no comportamento das pessoas, independentemente da quantidade”.
Ora, se é verdade que o CE não consagra directamente limites quantitativos, acima dos quais se impõe considerar que o condutor se encontra sob influência do produtos estupefacientes, não prescindiu deste último requisito, ou seja, o condutor terá de ter as suas capacidades diminuídas por força do consumo de produtos daquela natureza para que a actividade de conduzir possa ser considerada ilícita, sob pena de se punir uma conduta que em nada interfere com a actividade de conduzir (note-se que as finalidades de punição, quer se considere o tipo legal de crime, quer a conduta contraordenacional, não visam o consumo de produtos estupefacientes). E sendo ainda verdadeiro que a lei não distingue a conduta meramente contraordenacional daqueloutra com relevância penal com apelo a um critério quantitativo, não deixa de o fazer estribando-se num critério qualitativo (cfr. art.ºs 81.º, n.ºs 1 e 5 do CE[4] e 292.º do CP[5]), sendo certo que num e noutro casos a demonstração do carácter ilícito da condução se faz por meio dos exames de rastreio e de confirmação a que se reporta o art.º 157.º do CEstrada, a realizar nos termos previstos na Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio (que aprovou o regulamento de fiscalização da condução sob influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas), importado ainda quanto dispõe a este respeito a Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de Agosto.
Resulta dos artigos 10.º a 12.º da citada Lei n.º 18/2007 e 14.º a 22.º da Portaria que há sempre lugar a um exame de rastreio para detecção das substâncias psicotrópicas, o qual pode ser realizado em amostras de saliva, suor ou urina pelos agentes da autoridade, em estabelecimento da rede pública de saúde ou até no INML (artigos 11.º da Lei e 14.º a 17.º da Portaria). No caso de tal exame apresentar resultados positivos -desconsiderando as hipóteses, que aqui não relevam, de ter lugar perícia médica-, há lugar à realização do exame de confirmação, “o qual é realizado numa amostra de sangue, após exame de rastreio com resultado positivo” pelo INML (art.º 12.º da Lei 18/2007, sendo nosso o destaque).
O exame de confirmação, que se destina, consoante dispõe o art.º 22.º da Portaria, a “identificar a substância ou substâncias e os seus metabolitos que, em exame de rastreio, apresentaram resultados positivos”, será por seu turno positivo, nos termos do art.º 23.º, “sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas no quadro n.º 1 do anexo v (…)”.
Pois bem, não fixando a lei um limite quantitativo a partir do qual considera que o condutor se encontra sob a influência de produtos estupefacientes, afigura-se que a exigência de um prévio exame de rastreio com resultado positivo para a presença de substâncias proibidas desempenha função equivalente, sabendo-se, por exemplo, que só há lugar a exame de confirmação, nos casos em que está em causa exame de rastreio na urina realizado em estabelecimento de saúde pública, quando os valores obtidos para os canabinóides ultrapassem os 50 ng/ml previstos no quadro 2 do anexo V, pois só a partir deste nível de concentração o resultado é considerado positivo (cf. art.ºs 15.º e 16.º). Por outras palavras, não é todo e qualquer nível de concentração que leva à realização do exame de confirmação, antes se exigindo que a presença das substâncias proibidas seja antes detectada no exame de rastreio (que, repete-se, no caso de ser realizado em estabelecimento de saúde em amostra de urina tem que apresentar uma concentração superior a 50 ng por ml) para se proceder ao exame de confirmação, este sim considerado positivo desde que revele a presença das substâncias psicotrópicas identificadas no quadro 1 do anexo V, nesse caso quaisquer que sejam os níveis de concentração. Mas tal exame de confirmação, na lógica do diploma, só será válido se precedido de um exame de rastreio positivo. E a razão desta exigência compreende-se quando se considere que a condução pode não ser prejudicada pela canábis, como ocorre nos casos em que o resultado positivo reflecte um consumo que ocorreu no passado mas ainda é detectável.
