Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1299/16.6T8TMR.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: INABILIDADE DAS TESTEMUNHAS
NOTÁRIO
SIGILO PROFISSIONAL
DECLARAÇÕES DE PARTE
Data do Acordão: 11/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - Não são inábeis como testemunhas as pessoas que estejam vinculadas ao segredo profissional relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo: têm é o dever de se recusar a depor sobre os mesmos;
II -Ainda que não o faça, nem por isso a testemunha integrante da categoria de pessoas vinculadas ao segredo profissional pode ser de antemão impedida de depor, ou seja, antes de se saber se os factos sobre os quais será questionada se inscrevem no tipo de situações ou de elementos abrangidos pelo segredo; só nesse caso o juiz deve evitar a divulgação pública de tais factos sigilosos, proibindo a sua revelação.
III - Está fora do alcance do sigilo profissional do notário a revelação de facto já divulgado através do documento autêntico entretanto tornado público.
IV - A inutilidade da prova por declarações de parte não é, no ordenamento jurídico português, fundamento da sua não admissão ou rejeição nem podendo a parte ser cerceada do direito de assistir ao julgamento para que as declarações de parte possam ter, na perpectiva do Tribunal, algum préstimo.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO

I- RELATÓRIO

1. BB, A. (habilitada no lugar de CC) nos autos à margem identificados nos quais figura como R. CC, não se conformando com os despachos de 21/02/2018 e 27/02/2018, que considerou, o primeiro, a testemunha DD inábil para depor nos termos dos artigos 195.º, n.º1, parte final, e 497.º, n.º1, ambos do CPC, e, o segundo, que indeferiu as declarações de parte da ora Recorrente por se tratar de acto inútil e, por isso, proibido por Lei, nos termos do artigo 139.º do CPC, deles interpôs recurso que concluiu como segue:

“A) A testemunha DD foi a notária responsável pelo testamento da Autora CC, entretanto falecida, em 15 de Setembro de 2016 e que se encontra junto aos autos com o requerimento de Habilitação de Herdeiros.

B) No entanto, o facto de ter conhecido a falecida no exercício das suas funções não significa, só por si, que o seu depoimento viole os seus deveres deontológicos e profissionais de notário ou que esteja a coberto do segredo profissional.

C) Com efeito, as questões a que a Dr.ª DD teria de responder eram de carácter genérico (incidiam essencialmente sobre os cuidados a observar aquando da realização dos testamentos para avaliar a capacidade do testador, bem como a de saber como foi avaliado no caso a capacidade da Autora e como a mesma se encontrava no dia do testamento), não incidiam sobre o teor do testamento, como se pode constatar supra, pelo que as respostas da testemunha não violariam os deveres deontológicos de notário, não sendo abrangidas pelo normativo legal que impede os notários de deporem sobre factos que tiveram conhecimento no exercício das suas funções.

D) Sendo certo que, a avaliação da capacidade / incapacidade do testador para testar não é abrangida pelo segredo profissional (ver Acórdão do TRG de 19/12/2011, CJ 2011, T.V., pp 298).

E) Acresce que o art.º 497.º, n.º 3, não estabelece qualquer inabilidade ou impedimento da testemunha que esteja sujeita a sigilo profissional.

F) Com efeito, o juiz não pode, em princípio, com base nesse preceito, impedir o depoimento de quem se lhe apresente e pretenda depor, antes o deverá admitir valorando depois o depoimento, tendo em atenção essa particularidade.

G) O preceito está concebido essencialmente para proteger o depoente e não para o impedir de depor, ou seja, constitui uma prerrogativa, não um impedimento (vide Ac. TRL de 18/09/2014, proferido no âmbito do processo 718/13.8TVLSB-B.L1.-2, disponível em www.dgsi.pt.)

H) Por sua vez, nos termos do disposto do artigo 466.º, n.º1, do CPC, “as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo.”

I) Com as declarações de parte, ao contrário do que sucede com o depoimento de parte, não se visa obter nenhuma confissão, destinando-se, unicamente, a esclarecer factos que, no entender da parte, ainda não se encontrem suficientemente esclarecidos, ou que só o próprio é que consiga esclarecer.

