Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2903/21.0T8STR-D.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA FORTUITA
REQUISITOS
CAUSALIDADE
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A qualificação da insolvência como “culposa” pressupõe, sempre, a concreta verificação de uma das condutas previstas no artigo 186.º, n.º 2 e n.º 3, do CIRE, e que essa conduta haja ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 2903/21.0T8STR-D.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntos: José Manuel Lopes Barata
Eduarda Branquinho
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL, credora no processo de insolvência em que são insolventes (…) e (…), interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo de Comércio de Santarém, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, o qual qualificou como fortuita a insolvência de (…) e (…).

A sentença recorrida tem o seguinte teor:
«I. Relatório
(…) e (…) foram declarado insolventes por sentença transitada em julgado.
Os credores Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL e (…) – Decorações e Mobiliários de (…), Lda. vieram apresentar alegações, nas quais propugnaram pela qualificação da insolvência.
O Administrador de Insolvência veio apresentar parecer nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 185.º e 188.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (23-09-2022 e 12-02-2023), propondo a qualificação da insolvência como fortuita.
Os autos foram com vista ao Ministério Público que emitiu parecer de concordância com a qualificação de insolvência como fortuita.
II. Saneamento
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
Não existem nulidades que invalidem todo o processado.
As partes dispõem de capacidade e personalidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras exceções ou questões prévias que cumpra conhecer e que impeçam o conhecimento de mérito.
III. Fundamentação
A) Dos Factos
Com interesse para a decisão do presente incidente mostram-se assentes os seguintes factos:
1. (…) e (…) foram declarados insolventes por sentença de 22-04-2022, transitada em julgado.
2. O Administrador de Insolvência pronunciou-se pela qualificação da insolvência como fortuita.

3. O Ministério Público pronunciou-se no sentido de a insolvência ser qualificada como fortuita.
B) Do Direito
O incidente de qualifica-se encontra-se previsto nos artigos 185.º e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa e destina-se a averiguar se a insolvência é fortuita ou culposa. Com este incidente, o legislador pretendeu, por um lado, evitar insolvências fraudulentas ou dolosas e por outro lado, incutir uma maior eficácia na responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas colectivas.
A lei estabelece no n.º 1 do artigo 186.º do CIRE a noção geral de insolvência culposa: “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
No n.º 2 do mesmo preceito prevê-se um conjunto de situações, que se verificadas, conduzem à qualificação da insolvência como culposa. No n.º 3 da mesma norma prevêem-se as situações em que a insolvência se presume como culposa.
A tramitação deste incidente encontra-se estabelecida no artigo 188.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa.
O administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º.
Declarado aberto o incidente, o administrador da insolvência, quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1, apresenta, no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa, sendo que o parecer e as alegações referidos nos números anteriores vão com vista ao Ministério Público, para que este se pronuncie, no prazo de 10 dias.
Nos termos do artigo 188.º, n.º 8, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, “se tanto o Administrador de Insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz profere de imediato decisão nesse sentido”.
No caso vertente, o incidente de qualificação foi declarado aberto na sequência dos requerimentos apresentados pelos credores Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL e (…) – Decorações e Mobiliários de (…), Lda.. Tanto o Administrador de Insolvência como o Ministério Público propuseram a qualificação da insolvência como fortuita. Consequentemente mais não resta do que proferir, de imediato, decisão no sentido preconizado pelo Administrador de Insolvência e pelo Ministério Público.
IV. Decisão
Pelo exposto, nos termos do disposto no artigo 188.º, n.º 8, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas qualifico como fortuita a insolvência de (…) e (…).
Nos termos do disposto nos artigos 303.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, a atividade processual relativa ao incidente de qualificação, quando as custas devam ficar a cargo da massa, não é objeto de tributação autónoma.
Registe e notifique».

O presente incidente de qualificação de insolvência foi aberto com base num requerimento apresentado pela credora (…) – Decorações e Mobiliários de (…), Lda..
Os credores Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL e (…) – Decorações e Mobiliários de (…), Lda. pugnaram pela qualificação da insolvência como culposa.
O sr. Administrador da Insolvência apresentou parecer, propondo a qualificação da insolvência como fortuita.
O Ministério Público emitiu parecer de concordância com a qualificação da insolvência como fortuita.

