Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5/17.2T8ENT.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: PERSI
CESSÃO DE CRÉDITO
CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE
Data do Acordão: 11/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – A cedência ou a transmissão de um crédito não podem importar uma desvirtuação do regime imperativo consagrado no Dec. Lei n.º 227/2012, de 25/10.
2 – Tendo a instituição de crédito perante a qual o cliente bancário contraiu o seu crédito procedido à respectiva cedência isso não pode significar o afastamento das exigências legais respeitantes ao PERSI, nomeadamente em sede de execução do crédito.
3 – Essa conclusão impõe-se mesmo no caso de não ser instituição de crédito a entidade cessionária, pois de outra forma a consequência seria defraudar os imperativos legais nessa matéria.
4 – A mesma conclusão impõe-se também face ao regime substantivo, segundo o qual a cessão de créditos não pode ser feita em detrimento da posição do devedor, ou com diminuição das suas garantias.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
A presente acção executiva para pagamento de quantia certa, sob a forma sumária, teve início por requerimento de 22-12-2016 em que figura como exequente o “BNP Paribas Personal Finance, S.A.” e como executados J… e N….
Como título executivo, foi apresentado um requerimento de injunção entrado no Balcão Nacional de Injunções em 22-03-2016 e ao qual foi aposta força executiva em 13-06-2016.
Nesse requerimento de injunção, que indicava estar em causa o período compreendido entre 03-08-2010 e 09-03-2016, o BNP alegou o seguinte para fundamentar a sua posição de exequente:
“I – DA SUCESSÃO DA LEGITMIDADE ACTIVA
1. O Banco BNP Paribas Personal Finance, S. A., com a anterior designação social Banco Cetelem, S.A., (…) incorporou, em 27 de Janeiro de 2010, por fusão, o CREDIFIN – Banco de Crédito ao Consumo, S.A. (…). (…)
3. Assim sucedendo o BNP Paribas Personal Finance, S. A., em todas as relações jurídicas anteriormente detidas pelo Banco Cetelem, SA, e pelo Credifin – Banco de Crédito ao Consumo, SA.”
Na pendência da execução assim instaurada, foi posteriormente habilitada na posição de exequente a sociedade “Hefesto STC, S.A.”, como cessionária dos créditos do exequente primitivo (cfr. despacho de 12-01-2021).
Prosseguindo os autos, e face ao alegado no requerimento executivo e no requerimento de injunção ao qual foi aposta fórmula executória, foi a exequente/cessionária convidada a esclarecer, atento o disposto no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10, se tinha sido dado cumprimento ao ali estipulado no tocante ao Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) – por entender o tribunal que “sendo o PERSI obrigatório, o seu cumprimento consubstancia uma condição objetiva de procedibilidade para a execução, impondo-se, por conseguinte, perante o seu eventual desrespeito, a absolvição do executado da instância por procedência de excepção dilatória inominada insanável, de conhecimento oficioso.
Notificada duas vezes para este efeito (despachos de 11-11-2020 e 12-01-2021), a exequente/cessionária habilitada nada disse ou juntou aos autos.
Foi então proferida a decisão que vem a ser a recorrida, com o seguinte teor:
“Cumpre apreciar e decidir, para o que, além dos demais supra citados factos, consideramos aqui assente que não foi demonstrado o cumprimento do PERSI e que o contrato identificado no requerimento de injunção dado à execução está efectivamente sujeito ao disposto no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10, tanto mais que, tratando-se de executados pessoas singulares em relação com a instituição bancária que instaurou a execução, não é difícil intuir que devem ser considerados clientes bancários.
Com efeito, no artigo 3.º, alíneas a) e c) do diploma em apreço atribui-se ao cliente bancário o estatuto de consumidor, na acepção dada pelo n.º 1 do artigo 2.º da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31/07, alterada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08/04, desde que intervenha como mutuário em contrato de crédito, entendido este como o contrato celebrado entre um cliente bancário e uma instituição de crédito com sede ou sucursal em território nacional que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo anterior, esteja incluído no âmbito de aplicação do presente diploma.