J) Ora, “a assistência” ou não da parte à audiência não é condição de admissão ou não de tal meio de prova, nem o torna só por si “inútil”, pelo que o tribunal não poderia indeferi-lo com tal justificação e muito menos alegando que a sua audição seria um acto inútil e, por isso, proibido por Lei, nos termos do artigo 139.º do CPC (o tribunal, sublinhe-se, alude a este artigo, embora o mesmo não tenha nada a ver com esta questão…).

K) Aliás, as declarações de parte, na esmagadora maioria das vezes, só fazem sentido no final da audiência de julgamento e após a parte ter ouvido os depoimentos das diferentes testemunhas porque só, nessa altura, é que poderá surgir a necessidade de esclarecer factos que não estejam ainda suficientemente esclarecidos.

L) Só por manifesta ingenuidade é que, hoje, alguém pode afirmar que o facto de a parte ter estado presente na audiência de julgamento pode pôr em causa a integridade das suas declarações como se o facto de não estar presente na audiência fosse garantia de que a parte não soubesse o que lá se passou.

M) Ao recusar tal meio de prova com os fundamentos aduzidos no despacho, agiu o tribunal preconceituosamente relativamente à parte, valorando a sua credibilidade e integridade, sem antes sequer ouvir as suas declarações, o que não é de maneira nenhuma aceitável.

N) Decidindo, como decidiu, violou o Exmo. Juiz, designadamente, o disposto nos artigos 195.º, n.º1, 466.º, n.º1 e 497.º todos do CPC.

NESTES TERMOS, e porque só assim se fará justiça, deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, serem revogados os doutos despachos recorridos, substituindo-se por outros que admitam o depoimento da testemunha DD e as declarações de parte da Recorrente.”.


2. Nas suas contra-alegações o recorrido sustentou energicamente a manutenção do decidido.

3. Dispensaram-se os vistos.

4. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se à apreciação das seguintes questões:
a) Se ocorre inabilidade legal (ou outro impedimento) para a notária, Dra. DD, depor como testemunha;
b) Se a circunstância de a A. ter assistido ao desenrolar da audiência final constitui impedimento à prestação de “declarações de parte”.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1. Os factos a considerar na decisão deste recurso são os que constam do antecedente relatório e, bem assim, que é o seguinte o teor da decisões proferidas pelo Tribunal “ a quo” no decurso da audiência final:

1.1. No dia 21.1.2018:

“ Admito o incidente de impugnação de testemunha deduzido.

Quanto ao invocado na mesma, a matéria sobre qual assenta já se mostra confessada nos autos, isto é, o facto da Senhora Notária apenas conhecido a Autora (falecida) no exercício das suas funções, aquando da realização do testamento já junto aos autos, não tendo tido qualquer outro contacto ou relação de proximidade/ parentesco com a mesma.

Assim, passo a conhecer, nos termos do disposto no artigo 519.º n.º 3 do C.P.C.

Nos termos do artigo 81.º da Lei n.º 155/2015, de 15 de Setembro “1 - O notário é obrigado a sigilo em relação a factos e elementos cujo conhecimento lhe advenha exclusivamente do exercício da profissão ou do desempenho de cargos na Ordem.

2 - Os factos e elementos cobertos pelo sigilo só podem ser revelados nos termos previstos na lei ou, ainda, por decisão da direção da Ordem, ponderados os interesses em conflito.”

No artigo 497º do Código de Processo Civil, integrado na subsecção sobre as inabilidades para depor como testemunha, estabelece-se que:

1 - podem recusar-se a depor como testemunhas, salvo nas acções que tenham como objecto verificar o nascimento ou o óbito dos filhos:

a) os ascendentes nas causas dos descendentes e os adoptantes nas dos adoptados, e vice-versa;

b) o sogro ou a sogra nas causas do genro ou da nora, e vice-versa;

c) qualquer dos cônjuges, ou ex-cônjuges, nas causas em que seja parte o outro cônjuge ou ex-cônjuge;

d) quem conviver, ou tiver convivido, em união de facto em condições análogas às dos cônjuges com alguma das partes na causa;

2 - incumbe ao juiz advertir as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de se recusarem a depor;

3 - devem escusar-se a depor os que estejam adstritos ao segredo profissional, ao segredo de funcionários públicos e ao segredo de Estado, relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, aplicando-se neste caso o disposto no n.º 4 do artigo 417º do Código de Processo Civil.

Logo se nota que, ao contrário dos demais para quem a recusa a depor é meramente facultativa, quem esteja adstrito ao segredo profissional se deve recusar a depor.