No caso que nos ocupa, estando o réu legalmente obrigado a sujeitar-se ao exame de rastreio (cf. art.º 157.º, n.º 2, do CE), a verdade é que nada se apurou nos autos quanto a ter sido sujeito ao mesmo, encontrando-se a fls. 22 apenas e só o resultado daquele que seria o exame confirmatório e que deu um resultado positivo para TLC de 0.8 ng/ml[6], não tendo no entanto ficado demonstrado que tal nível de concentração fosse detectável em exame prévio de rastreio, do qual a lei, como tentou demonstrar-se, não prescinde.
Face a este resultado, e pese embora se aceite sem reserva que o consumo de produtos estupefacientes e designadamente de cannabis é susceptível de influenciar a actividade de conduzir, “diminuindo os reflexos, originando um atraso na reacção aos elementos externos e no controle dos movimentos, e não permitindo avaliar de forma correcta as situações, nem a elas reagir adequada e tempestivamente”, conforme se expendeu na decisão apelada – daí a proibição legal de conduzir sob a sua influência –, cremos firmemente não poder afirmar-se, por apelo ao senso comum e à experiência do homem médio, ou seja, por mero recurso a presunções judiciárias, que o R., apresentando um nível de concentração no organismo de THC de apenas 0.8 ng por ml, conduzia sob influência de canabinóides[7].
Defluência de quanto se deixou dito, não fazendo o relatório final cuja cópia consta de fls. 22 prova de que o arguido conduzia sob a influência de estupefacientes, nem constando tal facto da sentença condenatória, antes indiciando o baixo valor de concentração encontrado que assim não sucederia -a este respeito não pode deixar de se fazer notar que apesar de ter igualmente acusado uma taxa de concentração de etanol no sangue de 0.04 g/l, ninguém ousou afirmar que conduzia sob a influência do álcool-, e não sendo possível dar como comprovado tal facto por mero recurso a regras da experiência considerando precisamente os referidos níveis de concentração, tanto mais que se desconhecem os seus eventuais hábitos aditivos e compleição física, aspectos que comprovadamente influenciam o efeito destas substâncias[8], conclui-se, secundando os argumentos do recorrente, que a prova existente nos autos não assumiu a consistência necessária para que se possa dar como demonstrada a factualidade impugnada. Vai assim julgada procedente a impugnação dirigida à matéria de facto, que se altera nos seguintes termos:
11. Não Provado.
12. O R. saiu da sua faixa de rodagem e invadiu a faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário ao seu.
15. Após a ocorrência do acidente foi colhida amostra de sangue do R e enviada para a Delegação sul do INML para a realização de exame para identificação de substâncias psicotrópicas no sangue e seus metabolitos, tendo acusado 4.3 ng/ml de THC-COOH, metabolito sem acção farmacológica cujo período de concentração se pode prolongar por vários dias após o consumo de canábis, e 0.8 ng/ml de THC.
16. O R. conduzia desatento e alheado às características e condições da via na qual circulava e ao trânsito que se processava ao seu redor.
17. Não Provado.
24. O R. sabia que o consumo de canábis pode influenciar o exercício da condução.
25. Não provado.
Dada a sua natureza eminentemente conclusiva mas para prevenir o achamento de possíveis contradições, eliminam-se os factos seguintes do elenco dos não provados:
- A quantidade apresentada era de tal forma diminuta que se pode concluir precisamente o contrário, isto é, pela impossibilidade de ter influenciado a capacidade de condução do ora R..
- Inexiste assim qualquer nexo de causalidade entre a reduzidíssima quantidade de canabinóides apresentada pelo ora R. e a produção do acidente.
*
Fundamentação
De facto
Estabilizada, é a seguinte a factualidade a atender:
Factos Provados:
1. A Autora exerce devidamente autorizada a indústria de seguros em diversos ramos (art.º 1.º da petição inicial).
2. No exercício da sua actividade, a Autora contratou com (…) um contrato de seguro do ramo automóvel através do qual transferiu para si a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula 29-(…)-99, titulado pela Apólice n.º … (art.º 2.º da petição inicial).
3. No dia 1 de Junho de 2015, pelas 06:00 horas, ocorreu um acidente de viação na Rua de (…), em Almeirim, frente ao n.º 15, que teve como intervenientes: o veículo seguro, ligeiro de passageiro, de matrícula 29-(…)-99, conduzido pelo ora Réu, e o veículo tractor agrícola de matrícula 47-18-(…), conduzido por … (artºs 3.º e 4.º da petição inicial).