A tudo acresce que, não obstante a alegação de acordo com a qual o incumprimento se verificou em 03-08-2010, a exequente não alegou ou documentou a concreta data em que terá procedido à denúncia/resolução do contrato, sendo certo que apenas em 22-03-2016 deu entrada do requerimento de injunção no Balcão Nacional de Injunções.
Ora, o diploma em destaque entrou em vigor em 01-01-2013 (cfr. o respectivo artigo 40.º), dispondo o seu artigo 39.º, n.º 1, aqui com sublinhado nosso, que «[s]ão automaticamente integrados no PERSI e sujeitos às disposições do presente diploma os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias».
A este propósito, acompanhamos o entendimento plasmado pelo Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão de 19-02-2019 (disponível em www.dgsi.pt sob Processo n.º 144/13.9TCFUN-A.L1.S1), de acordo com o qual a exigência de integração de clientes bancários no PERSI apenas não ocorre se os respectivos contratos de crédito, à data da entrada em vigor do citado regime legal, já tiverem sido objecto de resolução ou denúncia com fundamento no incumprimento.
Neste contexto, é para nós evidente que, estando-se no âmbito de questão de conhecimento oficioso e atendendo aos prevalecentes interesses de protecção do consumidor que estão em jogo, o tribunal não pode in casu ficar refém do incumprimento daquele ónus de alegação e prova por parte da exequente, incumprimento que desse modo não poderá deixar de onerar a posição jurídica da mesma.
Como assim, e em conformidade com a cominação expressa antes dirigida à exequente/habilitada, entendemos estar perante o desrespeito de uma condição objetiva de procedibilidade, impondo-se, por conseguinte, a absolvição dos executados da instância por procedência de excepção dilatória inominada insanável, de conhecimento oficioso, o que acarretará a extinção da execução.
Na defluência de todo o exposto, decido julgar oficiosamente verificada a excepção dilatória inominada insanável decorrente da falta de demonstração do cumprimento pela exequente das obrigações decorrentes do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento instituído pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10, e, em consequência, absolver os executados J… e N… da instância executiva, com a consequente extinção da execução movida contra ambos – artigos 573.º, n.º 2, 576.º, n.ºs 1 e 2, 578.º, 726.º, n.º 2, alínea b), e 734.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.”
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II – A) O RECURSO
Não se conformando com o decidido, a exequente/cessionária deu entrada ao presente recurso de apelação, pretendendo a revogação da decisão proferida, e o consequente prosseguimento da execução.
A terminar o se requerimento de recurso indicou as conclusões em que apoia a sua pretensão, as quais se transcrevem:
“A. A Exequente surge como cessionária do Banco BNP Paribas Personal Finance S.A..
B. Assim, cedeu o crédito em causa à Exequente, por contrato de cessão de créditos que foi junto aos autos para todos os efeitos legais.
C. Neste sentido, nem o Credor Originário estava obrigado ao PERSI nem a atual credora, ora Exequente, o está, pois o referido diploma aplica-se unicamente a instituições de crédito.
D. Termos em que não deve ser dado cumprimento ao disposto no DL 227/2012, de 25/10, nem se verifica a exceção dilatória inominada fundada em falta de condição objetiva procedimental.
E. A excepção dilatória inominada que se invoca é configurada pela preterição do dever de integrar o devedor no regime do PERSI e de o informar da sua extinção, se tal fosse o caso.
F. É consensual e indiscutível que em causa nos autos as instituições de crédito são definidas no art. 2º-A, w) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL 298/92, de 31-12, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 23-A/2015, de 26 de Março, com inicio de vigência a 31 de Março de 2015, como “a empresa cuja atividade consiste em receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis e em conceder crédito por conta própria”, especificando o art. 3º do mesmo diploma as várias espécies de instituições de crédito e definindo o art. 4º as operações que podem efectuar.