Deste modo bem se pode afirmar que o notário quando indicado para depor como testemunha relativamente a factos a que está obrigado a guardar segredo profissional, para cumprir esta obrigação, deve escusar-se a depor, deve recusar-se a depor, para se seguirem os adequados termos legais.

Do já apurado nos autos resulta que a senhora notária teve conhecimento dos factos sobre os quais vai ser inquirida aquando do exercício de funções e apenas por causa delas, sendo alias a avaliação do estado mental de quem pretende praticar tal acto notarial (testamento) parte essencial das mesmas.

Assim, tendo a senhora notária tido conhecimento dos factos sobre que era chamada a depor no exercício da sua profissão, não há duvida que esta obrigada a observar o sigilo profissional.

Sendo assim, sucedendo que a notária, quando indicado para depor como testemunha relativamente a factos a que está obrigada a guardar segredo profissional, não apresente escusa, visto o disposto no artigo 513º do Código de Processo Civil, deve-se admitir que parte, contra a qual foi indicado como testemunha, possa impugnar a admissão do seu depoimento.

O que sucedeu.

Como decorre do artigo 515º, n.ºs, 1 e 2, do Código de Processo Civil, a impugnação deve ser deduzida logo que termine o interrogatório preliminar e, sendo admitida, se a testemunha, perguntada à matéria de facto, a confessar, o tribunal, sem necessidade de outras provas, decide imediatamente se a testemunha deve depor.

Ora, quanto a tal, mostra-se apurada a factualidade necessária para tanto.

Assim, enquanto esta obrigação subsistir por o dever de segredo não ter sido levantado, cumpre entender que o notário é inábil para depor como testemunha relativamente aos factos a que está obrigado a guardar segredo profissional.

Desta forma, se a notária, quando indicado para depor como testemunha relativamente a factos a que está obrigado a guardar segredo profissional, não apresente escusa e caso se aperceba da ocorrência, visto o disposto no artigo 513, º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o tribunal deve obstar ao depoimento- Vd. Ac. S.T.J., de 20/9/2007, processo 07B2224, www.dgsi.pt.

De resto, ponderando o disposto nos artigos 195º, n.º 1, parte final, 497, n.º 1 do C.P.C, é nulo o depoimento que o solicitador produza como testemunha sobre facto a que está obrigado a guardar segredo profissional.

Com efeito esse depoimento, não podendo fazer prova em juízo, acaba por poder ser indevidamente considerado no exame e decisão da causa.

Pelo que declaro a testemunha inábil para depor, determinando a sua não audição como tal nos autos.

Sem custas, atenta a simplicidade.

Notifique.”.

1.2. No dia 27.2.2018: “ Estabelece o artigo 466º, nº 1 do NCPC que: «As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.»

Este inovador meio de prova, dirige-se, primordialmente, às situações de facto em que apenas tenham tido intervenção as próprias partes, ou relativamente às quais as partes tenham tido uma percepção directa privilegiada em que são reduzidas as possibilidade de produção de prova (documental, testemunhal ou pericial), em virtude de terem ocorrido na presença circunscrita das partes.

E, sujeitá-las a arrolar testemunhas sem conhecimento directo, que apenas reproduzam o que teriam ouvido dizer ou que expressem a sua opinião, tem reduzido interesse e muito limitado valor processual.

Acresce que, tais declarações serão sempre livremente apreciadas pelo tribunal, conforme resulta do nº 3 do artigo 466º do NCPC, na parte em que não representem confissão.

Como esclarece JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A acção Declarativa Comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013, 278, a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, maxime se ambas as partes tiverem sido efectivamente ouvidas.

Na verdade, este meio de prova, dirige-se, primordialmente, às situações de facto em que apenas tenham tido intervenção as próprias partes.

Quanto a tal, por um lado, cumpre dizer que os habilitados não são, nos termos assim previstos, partes, na medida em que o interesse inicial directo em demandar não era dos mesmos, nem os mesmos tiveram intervenção pessoal no âmbito previsto na norma.

Mas como é consabido, e resulta do nº 1 do artigo 352º e nº 2 do artigo 356º, ambos do Código Civil, que o depoimento de parte constitui um meio de provocar a confissão judicial, ou seja, o reconhecimento de factos que é desfavorável à parte que o presta, e aproveita à parte contrária.

