Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
253/18.8GBSLV.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: CONDUÇÃO SOB A INFLUÊNCIA DE ESTUPEFACIENTES
EXAME MÉDICO
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Por oposição ao nº 1 do artº 292º do C.P. – relativo à condução sob o efeito de álcool – não basta, para o preenchimento do crime do nº 2 do mesmo preceito legal, que o condutor se encontre sob a influência de estupefacientes ou psicotrópicas, sendo necessário provar que isso o impede de exercer a condução com segurança.

2 - Essa conclusão não é adquirida por via do exame médico que visa assegurar que o condutor conduzia influenciado pelo consumo de estupefacientes.

3 - A valoração se tal consumo o impedia, ou não, de exercer a condução em segurança, é algo que transcende a mera perícia médica, exigindo ao julgador uma valoração probatória global, aferindo as circunstâncias do caso concreto e ponderando as regras da lógica, do senso comum e da experiência.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÂO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida


No processo comum com intervenção de tribunal singular nº 253/18.8GBSLV, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Silves, Juiz 2, submetido a julgamento por acusação do M.P., foi o arguido (...), condenado pela prática, como autor material, de um crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, p.p. pelos Artsº 292 nsº1 e 2 e 69 nº1 al. a), ambos do C. Penal, na pena de 85 (oitenta e cinco) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a pena global de € 510,00 (quinhentos e dez euros) e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, tendo concluído as respectivas motivações da seguinte forma (transcrição):


a)Foi o arguido (...) condenado pela prática, como autor material, de um crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, p.p. pelos Artigos 292.º n.ºs 1 e 2, e 69.º, n.º 1 al. a), do C. Penal, na pena de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a pena global de € 510,00 (quinhentos e dez euros), como também na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 03 (três) meses e 15 (quinze) dias (art. 69.º, n.º 1, al. a) do C. Penal;
b) Entende o arguido, ora recorrente, que a prova produzida foi mal valorada pelo Juiz a quo;
c) Uma vez que não foi feita qualquer prova de que o recorrente não se encontraria em condições de conduzir com segurança, por se encontrar sob a influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo;
d) Tendo sido o recorrente transportado para o hospital e efectuado recolha de sangue para realização de exame, o mesmo deu um resultado inferior a 50ng/ml, valor de referência no Quadro 2 anexa à Portaria 902-B/2007, de 13 de Abril;
e) Conforme consta no art.º16 da mencionada Portaria supra, os resultados serão considerados positivos quando os valores obtidos forem iguais ou superiores ás concentrações indicadas no Quadro 2, ou seja, superior a 50ng/ml;
f) Dita o princípio in dubio pro reo que a prova tem de ser sempre valorada a favor do arguido;
g) Não tendo sido produzida qualquer outra prova para além da supra mencionada contra o ora recorrente, o mesmo deveria ter sido absolvido sem mais;
h) Violou, assim, salvo outro entendimento, o tribunal a quo o art.º 16.º da Portaria 902-B/2007, de 13 de Abril, bem como o art.º 40º do Código Penal, 127º do Código de Processo Penal e art.º 32º da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exªs doutamente suprirão, deverá o douto acórdão, ora recorrido, ser revogado e substituído por outro que absolva o ora arguido do crime que vem acusado.

