Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
358/10.3T3STC.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME DE VIOLAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IN DUBIO PRO REO
CRIME CONTINUADO
Data do Acordão: 05/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I - As normas jurídico-penais, a par da valoração objetiva da conduta humana, têm uma função de determinação, de imperativo, para agir como contramotivo no momento da resolução.

II - Deste modo, haverá tantas violações de norma quantas vezes ela se tornar ineficaz nessa função determinadora da vontade.

III - Mesmo que a atuação do agente se traduza numa pluralidade naturalística de ações, executadas em momentos separados no tempo, existe um só crime desde que aquelas estejam subordinadas a uma única resolução criminosa, sendo de esclarecer que a existência de certa conexão temporal que ligue os vários momentos da conduta do agente é um índice importante da unidade de resolução, mas não é decisivo, havendo que atender a todo o circunstancialismo fáctico revelador da forma como se desenvolveu a atividade criminosa do agente para então se chegar à aludida determinação de vontade, concreta, determinada, e não a qualquer uma resolução abstrata e geral.

III – A figurado crime continuado, constitui uma exceção à regra do concurso em caso de pluralidade de infrações, consentida graças à concorrência de determinados requisitos mitigadores enunciados no n.º2 do art. 30.º do Código Penal, a saber:

- plúrima realização do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico;

- homogeneidade da forma de execução, o chamado injusto objetivo da ação;

- lesão do mesmo bem jurídico, isto é, a unidade de injusto de resultado;

- unidade do dolo, ou seja, uma linha psicológica continuada que reflete o injusto pessoal da ação;

- situação exterior propiciadora da execução e susceptível de diminuir consideravelmente a culpa.

IV - Não se verificando “qualquer condicionalismo exterior que propiciasse a repetição dos abusos sexuais infligidos pelo arguido à filha, conduzindo a que, a cada crime, fosse menos exigível que se comportasse de maneira diversa, e assim diminuindo a sua culpa”, não se pode falar em crime continuado.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO.

Nos autos de Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 358/10.3T3STC, da Comarca do Alentejo Litoral (Santiago do Cacém - Juízo de Instância Criminal - Juiz 1), em que é arguido A., por acórdão, datado de 10-12-2013, foi decidido nos seguintes termos:

“A) Condenar o arguido A. pela prática, como autor, de 10 (dez) crimes de abuso sexual de criança agravado p. e p. pelos artigos 172º, n.º 1, do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 99/2001, de 25 de Agosto (atualmente p. e p. pelo artigo 171º, n.º 1, do Código Penal) e 177º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão por cada um dos crimes – factos praticados entre Dezembro de 2002 e 25.03.2005;

B) Condenar o arguido A. pela prática, como autor, de dois crimes de violação agravada p. e p pelo artigo 164º, n.º 1, na redação conferida pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro e, na atual redação do Código Penal, pelo artigo 164º, n.º 1, al. a), e pelo artigo 177º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão por cada um dos crimes – factos praticados nos anos de 2006 ou 2007 e em 02.08.2008;

C) Condenar o arguido A. pela prática, como autor, de um crime de violação agravada na forma tentada p. e p. nos termos dos artigos 22º, 23º, 164º, n.º 1, al. a) e 177º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão - factos praticados no ano de 2008;

D) Efetuar o cúmulo jurídico das penas de prisão supra referidas, condenando o arguido A. na pena única de 15 (quinze) anos de prisão;

E) Condenar o arguido A. no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 4 (quatro) Uc´s - artigo 513º, n.º 1, 2 e 3, do C.P.P. e artigo 8º, n.º 5, do RCP e tabela III anexa a esse mesmo diploma”.
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Inconformado com o acórdão condenatório, interpôs recurso o arguido, apresentando as seguintes conclusões:

1ª - O arguido negou a prática dos factos que lhe eram imputados, afirmando que são uma invenção da sua filha.

2ª - A única prova existente são as declarações da ofendida (filha do arguido), já que nenhuma outra testemunha presenciou os factos.

3ª - Existindo essas duas versões antagónicas (a do arguido e a da ofendida), ocorrem no acórdão recorrido:

a) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (as declarações da ofendida não são suficientes para sustentar a matéria de facto dada como provada).

b) Erro notório na apreciação da prova (pelos mesmos motivos).

c) Violação do princípio in dubio pro reo (ainda pelos mesmos motivos).

