Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
407/19.0T8ENT.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RENOVAÇÃO DO CONTRATO
OPOSIÇÃO
PROCESSO ESPECIAL
INTERPELAÇÃO
ACÇÃO DE DESPEJO
CAUÇÃO
RENDA
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - O facto de o senhorio poder efetuar a cessação do arrendamento por oposição à renovação por via extrajudicial, não o priva da possibilidade de recorrer a uma ação judicial destinada àquela oposição, visto o procedimento especial de despejo ser apenas um meio processual colocado à disposição do senhorio em alternativa à ação de despejo.
II - O regime da caução no contrato de arrendamento encontra-se regulado no nº 2 do artigo 1076º do CC e prevê que as partes podem caucionar, por qualquer das formas legalmente previstas, o cumprimento das respetivas obrigações.
III - Não se deve, contudo, confundir a caução com o pagamento antecipado de rendas. Este pagamento, previsto no artigo 1076º, nº 1, do CC, permite que, com o início do contrato de arrendamento, o arrendatário pague mais do que uma renda ao senhorio.
IV - Quando se dê o pagamento antecipado de renda(s) e considerando que o arrendamento terá a duração efetivamente prevista no contrato, o arrendatário não necessitará de proceder ao pagamento da(s) última(s) renda(s) que constam do contrato. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
A…, M…, J… e I…, instauraram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, contra R… e E…, pedindo que as rés sejam condenadas no despejo e entrega imediata do prédio urbano sito na Rua …, Entroncamento, e no pagamento da quantia de € 4.610,00 correspondente a rendas vencidas e não pagas e vincendas até à entrega do locado, e respetivos juros de mora.
Alegaram, em síntese, que deram de arrendamento à 1ª R. o referido imóvel, pela renda mensal de € 325,00, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior ao que respeita, tendo-se a 2ª ré assumido como fiadora no contrato, sendo que as rés deixaram de pagar as rendas referentes aos meses de abril de 2018 (parcialmente) e subsequentes a agosto de 2017, bem como o valor parcial de € 200,00 referente ao mês de fevereiro de 2017;
Os autores comunicaram atempadamente às rés a intenção de não renovação do contrato com efeito a partir de 31 de outubro de 2018, mas as rés não desocuparam o imóvel nem procederam ao pagamento de qualquer outra renda.
As rés apresentaram cada uma a sua contestação, alegando, no essencial, que pagaram as rendas em numerário após abril de 2018, e que no mês de março pagaram parte da renda por acordo com os senhorios, referindo ainda a 2ª ré a existência da cláusula nº 6 do contrato de arrendamento, da qual resulta que os autores, aquando da assinatura do contrato, receberam da 1ª ré a quantia correspondente à renda de um mês e de um mês de caução totalizando o valor de € 650,00.
Mais alegaram que os autores não observaram o prazo fixado para a não renovação do contrato, pelo que se mantiveram no locado até 31 de dezembro de 2018 e, em janeiro de 2019, com o acordo da mandatária dos autores, tendo feita a entrega das chaves do locado em 8 de fevereiro de 2018.
Foi realizada audiência prévia, sendo proferido despacho saneador tabelar, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, e conforme disposições legais acima citadas, decido:
- declarar a inutilidade superveniente da lide, e consequente extinção da instância, quanto aos pedidos de despejo e condenação de entrega do locado;
- julgar parcialmente procedente a presente acção e, em consequência condeno solidariamente as RR. no pagamento aos AA. da quantia de € 3.310,00 (três mil trezentos e dez euros), referente às rendas de Abril de 2018 (parcial) e Maio de 2018 a Fevereiro de 2019, acrescida de juros de mora nos termos fixados sobre as quantias em falta, desde o vencimento da obrigação até integral pagamento.
Custas nos termos determinados (art. 527º, n.º 1 e 2, do CPC).»
Inconformada, a 1ª ré apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com as conclusões que se transcrevem:
«i. De acordo com art.º 1083º do Código Civil: “É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas, ou de oposição pelo arrendatário à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos nºs 3 e 4 do artigo seguinte”.
ii. Conjugando tal preceito com o artigo 1084º nº 2 do Código Civil, inserido pelo legislador num contexto imperativo, harmonizando-o com o artigo 14º nº 1 do NRAU, partilhamos do entendimento que o legislador tomou uma concreta opção, não consentindo a nosso ver o uso de qualquer outra forma de processo que não a acção especial de despejo em que é competente o Balcão Nacional de Arrendamento.
iii. O recurso aos tribunais pressupõe a existência de um direito que careça da intervenção daqueles, a fim de se evitar algum prejuízo relevante para o seu titular. Exige-se uma “necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção” (Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág.171).
iv. Atendendo à factualidade considerada provada, assim como aos documentos juntos aos autos, concretamente ao contrato de arrendamento junto como documento n.º 3, verificamos na cláusula quinta do referido contrato que a Recorrente entregou à Autora aquando a assinatura do contrato, "Os Primeiros Outorgantes recebem do Segundo com a assinatura do presente contrato, o valor correspondente à renda de um mês e de um mês de caução totalizando € 650.00 (seiscentos e cinquenta euros)"
v. Ora, considerando o contrato de arrendamento junto aos autos pela Autora, impunha que na Douta sentença tal valor fosse descontado no valor das rendas em falta, considerando o acordado entre as partes, e devidamente comprovado nos autos.
vi. Bem assim como o valor que as RR. Despenderam com o arranjo/ concerto de um dos estores da habitação no valor de 60,00 (sessenta euros), porquanto os próprios AA. Nas suas declarações anuíram no mesmo.
vii. Acresce ainda que considerando o pagamento do valor de €650,00, o arranjo dos estores no valor de € 60,00 bem como as quantias entregues em dinheiro pela Ré, à Ilustre Advogada dos AA.