C – Resposta ao Recurso

O M. P, junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, manifestando-se pela sua improcedência, tendo concluído da seguinte forma (transcrição):
- O arguido foi condenado, como autor material de um crime de condução de veículo sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, p. e p. pelos arts. 292º, nºs 1 e 2, e 69º, nº 1, al. a) do CP, na pena de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a pena global de € 510,00 (quinhentos e dez euros).
- São elementos integradores do crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópica: a condução de veículo, com ou sem motor, na via pública ou equiparada; que o condutor se encontre sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica; que devido à influência de tais estupefacientes, substâncias ou produtos, o condutor não esteja em condições de fazer com segurança tal condução; e que o agente tenha atuado pelo menos com negligência.
- Ou seja, não basta a presença de estupefaciente, substância psicotrópica ou produto com efeito análogo no corpo, sendo necessário que a mesma influencie e torne o condutor incapaz de conduzir com segurança, sendo este um facto a apurar, tal como sucedeu quando o Tribunal a quo deu como provados os pontos 5. a 8. e referiu que “da conclusão pericial de fls. 34, al. g) (…) pode assim extrair-se, por dedução cientificamente firmada, que a influência de substâncias psicotrópicas em que o arguido se encontrava diminuiu a sua destreza na condução, afectando o seu sentido de orientação e retardando os seus reflexos, facto que foi determinante para a produção do acidente, em consequência do factor de risco acrescido”.
- Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 24.05.2016, no âmbito do processo nº 20/12.2PTBJA.E1, disponível in www.dgsi.pt, a prova de que o condutor se encontrava em estado de influenciado por substâncias psicotrópicas terá de ser feita por algum dos meios médico-periciais respetivamente previstos nos arts. 12.º e 13.º do Regulamento anexo à Lei n.º 18/07 de 17/5, sendo admissível lançar mão do segundo apenas quando a produção do primeiro se mostrar inviável, mas a demonstração de que o mesmo não está em condições de conduzir com segurança operar-se-á mediante a consideração de todo acervo probatório, pericial ou não.
- Conforme se pode ler no Acórdão da Relação de Évora, datado de 11.07.2013, no âmbito do processo nº 109/11.5GCSTB.E1, disponível in www.dgsi.pt, “não se pode fazer depender a verificação da falta de condições de segurança para a condução decorrentes do consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas de um elemento científico ou pericial que, em concreto, confirme que o agente, naquela determinada ocasião, não se encontrava na posse da totalidade das suas aptidões ou capacidades para o exercício da condução. Essa exigência, de demonstração cirúrgica, de que o condutor tinha esta ou aquela função diminuída, em função do consumo daquele tipo de produto ou substância, só assim se podendo concluir que não podia conduzir com segurança, seria, na prática, quase irrealizável, ou pelo menos, faria recair a demonstração do crime naquilo a que comummente se denomina por prova diabólica”.
- Continua o citado aresto “Não se fala aqui de estabelecer um qualquer nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de drogas no sangue e o acidente ocorrido, mas apenas de se consignar uma verdade que parece ser pouco discutível: a de que quem conduz influenciado sob o efeito de tais substâncias está a colocar em perigo, não só a sua vida e integridade física, mas também, a vida e a integridade física de todos aqueles com quem se cruza na estrada. Se assim não fosse seria incompreensível a inserção sistemática efetuada pelo legislador no que respeita ao crime em referência”.
- Ora, se a prova da influência do consumo de estupefacientes sobre o condutor terá de resultar de perícia médica, já a demonstração de que tal consumo o impedia de conduzir com segurança pode e deve, ser logrado, com todos os elementos de prova que o julgador disponha, numa valoração probatória responsável, ponderando o caso concreto e apoiando-se, como em toda a atividade jurisdicional, no conhecimento adquirido por via das regras de experiência, da razoabilidade das coisas e da normalidade da vida.
- O princípio in dubio pro reo, sendo corolário da garantia constitucional da presunção de inocência (art. 32º, n.º 2, CRP), constitui princípio probatório, dirigido à apreciação dos factos objeto de um processo penal e impõe que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos imputados ao arguido, o tribunal deve decidir a favor deste.
- O tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção (cfr. art. 127º do CPP), regendo, pois, o princípio da livre apreciação da prova, o qual significa, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
- No caso em apreço, salvo melhor opinião, não há qualquer dúvida razoável e insanável: a circunstância de ter resultado apurado que o arguido embateu no veículo conduzido por (…) (que, segundo declarações da mesma, não se recorda do momento do embate, nem dos dias seguintes, tendo ficado com amnésia, na sequência do embate), numa reta com boa visibilidade, quando conduzia um veículo automóvel sob a influência de estupefacientes, apresentando, após a sua verificação, um grande nervosismo (conforme referem os Militares da GNR inquiridos), aliado à quantidade de estupefaciente já aludida, é suficientemente demonstrativo, em face da experiência comum e da normalidade das coisas, de que o mesmo não se encontrava em condições de efetuar uma condução segura.
- Mais acresce que o relatório pericial de fls. 34, esclarece, sem margem para dúvidas, qual o nível da interferência na condução da presença de 33ng/ml de 11-Nor-9-Carboxi-D9-Tetrahidrocanabinol (THC-COOH); 1,4ng/ml de D9-Tetrahidrocanabinol (THC) e 0,6ng/ml de 11-Hidroxi-D9-Tetrahidrocanabinol (11-OH-THC) no sangue.
- O art. 10º da Lei nº 18/2007 de 17/5 (que aprova o regulamento de fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas) estabelece que “A detecção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação”. Quanto ao primeiro, que se destina apenas a indicar a presença de substâncias daquela natureza, é efectuado “através de testes rápidos a realizar em amostras biológicas de urina, saliva, suor ou sangue” (nº 1 do art. 11º do referido diploma), “sendo os resultados considerados positivos quando os valores obtidos forem iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo V” (art. 16º da Portaria nº 902-B/2007 de 13/8, que veio regulamentar, nomeadamente, “os tipos de exames médicos a efectuar para detecção dos estados de influenciado por álcool ou substâncias psicotrópicas”), ou seja, de 50 ng/ml para o grupo dos canabinóides.
- No caso dos autos, o recorrente não foi submetido a exame de rastreio, tendo sido conduzido directamente ao hospital onde lhe foi feita a colheita de sangue, pelo que perde acuidade a alegada violação do disposto no art. 16º e no Quadro 2 anexo à Portaria 902-B/2007, de 13 de Abril, por parte do Tribunal a quo.
- Face ao exposto, não incorreu o Tribunal a quo em qualquer violação do disposto no o art. 16.º da Portaria 902-B/2007, de 13 de Abril, bem como do art. 40º do CP, do art. 127º do CPP ou do art. 32º da CRP.
Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso do arguido, (...), não merece provimento, pelo que deverá manter-se integralmente a douta sentença recorrida.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador Geral Adjunto, que pugnou pela improcedência do recurso.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Na verdade e apesar de o recorrente delimitar, com as conclusões que extrai das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este, contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.
In casu, e cotejando a decisão em crise, não se vislumbra qualquer uma dessas situações, seja pela via da nulidade, seja ainda, pelos vícios referidos no nº2 do Artº 410 do CPP, os quais, recorde-se, têm de resultar da sentença recorrida considerada na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos que à mesma sejam estranhos, ainda que constem dos autos.
Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada (Artº 410 nº3 do CPP).
Posto isto, inexistindo qualquer questão merecedora de aferição oficiosa, o objecto do recurso reporta-se à invocação e um erro de julgamento, por deficiente apreciação valoratória da prova produzida, não estando preenchido o crime pelo qual o arguido foi condenado, devendo, por isso, dele ser absolvido.