4ª - O entendimento expresso no acórdão revidendo, de que na situação dos autos não existe um crime continuado, não se mostra correto, pois que o arguido negou todos os factos que lhe eram imputados, e, assim, nunca poderia ter demonstrado qualquer sentimento de culpa ou de arrependimento.
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O Ministério Público respondeu ao recurso, entendendo que o mesmo não merece provimento.
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Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, a fls. 248 e 249, no sentido de o recurso dever improceder.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Colhidos os vistos legais, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO.

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Tendo em conta as conclusões acima enunciadas, que delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, são apenas duas as questões que vêm suscitadas no presente recurso:

1ª - A fixação da matéria de facto.

2ª - A existência de crime continuado.

2 - A decisão recorrida.

O acórdão recorrido (quanto aos factos, provados e não provados, e quanto à motivação da decisão fáctica) é do seguinte teor:

“FACTOS PROVADOS

1. O arguido é pai de B., nascida a 26.03.1991;

2. Desde os seus 6 anos de idade, B. residiu com o pai, a companheira deste, C., e dois irmãos, em Sines;

3. Em dia não concretamente determinado do mês de Dezembro de 2002, à noite, em casa da família, o arguido chamou a filha (então com 11 anos de idade) para sala, deitou-a no chão, lambeu-lhe a vagina e o pescoço e apalpou-lhe todo o corpo;

4. Desde essa data e até 25.03.2005, em datas não concretamente determinadas, em pelo menos 9 (nove) ocasiões diferentes, o arguido manteve relacionamentos sexuais com a filha B. nos mesmos moldes antes descritos;

5. Em dia não concretamente apurado dos anos de 2006 ou 2007, no interior da residência da família, o arguido aproximou-se da filha B., pela retaguarda da mesma, e agarrou-a nos braços, com força, atirando-a para o sofá da sala, após o que a apalpou, introduzindo de seguida o seu pénis ereto na vagina da mesma;

6. No dia 02.08.2008, em casa da D, encontravam-se B. (já com 17 anos de idade), C. e o irmão E. para aí pernoitarem;

7. O arguido chegou a tal local embriagado, obrigou o filho E. a ir para casa e discutiu com C., sendo que esta também saiu do local, onde apenas ficaram o arguido e a filha B.;

8. Então o arguido disse à filha B. que não voltaria a implicar com o namorado dela, desde que aceitasse manter relações sexuais com ele. Perante a recusa da filha, o arguido desferiu-lhe duas bofetadas e atirou-a para cima da cama, e de seguida manteve com relações sexuais com a mesma, introduzindo-lhe o pénis ereto na vagina;

9. Ainda no ano de 2008, em data não concretamente determinada, o arguido, procurando manter relações sexuais com a filha B., agarrou-a pelos braços e jogou-a para cima da cama e desnudou-a da cintura para baixo, apalpou-a e lambeu-a, e tentou introduzir o pénis na vagina, o que não conseguiu porque a filha logrou a fuga;

10. Em virtude destes factos, B. sentiu-se envergonhada, humilhada e triste, desenvolvendo distúrbio depressivo, pelo que no dia 21.07.2010 se atirou ao mar, na praia de Sines, com o intuito de se suicidar, o que não conseguiu;

11. O arguido que, atenta a idade da sua filha B. e a ascendência que tinha sobre ela, esta não tinha o necessário discernimento para livremente consentir na prática de quaisquer atos sexuais, bem como sabia que os atos supra descritos são de cariz sexual e, não obstante, quis praticá-los, até com recurso à violência física, nos termos supra descritos, para o conseguir, o que fez com a intenção de satisfazer o seu desejo e caprichos sexuais;

12. O arguido agiu sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;

13. O arguido veio para Portugal em 1994;

14. Viveu cerca de 20 anos com a sua companheira C. e três filhos, entre os quais a B., fruto de outro relacionamento;

15. Há cerca de dois anos, após a separação da companheira na sequência duma condenação por violência doméstica, passou a viver com a mãe da filha B.;

16. Tem o 4º ano de escolaridade;

17. Trabalhou como motorista durante certa de 12 ou 13 anos;

18. Atualmente trabalha como lavador lubrificante numa empresa de transportes;

19. Foi condenado por sentença proferida em 24.04.2012 no processo n.º ---/10.4GHSTC deste Tribunal – Juiz 2 -, transitada em julgado em 24.05.2012, pela prática, em 19.09.2010, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do Código Penal, na pena de 3 anos e 5 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com regime de prova;

20. No âmbito do acompanhamento dessa pena suspensa alterou a morada sem dar qualquer conhecimento à equipa de reinserção social que acompanha a execução da medida.

FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou que, na situação referida em 8. dos factos provados, o arguido agarrou os pulsos da filha com força para a imobilizar.

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

O Tribunal fundou a sua convicção com base na apreciação crítica das declarações prestadas pelo arguido e dos depoimentos prestados pelas testemunhas B., CC, C., E. e F., conjugada com a prova documental existente nos autos, nomeadamente, a certidão de fls. 61 e ss, e as fichas clínicas de fls. 109 e ss.

Como é regra neste tipo de conduta criminosa, em que normalmente apenas o agressor e a vítima têm conhecimento direto dos factos, também na situação em apreço a apreciação da prova passou sobretudo pela apreciação da credibilidade das declarações prestadas pelo arguido e do depoimento prestado pela ofendida B, sua filha.

O arguido negou toda a factualidade que lhe era imputada pela acusação relativamente à existência dos abusos sexuais, referindo que tudo seria uma invenção da sua filha supostamente por causa do namoro que a mesma manteve e que ele não aceitava.

Em sentido oposto, o depoimento da ofendida B. comprovou a factualidade que demos como provada, tendo referido a existência dos abusos e concretizado os mesmos, distinguindo aqueles em que houve introdução do pénis na vagina ou tentativa de o fazer das restantes situações em que existiram apenas apalpões e lambidelas, e referido, ainda que por possível defeito, o número mínimo e certo de ocasiões em que tais atos sucederam.

Estando assim em confronto duas versões antagónicas prestadas pelas duas únicas pessoas com conhecimento direto dos factos, poder-se-ia então invocar uma insuficiência probatória das declarações da ofendida para sustentar a factualidade que consideramos provada. No entanto, assim não aconteceu, tendo o tribunal considerado absolutamente credíveis as declarações prestadas pela ofendida pelos fundamentos que passaremos a explicitar.

Antes de mais teve-se por essencial não só o que a ofendida B. disse, mas a forma como o disse, bem demonstrativa do quão essencial é para o julgador o princípio da imediação. Na verdade, à medida que ia descrevendo os factos, foram frequentes as lágrimas, as pausas e os soluços, sendo absolutamente notória a existência dum grande sofrimento e mágoa relativamente à figura paterna, situação que é, face às regras da experiência comum, em tudo compaginável com o sentimento próprio de quem foi durante anos alvo de abusos sexuais pela figura paterna, e nada compaginável com uma efabulação criada contra um pai apenas porque ele não aceitava um namoro (motivação adiantada pelo arguido para a conduta da ofendida), para mais quando os factos são trazidos à justiça quando a ofendida até já ganhou a sua autonomia, atingiu a maioridade, saiu de casa, deixou de viver com o pai e vive maritalmente justamente com a pessoa com quem namorava e com quem já tem uma filha (situação confirmada não só pela ofendida mas também pelo próprio arguido).

Acresce que a própria existência duma tentativa de suicídio (confirmada pela ofendida mas também pelo próprio arguido e outras testemunhas) e a existência dum distúrbio depressivo - as fichas clínicas de fls. 109 e ss. corroboram a ocorrência da tentativa de afogamento e o distúrbio depressivo de que padecia a B. - são bastante mais compagináveis com uma situação de abusos sexuais do que simplesmente com a não aceitação dum namoro.

Por outro lado, não obstante as restantes testemunhas não tenham presenciado as situações de abusos, relataram também elas aspetos que permitem reforçar a credibilidade do depoimento prestado pela ofendida.

Assim, a testemunha C., ex-companheira do arguido e madrasta da ofendida, relatou que por altura da tentativa de suicídio a B. se mostrava depressiva e ficava sem falar e que após a tentativa de suicídio e ter falado com a testemunha CC, a B, chorando, havia referido que o pai abusava dela desde os 11 anos, tendo sido no entanto confrontada com a oposição do irmão G. Esses mesmos factos foram confirmados pela testemunha CC, amiga da B, e pela testemunha D. irmão da ofendida e filho do arguido.

As testemunhas C. e D. confirmaram ainda os factos vertidos nos pontos 6. e 7. dos factos provados na sequência dos quais o arguido ficou sozinho com a B. na casa de E., justamente uma das ocasiões em que a ofendida referiu ter sido violada pelo arguido.