I.2.
O recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1. O processo contém elementos suficientes para que a insolvência possa ser qualificada como culposa;
2. Por força do artigo 11º do CIRE, o tribunal deve considerar tais elementos nas decisões que profere;

3. Constando tais elementos dos autos, não pode o Tribunal, sem mais, qualificar a insolvência como fortuita, ainda que o parecer do AI e do MP sejam nesse sentido;

4. O Tribunal a quo não aplicou, devendo fazê-lo, o disposto no artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b), d) e f), do CIRE;

5. e aplicou erradamente o disposto no artigo 188.º, n.º 8, do mesmo diploma legal;

6. Nestas circunstâncias, a não admissibilidade do recurso é violadora do disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa;

7. Não podendo a insolvência ser considerada, neste momento, como fortuita, deverão os autos prosseguir, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 188.º, n.º 9, do CIRE.
Termos em que, e nos do douto suprimento de VV. Exªs, deve ao presente recurso ser dado provimento, não se qualificando a Insolvência como fortuita e ordenando-se o prosseguimento do incidente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 189.º, n.º 9 e seguintes do CIRE.
Porque assim se mostra ser de Direito e de Justiça».

I.3.
Na sua resposta às alegações de recurso, os requeridos pugnaram pela improcedência do recurso e o Ministério Público, em resposta autónoma, também defendeu a improcedência da apelação.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
No caso as questões que cumpre decidir são as seguintes:
1 – Saber se o julgador pode divergir da qualificação proposta pelo administrador da insolvência e do Ministério Público quando ambos emitem parecer no sentido de qualificação da insolvência como fortuita.
2 – Em caso afirmativo, saber se, in casu, estão verificados os pressupostos da qualificação da insolvência como culposa.

II.3.
FACTOS
Os factos a considerar são aqueles que constam da sentença recorrida.
Resulta ainda dos autos a seguinte factualidade:
1 – A recorrente, na qualidade de mutuante, e (…), na qualidade de mutuário, outorgaram, em 08-05-2007, no Cartório Notarial de (…), escritura pública por via da qual a primeira declarou conceder ao segundo, a pedido deste e no seu interesse, um empréstimo no montante de € 100.000,00, valor que o segundo declarou ter recebido;
2 – O montante mutuado foi destinado, pelo mutuário, à aquisição do prédio urbano sito na Rua D. (…), (…), freguesia da (…), concelho do (…), inscrito na respetiva matriz sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial do (…) sob o n.º (…).
3 – Em garantia do integral pagamento do capital mutuado, dos respetivos juros remuneratórios e das despesas despendidas pela mutuante, foi constituída hipoteca a favor da mutuante sobre o imóvel supra descrito, a qual foi inscrita pela Ap. (…), de 22-10-2007.
4 – Mediante contrato outorgado em 1 de outubro de 2018, o insolvente (…), declarou dar de arrendamento a sua mãe, (…), pelo prazo de 29 anos e mediante o pagamento de uma renda mensal de € 50,00, o imóvel acima descrito.
5 – O contrato referido em 4 foi objeto de registo pela Ap. (…), de 28-11-2018.
6 – O processo de insolvência foi instaurado em 05-11-2021.