viii. Entende a Recorrente que a Autora deveria ter comunicado à Recorrente e à fiadora o montante em dívida, por carta registada com aviso de recepção ou por notificação judicial avulsa, nos termos do art. 1084º do C.C. e do art. 9º e 14º e 15º do NRAU.
ix. Contudo, os AA. Endereçaram as cartas com os nomes das duas Rés, nunca efectuaram nenhuma missiva à Recorrente Rita na qualidade de fiadora, mas usando a mesma carta da arrendatária sua mãe.
x. Parte das missivas enviadas não explanavam existirem rendas por liquidar, evidenciando pois que os AA. As consideravam liquidadas
xi. As declarações prestadas pelos AA. Deveriam ter sido consideradas pois estes corroboraram que as RR. Haviam entregado dinheiro à mandatária destes.
xii. Ninguém conseguiu ilidir essa presunção da entrega de valores pecuniários por parte das RR.
xiii. Pelo exposto, estamos perante um caso de ineptidão da petição inicial, pelo que nos termos e para os efeitos da alínea a) do n.º 2 do art. 186º do C.P.C., deveria o Ilustre
xiv. Julgador considerar nulo todo o processo.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir, atenta a sua precedência lógica, consubstanciam-se em saber:
- se o Tribunal recorrido é competente (absolutamente) para conhecer da pretensão dos autores;
- se é inepta a petição inicial;
- se ocorreu erro de julgamento, nomeadamente a não consideração, na sentença recorrida, do valor da renda antecipada e da caução pagas pela recorrente aquando da celebração do contrato de arrendamento.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1.1. Encontra-se inscrita pela ap. 190 de 2009/05/26, a aquisição por compra, a favor de A…, casado com M… sob o regime da comunhão geral de bens, de I… e de J…, da fracção autónoma correspondente à letra … do prédio urbano descrito sob o n.º … na Conservatória do Registo Predial do Entroncamento – art. 1º da petição inicial.
1.2. Em 31 de Outubro de 2017, A…, J… e I…, como primeiros outorgantes, e R…, na qualidade de segunda outorgante, e E…, na qualidade de terceiro outorgante, subscreveram o escrito particular designado de “Contrato de arrendamento para habitação com prazo certo ”, junto aos autos a fls. 13 e ss., mediante o qual declararam que:
“É celebrado entre si o presente contrato de arrendamento, que reduzem a escrito, destinado a habitação do prédio urbano em propriedade total, sito em Rua da … (…) Entroncamento, (…), fracção … descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º … (…)
Nos termos e com as cláusulas seguintes:
1. O contrato de arrendamento é COM PRAZO CERTO (…) pelo que se inicia em 1 de Novembro de 2017 e termina em 31 de Outubro de 2018.
2. No fim do prazo convencionado o contrato de arrendamento renova-se por períodos sucessivos de 1 ano enquanto não for denunciado pelo Senhorios ou pelo Inquilino.
3. Os Senhorios podem denunciar o contrato de arrendamento mediante comunicação ao Inquilino, feita com pelo menos 30 (trinta) dias de antecedência sobre o fim do prazo convencionado ou da renovação em curso, através de carta registada com aviso de recepção.
(…)
5. A renda é de € 325,00 (Trezentos e vinte e cinco euros), mensais, vence-se no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito, podendo ser paga até ao dia oito por transferência bancária para a conta dos Senhorios (…).
6. Os Primeiros Outorgantes recebem do Segundo com a assinatura do presente contrato, o valor correspondente à renda de um mês e de um mês de caução totalizando o valor de € 650,00 (Seiscentos e cinquenta euros).
(…)
8. O local arrendado destina-se a habitação, (…).
(…)
16. O aqui Terceiro Outorgante, fica obrigado, nos precisos termos em que fica o Segundo Outorgante, ainda que ocorram alterações aos valores de compensação a pagar mensalmente, renunciando, desde já e expressamente, ao benefício da excussão prévia e/ou qualquer direito que possa limitar ou restringir as suas obrigações como fiador e principal pagador (…)” – arts. 2º a 12º da petição inicial
1.3. As RR. começaram a habitar o imóvel referido em 1.2. em Novembro de 2017 – art. 13º da petição inicial.
1.4. Os AA. remeteram às RR., por carta registada com AR, enviada em 14 de Setembro de 2018 dirigida para o locado, o escrito de fls. 24 e ss., datado de 14 de Setembro de 2018, em que declararam que:
“ vêm por este meio (…) informar, pela presente via e em tempo, que de acordo com o disposto nas cláusulas primeira e terceira daquele Contrato de Arrendamento assinado não é intenção dos senhorios e proprietários manter válido o supra mencionado Contrato de Arrendamento, desvinculando-se, deste modo, ao seu cumprimento.
Desta forma, e de acordo com o que o dispositivo legal obriga, a presente correspondência cumpre pôr TERMO E FINALIZAÇÃO, tempestiva, ao presente e referido contrato de arrendamento e DAR POR TERMINADO o dito contrato, a partir da data de 31 de Outubro de 2018.” – arts. 27º da petição inicial.
1.5. O escrito referido em 1.4. foi devolvido aos AA. com a menção de “Objecto não reclamado” – art. 28º da petição inicial.
1.6. Os AA. remeteram às RR., por carta registada, o escrito de fls. 64 e ss., datado de 12 de Outubro de 2018, em que declararam que:
“ vêm por este meio (…) informar, pela presente via e em tempo, que de acordo com o disposto nas cláusulas primeira e terceira daquele Contrato de Arrendamento assinado não é intenção dos senhorios e proprietários manter válido o supra mencionado Contrato de Arrendamento, desvinculando-se, deste modo, ao seu cumprimento.
Desta forma, e de acordo com o que o dispositivo legal obriga, a presente correspondência cumpre pôr TERMO E FINALIZAÇÃO, tempestiva, ao presente e referido contrato de arrendamento e DAR POR TERMINADO o dito contrato, a partir da data de 31 de Outubro de 2018.” – art. 29º da petição inicial.
1.7. As RR. receberam o escrito referido em 1.6., pelo menos, em 22 de Outubro de 2018 – art. 29º da petição inicial.
1.8. As RR. procederam à entrega das chaves do imóvel à mandatária dos AA. data não anterior a 8 de Fevereiro de 2019 e não posterior ao termo do mesmo mês – art. 26º e 27º da contestação de fls. 57 e ss. e art. 31º da contestação de fls. 78 e ss.