A somar a tudo isto teve ainda o tribunal presente que a conduta imputada ao arguido não se mostra incompatível com o que se conhece da personalidade e conduta do arguido, tendo em conta o teor dos factos provados no âmbito do processo de violência doméstica - processo n.º ---/10.4GHSTC – nomeadamente no que respeita aos aspetos relacionados com a conduta sexual, em que se deu como provado, por exemplo, que tentou forçar a companheira a ter relações sexuais e que, depois da mesma sair de casa, enviou várias sms à ex-companheira com expressões injuriosas abordando aspetos da vida sexual, entre as quais se destaca a seguinte: “Sabe foder melhor q tu em todo o aspecto tu es seca e chata na fode e na deixa os outros foder. Sobre a minha filha isso vais pagar p q tu na sabe o que é uma filha p q matasti sabe p q sempre foiste um vaca” – cfr. certidão de fls. 61 e ss.

Foi assim perante a análise crítica e global deste quadro factual que o tribunal reconheceu ampla credibilidade ao depoimento prestada pela ofendida, assim secundando no mesmo a prova dos abusos sexuais relatados nos factos provados.

Os elementos relativos à imputação subjetiva foram considerados assentes a partir do conjunto de circunstâncias de facto dadas como provadas, apreciadas à luz das regras a que alude o artigo 127.º do CPP, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível diretamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum (M. Cavaleiro Ferreira, in Curso de Proc. Penal, Vol. II, 1981, pg. 292).

Os factos relativos ao enquadramento social e familiar do arguido - pontos 13. a 18. dos factos provados - resultam das suas próprias declarações.

Os antecedentes criminais derivam do certificado de registo criminal de fls. 155/156.

A alteração da morada sem comunicação à equipa de reinserção social resulta da informação da e fls. 162/163.

O facto não provado assim foi considerado por ter sido infirmado pela própria ofendida”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

O recorrente baseia a sua discordância relativamente ao acórdão sub judice nos seguintes pontos (em breve síntese):

- As declarações da ofendida não bastam para dar como provada a ocorrência dos factos ilícitos em causa.

- Nenhuma prova se fez (com exceção das declarações da ofendida) sobre a verificação dos factos dados como provados.

- Por isso, a decisão revidenda enferma dos vícios do erro notório na apreciação da prova e da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, als. a) e c), do C. P. Penal).

- E, também por isso, a decisão recorrida viola o princípio in dubio pro reo.

- A situação posta nos autos não pode deixar de configurar um crime continuado.

A - Da impugnação da decisão fáctica.

I - Dos invocados vícios.

Alega o recorrente que a decisão proferida pelo tribunal a quo enferma dos vícios do erro notório na apreciação da prova e da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, als. a) e c), do C. P. Penal).

Vistas quer a motivação do recurso quer as conclusões dela extraídas, constata-se, neste ponto, que o recorrente confunde a impugnação da matéria de facto, tal como previsto no artigo 412º, nºs 1 e 3, do C. P. Penal, com a invocação dos vícios da sentença elencados no artigo 410º, nº 2, do mesmo C. P. Penal – esquecendo que, em sede de apreciação deste vícios, a matéria de facto só é sindicável quando o vício de que a mesma possa enfermar “resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” (corpo do nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal).

Ou seja, e como resulta expressamente da letra da lei, qualquer dos vícios a que alude o nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal tem de dimanar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a quaisquer elementos externos à decisão, designadamente às declarações ou aos depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo durante o julgamento.

Ora, conforme se pode constatar do teor da motivação do recurso (e suas conclusões) apresentado pelo arguido, este confunde os vícios previstos no nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal com a forma como foi valorada pelo tribunal a quo a prova produzida em audiência de discussão e julgamento.

No fundo, aquilo que o recorrente pretende não é invocar os vícios do nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal, mas antes que o tribunal de recurso sindique a forma como o tribunal de primeira instância apreciou a prova produzida em audiência.

Dispõe o artigo 410º, nº 2, do C. P. Penal: “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova”.

Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar, repete-se, da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece.

A insuficiência a que se reporta a citada al. a) é um vício que ocorre quando a matéria de facto é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal deixou de apurar a matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objeto do processo, tal como este está circunscrito pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique. Tal vício consiste na formulação incorreta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.

O erro notório na apreciação da prova, por seu lado, é prefigurável quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum.