B – Apreciação

Definida a questão a tratar, importa considerar o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida.
Aí, foi dado como provado e não provado, o seguinte (transcrição):

II – DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A) DOS FACTOS PROVADOS
Da discussão da causa, e com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 05/05/2018, pelas 11h07m, o arguido conduzia o veículo matrícula (…), na EN (…).
2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido entrou em despiste e embateu no veículo, matrícula (…), conduzido por (…).
3. O arguido, a condutora do veículo matrícula (…) e a passageira deste, (…), foram transportados para o Hospital do Barlavento Algarvio, em Portimão.
4. Uma vez que não se logrou efectuar o teste de alcoolemia por ar expirado no local, foi efectuada colheita de sangue no HBA.
5. Remetidas as respectivas análises toxicológicas ao sangue para despiste de álcool e substâncias psicotrópicas, o arguido apresentou resultado positivo para o consumo de canabinóides, respectivamente 33ng/ml de 11-Nor-9-Carboxi-D9-Tetrahidrocanabinol (THC-COOH); 1,4ng/mL de D9-Tetrahidrocanabinol (THC) e 0,6ng/ml de 11-Hidroxi-D9-Tetrahidrocanabinol (11-OH-THC).
6. A influência de substâncias psicotrópicas em que o arguido se encontrava diminuiu a sua destreza na condução, afectando o seu sentido de orientação e retardando os seus reflexos, facto que foi determinante para a produção do acidente.
7. O arguido colocou-se voluntariamente naquelas condições através do consumo de canabinóides e assumiu a condução do referido veículo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que, em tais condições, não lhe era permitido conduzir veículos na via pública, bem sabendo das consequências legais da sua conduta.
8. Ao conduzir da forma descrita, sabendo que antes de iniciar a condução tinha consumido substâncias psicotrópicas que lhe limitavam o discernimento e lucidez necessários ao exercício da condução rodoviária e, sem se certificar que conduzia em segurança, para si e para quem circulava naquela via de trânsito, fazendo com que o veículo que conduzia embatesse com o veículo conduzido por (…), o arguido revelou uma total e completa falta de cuidado que o dever geral de previdência aconselha e que podia e devia ter para evitar um resultado que, de igual modo, podia e devia ter previsto.
9. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei penal.
10. O arguido encontra-se a estudar no 12.º ano, num curso para técnico de electricidade.
11. O arguido vive com a sua companheira, a qual tem uma filha com 1 ano de idade.
12. Habitam em casa arrendada por 500,00 € mensais.
13. O arguido recebe do “Fundo de Desemprego” 513,00 € mensais.
14. O arguido não possui antecedentes criminais (fls. 150).