II.4.
Apreciação do mérito do recurso
No presente recurso está em causa a decisão de qualificação da insolvência dos apelados/insolventes como fortuita. A apelante defende que o julgador não podia, sem mais, qualificar a insolvência como fortuita, ainda que o parecer do sr. Administrador da Insolvência e do Ministério Público sejam nesse sentido e que, no caso, o processo contém elementos suficientes para qualificar a insolvência como culposa ao abrigo do disposto no artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b), d) e f), do CIRE.
Vejamos, pois, se lhe assiste razão.
Nos termos do artigo 185.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas aprovado pelo D/L n.º 53/2004, de 18 de março, doravante designado por CIRE, a insolvência pode ser qualificada como culposa ou como fortuita, sendo que esta última delimita-se por exclusão de partes.
No artigo 188.º daquele diploma legal encontra-se descrito o procedimento do incidente pleno de qualificação da insolvência.
Assim, nos termos do disposto no n.º 1, o procedimento inicia-se, no prazo ali indicado, com um requerimento do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, no qual devem ser alegados os factos justificativos da abertura do incidente e indicadas as pessoas que devam ser afetadas pela qualificação da insolvência; decidindo o juiz pela abertura do incidente – mediante despacho que é irrecorrível – é apresentado parecer pelo administrador da insolvência (quando não haja sido ele a requerer a abertura do incidente) e de seguida vão os autos com vista ao Ministério Público para que se pronuncie.
Dispõe o n.º 5 do artigo 188.º do CIRE que «Se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido, a qual é insuscetível de recurso».
Ora, a utilização pelo legislador do verbo “poder”, logo indicia que a qualificação da insolvência como “fortuita” quando for esse o sentido quer do parecer do administrador da insolvência quer do Ministério Público não se impõe ao tribunal, o qual pode, por isso, divergir daquele entendimento, isto é, entender que os factos constantes dos autos permitem uma diferente qualificação da insolvência, caso em que seguirá o procedimento previsto nos n.ºs 6, 7 e 8 do artigo 188.º do CIRE. Como referem Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, pág. 689, «Relativamente à versão primitiva, o atual n.º 5 – caso paralelo do precedente n.º 4 – apresenta uma diferença de tomo. Antes, uma vez coincidentes os pareceres do administrador e do Ministério Público quanto à qualificação da insolvência como fortuita, estatuía-se o proferimento pelo juiz de decisão nesse mesmo sentido. Agora esse aparente imperativo foi convolado para uma simples faculdade».
Por conseguinte, e respondendo à primeira questão objeto do presente recurso, o julgador não estava vinculado a qualificar a insolvência dos apelados como “fortuita”.

*
Dispõe o artigo 186.º, n.ºs 1, 2, 3, do CIRE, sob a epígrafe Insolvência Culposa, que:
«1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor, que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário aos interesses deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188º.”
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4 – O disposto nos n.ºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações».
A qualificação da insolvência como “culposa” assenta numa cláusula geral (n.º 1): a insolvência será “culposa” quando a situação de insolvência tiver sido criada ou agravada em consequência de uma atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Desta feita a qualificação da insolvência como culposa pressupõe que: (i) a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada por uma determinada conduta do devedor ou dos seus administradores; (ii) a conduta do devedor ou dos seus administradores revista uma de duas formas de censurabilidade, a saber, o dolo ou a culpa grave[1]; (iii) essas condutas hajam ocorrido dentro dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Aquela cláusula geral é, de seguida, complementada com um conjunto de comportamentos dos administradores, de facto ou de direito, do devedor (que não seja pessoa singular) enumerados, de forma taxativa, nos seus n.ºs 2 e 3.

No n.º 2 do artigo 186.º estão enumerados comportamentos dos administradores do devedor / insolvente que, a verificarem-se, conduzem sempre à qualificação da insolvência como culposa. Ou seja, quando o insolvente não seja uma pessoa singular, a verificação de qualquer uma das condutas descritas nas diversas alíneas daquele número dois impõe sempre a conclusão de que houve uma atuação ilícita e culposa dos administradores na insolvência do devedor, estando, portanto, precludida a alegação e demonstração de alguma causa de desculpação. Estamos perante hipóteses de presunções iuris et iure, isto é, que não podem ser ilididas mediante prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, in fine, do Código Civil). O normativo em causa faz também presumir iuris et iure a causalidade da violação ilícita e culposa de determinados deveres em relação à insolvência[2]. Dito de outra forma, verificada qualquer uma das situações elencadas no n.º 2, presume-se, também, sem possibilidade de prova em contrário, que existe um nexo de causalidade entre a atuação do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

Em síntese e concluindo, perante a verificação de factualidade integradora das alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE têm-se por verificados a culpa do devedor ou dos seus administradores bem como o nexo de causalidade entre a sua conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência, portanto sem admissibilidade de prova em contrário.