G. Por sua vez, o art. 6º do RGICSF enuncia os tipos de sociedades financeiras, estatuindo no seu n.º 5 que “Não são sociedades financeiras as entidades reguladas no Regime Jurídico da Titularização de Créditos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de novembro, na sua redação atual, no Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo, aprovado em anexo à Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, na sua redação atual, e no Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado, aprovado em anexo à Lei n.º 18/2015, de 4 de março, na sua redação atual.”
H. O DL nº 453/99, de 5 de Novembro estabelece o regime das cessões de créditos para efeitos de titularização e regula a constituição e o funcionamento dos fundos de titularização de créditos, das sociedades de titularização de créditos e das sociedades gestoras daqueles fundos.
I. Nos termos do art. 39º do DL nº 453/99 “As sociedades de titularização de créditos adotam o tipo de sociedade anónima e têm por objeto exclusivo a realização de operações de titularização de créditos ou de riscos, mediante a sua aquisição, gestão e transmissão e a emissão de obrigações titularizadas para pagamento dos créditos ou dos riscos adquiridos.”
J. E acrescenta o art. 40º: “1 - A firma das sociedades de titularização de créditos deve incluir a expressão «Sociedade de titularização de créditos» ou a abreviatura STC, as quais, ou outras que com elas se confundam, não podem ser usadas por outras entidades. […]”
K. A Exequente possui a designação Hefesto, STC, S.A. pelo que, sabendo-se que apenas as sociedades de titularização de créditos podem incluir tal abreviatura, tem de aceitar-se que a Exequente não é uma instituição de crédito, nem tão-pouco uma sociedade financeira.
L. Estando antes abrangida pelo regime do DL 453/99, de 5 de Novembro e apenas pode ter por objecto social realização de operações de titularização de créditos ou de riscos.
M. Ora, é entendimento da jurisprudência, e parece ser incontroverso, o que não poderia deixar de ser, que a “eficácia da cessão pode ser conseguida através da citação do devedor para a acção declarativa ou executiva.” – neste entendimento, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º 29488/05.1YYLSB.L1-7, de 05/12/2009, relator Abrantes Geraldes.
N. Nestes termos, o momento da notificação do devedor da aludida cessão de créditos coincide com a citação para a ação judicial, concretizando-se implicitamente e simultaneamente com esta última.
O. A Exequente não está abrangida pelo âmbito de aplicação do regime instituído pelo DL 227/2012, de 25 de Outubro, não estando obrigada a promover as diligências necessárias à implementação do PERSI.”
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II –B) DA RESPOSTA
Os recorridos não apresentaram qualquer resposta ao recurso interposto.
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III – A FACTUALIDADE A CONSIDERAR
Os dados de facto e as ocorrências processuais a ter em conta para apreciação do recurso são os que foram expostos no relatório inicial, e mencionados nas conclusões da recorrente, para as quais remetemos.
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IV – O OBJECTO DO RECURSO
1 - Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelo recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, a questão colocada ao tribunal de recurso reduz-se em saber da exigibilidade nos autos da demonstração de cumprimento do disposto no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10 quanto à integração dos executados em PERSI, que a recorrente não fez e sustenta que não tem legalmente lugar in casu.
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V- APRECIANDO E DECIDINDO
Passemos então a conhecer da questão supra aludida.
Como se pode constatar, a recorrente não discorda do tribunal recorrido quando este considera que aplicando-se aos autos o disposto no Decreto-Lei n.º 227/2012 de 25/10 resulta da aplicação deste o reconhecimento da existência de uma condição objectiva de procedibilidade, de conhecimento oficioso, que não sendo satisfeita implica a absolvição da instância, como foi decidido.
Consiste essa condição objectiva de procedibilidade na integração dos executados, cliente bancários, em Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), nos termos previstos no diploma citado.
A discordância da recorrente com a decisão centra-se simplesmente na consideração de que essa exigência não é aplicável ao caso dos autos, por razões atinentes à natureza dela, exequente, que afastariam a aplicabilidade do diploma em causa.