B. DOS FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.

B.1. Erro de julgamento/Inexistência de crime

Impugna o recorrente o facto de se ter dado como provado que tenha conduzido o veículo sem estar em condições de segurança para o fazer e que tal circunstância tenha sido determinante para a produção do acidente.
Mais alega, que o resultado do exame ao sangue que lhe foi efectuado, que acusou um consumo de canabinóides de 33 ng/ml é inferior a 50 ng/ml, valor exigido pelo Quadro 2 da Portaria 902-B/2007, de 13 de Abril para que se possa considerar positivo para o cometimento do crime tipificado no Artº 292 nº2 do C. Penal.
Há, assim, por um lado, a invocação de um erro de julgamento, decorrente do Artº 412 nº3 do CPP, e não, de um erro/vício da sentença, previsto no nº2 do Artº 410 do mesmo diploma legal, sendo a base do recurso, nesta parte, a incorrecta e deficiente apreciação da prova pericial produzida na audiência de julgamento pelo tribunal recorrido em relação à matéria em causa, a qual, de forma directa, implica, no entender do recorrente, um errado enquadramento jurídico-criminal.
Importa ver, assim, como na sentença recorrida se justificou a motivação da decisão de facto (transcrição):

C. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do tribunal, no que respeita aos factos provados, estribou-se na análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art.º 127.º do Código de Processo Penal), como se passa a expor.
O arguido prestou declarações. Descreveu o acidente dizendo que viu o outro veículo, a alguma distância, e que este se imobilizou no meio da estrada (onde havia um sinal de «stop», tendo sido impossível evitar a colisão. Reconheceu ter fumado um «charro» na noite de quinta para sexta-feira (o acidente deu-se num sábado de manhã), mas salienta que se sentia bem para conduzir, lembrando-se de como tudo ocorreu (dinâmica do acidente).
Foi colaborante e esclareceu as suas condições familiares, sociais e económicas.
Foram relevantes os depoimentos dos militares da GNR que tomaram conta da ocorrência: (…). Estes disseram que resultaram dois feridos ligeiros e um ferido grave. Explicaram que não foi realizado teste de rastreio no local, porque havia uma pessoa gravemente ferida; e porque não havia meios para detectar estupefacientes. Já (…), que ficou gravemente ferida, explicou que sofreu amnésia e que não se lembra de como o acidente se deu. Lembra-se dos instantes que o precederam, quando se encontrava parada no sinal de «stop».
O arguido conduzia com um factor de risco de acidente, como resulta da conclusão pericial de fls. 34, al. g), dado o resultado do exame toxicológico de fls. 8, relevando-se ainda o auto de notícia de fls. 3. Desta conclusão pericial pode assim extrair-se, por dedução cientificamente firmada, que a influência de substâncias psicotrópicas em que o arguido se encontrava diminuiu a sua destreza na condução, afectando o seu sentido de orientação e retardando os seus reflexos, facto que foi determinante para a produção do acidente, em consequência do factor de risco acrescido.

Afirma o recorrente que não se produziu prova bastante de que no momento em que ocorreu o acidente conduzisse sob influência de estupefacientes, na medida em que o factor determinante para a produção do mesmo não foi o seu consumo daquelas substâncias, mas antes, a súbita paragem, por motivos desconhecidos, no meio da estrada, do veículo conduzido por (…), sendo certo que o exame ao sangue por si efectuado não pode servir como meio de prova face ao resultado que dele se extrai.
Mais invoca, como se disse, a impossibilidade de considerar como positivo o resultado do exame que fez ao sangue, por ser de valor inferior ao que, para tanto, é estipulado pelo Quadro 2 da Portaria 902-B/2007, de 13 de Abril para efeitos da incriminação do crime previsto no Artº 292 nº2 do C. Penal.
Pela intrínseca ligação desta alegação à aferição jurídica, veja-se, desde já, como na sentença recorrida se produziu a fundamentação de direito (transcrição):