Todavia, é já hoje aceite por numerosa jurisprudência que as declarações de qualquer uma das partes, proferidas em depoimento de parte, ainda que não sejam susceptíveis de levarem à confissão, não impedem o Tribunal de se socorrer das mesmas para melhor esclarecer e apurar a verdade dos factos, estando sujeitas à livre apreciação do julgador, ao abrigo do disposto no artigo 361º do C.C., conjugadas com os demais meios probatórios.

A parte que requer e presta declarações fica sujeita ao dever de cooperação e verdade, submetendo-se a interrogatório conduzido pelo Julgador, podendo os advogados apenas solicitar esclarecimentos.

O que na presente situação já não se mostra possível.

Na verdade, antes de iniciada a diligência, e apercebendo-se o Tribunal de que era intenção do ilustre mandatário da autora/habilitados mantê-los a assistir a audiência, advertiu expressamente o mesmo de que, caso fosse sua intenção requerer tal meio de prova, deveria retirar da sala os mesmos, sob pena de indeferimento.

Não obstante, entendeu o ilustre causídico manter os mesmos a assistir a audiência.

Assim, e aqui chegados, a acumular ao supra dito quanto a não abrangência de tal meio de produção de prova aos mesmos, acresce que, mesmo que assim não se entendesse, os mesmos habilitados não estão em condições de, de forma espontânea, prestar declarações e esclarecimentos, por já ter assistido todos os prestados em diligência, retirando assim toda credibilidade/utilidade do mesmo meio.

Na verdade, tal situação é a similar a prevista no artigo 458.º n.º 1 do C.P.C, sendo que ali o legislador ali previu expressamente a ausência de contacto entre os intervenientes processuais.

Desta forma, proceder a audição dos mesmos, quando toda a prova produzida já foi assistida, é acto inútil e por isso, proibido por Lei, nos termos do artigo 139.º do C.P.C.

É que, importa não olvidar, para além de a instrução dever ter por objecto factos necessitados de prova (cfr. artº 410º, do CPC), acresce ainda que ao juiz cumpre recusar o que for impertinente ou meramente dilatório (artº 6º, nº1, do CPC), o que aqui sucede.

Assim, indefiro o meio de prova requerido, pelos fundamentos agora expostos.”.

2. Do mérito do recurso

2.1. Quanto à (in) existência de inabilidade legal (ou outro impedimento) para a notária, Dra. DD, depor como testemunha.

Entendeu o Tribunal “ a quo” ser a senhora Notária inábil para depor como testemunha porque confessadamente a mesma iria depor sobre factos de que tinha tido conhecimento no exercício da sua profissão e, por isso, necessariamente em violação do sigilo profissional a que estava adstrita (tanto mais que nem sequer estava munida da competente autorização da respectiva Ordem, como previsto no nº2 do art.º 18º da Lei nº 155/2015, de 15.9).

Na óptica da recorrente as questões que iriam ser colocadas à senhora Notária atinentes à capacidade da testadora e mais genericamente aos cuidados que sobre o notário recaem nesse conspecto não estão cobertas pelo sigilo profissional.

Vejamos.

Em primeiro lugar cremos não estar em presença de uma verdadeira e própria inabilidade para depor como testemunha.

A prova testemunhal, como nos ensina Antunes Varela[1], caracteriza-se por provir de pessoa que não sendo parte na causa nem seu representante é chamada a narrar as suas percepções sobre factos passados que interessam ao julgamento da causa.

Por regra, como se colhe do disposto no nº1 do art.º495º do CPC, todas as pessoas podem depor como testemunhas, sendo apenas inábeis, por incapacidade natural, os interditos por anomalia psíquica e quem não tenha aptidão física e mental para depor sobre os factos que constituam objecto da prova (artigo 495º do CPC) e, por imposição legal, os que possam depor como partes (artigo 496º do CPC).

As pessoas elencadas nas diversas alíneas do nº1 do artº 497º do CPC não são actualmente[2] inábeis para testemunhar, apenas lhes é concedida a faculdade de se recusarem a depor.

De igual sorte não são também inábeis os que estejam vinculados ao segredo profissional relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo: têm é o dever de se recusar a depôr sobre os mesmos (cfr. nº3).

Ainda que não o faça, nem por isso a testemunha integrante da categoria de pessoas vinculadas ao segredo profissional pode ser de antemão impedida de depor, ou seja, antes de se saber se os factos sobre os quais será questionada se inscrevem no tipo de situações ou de elementos abrangidos pelo segredo.