4. No local onde ocorreu o acidente a via possui dois sentidos de trânsito, com uma faixa de rodagem em cada sentido (art.º 5.º da petição inicial).
5. A via desenvolve-se em traçado recto e é ladeada de habitações e lojas de comércio (art.º 6.º da petição inicial).
6. Sendo a velocidade limitada a 50[9] km/hora (art.º 7.º da petição inicial).
7. No momento em que ocorreu o acidente o sol já estava a nascer e o tempo encontrava-se bom, existindo boas condições de visibilidade (art.º 8.º da petição inicial).
8. Nestas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o ora Réu conduzia o veículo seguro de matrícula (…) na Rua de (…), no sentido Almeirim/Alpiarça (art.º 9.º da petição inicial).
9. A uma velocidade de 60Km/H (art.º 10.º da petição inicial).
10. O R. circulava desatento e alheado à circulação da via (art.º 11.º da petição inicial).
11. Eliminado.
12. O R. saiu da sua faixa de rodagem e invadiu a faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário ao seu.
13. Indo embater no veículo tractor de matrícula 47-18-(…), sob a sua frente e lateral direita (art.º 14.º da petição inicial).
14. Dentro do veículo seguro circulava como passageira (…), que acabou por falecer na sequência das graves lesões que lhe advieram no acidente (art.º 15.º da petição inicial).
15. Após a ocorrência do acidente foi colhida amostra de sangue do R e enviada para a Delegação Sul do INML para a realização de exame para identificação de substâncias psicotrópicas no sangue e seus metabolitos, tendo acusado 4.3 ng/ml de THC-COOH, metabolito sem acção farmacológica cujo período de concentração se pode prolongar por vários dias após o consumo de canábis, e 0.8 ng/ml de THC.
16. O R. conduzia desatento e alheado às características e condições da via na qual circulava e ao trânsito que se processava ao seu redor.
17. Eliminado.
18. O R. agiu com manifesta falta de cuidado, zelo, precaução e prudência a que estava obrigado, não prestando a devida atenção às condições da via onde se deu o acidente em apreço nos autos e aos utentes da mesma (artºs 28º e 29º da petição inicial).
19. Tendo em conta a existência do contrato de seguro subscrito com o veículo de matrícula 29-(…)-99, referido no art.º 2º desta petição, a ora A. estava obrigada a proceder ao pagamento dos danos originados em sequência do acidente supra descrito (art.º 20º da petição inicial).
20. No que respeita ao veículo tractor de matrícula 47-18-(…) a sua reparação foi orçada em cerca de € 18.567,55, pelo que foi considerado uma perda total (art.º 21.º da petição inicial).
21. A A. liquidou a quantia de € 14.683,00 a título de perda total, a quantia de € 5.841,00 a título de imobilização e a quantia de € 369,00 a título de reembolso com despesas de reboque ao proprietário do veículo de matrícula … (art.º 22º da petição inicial).
22. Em relação à vítima mortal, a ora A. chegou a um entendimento com a sua mãe, única e universal herdeira, tendo liquidado a quantia de € 9.000,00 a título de danos morais, € 1.285,00 de reembolso de despesas de funeral e € 53.000,00 a título de direito à vida (art.º 23º da petição inicial).
23. A título de peritagens e despesas de averiguação, a A. pagou as quantias de € 235,07 (54,77€ + 20,40€ + 159,90€) – (art.º 24º da petição inicial).
24. O R. sabia que o consumo de canábis pode influenciar o exercício da condução.
25. Eliminado.
26. É do conhecimento comum que o consumo de Canábis importa a diminuição da aptidão para conduzir, com um substancial agravamento do risco de acidente (art.º 33º da petição inicial).