III – DA FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Cumpre agora proceder ao enquadramento jurídico-penal da factualidade descrita.
O arguido vem acusado da prática de determinados factos que o terão feito incorrer no crime de condução de veículo sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, p. e p.
pelos artigos 292.º, n.ºs 1 e 2, e 69.º, n.º 1, al. a) do C. Penal.
Dispõe o art.º 292.º, n.º 1, do C. Penal, que «Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».
Na mesma pena incorre quem, encontrando-se sob influência de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, não estiver em condições de exercer a condução com segurança – n.º 2 do preceito.
Trata-se de um crime de perigo abstracto em que não se exige a produção de um concreto resultado, mas em que o perigo é, tão-só, a motivação do legislador para punir tal conduta.
Quer isto dizer que o tipo de ilícito em apreciação se consuma com a conduta do agente que conduz um veículo na via pública com estupefaciente no sangue, o que oferece uma maior perigosidade ante a possibilidade ou mesmo iminência de ocorrência de danos para outros bens jurídicos, maxime pessoais, como a vida ou a integridade física, no âmbito da circulação estradal.
Existe, pois, uma presunção por parte do legislador, as mais das vezes fundada numa observação empírica, de que a situação – de condução em estado de embriaguez ou semelhante – é perigosa em si mesma, tendo em vista bens jurídicos penalmente tutelados (cfr. PAULA RIBEIRO DE FARIA, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 1999, pág. 1093), sendo certo que o bem jurídico protegido pela norma é a segurança da circulação rodoviária.
Com esta incriminação pretendeu-se evitar, ou pelo menos, manter dentro de certos limites, a sinistralidade rodoviária, que tem vindo a aumentar, drasticamente, no nosso país e punir aquelas condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a segurança da circulação rodoviária (cfr. Actas 1993, n.º 49, art.º 286.º, in PAULA RIBEIRO DE FARIA, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 1999, pág. 1079).
São elementos objectivos deste tipo de ilícito:
a) A condução;
b) De veículo com ou sem motor;
c) Em via pública ou equiparada;
d) Sob influência de estupefacientes ou psicotrópicos;
e) Sem condições de segurança.
Relativamente ao tipo subjectivo de ilícito, cabe referir que este tipo legal tanto pode ter lugar
a título doloso como negligente.
Da factualidade julgada provada, dúvidas não restam de que arguido cometeu o crime em apreço. O arguido conduzia com um factor de risco de acidente, como resulta da conclusão pericial de fls. 34, al. g), dado o resultado do exame toxicológico de fls. 8, relevando-se ainda o auto de notícia de fls. 3, como se afirmou acima.
Importa analisar as questões invocadas na douta contestação. Em primeiro lugar, ficou claro que não havia nos autos lugar a exame preliminar, de rastreio, dada a gravidade das consequências do acidente. Por outro lado, a perícia é muito assertiva em relação ao risco adveniente – no caso concreto – da condução com a substância mencionada. Trata-se de um risco actual e concreto, que foi verificado, resultante da concentração existente no sangue do arguido. De resto, a concentração mencionada pelo arguido, medida em nanogramas, refere-se à urina e não à presença no sangue – artigos 8.º, n.º 1, als. a) a d) e 15.º, da Lei n.º 18/2007, de 17/05, e Anexo V à Portaria n.º 902-B/2007, de 13/08. O Quadro 2 referido na contestação não tem aqui aplicabilidade.
Não pode simplesmente olvidar-se que aquela mesma concentração no sangue, referida nos factos provados, induzia um risco concreto de acidente, o qual veio a acontecer, sendo incontestável a existência de um nexo de causalidade entre aquela influência e o acidente ocorrido, na realidade.
Em face dos elementos apurados com a produção de prova, conclui-se que o arguido, com a sua conduta, preencheu os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito, cometendo, assim, o crime referido na acusação, com dolo directo (art.º 14º, n.º 1, do C. Penal) (sabia que conduzia com substância estupefaciente no sangue, por previamente ter consumido cannabis).
Pelo que, e em conclusão, não se verificando quaisquer elementos susceptíveis de integrarem uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, em face da matéria que resultou provada, resta referir que o arguido, com a sua conduta, preencheu todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime sub judice, cometendo, assim, um crime de condução de veículo sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, p. e p. pelos artigos 292.º, n.ºs 1 e 2, e 69.º, n.º 1, al. a) do C. Penal.