Só no caso de se verificar esta última situação é que o juiz deverá obstar ao depoimento da testemunha, já que não sufragamos o entendimento de que a questão só se deve colocar a posteriori, ou seja, mais no campo da respectiva valoração do que da sua admissão/prestação[3].

Não concebemos que perante o iminente desvendamento de factos cobertos pelo segredo profissional, o juiz se quede impávido e sereno ao invés de evitar a divulgação pública[4] de tais factos sigilosos, proibindo a sua revelação.

Mas o certo é que aqui não foi isso que se passou pois, como se viu, a testemunha foi antecipadamente impedida de depor não se tendo cuidado de averiguar se os factos que lhe iriam ser perguntados estavam ou não compreendidos no âmbito do segredo profissional.

Na verdade, apesar da norma citada no despacho recorrido (art.º 81º da Lei nº 155/2015, de 15 de Setembro) aludir genericamente a factos e elementos cujo conhecimento lhe advenha exclusivamente do exercício da profissão, carece, naturalmente, de ser interpretada com recurso a outros elementos não exclusivamente o literal que é, como se sabe, o primeiro estádio da interpretação.

Não temos dúvidas que este dever de sigilo constitui uma das obrigações basilares do desempenho da profissão de notário que é o jurista a cujos elementos escritos, elaborados no exercício da sua função, é conferida fé pública, [5] sendo, simultaneamente, um oficial público que confere autenticidade aos documentos e que assegura o seu arquivamento e um profissional liberal que actua de forma independente, imparcial e por livre escolha dos interessados.

O sigilo profissional do notário é, como nos demais casos de profissionais a ele adstritos, estabelecido no interesse de quem a eles necessita de recorrer mas reveste igualmente um incontestável interesse público em razão da imprescindível confiança que as suas funções exigem.

Por isso, os factos cobertos por sigilo profissional são os que se relacionam exclusivamente com a função notarial que, como resulta do artigo 1.º do Código do Notariado, aprovado pelo DL n.º 207/95, de 14 de Agosto, se destina a “dar forma legal e conferir fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais. [6].
Mas ainda que se relacionem com a função notarial, o próprio Código do Notariado estabelece no artigo 32.º sob a epígrafe “Segredo profissional e informaçõesque:
1 - A existência e o conteúdo dos documentos particulares apresentados aos notários para legalização ou autenticação, bem como os elementos a eles confiados para a preparação e elaboração de actos da sua competência, estão sujeitos a segredo profissional, que só pode ser afastado caso a caso e por motivo de interesse público, mediante despacho do director-geral dos Registos e do Notariado.
2 - Salvo em relação ao próprio autor ou seu procurador com poderes especiais, os testamentos e tudo o que com eles se relacione constituem matéria confidencial, enquanto não for exibida ao notário certidão de óbito do testador.
3 - O notário não é obrigado a mostrar os livros, documentos e índices do cartório, senão nos casos previstos na lei, e deve guardá-los enquanto não forem transferidos para outros arquivos ou destruídos nos termos da lei.
4 - O notário deve prestar verbalmente as informações referentes à existência dos actos, registos ou documentos arquivados que lhe sejam solicitadas pelos interessados e, a pedido expresso das partes, deve fornecer fotocópias não certificadas dos mesmos, com mero valor de informação, quando deles possa passar certidão.
5 - As informações referentes aos registos lavrados no livro de protestos de título de crédito, desde que sejam solicitadas por instituições de crédito ou seus agentes, podem ser fornecidas sob forma sumária, por escrito.

Está fora do alcance do sigilo a revelação de facto já divulgado através do documento autêntico entretanto tornado público.

Por exemplo, se o testamento da falecida A. já se mostra junto aos autos e se dele a senhora Notária tiver feito constar que a testadora parecia em condições de testar (o que, como se sabe, constitui simples juízo pessoal do documentador, como tal de livre apreciação do julgador) nada obstaria que fosse questionada para esclarecer em que é que se alicerçou para fazer tal menção (v.g. se conversou previamente com a testadora).

De igual sorte nenhum impedimento existe a que seja questionada sobre as cautelas que usualmente toma para se certificar da capacidade do testador.

Aliás, sempre a senhora Notária perante as questões que lhe sejam formuladas poderá recusar-se a depor caso entenda que a resposta implicará a violação do dever de sigilo (cfr. art.º 497º nº3 do CPC).