27. O veículo tractor agrícola de matrícula 47-18-(…), conduzido por (…), encontrava-se equipado com um carregador frontal de garfos, de grande dimensão, que estava colocado na dianteira do veículo e aquando do embate estava posicionado à altura do vidro e tejadilho do carro conduzido pelo ora R (art.º 19º da contestação)

Factos não provados
a) A Ré interpelou o Réu para pagamento em 16/12/2916 e o mesmo não apresentou qualquer resposta, conforme missiva junta como doc. 17.
b) A velocidade a que o R. seguia não era excessiva para o local.
c) Pelo contrário, o R. seguia aproximadamente à velocidade máxima permitida para o local de 50 km./h.; tendo sido a essa velocidade que o velocímetro da viatura por si conduzida ficou imobilizado.
d) O R. conduzia com os reflexos e sentidos tolhidos pelo consumo de estupefacientes.
e) Em consequência da canábis os reflexos e discernimento do R encontravam-se diminuídos e afectados.
f) A canábis influenciou a condução do R.
g) O R. agiu de forma deliberada, livre e consciente, com acentuada falta de cautela, sabendo que ao iniciar a condução, nas circunstâncias em que o fez, punha em causa a segurança rodoviária, fazendo perigar a integridade física e a vida da pessoa que circulavam consigo e de todos os restantes utentes da via em que seguia
h) Foi o garfo direito (atento o sentido de marcha do tractor), do referido carregador frontal, que, aquando do embate, entrou pelo vidro e tejadilho do lado direito do veículo conduzido pelo ora R. e atingiu a vítima (…), provocando as lesões crânio- meningoencefálicas e torácicas, que determinaram a sua morte (art.º 20º da contestação).
i) O referido carregador frontal é uma ferramenta de grande perigosidade, como facilmente se compreende e pode constatar.
j) Não é permitida a circulação na via pública de um veículo equipado com tal ferramenta, muito menos quando aquela estava (como era o caso), colocada a uma altura susceptível de, em caso de colisão, embater directamente em qualquer outro veículo.
k) No caso em apreço, foi precisamente o que sucedeu, isto é, foi o garfo do carregador que perfurou o veículo conduzido pelo R. e foi atingir a passageira (vitima do acidente), provocando-lhe lesões que causaram a morte (art.º 23º da contestação).
l) Quer isto dizer que, não fora o referido carregador e a posição do garfo relativamente ao solo e ao outro veículo e as consequências do acidente seriam outras – certamente menos graves.
m) Donde se impõe concluir que, a contribuição do R. para a produção do acidente (que existiu), não foi causa adequada das consequências do mesmo, no que diz respeito às lesões corporais sofridas pela vítima (…) e que causaram morte desta.
*
De Direito
Do direito de regresso previsto no art.º 27.º, n.º 1, al. c), do RJSORCA
A autora veio a juízo pedir a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de € 84.413,07, soma dos valores despendidos na regularização do sinistro dos autos, incluindo as indemnizações acordadas com a única herdeira da vítima mortal e condutor do outro veículo interveniente e outras despesas que discriminou, exercitando o direito de regresso que lhe é conferido pelo art.º 27.º, n.º 1, al. c), do DL 291/2007, de 21 de Agosto.
Está em causa portanto o direito de regresso da seguradora em caso de condução sob influência do álcool ou de outra substância tóxica.
Conforme se deixou antes referido a propósito da impugnação da matéria de facto, a lei parece bastar-se agora com a demonstração de que o acidente se ficou a dever a culpa do condutor da viatura segurada e de que este conduzia sob a influência do álcool (o que pressupõe uma TAS superior à legalmente permitida) ou de outras substâncias proibidas, sentido em que deve ser interpretada a expressão “acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos”. E tal pressupõe a realização prévia de um exame de rastreio ou detecção e, no caso de ser positivo, de um exame confirmatório, em ordem a identificar a ou as substâncias e seus metabolitos. Com efeito, afigura-se outra não poder ser a solução, não sendo concebível que um condutor sujeito, por hipótese, a exame de rastreio na urina em estabelecimento e que acusasse uma concentração inferior a 50 ng/ml – resultado negativo nos termos dos art.ºs 15.º e 16.º e quadro 2 do anexo v da Portaria 902-B/2007, de 13 de Agosto –, encontrando-se portanto apto a prosseguir a viagem, viesse de seguida, e na sequência da realização de exame de sangue sem rastreio prévio por ter dado causa a acidente, a ser considerado como “tendo acusado consumo de estupefacientes” para efeitos do preenchimento da previsão do art.º 27.º.