Dispõe o Artº 81 nº4 do Código da Estrada que “Considera-se sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial
A legislação complementar a que se refere o Código da Estrada traduz-se na Lei 18/2007 e Portaria 902-B/2007, que a regulamentou.
Determina o Artº 10 desta Lei que “A detecção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação.”
Por sua vez, no seu Artº 11 regula-se o dito exame de rastreio, a realizar através de amostras biológicas de urina, saliva, suor ou sangue, obtendo-se com o seu resultado, apenas e tão só, a indiciação da presença de substâncias psicotrópicas no organismo do condutor.
Nesse caso, deve ser realizado, pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e através de amostra de sangue, o chamado exame de confirmação.
Efectuando uma breve comparação com o modo de detecção de álcool no sangue torna-se evidente que a detecção das substâncias estupefacientes é algo equivalente, ainda naturalmente adaptada a uma realidade distinta: enquanto no caso do álcool se faz uma primeira análise qualitativa, através de ar expirado, utilizando aparelho próprio e apenas, perante a presença de álcool no sangue se passa para o exame quantitativo, no caso dos estupefacientes é feito um primeiro exame de rastreio e apenas perante a presença de tais substâncias é que se passa para o exame de confirmação, realizado através de análise sanguínea, pelo Instituto Nacional de Medicina Legal.
A realização do teste de despistagem tem a ver com a economia de meios (porque seria impraticável a realização do teste quantitativo em todas as pessoas fiscalizadas) sendo certo que o resultado positivo não serve de prova para acusação em processo penal.
Porém, a realização directa de análises sanguíneas – vulgar em caso de acidente de viação em que os sinistrados são transportados ao hospital – não representa nenhuma nulidade de prova, porquanto os direitos dos cidadãos são integralmente respeitados, apenas significando que se salta a fase da despistagem passando-se directamente ao exame pericial, que identificará o estupefaciente em concreto e o seu nível de concentração.
Ora, foi precisamente esta a situação dos autos, em que o recorrente, na sequência do acidente de viação, foi transportado ao Hospital onde, com cumprimento das formalidades legais, foi submetido a uma recolha de sangue, apresentando resultado positivo para o consumo de canabinóides, respectivamente 33ng/ml de 11-Nor-9-Carboxi-D9-Tetrahidrocanabinol (THC-COOH); 1,4ng/mL de D9-Tetrahidrocanabinol (THC) e 0,6ng/ml de 11-Hidroxi-D9-Tetrahidrocanabinol (11-OH-THC).
Estipula o Artº 292 do C. Penal sob a epígrafe, Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, o seguinte:
1.Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal
2 - Na mesma pena incorre quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.
Em tal crime, os valores tutelados pela incriminação são a segurança da circulação rodoviária, das pessoas, da vida, integridade física e até dos seus bens, na sequência da «…sinistralidade rodoviária que tem vindo a aumentar assustadoramente nos nosso país…» assim se «…punido todas aquelas condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a segurança deste tipo de circulação…» como se diz no Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, págs. 1079/1080.
Daí que se entenda que o crime de condução em estado de embriaguez é um crime de perigo comum abstracto, sendo assim definido na obra atrás citada:
Trata-se de uma infracção de mera actividade em que o que se pune é simplesmente o facto de o agente se ter disposto a conduzir na via pública sob o efeito do álcool, existindo apenas uma presunção empírica, de que a situação é perigosa em si mesma, ou seja, que na maioria dos casos em que essa conduta teve lugar demonstrou ser perigosa sob o ponto de vista de bens jurídicos penalmente tutelados
Também Silva Dias, em “Uma Análise das Descontinuidades do Ilícito penal Moderno à luz da Reconstrução de uma Distinção Clássica”, 2008, Coimbra Editora, págs. 254, 255, 499 e 798, distingue entre crime de perigo presumido que não admite a prova em contrário e crime de perigo abstracto que admite prova em contrário.
Considera este autor que o tipo legal de crime da previsão do nº1 do Artº 292 do Código Penal plasma um crime de perigo presumido, que não admite prova em contrário e o crime do nº2 um crime de perigo abstracto, que admite prova em contrário.
Nesta linha de raciocínio, não se desconhece a existência de alguma jurisprudência (Acórdãos da Relação de Coimbra de 06/04/11 e da Relação do Porto de 07/07/11, relatados, respectivamente, pelos Desembargadores Jorge Dias e Coelho Vieira, ambos disponíveis em www.dgsi.pt), que exige, para o preenchimento do crime do nº2 do Artº 292 do C. Penal, a prova de que o condutor, em consequência da ingestão dos produtos estupefacientes ou das substâncias psicotrópicas, não estivesse em condições de conduzir com segurança.
Segundo tal entendimento «Assim, também entendemos que a presença de produto psicotrópico no corpo do condutor, a mesma tem de ser “perturbadora da aptidão física, mental ou psicológica” para a condução. Não se apurando tal facto, apenas fica demonstrado que o arguido se encontra sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, o que não preenche o tipo de crime do art. 292 nº 2 do CP, mas preenche os elementos da contra-ordenação prevista no art. 81 do C. Estrada, porque, para tal, basta conduzir sob a influência de produtos psicotrópicos, “É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas”.