Mas para que tal suceda tem de lhe ser consentido depor, o que, como vimos não sucedeu e, por isso, o despacho que assim decidiu não se pode manter.

2.2. Quanto ao impedimento à prestação de “declarações de parte” da Autora por a mesma ter assistido ao desenrolar da audiência final.

Entendeu o Tribunal “ a quo” que proceder à tomada de declarações à parte quando a mesma já assistiu a toda a prova produzida é acto inútil ( e por isso, proibido por Lei, nos termos do artigo 139.º do C.P.C.).

A inutilidade da prova por declarações de parte não é, porém, no ordenamento jurídico português fundamento da sua não admissão ou rejeição.

Ainda que o Tribunal “ a quo” entendesse que a circunstância da Autora ter assistido à audiência final comprometia a credibilidade do seu depoimento, seria apenas um aspecto a sopesar aquando da (livre) apreciação de tal meio de prova.

“O Tribunal não pode rejeitar produção de provas, desde que estas incidam sobre os factos controvertidos e se respeitem os limites legalmente fixados, com o fundamento num juízo de inutilidade formulado a priori . O juiz não pode, por exemplo, numa audiência de julgamento, a pretexto de que está devidamente esclarecido, recusar-se a ouvir testemunhas arroladas”[7].

Uma vez que a parte pode, até ao início das alegações orais em 1ª instância, requerer a prestação de declarações sobre factos em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo, as mais das vezes tal sucederá – sem que o legislador tenha criado qualquer obstáculo - quando a demais prova já foi produzida e a parte à mesma assistiu.

“Em prol do direito da parte assistir ao julgamento, são ainda invocáveis as seguintes considerações[8]:
A aplicação analógica da regra do Artigo 512.1. do Código de Processo Civil não é viável porquanto sempre estaria precludida pela regra da publicidade da audiência (Artigo 606.1. do Código de Processo Civil). Num processo eminentemente privado e de partes, não se concebe que se pretira à própria parte o direito de assistir ao julgamento em que se discutem interesses próprios em nome da eventualidade da sua prestação futura de declarações de parte. A assistência ao julgamento constitui condição sine qua non da própria parte ponderar da necessidade e oportunidade da sua prestação de declarações de parte porquanto as declarações de parte são utilizadas, eminentemente, «como instrumento de exercício do contraditório relativamente aos depoimentos testemunhais ou como método de suprimento de dificuldades de prova cuja percepção sobrevém meramente no decorrer do julgamento.»
Com efeito, o direito potestativo de prestar declarações de parte pode ser utilizado para impugnar o valor probatório de outros meios de prova, caso em que as declarações assumem uma relevância probatória negativa. Ora, apenas a parte – que não o respectivo mandatário- está totalmente ciente dos factos que conhece e em que interveio, razão pela qual afirmámos já o carácter pessoalíssimo deste meio de prova.”.

Em suma: Poder-se-á questionar a bondade deste inovador meio de prova e até admitir que, em regra, apresenta escasso valor processual mas o Tribunal não pode, nem deve, obstar à prestação de declarações da parte sobre tais factos, caso lhe seja requerido, sob pretexto da sua inutilidade.

E, é por isso, que o despacho recorrido não pode igualmente subsistir.

III- DECISÃO
Por todo o exposto, acorda este Colectivo do Tribunal da Relação de Évora em, julgando procedente a apelação, revogar os despachos recorridos, substituindo-se o de 21.2.2018, por outro em que se admite que a notária, Dra. DD, deponha como testemunha e o de 27.2.2018, por outro em que se defere a prestação de declarações pela autora, BB, à matéria que vier a ser indicada.
Mais se determina a reabertura da audiência final para a referida produção de prova o que implica a anulação da sentença entretanto proferida.
Custas pelo apelado.