Já no n.º 3 do artigo 186.º do CIRE estamos perante um conjunto de situações que fazem presumir a “culpa grave” dos administradores do devedor por incumprimento de obrigações que legalmente lhes são impostas e que podem levar à declaração de insolvência culposa se não houver ilisão da presunção ali contida. Aqui já nos encontramos perante uma presunção iris tantum, ou seja, ilidível mediante prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, 1.ª parte, do Código Civil). Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda[3] «Joga a favor desta interpretação o confronto do texto deste n.º 3 com o do n.º 2. Na verdade, enquanto neste se dispõe que a insolvência se considera sempre culposa, uma vez verificados certos factos, nada de semelhante se diz no n.º 3: presume-se apenas a existência de culpa grave». Para que a insolvência possa ser considerada como culposa à luz do artigo 186.º, n.º 3, do CIRE é ainda necessário que a violação dos deveres ali previstos se revele causal relativamente à situação de insolvência ou ao seu agravamento – neste sentido, entre outros, Ac. RL de 14.12.2010, processo n.º 46/07.8TBSVC-O.L1-7, Ac. RL de 13.11.2018, processo n.º 14827/17.0T8SNT-B.L1-7 e Ac. RE de 17.04.2008, processo n.º 2773/07.2[4]. Há quem entenda que a “causalidade” exigida pelo n.º 3 do artigo 186.º do CIRE se presume – assim, por exemplo, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.12.2010 e como nos parece ser também o entendimento de Carneiro da Frada, ob. cit., e quem defenda que aquela tem de ser provada a par das condutas previstas naquelas alíneas do artigo 186.º, n.º 3, do CIRE – vide, por todos, Acórdão da Relação de Évora de 03.11.2016, processo n.º 5291/15.0T8STB-C.E1 (relator Mário Serrano), publicado em www.dgsi.pt.

Por força do disposto no artigo 186.º, n.º 4, as presunções previstas nos n.ºs 2 e 3 são aplicáveis à atuação de pessoas singulares, embora com as adaptações que a sua natureza e a diversidade das situações imponham.

Feitas estas considerações gerais e regressando ao caso sub judice, a apelante entende que se mostra preenchida a factualidade prevista nas alíneas b)ter o devedor criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas; d)ter disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros e f) – Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário aos interesses deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto – todas do artigo 186.º/2, do CIRE.

Para tal desiderato, a apelante alega que o contrato de arrendamento que o insolvente outorgou com a sua progenitora e que teve por objeto o prédio urbano sito na Rua D. (…), (…), no (…), arrendamento feito pelo prazo de 29 anos e mediante o pagamento de uma renda de € 50,00 mensais, «é um ato que prejudica o interesse da credora-reclamante/apelante e demais credores», pois que a venda em sede de processo de insolvência do referido imóvel que está onerado com uma hipoteca a seu favor, não faz caducar os direitos do locatário.

Que dizer?