Percorrendo as conclusões da motivação de recurso, facilmente se vislumbra que, no essencial, o recorrente questiona, não o texto da decisão recorrida, mas sim o modo como o tribunal procedeu à apreciação da prova que foi produzida em audiência de discussão e julgamento, esquecendo-se da norma vertida no artigo 127º do C. P. Penal, segundo a qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do juiz.

Ou seja, e nos seus traços marcantes, as alegações do recorrente apenas traduzem uma desconformidade entre a decisão de facto do tribunal a quo e aquela que no caso teria sido a do próprio recorrente.

Por outro lado, os raciocínios expostos pelo tribunal recorrido ao fundamentar a decisão de facto são lineares, claros e totalmente apreensíveis.

Assim, as alegações do recorrente, a propósito da fundamentação da matéria de facto, não permitem concluir pela existência de qualquer erro ou vício de raciocínio na apreciação da prova. Não traduzem, de forma patente ou ostensiva, como é exigível, qualquer erro na apreciação do conjunto das provas produzidas na audiência de discussão e julgamento, erro esse que salte aos olhos de qualquer pessoa de média formação, e erro decorrente da simples leitura da sentença recorrida.

Na sucinta (mas claríssima) exposição de Simas Santos e Leal Henrique (in “Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 77), existe erro notório na apreciação da prova quando ocorre “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou (…). Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis”.

Quanto ao erro notório na apreciação da prova, vem sendo entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que ele apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias.

Tal vício nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta, face à prova produzida; ele só pode ter-se como verificado quando o conteúdo da respectiva decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, patenteie, de modo que não escaparia à análise do homem comum, que no caso se impunha uma decisão de facto contrária à que foi proferida.

Ou seja, a discordância do recorrente perante a matéria de facto é inócua para os fins por si pretendidos, uma vez que, objectivamente, nada resulta do teor da decisão que constitua erro notório na apreciação da prova.

Do mesmo modo, não existe qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Alega o recorrente, em síntese, que existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada na medida em que a prova produzida é insuficiente para a condenação do arguido.

Ora, como nos parece óbvio, o alegado pelo recorrente nada tem a ver com insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

É que o recorrente não invoca a falta de factos necessários para a decisão, que o tribunal devesse averiguar, desta forma confundindo (estranhamente, diga-se) uma situação de apreciação (objetiva, clara e coerente) da prova com o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Tal como o recorrente põe a questão, o que o mesmo alega é que há insuficiência de prova para a matéria de facto dada por provada. Ora, essa invocação, manifestamente, não consubstancia o vício agora em apreciação.

Como bem esclarecem Simas Santos e Leal Henriques (ob. citada, págs. 72 e 73), ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando existe uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher”.

Verifica-se tal vício quando, no dizer dos mesmos autores (ob. e local citados), “a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.

Nada disto se verifica na situação exposta pelo recorrente, pelo que não ocorre também o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Em suma, nada resulta do teor da decisão sub judice que constitua erro notório na apreciação da prova, bem como não há qualquer insuficiência da matéria de facto provada.

Nesta parte é, por conseguinte, totalmente de improceder o recurso interposto pelo arguido.

II - Da impugnação da matéria de facto (em sentido amplo).

Alega o recorrente que não foi feita prova suficiente dos factos dados como provados, por essa prova se reconduzir, toda ela, às meras declarações da ofendida.

Cumpre decidir.

Há que salientar, desde logo, que não está afastada a possibilidade de nos socorrermos do princípio da livre convicção na apreciação/valoração das provas.

Ora, perante o que vem alegado no recurso, e após ponderação integral da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, concluímos que a nossa convicção acerca dos factos sob julgamento não diverge daquela que o tribunal a quo alcançou e exprimiu no acórdão recorrido.

Senão vejamos:

É certo que apenas a ofendida e o arguido têm conhecimento direto dos factos (o que decorre da própria natureza dos mesmos e do local onde foram cometidos).

É também certo que a ofendida e o arguido apresentaram, em audiência de discussão e julgamento, duas versões contraditórias entre si.

Na verdade, o arguido negou, de modo genérico e perentório, a prática dos factos constantes da acusação, alegando que todos eles são uma invenção da sua filha, invenção essa motivada pela circunstância de o arguido se opor a uma relação de namoro que a filha mantinha.

Por sua vez, a ofendida, de forma pormenorizada, consistente, verosímil, contextualizada e totalmente credível, relatou a prática dos factos em causa (nos precisos termos em que eles foram dados como provados em primeira instância).