De algum modo repetindo o que se deixou já dito, impõem os critérios de interpretação do art.º 9.º do CC, designadamente o princípio da unidade do ordenamento jurídico, que a seguradora faça prova de que se está perante condução ilícita, por se encontrar o condutor sob influência de substâncias proibidas, o que pressupõe que a presença dessas mesmas substâncias no organismo atinjam um limiar de relevância[10].
No caso que nos ocupa, revisitada a factualidade apurada, verifica-se que tendo sido a conduta culposa do réu a dar causa ao embate, posto que invadiu a meia faixa esquerda de rodagem destinada ao trânsito que se processava em sentido contrário, conforme era o caso do tractor agrícola interveniente no acidente, infracção estradal (cf. art.º 13.º, n.º 1, do CE) que foi a causa imediata e directa do acidente, não só não há evidência de que tal invasão se ficou a dever ao consumo de canabinóides – recorda-se que o réu encetara a viagem sem dormir, sabendo-se que o cansaço e privação de sono são susceptíveis de minar de forma decisiva a capacidade de concentração – nem, tão pouco, circunstância que é facto constitutivo do direito que a autora pretende fazer valer, que o mesmo réu estivesse a conduzir sob a influência de canabinóides ou outras substâncias psicotrópicas, conforme exige a al. c) do n.º 1 do art.º 27.º. E é quanto baste para que a presente acção não possa proceder.
*
III. Decisão
Em face do exposto, e na procedência do recurso, acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em revogar a sentença recorrida, absolvendo o R. (…) do pedido contra ele formulado pela A. (…) Plc – Sucursal em Portugal, S.A.
Custas nesta e na 1.ª instância a cargo da Ré.
*
Sumário:
(…)

Évora, 07 de Novembro de 2019
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
Mário Rodrigues da Silva

__________________________________________________
[1] Cf. Helena de Sousa Teixeira, “Determinação de canabinóides em amostras biológicas por cromatografia líquida de alta resolução com espectrometria de massa: aplicação em toxicologia forense”, acessível em https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/7505, e Canábis e Condução, Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, acessível em http://www.sicad.pt/PT/Documents/2019/20181120_TD0418132PTN_PDF.pdf).
Ainda esclarecedoramente acórdãos do TRP de 9/4/2014, processo 1328/10.7 TASTS.P1, em www.dgsi.p e deste mesmo TRE de 7/172016, processo 1050/13.2GCFAR.E1, em www.dgsi.pt
[2] Cfr. Canábis e Condução cit.
[3] Sublinhando este aspecto, ainda que apreciando a questão no âmbito do ilícito criminal, o acórdão deste TRE de 7/1/2016, no processo 1050/13.2 GCFAR.E1, acessível em www.dgsi.pt
[4] Diz-se no n.º 1 do citado art.º 81.º que “É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas”, esclarecendo o n.º 5 que se considera “sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial”.
[5] O art.º. 292.º, por seu turno, epigrafado de “Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas” pune com prisão até 1 ano ou multa “quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica”.
[6] Faz-se notar que um tal nível de concentração de THC é inferior a todos os limites previstos nas diversas legislações europeias como se dá nota no já citado “Canábis e Condução”, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, a págs. 10. A adopção de um sistema idêntico traria com certeza ganhos efectivos em termos de segurança e certeza na aplicação da lei, cuja alteração de há muito se impõe, o que é reconhecido no Despacho n.º 9543/2019, DR n.º 203/2019, Série II, de 2019-10-22 de suas Ex.ªs os Srs. Ministros da Justiça, Administração Interna e da Saúde, que determina a criação de um grupo de trabalho com a missão de estudar as alterações legislativas necessárias com vista a uma maior eficácia e simplificação da fiscalização e do sancionamento da condução sob influência de substâncias psicotrópicas.
[7] A igual conclusão se chegou, quer no aresto deste TRE antes citado, quer no TRL de 3/5/2018, no processo 7907/16.1 T8SNT.L1-2, em www.dgsi.pt, ambos citados pelo recorrente.
[8] Cfr. o já citado “Canábis e Condução”.
[9] Sendo manifesto o lapso constante da sentença, quando se proceda ao confronto entre o facto assente e o alegado em 7.º da petição, para que remete, procedeu-se à respectiva rectificação.
[10] Neste preciso sentido, o ac. do TRL antes citado.