Évora, 22 de Novembro de 2018
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente


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[1] Manual de Processo Civil, 2ªed., pag.609
[2] Como já não o eram no CPC de 61 após a reforma de 95/96.
[3] Cfr. neste sentido Acórdão da Relação de Lisboa de 18.9.2014 relatado pelo Des. Sousa Pinto e consultável na Base de Dados do IGFEJ.
[4] Já que em regra o depoimento tem lugar na audiência final que é pública.
[5] Cfr. art.º 1º nº1 do Estatuto do Notariado, aprovado pelo DL n.º 26/2004, de 04 de Fevereiro
[6] E que vêm elencados no artigo 4.º do Estatuto:
“1 - Compete, em geral, ao notário redigir o instrumento público conforme a vontade dos interessados, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo-os do seu valor e alcance e exercer todas as demais competências que lhe sejam atribuídas por lei.
2 - Em especial, compete ao notário, designadamente:
a) Lavrar testamentos públicos, instrumentos de aprovação, depósito e abertura de testamentos cerrados e de testamentos internacionais;
b) Lavrar outros instrumentos públicos nos livros de notas e fora deles;
c) Exarar termos de autenticação em documentos particulares ou de reconhecimento da autoria da letra com que esses documentos estão escritos ou das assinaturas neles apostas;
d) Passar certificados de vida e identidade e, bem assim, do desempenho de cargos públicos, de gerência ou de administração de pessoas coletivas;
e) Passar certificados de outros factos que tenha verificado;
f) Certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos;
g) Passar certidões de instrumentos públicos, de registos e de outros documentos arquivados, extrair públicas-formas de documentos que para esse fim lhe sejam presentes ou conferir com os respetivos originais e certificar as fotocópias extraídas pelos interessados;
h) Lavrar instrumentos para receber a declaração, com caráter solene ou sob juramento, de honorabilidade e de não se estar em situação de falência, nomeadamente para efeitos do preenchimento dos requisitos condicionantes, na ordem jurídica comunitária, da liberdade de estabelecimento ou de prestação de serviços;
i) Lavrar instrumentos de atas de reuniões de órgãos sociais;
j) Transmitir por via eletrónica o teor dos instrumentos públicos, registos e outros documentos que se achem arquivados no cartório a outros serviços públicos perante os quais tenham de fazer fé e receber os que lhe forem transmitidos, por esses serviços, nas mesmas condições;
l) Intervir nos atos jurídicos extrajudiciais a que os interessados pretendam dar garantias especiais de certeza e autenticidade;
m) Intervir em processos de mediação e de arbitragem;
n) Conservar os documentos que por lei devam ficar no arquivo notarial e os que lhe forem confiados com esse fim, aplicando as regras de arquivo eletrónico que cumpram as especificações técnicas fixadas pela Ordem dos Notários no quadro das suas competências de reorganização dos sistemas de arquivo notarial;
o) Liquidar por via eletrónica, a pedido do contribuinte e nos termos por este declarados, o Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis e outros impostos, tendo em conta os negócios jurídicos a celebrar ou celebrados, nos casos e nos termos a fixar por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça;
p) Apresentar por via eletrónica, a pedido dos interessados e de acordo com as respetivas declarações, pedidos de alteração, nos termos do artigo 13.º da Lei n.º 7/2007, de 5 de fevereiro, de morada fiscal do adquirente, de isenção de Imposto Municipal sobre Imóveis relativo a habitação própria e permanente e de inscrição ou atualização de prédio urbano na matriz, nos termos a fixar por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça;
q) Apresentar por via eletrónica, a pedido do contribuinte e de acordo com as respetivas declarações, a participação a que se refere o artigo 26.º do Código do Imposto do Selo, nos termos a fixar por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça;
r) Promover, em representação dos interessados, os registos necessários à proteção de propriedade industrial e praticar junto do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, INPI, I. P., todos os atos necessários para o efeito;
s) Exercer as demais funções que resultam das disposições do presente Estatuto ou de outros preceitos legais.
3 - A solicitação dos interessados, o notário pode requisitar por qualquer via, a outros serviços públicos, os documentos necessários à instrução dos atos da sua competência.
4 - Incumbe ao notário, a pedido dos interessados, preencher a requisição de registo, em impresso de modelo aprovado, e remetê-la à competente conservatória do registo predial ou comercial, acompanhada dos respetivos documentos e preparo.
[7] Conselheiro Salazar Casanova in “ Aspectos do regime da Prova no Processo Civil Português“Comunicação apresentada no dia 19.11.99 no CEJ no âmbito do seminário internacional subordinado ao tema “ Evolução do Processo Civil na Europa : a Cooperação no Domínio da Prova”.
[8] Assim Luís Filipe Pires de Sousa in AS DECLARAÇÕES DE PARTE. UMA SÍNTESE consultável em http://www.trl.mj.pt/