E foram considerados não provados os seguintes factos:
2.1. As RR. despenderam com o arranjo/concerto de um dos estores da habitação no valor de € 60,00 – art. 6º da contestação de fls. 57 e ss.
2.2. As RR. procederam ao pagamento da totalidade da renda referente ao mês de Abril de 2018 e rendas subsequentes, tendo esses pagamentos sido feitos em dinheiro, no escritório da advogada dos AA. ou num restaurante explorado pela 2ª R. – art. 4º e 19º da contestação de fls. 57 e ss. e 8º e 10º da contestação de fls. 78 e ss.
2.3. Em resposta ao escrito referido em 1.6., a R. Rita Rodrigues remeteu aos AA. o escrito de fls. 66 em que declara:
“Cabe-me informar os Exmos. Que a carta teria que ser remetida com 120 dias de antecedência no mínimo (…), posto isto informo os Exmos. Que procederei à saída do imóvel no dia 31 de Dezembro de 2018.” – arts. 13º e 14º da contestação de fls. 57 e ss. e 17º da contestação de fls. 78 e ss.
2.4. No final de Dezembro de 2018 as RR. acordaram com a mandatária dos AA. que iriam permanecer no locado até ao final de Janeiro de 2019 – art. 18º da contestação de fls. 57 e ss.
2.5. Em finais de Janeiro de 2019, a 1ª R. dirigiu-se por várias vezes ao escritório da mandatária dos AA. a fim de entregar as chaves do imóvel referido em 1.2. – art. 24º da contestação de fls. 57 e ss. e arts. 28º e 29º da contestação de fls. 78 e ss.
2.6. Como a 1ª R. não conseguiu proceder à entrega das chaves pelo facto de o escritório referido em 2.4. se encontrar sempre encerrado, a 1ª R. enviou uma mensagem à mandatária dos AA., no dia 7 de Fevereiro de 2019, indicando que no dia seguinte iria entregar as chaves do imóvel – art. 25º da contestação de fls. 57 e ss.