Ora, o tribunal recorrido limitou-se a valorar, com devia, o depoimento da ofendida.

E também este tribunal de recurso valoriza, do mesmo modo, o depoimento da ofendida, o qual se revelou inteiramente credível e convincente, não apenas pelos pormenores relatados (pelas concretas circunstâncias que a ofendida descreveu), como também pela forma como a ofendida fez esse relato na audiência de discussão e julgamento (revelando profundidade e sofrimento).

Com efeito, basta atentar, devidamente, no relato da ofendida, descrevendo os atos de abuso sexual por parte do arguido, seu pai, com interrupções de choro, com termos próprios de uma situação constringente e inapropriada, para concluir, sem hesitações, que esse relato é totalmente sincero, verdadeiro e esclarecedor.

Acresce que, apesar de nenhuma das testemunhas ouvidas na audiência de discussão e julgamento ter presenciado os factos (com exceção, obviamente, da ofendida), as testemunhas C. e D. (a ex-companheira e um filho do arguido) confirmaram que o arguido ficou sozinho com a ofendida na casa da E. (conforme tido por assente nos pontos 6 e 7 dos factos provados no acórdão revidendo), precisamente uma das ocasiões em que a ofendida descreveu uma situação em que foi violada pelo arguido.

Por último, não podemos esquecer que o arguido, a ofendida e todas as demais testemunhas, relataram uma situação de tentativa de suicídio por parte da ofendida, praticada, segundo a mesma, na sequência dos abusos sexuais de que foi vítima (situação essa também confirmada pelo teor dos documentos clínicos juntos aos autos, que corroboram a tentativa de afogamento da ofendida, e, bem assim, o estado depressivo de que a ofendida padecia).

O recorrente, na motivação do recurso, entende (ao que nos parece) que as declarações dos ofendidos, só por si, não são suficientes para a prova de determinados factos desfavoráveis aos arguidos.

Ora, nada obsta, por princípio, a que a convicção do tribunal se forme exclusivamente com base no depoimento do ofendido.

Basta, para a condenação, o depoimento de uma única testemunha, ou as declarações de um único assistente (ou de um único demandante), ou até de um único arguido.

Quer esse depoimento, quer essas declarações, como qualquer meio de prova oral, estão sujeitos ao princípio da livre convicção, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal.

Ou seja, e no caso destes autos: acreditar o tribunal (quer este tribunal ad quem, quer o tribunal a quo) na versão, naquilo que é essencial, da ofendida, é uma questão de convicção e entronca no princípio da livre apreciação da prova.

Em conclusão: o tribunal recorrido decidiu corretamente ao julgar como provados os factos constantes da acusação.
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Finalmente, alega o recorrente que o tribunal a quo, ao entender que o arguido praticou os factos em causa, violou o princípio in dubio pro reo.

O princípio in dubio pro reo (um dos princípios básicos do processo penal) significa, em síntese, que, para conduzir à condenação, a prova deve ser plena, sendo imprescindível que o tribunal tenha formado convicção acerca da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, isto é, a formação da convicção é um processo que “só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse” (Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1981, Vol. I, pág. 205).

Quando o tribunal não forma convicção, a dúvida determina inelutavelmente a absolvição, de harmonia com o princípio in dubio pro reo, o qual consubstancia princípio de direito probatório decorrente daqueloutro princípio, mais amplo, da presunção da inocência (constitucionalmente consagrado no artigo 32º da C.R.P.).

Com efeito, dispõe a Constituição da República Portuguesa (no nº 2 do seu artigo 32º) que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”, preceito que se identifica genericamente com as formulações do princípio da presunção de inocência constantes, além do mais, do artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e do artigo 6º, nº 2, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

Assim, “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed., pág. 203).

Este princípio tem aplicação na apreciação da prova, impondo que, em caso de dúvida insuperável e razoável sobre a valoração da prova, se decida sempre a matéria de facto no sentido que mais favorecer o arguido.

É evidente que as dúvidas do julgador quanto à prova produzida têm de ser racionais, por forma a ilidirem a certeza contrária (cfr. Ac. do S.T.J. de 01-07-2004, Processo nº 4P2791, in www.dgsi.pt), jamais podendo assentar na mera existência de versões contraditórias entre si ou na mera negação dos factos por parte dos arguidos.