Diz a recorrente em resumo que a sua condição de exequente surge como cessionária que foi do Banco BNP Paribas Personal Finance S.A., o qual lhe cedeu o crédito em causa, por contrato de cessão de créditos que foi junto aos autos, e assim sendo “nem o Credor Originário estava obrigado ao PERSI nem a atual credora, ora Autora, o está, pois, o referido diploma aplica-se unicamente a instituições de crédito”.
Termos em que não deve ser dado cumprimento ao disposto no DL 227/2012, de 25/10, nem se verifica a exceção dilatória inominada fundada em falta de condição objetiva procedimental.
A razão determinante para a não aplicabilidade do DL 227/2012 estaria portanto na natureza da própria instituição exequente: o diploma aplica-se apenas às instituições de crédito, e a exequente não é uma instituição de crédito mas sim uma “sociedade de titularização de créditos”.
Argumenta a recorrente:
A excepção dilatória inominada que se invoca é configurada pela preterição do dever de integrar o devedor no regime do PERSI e de o informar da sua extinção, se tal fosse o caso.
É consensual e indiscutível que em causa nos autos as instituições de crédito são definidas no art. 2º-A, w) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL 298/92, de 31-12, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 23-A/2015, de 26 de Março, com inicio de vigência a 31 de Março de 2015, como “a empresa cuja atividade consiste em receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis e em conceder crédito por conta própria”, especificando o art. 3º do mesmo diploma as várias espécies de instituições de crédito e definindo o art. 4º as operações que podem efectuar.
Por sua vez, o art. 6º do RGICSF enuncia os tipos de sociedades financeiras, estatuindo no seu n.º 5 que “Não são sociedades financeiras as entidades reguladas no Regime Jurídico da Titularização de Créditos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de novembro, na sua redação atual, no Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo, aprovado em anexo à Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, na sua redação atual, e no Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado, aprovado em anexo à Lei n.º 18/2015, de 4 de março, na sua redação atual.”
O DL nº 453/99, de 5 de Novembro estabelece o regime das cessões de créditos para efeitos de titularização e regula a constituição e o funcionamento dos fundos de titularização de créditos, das sociedades de titularização de créditos e das sociedades gestoras daqueles fundos.
Nos termos do art. 39º do DL nº 453/99 “As sociedades de titularização de créditos adotam o tipo de sociedade anónima e têm por objeto exclusivo a realização de operações de titularização de créditos ou de riscos, mediante a sua aquisição, gestão e transmissão e a emissão de obrigações titularizadas para pagamento dos créditos ou dos riscos adquiridos.”
E acrescenta o art. 40º: “1 - A firma das sociedades de titularização de créditos deve incluir a expressão «Sociedade de titularização de créditos» ou a abreviatura STC, as quais, ou outras que com elas se confundam, não podem ser usadas por outras entidades. […]”
A Exequente possui a designação Hefesto, STC, S.A. pelo que, sabendo-se que apenas as sociedades de titularização de créditos podem incluir tal abreviatura, tem de aceitar-se que a Exequente não é uma instituição de crédito, nem tão-pouco uma sociedade financeira.
Diremos, desde já, que a argumentação da recorrente se afigura francamente equivocada.
A aplicabilidade ao caso do disposto no DL 227/2012 em matéria de PERSI não está dependente da natureza da ora exequente, designadamente da circunstância de não ser uma instituição de crédito mas sim uma sociedade de titularização de créditos.
A entender-se de outro modo estaria encontrada a forma fácil de evitar a aplicação de um regime legal que o legislador quis estabelecer como imperativo, com a preocupação de proteger os consumidores/clientes bancários, frustrando-se desse modo as finalidades da legislação em causa.
Bastaria que as entidades junto de quem esses consumidores contraíram os créditos que se pretende executar os cedessem posteriormente a entidades que tivessem essa outra natureza, para que estas procedessem à execução sem esses empecilhos.
O âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10, tem que ser encontrado de acordo com as suas próprias disposições a esse respeito.