O art. 292 nº 2 do CP não prevê o típico crime de perigo comum. Não basta a presença de substância psicotrópica no corpo, é necessário que a mesma influencie e torne o condutor incapaz no caso concreto - e com o devido respaldo pericial -, de conduzir com segurança (e também independente do resultado danoso que possa haver). Diferente é a previsão do nº 1, em que basta a taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l, independentemente da influência que essa taxa de álcool exerça no condutor, ou mesmo que não afecte as condições de condução com segurança» ( Cfr. segundo dos arestos citados).
Com o muito e devido respeito, discorda-se, todavia, destas decisões jurisprudenciais, apenas e tão só, na parte em que as mesmas assentam na imprescindibilidade, para a aferição da perturbação física e mental do condutor em consequência do consumo de estupefacientes, da realização do exame médico a que alude o modelo do anexo VII da Portaria 902-B/07 de 13/08.
São matérias que estão intimamente conexas e que nas decisões citadas são decididas de igual forma e que, ainda que ligadas, são autónomas e com âmbitos de aplicação distintos.
A questão do exame médico prende-se com os requisitos necessários para se poder concluir que um determinado indivíduo conduziu uma viatura sob influência do consumo de estupefacientes.
Trata-se, assim, de uma matéria de prova, que releva em termos factuais, no sentido de saber quais são as exigências legais, no domínio pericial, para se dar como provado esse facto, essencial á condenação pelo crime do nº2 do Artº 292 do C. Penal: a condução sob o efeito de produtos estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.
Mas o nº2 desta norma, introduzido pela Lei nº 77/2001, estabeleceu uma outra exigência para a sua punição, uma espécie de cláusula geral penal quando refere "não estando em condições de o fazer com segurança"
Deste modo e por oposição ao seu nº1 – relativo à condução sob o efeito de álcool – não basta, para o preenchimento do crime, que o condutor se encontre sob a influência de estupefacientes ou psicotrópicas, sendo necessário provar que isso o impede de exercer a condução com segurança.
Onde se discorda, contudo, do atrás decidido é que essa conclusão apenas possa ser adquirida por via do exame médico que atrás se mencionou.
Na verdade, este exame visa assegurar que o condutor conduzia influenciado pelo consumo de estupefacientes, mas a valoração se tal consumo o impedia, ou não, de exercer a condução em segurança, é algo que transcende a mera perícia médica, exigindo ao julgador uma valoração probatória global, aferindo as circunstâncias do caso concreto e ponderando as regras da lógica, do senso comum e da experiência.
A insegurança na condução dependerá, assim, do circunstancialismo do caso concreto, não se podendo olvidar o comum conhecimento dos efeitos do produto estupefaciente ou substância psicotrópica sobre o organismo humano e a noção, consabida, da diminuição que o seu consumo significativamente provoca em determinadas funções e aptidões humanas, nomeadamente, as necessárias para o exercício da actividade da condução.
Estamos, como se disse, perante um crime de perigo comum, contra a segurança das comunicações rodoviárias, que visa punir condutas que violem determinados bens jurídicos que necessitam de ser tutelados, face à dinâmica evolutiva da sociedade actual, nomeadamente, no que concerne aos avanços tecnológicos, susceptíveis de fazerem perigar o bem estar e segurança da comunidade em geral.
Sendo as características de tais substâncias sobejamente conhecidas pela comunidade em geral, o agente que exerce a condução sob o efeito do consumo de estupefaciente ou substância psicotrópica, sabe que tal consumo lhe diminuirá tais aptidões, e que, por via disso, poderá potenciar a criação de resultados anómalos e danosos, nomeadamente a ocorrência de acidentes de viação, colocando em causa a segurança da circulação rodoviária e, reflexamente, outros bens jurídicos penalmente tutelados, como a vida, a integridade física e o património de terceiros.
Ora, se assim é, não se pode fazer depender a verificação da falta de condições de segurança para a condução decorrentes do consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas de um elemento científico ou pericial que, em concreto, confirme que o agente, naquela determinada ocasião, não se encontrava na posse da totalidade das suas aptidões ou capacidades para o exercício da condução.
Essa exigência, de demonstração cirúrgica, de que o condutor tinha esta ou aquela função diminuída, em função do consumo daquele tipo de produto ou substância, só assim se podendo concluir que não podia conduzir com segurança, seria, na prática, quase irrealizável, ou pelo menos, faria recair a demonstração do crime naquilo a que comummente se denomina por prova diabólica.
Não se fala aqui de estabelecer um qualquer nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de drogas no sangue e o acidente ocorrido, mas apenas de se consignar uma verdade que parece ser pouco discutível: a de que quem conduz influenciado sob o efeito de tais substâncias está a colocar em perigo, não só a sua vida e integridade física, mas também, a vida e a integridade física de todos aqueles com quem se cruza na estrada.
Se assim não fosse seria incompreensível a inserção sistemática efectuada pelo legislador no que respeita ao crime em referência.
Ora, se a prova da influência do consumo de estupefacientes sobre o condutor terá de resultar de perícia médica, já a demonstração de que tal consumo o impedia de conduzir com segurança pode e deve, ser logrado, com todos os elementos de prova que o julgador disponha, numa valoração probatória responsável, ponderando o caso concreto e apoiando-se, como em toda a actividade jurisdicional, no conhecimento adquirido por via das regras de experiência, da razoabilidade das coisas e da normalidade da vida.