O DIREITO
Da competência (absoluta) do Tribunal recorrido
Diz a recorrente que conjugando o artigo 1083º com o artigo 1084º, nº 2, ambos do Código Civil [CC], «inserido pelo legislador num contexto imperativo, harmonizando-o com o artigo 14º nº 1 do NRAU, partilhamos do entendimento que o legislador tomou uma concreta opção, não consentindo a nosso ver o uso de qualquer outra forma de processo que não a ação especial de despejo em que é competente o Balcão Nacional de Arrendamento».
Está, pois, aqui em discussão saber se os autores deviam ter recorrido ao procedimento especial de despejo, em vez de se socorrerem da presente ação.
O procedimento especial de despejo é, conforme o define o artigo 15º, nº 1, do NRAU, um «meio processual que se destina a efetivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes».
O procedimento especial de despejo destina-se, pois, a efetivar a cessação do arrendamento já operada, seja por revogação, caducidade ou denúncia, seja por resolução, nos casos em que esta possa concretizar-se sem intervenção judicial. Na prática corresponde a um procedimento de natureza executiva, ao qual servem de base os documentos que, segundo a lei anteriormente em vigor, eram considerados títulos executivos.
Trata-se, nas palavras de Rui Pinto[1], de um “processo especial sincrético”, isto é, declarativo e executivo, que se inicia com uma fase injuntória a que poderá seguir-se uma fase contenciosa, tendo em vista a formação de um título executivo, prosseguindo, se for o caso, com uma fase executiva, destinada à realização coativa do direito à entrega do locado.
Deduzida válida oposição ao requerimento de despejo, segue-se a fase contenciosa, que é “uma fase declarativa pura perante um juiz”[2] e que constitui, pois, um processo declarativo especial, a que se aplicarão, nos termos do artigo 549º, nº 1, do CPC, no que não estiver especialmente regulado, as regras gerais e comuns do Código do Processo Civil e, se for o caso, as regras do processo comum[3].
Escreveu-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 02.07.2019[4]:
«(…), o novo regime não acarreta ou visa, propriamente, poupança de recursos económicos, nem o afastamento dos tribunais: cria novas estruturas, que tenderão a servir com especial eficácia os legítimos interesses dos senhorios, mas sem se prescindir, se for necessário, da intervenção dos tribunais para dirimirem os litígios emergentes do legítimo acautelamento dos interesses dos arrendatários.
Note-se que,(…) o art.º 1048.º manteve a referência genérica à possibilidade de o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ser exercido judicialmente (n.º 1 do artigo), tendo inclusive sido aditado um n.º 4, que tem por objeto o exercício extrajudicial do direito à resolução do contrato por falta de pagamento de renda e de aluguer […].
Permanece, pois, aberta a via para os senhorios, na livre e independente apreciação dos seus interesses, optarem pelo meio judicial de prossecução da defesa da sua situação jurídica, mesmo no caso de incumprimento da obrigação de pagamento de renda. Desde logo, quando se pretenda a apreciação de cumulativos fundamentos de resolução que não possam operar extrajudicialmente […] Ou quando se desconheça o paradeiro do arrendatário […]».
Luís Menezes Leitão[5] defende atualmente «que, nos termos do artigo 15º, nº 1, do NRAU, o procedimento especial de despejo é apenas um meio processual colocado à disposição do senhorio em alternativa à ação de despejo, pelo que nada o impede de recorrer a essa acção em lugar de instaurar esse procedimento»[6], e que em tal «enquadramento, não há sequer lugar à suportação das custas pelo senhorio, nos termos do art. 535.º, n.º 2 c) do CPC, uma vez que o senhorio não dispõe atualmente de qualquer título executivo prévio à ação, só o podendo formar por recurso ao BNA».
Pensamos ser este o entendimento correto, «pois que em momento algum parece ter estado na intenção do legislador arredar a possibilidade de os senhorios lançarem mão da acção judicial para resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas, tanto mais que, na redacção actual do NRAU, (…), a comunicação ao arrendatário da resolução do contrato não constitui, por si só, título executivo, acarretando ainda a necessidade de intentar o procedimento especial de despejo, onde não deixa de estar prevista a possibilidade de oposição (cf. art. 15º-F do NRAU), pelo que não se vislumbra fundamento, sequer de economia processual, que justifique impedir o recurso à acção judicial»[7].
Não há, pois, qualquer dúvida sobre a competência (absoluta) do Tribunal recorrido para a presente ação.