Assim, a delimitação do campo de aplicação do diploma tem a ver antes do mais com a protecção do consumidor, designadamente do cliente bancário nas suas relações com as instituições de crédito, e no caso dos autos não existe qualquer dúvida de que se trata de créditos concedidos originariamente por entidades bancárias, instituições de crédito no sentido definido pelas normas citadas pela recorrente, ou seja empresas cuja actividade consiste em receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis e em conceder créditos por conta própria (Banco Cetelem, SA, e CREDIFIN – Banco de Crédito ao Consumo, ambos depois reunidos no BNP Paribas Personal Finance SA).
Também não oferece dúvidas que os executados têm a natureza de clientes bancários/consumidores, que celebraram “um contrato de concessão de crédito destinado à aquisição de bens e serviços” de onde resultaram as obrigações trazidas a juízo, conforme se pode ler no requerimento de injunção.
Assim sendo, parece-nos insofismável a conclusão de que aplica-se efectivamente a essa relação o regime imperativo estabelecido no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10, e que as condições de procedibilidade exigidas nesse diploma, nomeadamente quanto ao PERSI, têm que estar reunidas no momento da instauração da execução, sob pena de existir a já mencionada excepção dilatória da falta dessa condição objectiva de procedibilidade, com a consequente absolvição da instância.
E essa circunstância não pode ser alterada pela transmissão dos créditos em causa, designadamente a uma instituição não financeira (v. g. uma Sociedade de Titularização de Créditos).
A este propósito teceram-se muito doutamente no Acórdão da Relação de Coimbra de 15-12-2021, relatado por Luís Filipe Cravo, e publicado em www.dgsi.pt , as seguintes considerações:
“Igualmente não procede o argumento de que sendo ela Exequente/embargada/recorrente uma Sociedade de Titularização de Créditos [“STC”] não lhe seria aplicável o dito regime do PERSI.
É certo que decorre do figurino legal que o mesmo é apenas diretamente aplicável às instituições de crédito.
Sucede que – como bem se sublinhou na decisão recorrida! – representaria uma fraude à lei não considerar que existia nessa circunstância um impedimento legal a que a instituição de crédito, credora mutuante, cedesse o seu crédito a quem não era uma instituição de crédito, na medida em que frustraria por completo os objetivos que presidiriam à consagração daquele especial regime.
A este propósito, e para uma situação com paralelismo com a dos autos [“cessão sucessiva”], já foi doutamente sustentado o seguinte:
«Por outro lado, no período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito [al. c)] ou transmitir a terceiro a sua posição contratual [al. d)].
Porém, nos termos do n.º 2 do citado normativo, a instituição de crédito pode ceder créditos para efeitos de titularização [al. b)] ou ceder créditos ou transmitir a sua posição contratual a outra instituição de crédito [al. c)]; neste último caso, sendo exigível que a cessionária seja outra instituição de crédito, “fica esta obrigada a prosseguir com o PERSI, retomando este procedimento na fase em que o mesmo se encontrava à data da cessão do crédito ou da transmissão da posição contratual” (n.º 3).
A razão de ser desta última exceção – permitir a cedência ou a transmissão do crédito de cliente bancário integrado em PERSI –, justifica-se desde que seja possível dar continuidade à aplicação do referido procedimento – o que poderá ser vantajoso em situações em que o cliente bancário consiga melhores condições com outra instituição de crédito –, pois caso contrário a cedência ou a transmissão poderia importar uma desvirtuação do regime, na medida em que se o cessionário não for uma instituição de crédito abrangida pelo âmbito de aplicação do Regime Geral não estaria obrigado a dar cumprimento ao PERSI (10). Ora, a nosso ver, também nesta parte são de acolher as considerações e a conclusão firmadas na decisão apelada, no sentido de que “a entidade bancária não podia ter cedido o crédito dos autos à exequente sem ter previamente cumprido as exigências legais, não podendo a ora exequente escudar-se na circunstância de não ser uma entidade de crédito para, desde modo, evitar que sejam cumpridas as exigências legais, não se descortinando em que medida a missiva que foi remetida pelo embargante à embargada (mencionada em 21º dos factos provados) consubstancia uma renúncia ao cumprimento das formalidades legais”.