A perigosidade da acção tem como resultado da conduta a possibilidade de um perigo de lesão de um bem jurídico, neste caso, a segurança da circulação rodoviária.
Como é sabido, decorrente do conhecimento científico, bem como das regras da experiência, a substância detectada no sangue do arguido, cannabis, é considerada como idónea a perturbar e influenciar as capacidades e aptidões humanas, nomeadamente as sensoriais, sendo, pois, potenciadora da criação de perigo e falta de segurança na actividade de conduzir.
Salvo melhor opinião, ficou demonstrado que, em concreto, a substância detectada no sangue do recorrente teve efeitos perturbadores da sua aptidão física, mental e psicológica e que, ao contrário do por si alegado, este sabia que não se encontrava em condições de conduzir com segurança, ficando assim provado que o consumo de estupefacientes o impedia naquela ocasião de conduzir com segurança.
Por outro lado, ficou por demonstrar que o acidente se tenha devido à circunstância de o veículo de (…) se ter imobilizado a meio da estrada.
Pelo contrário, apurando-se que o arguido embateu, por trás, no veículo conduzido por (…), numa reta com boa visibilidade, quando conduzia um veículo automóvel sob a influência de estupefacientes, apresentando após a sua verificação a quantidade de estupefaciente já aludida, é suficientemente demonstrativo, em face da experiência comum, da razoabilidade da vida e da normalidade das coisas, de que o mesmo não se encontrava em condições de efetuar uma condução segura.
Trata-se de uma conclusão indiscutível, que se não fosse assumida, afrontaria as mais elementares normas do senso comum.
Acresce, que o relatório pericial de Fls. 34, esclarece, sem margem para dúvidas, qual o nível da interferência na condução da presença de 33ng/ml de 11-Nor-9-Carboxi-D9-Tetrahidrocanabinol (THC-COOH); 1,4ng/ml de D9-Tetrahidrocanabinol (THC) e 0,6ng/ml de 11-Hidroxi-D9-Tetrahidrocanabinol (11-OH-THC) no sangue.
Não se pode negar que a presença de canábis nas quantidades dadas como provadas porque perturbadoras das precepções sensoriais exercem inevitavelmente uma influência nefasta no acto de condução não permitindo ao condutor a atenção e tempo de reacção de um condutor num estado considerado “normal”.
Acresce, que a amostra de sangue analisada foi recolhida algum tempo após o embate o que permite concluir, atentas as regras da experiência comum que, as concentrações de psicotrópicos eram mais elevadas e por conseguinte mais susceptíveis de diminuir as aptidões naturais do arguido na hora em que se deu o embate.
Por fim e em relação a este exame, parece evidente que o arguido labora num erro patente, na análise que faz da Portaria 902-B/87 de 13 de Abril.
Resulta do disposto no Artº 15 nº2 do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (aprovado pela Lei nº 18/2007 de 17 de Maio) que “só pode ser declarado influenciado por substâncias psicotrópicas o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação”.
A Portaria nº 902-B/2007 no Capitulo II regulamenta a avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas, sendo que resulta do artigo 23º deste diploma que, o exame de confirmação considera-se positivo sempre que revele a presença de qualquer substância psicotrópica prevista no Quadro 1 do anexo V, ou qualquer outra com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor em segurança.
A cannabis é uma substância compreendida no referido Quadro 1 do Anexo V.
Não tem assim aplicação, ao caso dos autos, o Quadro 2 da aludida Portaria, que só se aplica, como aliás resulta do seu próprio enunciado, para os exames de rastreio na urina.
In casu, o recorrente não foi submetido a exame de rastreio, tendo sido conduzido directamente ao hospital onde lhe foi feita a colheita de sangue, pelo que perde acuidade a alegada violação do disposto no Artº 16 e no referido Quadro 2, porquanto, não tendo sido efectuado exame de rastreio, mas apenas colheita de sangue.
No caso em apreço, não era exigível este exame rastreio, já que foi feita colheita de sangue, considerando-se positivo para efeitos de punição criminal a presença de qualquer substância psicotrópica prevista no quadro 1 do anexo V, opção legal que se justifica, pela fiabilidade e objectividade que a análise sanguínea consente, por oposição aos demais.
A factualidade provada é assim suficiente para dizer que o arguido não se encontrava em condições de efetuar uma condução segura, pois são consabidas as consequências do consumo de estupefacientes (em geral), na condução de veículos, que levaram o legislador a criar o tipo legal de perigo abstrato previsto no Artº 292 do C. Penal
Face ao supra exposto e tendo em conta a factualidade apurada e os pressupostos do crime em referência, entendemos que os mesmos se encontram preenchidos, não existindo qualquer censura a fazer no que respeito ao enquadramento jurídico efectuado pela sentença recorrida.
Assim sendo, há que concluir pela improcedência do recurso.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade das questões suscitadas, em 3 UC, ao abrigo do disposto nos Arts 513 nº 1 e 514 nº 1, ambos do CPP e 8 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa.
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Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.
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Évora, 10 de Novembro de 2020
Renato Barroso (Relator)
Maria Fátima Bernardes (Adjunta)
(Assinaturas digitais)