Revertendo ao caso em apreço, e apesar das considerações do recorrente na motivação do seu recurso, o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida quanto à prática pelo arguido/recorrente da totalidade dos factos que foram dados como provados no acórdão revidendo, bem como também este tribunal de recurso, perante a prova produzida em audiência, com nenhuma dúvida fica relativamente à prática dos factos em causa por parte do arguido (conforme acima exposto).

Dito de outro modo: a fundamentação da decisão de facto constante do acórdão recorrido não evidencia a existência de qualquer dúvida que tenha sido solucionada em desfavor do arguido, e, por outro lado, face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, resulta, também para nós, a certeza da prática pelo arguido dos ilícitos pelos quais foi condenado.

Por conseguinte, não existindo dúvidas no espírito do julgador, afastada está, obviamente, a possibilidade de aplicação do princípio in dubio pro reo.

Assim sendo, o acórdão revidendo não merece, também neste ponto, a censura que lhe foi dirigida pelo recorrente (violação do princípio in dubio pro reo).

Face a tudo o que fica dito, e nesta primeira parte, o recurso do arguido é de improceder.

B - Do crime continuado.
Entende o recorrente, na segunda parte da motivação do recurso, que a sua conduta deve integrar a figura do “crime continuado”.

Há que decidir.

Como decorre do disposto no artigo 30º, nº 1, do Código Penal (“o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”), o critério de distinção entre unidade e pluralidade de infrações não é um critério naturalístico, mas, antes, normativo ou teleológico, que atende à unidade ou pluralidade de valores jurídicos criminais negados, expressos nos tipos legais de crimes, correspondendo à unidade ou pluralidade de juízos de censura tendo na base a unidade ou pluralidade de resoluções criminosas.

Depois de apurada a possibilidade de subsunção da conduta a diversos preceitos incriminadores ou diversas vezes ao mesmo preceito, o juízo de censura será determinante para saber se concretamente se verifica um ou mais crimes. Isto se deduz do advérbio «efetivamente» contido na citada norma e dos princípios basilares sobre a culpa (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, “Código Penal Anotado e Comentado, 10ª edição, 1996, pág. 181, como sendo a consagração do que ensina o Prof. Eduardo Correia, no seu livro “Unidade e Pluralidade de Infrações”).

Isto significa que, para a existência de uma infração penal, não é bastante a antijuricidade, ou seja, a realização do tipo legal de crime; é necessário que a conduta seja reprovável, isto é, passível de culpa. E, assim, poderemos dizer que há tantos crimes, na realização do mesmo tipo legal, quantas vezes a conduta se tornar reprovável. A pluralidade de infrações resultaria, para o mesmo tipo legal, da pluralidade de juízos de censura ou reprovação.

As normas jurídico-penais, a par da valoração objetiva da conduta humana, têm uma função de determinação, de imperativo, para agir como contramotivo no momento da resolução.

Deste modo, haverá tantas violações de norma quantas vezes ela se tornar ineficaz nessa função determinadora da vontade.

E o que indica quantas vezes se verifica essa ineficácia é a resolução.

Quantas vezes o indivíduo resolveu agir por modo contrário ao imperativo da norma, tantas vezes se verifica a sua ineficácia, ou seja, a sua violação.

Em jeito de síntese, ressalta a seguinte ideia predominante: mesmo que a atuação do agente se traduza numa pluralidade naturalística de ações, executadas em momentos separados no tempo, existe um só crime desde que aquelas estejam subordinadas a uma única resolução criminosa, sendo de esclarecer que a existência de certa conexão temporal que ligue os vários momentos da conduta do agente é um índice importante da unidade de resolução, mas não é decisivo, havendo que atender a todo o circunstancialismo fáctico revelador da forma como se desenvolveu a atividade criminosa do agente para então se chegar à aludida determinação de vontade, concreta, determinada, e não a qualquer uma resolução abstrata e geral.

Contudo, o comando do nº 1 do art. 30º do Código Penal, sofre, com cobertura da lei, duas importantes restrições: os casos de concurso legal ou aparente (onde pontificam as regras da especialidade, da consunção e da subsidiariedade) e de crime continuado.

Esta figura, a do crime continuado, constitui uma exceção à regra do concurso em caso de pluralidade de infrações, consentida graças à concorrência de determinados requisitos mitigadores enunciados no nº 2 do art. 30º do Código Penal, a saber:

- plúrima realização do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico;

- homogeneidade da forma de execução, o chamado injusto objetivo da ação;

- lesão do mesmo bem jurídico, isto é, a unidade de injusto de resultado;

- unidade do dolo, ou seja, uma linha psicológica continuada que reflete o injusto pessoal da ação;

- situação exterior propiciadora da execução e susceptível de diminuir consideravelmente a culpa.