Com efeito, de outro modo estaria encontrada uma via expedita para as instituições de crédito se subtraírem à obrigatória sujeição ao regime decorrente do Dec. Lei n.º 227/2012, bastando para o efeito que, em violação do estatuído no citado diploma legal, se abstivessem de integrar obrigatoriamente o cliente bancário no PERSI e cedessem o seu crédito a um terceiro que não é uma instituição de crédito, o que permitiria que este (cessionário) não ficasse sujeito às proibições ou impedimentos elencados no art. 18º e pudesse obter de imediato a satisfação do crédito cedido, sendo-lhe, por isso, lícito, sem quaisquer restrições, resolver de imediato o contrato de crédito com fundamento em incumprimento (art. 18.º, n.º 1, al. a)), intentar ações judiciais contra o mutuário, tendo em vista a satisfação dos respetivos créditos (al. b)), ceder a terceiros uma parte ou a totalidade do crédito em causa (al. c)) ou transmitir a terceiro a sua posição contratual (al. d)).
Tal representaria, fácil é de ver, uma autêntica fraude à lei, na medida em que frustraria por completo os objetivos que presidiriam à consagração daquele especial regime que visa tutelar as situações dos clientes bancários que se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, solução essa que deve ser rejeitada.”
Por outras palavras: a instituição de crédito perante a qual o cliente bancário contraiu o seu crédito e que está vinculada às obrigações estatuídas no DL 227/2012 em matéria de PERSI até pode excepcionalmente transmitir o seu crédito, por cedência, tanto a outra instituição de crédito como a outra instituição que o não seja, como é o caso de uma STC, o que pode suceder anteriormente ou no decurso da própria execução, mas isso não pode significar o afastamento das exigências legais respeitantes ao PERSI, concretamente em sede de execução do crédito.
Consequentemente, tendo ocorrido a cessão de créditos em causa (contra a possibilidade legal dessa cedência veja-se o Acórdão da Relação de Guimarães de 30-01-2020, relatado por Alcides Rodrigues, disponível também em www.dgsi.pt), e tendo a cessionária sido habilitada para assumir a posição de exequente, não pode, porém, essa circunstância afastar as exigências legais em matéria de exequibilidade do crédito.
Diga-se, ainda, que esta solução também se nos afigura a única compatível com a própria figura da cessão de créditos, regulada nos arts. 577º e seguintes do Código Civil. Com efeito, estamos perante uma modificação subjectiva na relação creditícia; o cessionário adquire a posição do cedente na titularidade do crédito. Mas essa simples transferência da relação obrigacional pelo lado activo não significa uma alteração do conteúdo do próprio crédito, com os seus ónus e garantias, e também com os meios de defesa que lhe correspondem. Isso mesmo consta dos termos do negócio, a cessionária adquiriu todos os direitos do cedente em relação a esses créditos, mas logicamente não poderia adquirir por essa via as faculdades legais que ele não tinha.
O cessionário adquire o direito cedido tal como ele existia na esfera jurídica do cedente, não podendo a cessão ser feita em detrimento da posição do devedor, ou com diminuição das suas garantias, até porque este não pode opor-se a tal cedência (cfr. art. 577º do Código Civil).
A posição do devedor não pode piorar ou agravar-se em virtude da transferência do crédito, sendo este um princípio axial nessa matéria. O legislador dispensou o consentimento do devedor para o efeito, mas em contrapartida consagrou especiais garantias de protecção, para que dessa transmissão não resulte prejuízo para ele (cfr. v. g. art. 585º do Código Civil – “O devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão”.”
Em suma, por consequência do que ficou dito, baseando-se a sua motivação unicamente na posição jurídica acima rejeitada, terminamos com a conclusão inevitável de que o recurso em apreço não merece acolhimento, impondo-se a confirmação da decisão impugnada, que não nos merece qualquer censura.
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VI - DECISÃO
Por tudo o exposto, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando em consequência a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente, dado o vencido (cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC).
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Évora, 24 de Novembro de 2022
José Lúcio
Manuel Bargado
Albertina Pedroso