Da ineptidão da petição inicial
A finalizar as conclusões, diz a recorrente que «estamos perante um caso de ineptidão da petição inicial, pelo que nos termos e para os efeitos da alínea a) do n.º 2 do art. 186º do C.P.C.», pelo que deveria o «Julgador considerar nulo todo o processo».
A falta de formulação do pedido ou de indicação da causa de pedir, traduzindo-se na falta de objeto do processo, constitui nulidade de todo ele por ineptidão da petição inicial, o mesmo acontecendo quando, embora aparentemente existente , o pedido e a causa de pedir é referido de modo tão obscuro que não se entende qual seja ou a causa de pedir é referida em termos tão genéricos que não constituem a alegação de factos concretos[8].
Ora, nada disto se verifica in casu, tendo os autores ora recorridos indicado o pedido e a causa de pedir de forma clara, pelo que só pode atribuir-se a alegação da recorrente – que, aliás, não está minimamente fundamentada – a um qualquer lapso, tão evidente é a sua falta de razão, pelo que nos dispensamos de tecer quaisquer outras considerações a este respeito, por despiciendas.

Do alegado erro de julgamento
Não tendo a recorrente procedido à impugnação da matéria de facto[9], tem-se por intocada a factualidade dada como assente pelo tribunal recorrido, situando-se assim o objeto do presente recurso no estrito plano da impugnação de direito, com os contornos assinalados supra.
Sustenta a recorrente que, atendendo à factualidade provada, assim como aos documentos juntos aos autos, designadamente o contrato de arrendamento junto como documento n.º 3, e do teor da respetiva cláusula quinta, que a recorrente entregou aos autores, com a assinatura do contrato, o valor correspondente à renda de um mês e de um mês de caução totalizando € 650,00, o qual deveria ter sido descontada no valor das rendas em falta, considerando o acordado entre as partes, e devidamente comprovado nos autos.
O regime da caução no contrato de arrendamento encontra-se regulado no nº 2 do artigo 1076º do CC e prevê que as partes podem caucionar, por qualquer das formas legalmente previstas, o cumprimento das respetivas obrigações.
Na prática significa que o senhorio pode exigir ao arrendatário o pagamento de uma caução em dinheiro, a fim de prevenir eventuais danos que este venha a causar no imóvel durante o período de tempo em que o ocupar.
A previsão da caução deverá constar expressamente do contrato de arrendamento, nomeadamente, o seu valor.
Caso não exista a necessidade de se proceder a qualquer reparação ou se o arrendatário tiver procedido às mesmas antes de entregar o imóvel, então, este poderá exigir ao senhorio a restituição do valor da caução prestada.
Não se deve, contudo, confundir a caução com o pagamento antecipado de rendas. Este pagamento, previsto no artigo 1076º, nº 1, do CC, permite agora que, com o início do contrato de arrendamento, o arrendatário pague mais do que uma renda ao senhorio. Na vigência do RAU permitia-se o pagamento antecipado de 1 mês de renda, atualmente permite-se, desde que estipulado no contrato, até um máximo de 3 rendas.
Quando se dê o pagamento antecipado de rendas e considerando que o arrendamento terá a duração efetivamente prevista no contrato, o arrendatário não necessitará de proceder ao pagamento das últimas rendas que constam do contrato.
No caso em apreço, a recorrente efetuou o pagamento antecipado de 1 renda, pelo que não lhe pode ser exigida a renda referente ao último mês do contrato.
Escreveu-se na sentença recorrida:
«(…), incumbia às RR. demonstrar o pagamento dos valores das rendas.
Ora, como emerge dos factos não provados, as RR. não lograram fazer prova de tal facto extintivo como lhes competia.
Assim, impõe-se a condenação das RR. no pagamento dos valores atinentes às rendas de Abril de 2018 a Fevereiro de 2019, altura em que foi restituído o locado:
- € 60,00 referente ao mês de Abril de 2018;
- € 325,00 x 10 referente aos meses de Maio de 2018 a Fevereiro de 2019,
Cumpre, pois, condenar solidariamente as RR. – a primeira na qualidade de arrendatária; a segunda na qualidade de fiadora, e nos termos do disposto no art. 634º do CC – no pagamento aos AA. do valor total de € 3.310,00.»
A sentença recorrida não teve, pois, em consideração, o teor da cláusula 6 do contrato de arrendamento.
Assim, ao referido montante de € 3.310,00, haverá que deduzir o valor da renda referente ao último mês do contrato, no valor de € 325,00, bem como o valor da caução, no mesmo valor - já que não foi alegado pelos autores haver necessidade de se proceder a qualquer reparação no locado -, o que perfaz o montante de € 650,00.
A alegação da recorrente na conclusão viii) carece de fundamento legal, além de que foi comunicado o que tinha de ser (cfr. ponto 1.7 dos factos provados).
O alegado nas conclusões ix), x), e xi) não encontra arrimo na matéria de facto provada.
Em suma, a apelação procede apenas no tocante ao valor das rendas a pagar pelas rés fixado na sentença, que se reduz para € 2.660,00.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, alteram a decisão recorrida, condenando as rés a pagar aos autores a quantia de € 2.660,00 (dois mil seiscentos e sessenta euros), referente às rendas de abril de 2018 (parcial) e maio de 2018 a fevereiro de 2019, mantendo no mais a sentença.
Custas em ambas as instâncias a cargo de autores e rés, na proporção dos respetivos decaimentos.
*
Évora, 11 de fevereiro de 2021
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Tomé Ramião (1º adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2º adjunto)
_______________________________________________