Porventura o requisito mais problemático de toda esta plêiade de pressupostos cumulativos será o último: saber, em cada caso concreto, quando é que podemos afirmar que houve, de modo exterior ao agente, um condicionalismo que facilitou a sua ação e consequentemente degradou a respectiva culpa.

É que tal requisito, que constitui a base da configuração de uma situação de continuação criminosa e verdadeiramente o fundamento da diminuição da culpa, não encontra nos dizeres da lei respaldo suficientemente explícito à definição do conceito.

Tem-se, contudo, por adquirido que o fundamento da aludida minoração da culpa há-de ir buscar-se em algo que, de fora, isto é, alheio ao agente, e de modo considerável, ou seja, significativamente, facilitou a repetição da atividade criminosa, “tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito (como bem refere o Prof. Eduardo Correia, in “Direito Criminal”, Livraria Almedina, 1971, Vol. II, pág. 209).

Por conseguinte, a pedra de toque deste requisito será sempre um condicionalismo exógeno ao agente que lhe facilita a recaída e o torna, na circunstância, menos culpado.

No caso destes autos, a pura objetividade dos factos permite-nos concluir, tal como bem concluiu o tribunal a quo, que não se verificou “qualquer condicionalismo exterior que propiciasse a repetição dos abusos sexuais infligidos pelo arguido à filha, conduzindo a que, a cada crime, fosse menos exigível que se comportasse de maneira diversa, e assim diminuindo a sua culpa”.

Para que se equacionasse a hipótese de verificação de um crime continuado, teria de existir, além do mais, um circunstancialismo (externo ao arguido) que tivesse facilitado a repetição da atividade criminosa, circunstancialismo esse que tornasse cada vez menos exigível ao arguido que se comportasse de modo diferente.

Ora, dos factos dados como assentes no acórdão revidendo não decorre qualquer circunstância externa ao arguido, designadamente qualquer atitude facilitadora (ou mais passiva) por parte da ofendida, que facilitasse a execução, e, consequentemente, que pudesse consubstanciar uma diminuição considerável da culpa do arguido.

Pelo contrário, e como bem se escreve no acórdão sub judice, “a cada crime que praticava, a censura à conduta do arguido torna-se mais intensa pois demonstra que não interiorizou qualquer sentimento de culpa ou arrependimento perante a conduta antes praticada”.

Esta consideração (inteiramente adequada) feita pelo tribunal recorrido, e ao contrário do que se alega na motivação do recurso, nada tem a ver com a negação da prática dos factos efetuada pelo arguido na audiência de discussão e julgamento, respeitando, isso sim, à intensidade da culpa com que o arguido atuou.

Assim, carece totalmente de sentido (com o devido respeito) a alegação (constante da motivação do recurso) segundo a qual se deve entender que, negando o arguido a prática de todos os factos que lhe são imputados, não pode demonstrar qualquer sentimento de culpa ou de arrependimento.

Uma coisa nada tem a ver com a outra: a postura do arguido na audiência de discussão e julgamento, negando os factos, nada importa para a consideração da existência ou não de um crime continuado.

Por último, ponderando as circunstâncias de tempo em que os factos foram cometidos (desde os anos de 2002 a 2008, e por forma espaçada), é também de concluir, sem hesitações, que não existe, no caso concreto, a necessária situação exterior apta a proporcionar as subsequentes repetições e a facilitar a reiteração da atividade criminosa (por forma a que a culpa do arguido se tenha de haver como consideravelmente diminuída).

Em jeito de síntese: no processo de motivação ou de vontade do arguido não avulta um arrastamento para o crime por força de uma qualquer disposição exterior para o facto.

Conclui-se, pois, que bem andou o tribunal a quo ao ter considerado que, in casu, não existe crime continuado, tendo punido o recorrente por tantos crimes quantas as diferentes ocasiões em que foram praticados os atos sexuais em questão.

Por conseguinte, e também nesta segunda parte, não merece provimento o recurso do arguido.

Face a tudo o que antes se deixou dito, o presente recurso é totalmente de improceder.

III - DECISÃO.

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso do arguido, mantendo-se, consequentemente, o douto acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs..
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 20 de Maio de 2014.

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(João Manuel Monteiro Amaro)

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(Maria Filomena de Paula Soares)