Como resulta do exposto supra, a qualificação da insolvência como “culposa” pressupõe, sempre, a concreta verificação de uma das condutas previstas no artigo 186.º, n.º 2 e n.º 3, do CIRE, e que essa conduta haja ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, pois como referem Carvalho Fernandes/João Labareda, ob. cit., pág. 681, «apesar de o n.º 2 não estabelecer, em nenhuma das suas alíneas, um limite temporal para a relevância dos factos nelas previstos, a sua articulação com o n.º 1 leva-nos a sustentar que é de atender, para o efeito, ao prazo neste estatuído».
Começando, desde já, por aquilatar da verificação daquele pressuposto temporal, dir-se-á que não vem posto em causa no presente recurso que o contrato de arrendamento celebrado entre o insolvente e a sua progenitora e que teve por objeto o prédio urbano onerado com hipoteca registada a favor da apelante, foi outorgado em 1 de outubro de 2018, logo, mais de três anos antes da instauração do presente processo de insolvência (cfr. supra II.3).
Para contornar a falta daquele pressuposto temporal, a apelante defende que o negócio em causa carecia do consentimento do cônjuge do insolvente para ser considerado válido e eficaz, invocando o disposto no artigo 1682.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Civil, consentimento que diz ter sido dado em 06-12-2018, pelo que dentro do prazo de 3 anos anterior à data do início do processo de insolvência. Sustenta, consequentemente, que a celebração daquele contrato pode ser utilizado como fundamento para requerer o incidente de qualificação da insolvência como culposa.
Porém, e com o devido respeito, julgamos que não tem razão. Ainda que, porventura, o negócio em causa – contrato de arrendamento – fosse inválido e consequentemente anulável por falta de consentimento do cônjuge do outorgante para a outorga do mesmo por força das disposições conjugadas dos artigos 1682.º-A e 1687.º, ambos do Código Civil, tal negócio não deixou de produzir os seus efeitos e foi tratado como válido até à data em que foi objeto de autorização do cônjuge do insolvente. Enquanto que um negócio nulo não produz, desde o início, por força da falta ou vício de um elemento interno ou formativo, os efeitos a que tendia, o negócio anulável – como seria o contrato de arrendamento no caso concreto –, não obstante a falta ou vício de um elemento interno ou formativo, produz os seus efeitos e é tratado como válido enquanto não for julgada procedente uma ação de anulação[5]; ora, no caso em análise não só não foi demonstrado, ou sequer alegado, que tal ação de anulação foi proposta e julgada procedente como, inclusive, a própria apelante alega que o cônjuge do insolvente deu, posteriormente à conclusão do negócio, o seu consentimento. Por conseguinte, e ao contrário do que é entendimento da apelante, ainda que porventura a conduta do insolvente pudesse ser subsumida a uma das situações previstas nas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, tendo a outorga do referido negócio jurídico ocorrido fora do arco temporal previsto no artigo 186.º/1 do CIRE não pode o mesmo fundamentar uma qualificação da insolvência dos apelados como “culposa”.
Acresce que para integrar a conduta em causa numa das alíneas invocadas pelo apelante não basta alegar e provar que o imóvel foi dado de arrendamento à progenitora do insolvente, pelo prazo de 29 anos e mediante o pagamento de uma contrapartida (renda) de € 50,00, sem que se conheça, por exemplo, o estado de conservação do imóvel e respetivas características.
Pelo exposto, improcede o recurso.

Sumário:
(…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar improcedente a Apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
As custas de parte devidas na presente instância recorrida são da responsabilidade da apelante.

Notifique.
DN.

Évora, 14 de setembro de 2023
Cristina Dá Mesquita
José Manuel Barata
(1.º Adjunto)
Eduarda Branquinho
(2.ª Adjunta)

__________________________________________________
[1] As noções de “dolo” e de “culpa grave” devem ser entendidas nos termos gerais – assim, Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, pág. 680.
[2] Vide, neste sentido, entre outros, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-12-2010, processo n.º 46/07.8TBSVC-O.L1-7, no qual se escreveu «perante a verificação de cada uma das situações previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, a insolvência será sempre considerada como culposa, sem necessidade da demonstração do mencionado nexo de causalidade» e na doutrina Carneiro da Frada, A Responsabilidade dos administradores na insolvência, ROA 66, setembro de 2006, pág. 27, e Luís de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 9.ª Edição, 2019, pág. 286. Já a professora Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2018, Almedina, pág. 301, faz notar que «é necessário discriminar os factos previstos no artigo 186.º: os descritos no n.º 2 e os descritos no n.º 3 e, dentro do primeiro grupo, os descritos nas alíneas a) a g) e os descritos nas alíneas h) e i). Se as alíneas a) a g) do n.º 2 do artigo 186.º correspondem indiscutivelmente a presunções (absolutas) de insolvência culposa as alíneas h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º mais parece ficções legais – dado que a factualidade descrita não é de molde a fazer presumir com segurança o nexo de causalidade entre o facto e a insolvência, que é, a par da culpa (dolo ou culpa grave), o requisito fundamental da insolvência culposa, segundo a cláusula geral do n.º 1 do artigo 186.º».
[3] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, pág. 681.
[4] Todos publicados em www.dgsi.pt
[5] O regime e os efeitos mais severos da nulidade encontram o seu fundamento teleológico em razões de interesse público predominante ao passo que as anulabilidades se fundam na infração de requisitos dirigidos à tutela de interesses predominantemente particulares – assim, Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição atualizada, Coimbra Editora, Limitada, pág. 610.