[1] Rui Pinto, Manual da execução e despejo, Coimbra Editora, 2013, pp. 1160 e 1169.

[2] Rui Pinto, ob. cit., p. 1191.

[3] Rui Pinto, ibidem.

[4] Proc. 3707/18.2T8LSB.L1-7, disponível, como os demais adiante citados sem outra indicação, em www.dgsi.pt.

[5] In Arrendamento Urbano, 8ª Edição, Almedina, p. 206.

[6] É esta a posição maioritária da doutrina, podendo ver-se, entre outros, Fernando de Gravato Morais, Novo Regime do Arrendamento Comercial, 2011, 3ª Edição, Almedina, pp. 255-257 e Rui Pinto, ob. cit., pp. 1083 e 1097 e seguintes. Na jurisprudência, além do citado Acórdão da Relação de Lisboa de 02.07.2019, podem ver-se, entre outros, os Acórdãos da mesma Relação de 11.12.2018, proc. Proc. 10901/17.1T8LSB.L1-2 e de 04.06.2020, proc. 777/18.7T8SXL.L1-2.

[7] Cfr. o citado Acórdão da Relação de Lisboa de 02.07.2019.

[8] Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum – À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, p. 47.

[9] Não obstante o teor das conclusões ix), x), xi) e xii), parecerem denotar da parte da recorrente algum inconformismo com a decisão relativa à matéria de facto, o certo é que a mesma não cumpriu minimamente os ónus a que alude o artigo 640º do CPC, pelo que sempre seria de rejeitar o recurso nessa parte.