Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | CRISTINA DÁ MESQUITA | ||
Descritores: | INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA INSOLVÊNCIA FORTUITA REQUISITOS CAUSALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 09/14/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | A qualificação da insolvência como “culposa” pressupõe, sempre, a concreta verificação de uma das condutas previstas no artigo 186.º, n.º 2 e n.º 3, do CIRE, e que essa conduta haja ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 2903/21.0T8STR-D.E1 (2.ª Secção) Relatora: Cristina Dá Mesquita Adjuntos: José Manuel Lopes Barata Eduarda Branquinho Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora: I. RELATÓRIO I.1. Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL, credora no processo de insolvência em que são insolventes (…) e (…), interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo de Comércio de Santarém, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, o qual qualificou como fortuita a insolvência de (…) e (…). A sentença recorrida tem o seguinte teor: «I. Relatório (…) e (…) foram declarado insolventes por sentença transitada em julgado. Os credores Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL e (…) – Decorações e Mobiliários de (…), Lda. vieram apresentar alegações, nas quais propugnaram pela qualificação da insolvência. O Administrador de Insolvência veio apresentar parecer nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 185.º e 188.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (23-09-2022 e 12-02-2023), propondo a qualificação da insolvência como fortuita. Os autos foram com vista ao Ministério Público que emitiu parecer de concordância com a qualificação de insolvência como fortuita. II. Saneamento O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia. Não existem nulidades que invalidem todo o processado. As partes dispõem de capacidade e personalidade judiciárias e são legítimas. Não há outras exceções ou questões prévias que cumpra conhecer e que impeçam o conhecimento de mérito. III. Fundamentação A) Dos Factos Com interesse para a decisão do presente incidente mostram-se assentes os seguintes factos: 1. (…) e (…) foram declarados insolventes por sentença de 22-04-2022, transitada em julgado. 2. O Administrador de Insolvência pronunciou-se pela qualificação da insolvência como fortuita. 3. O Ministério Público pronunciou-se no sentido de a insolvência ser qualificada como fortuita. 3. Constando tais elementos dos autos, não pode o Tribunal, sem mais, qualificar a insolvência como fortuita, ainda que o parecer do AI e do MP sejam nesse sentido; 4. O Tribunal a quo não aplicou, devendo fazê-lo, o disposto no artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b), d) e f), do CIRE; 5. e aplicou erradamente o disposto no artigo 188.º, n.º 8, do mesmo diploma legal; 6. Nestas circunstâncias, a não admissibilidade do recurso é violadora do disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa; 7. Não podendo a insolvência ser considerada, neste momento, como fortuita, deverão os autos prosseguir, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 188.º, n.º 9, do CIRE. * Dispõe o artigo 186.º, n.ºs 1, 2, 3, do CIRE, sob a epígrafe Insolvência Culposa, que:«1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo. 2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor, que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas; c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação; d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto; f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário aos interesses deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto; g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência; h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188º.” 3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência; b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial. 4 – O disposto nos n.ºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações». A qualificação da insolvência como “culposa” assenta numa cláusula geral (n.º 1): a insolvência será “culposa” quando a situação de insolvência tiver sido criada ou agravada em consequência de uma atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Desta feita a qualificação da insolvência como culposa pressupõe que: (i) a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada por uma determinada conduta do devedor ou dos seus administradores; (ii) a conduta do devedor ou dos seus administradores revista uma de duas formas de censurabilidade, a saber, o dolo ou a culpa grave[1]; (iii) essas condutas hajam ocorrido dentro dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Aquela cláusula geral é, de seguida, complementada com um conjunto de comportamentos dos administradores, de facto ou de direito, do devedor (que não seja pessoa singular) enumerados, de forma taxativa, nos seus n.ºs 2 e 3. No n.º 2 do artigo 186.º estão enumerados comportamentos dos administradores do devedor / insolvente que, a verificarem-se, conduzem sempre à qualificação da insolvência como culposa. Ou seja, quando o insolvente não seja uma pessoa singular, a verificação de qualquer uma das condutas descritas nas diversas alíneas daquele número dois impõe sempre a conclusão de que houve uma atuação ilícita e culposa dos administradores na insolvência do devedor, estando, portanto, precludida a alegação e demonstração de alguma causa de desculpação. Estamos perante hipóteses de presunções iuris et iure, isto é, que não podem ser ilididas mediante prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, in fine, do Código Civil). O normativo em causa faz também presumir iuris et iure a causalidade da violação ilícita e culposa de determinados deveres em relação à insolvência[2]. Dito de outra forma, verificada qualquer uma das situações elencadas no n.º 2, presume-se, também, sem possibilidade de prova em contrário, que existe um nexo de causalidade entre a atuação do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Em síntese e concluindo, perante a verificação de factualidade integradora das alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE têm-se por verificados a culpa do devedor ou dos seus administradores bem como o nexo de causalidade entre a sua conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência, portanto sem admissibilidade de prova em contrário. Já no n.º 3 do artigo 186.º do CIRE estamos perante um conjunto de situações que fazem presumir a “culpa grave” dos administradores do devedor por incumprimento de obrigações que legalmente lhes são impostas e que podem levar à declaração de insolvência culposa se não houver ilisão da presunção ali contida. Aqui já nos encontramos perante uma presunção iris tantum, ou seja, ilidível mediante prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, 1.ª parte, do Código Civil). Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda[3] «Joga a favor desta interpretação o confronto do texto deste n.º 3 com o do n.º 2. Na verdade, enquanto neste se dispõe que a insolvência se considera sempre culposa, uma vez verificados certos factos, nada de semelhante se diz no n.º 3: presume-se apenas a existência de culpa grave». Para que a insolvência possa ser considerada como culposa à luz do artigo 186.º, n.º 3, do CIRE é ainda necessário que a violação dos deveres ali previstos se revele causal relativamente à situação de insolvência ou ao seu agravamento – neste sentido, entre outros, Ac. RL de 14.12.2010, processo n.º 46/07.8TBSVC-O.L1-7, Ac. RL de 13.11.2018, processo n.º 14827/17.0T8SNT-B.L1-7 e Ac. RE de 17.04.2008, processo n.º 2773/07.2[4]. Há quem entenda que a “causalidade” exigida pelo n.º 3 do artigo 186.º do CIRE se presume – assim, por exemplo, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.12.2010 e como nos parece ser também o entendimento de Carneiro da Frada, ob. cit., e quem defenda que aquela tem de ser provada a par das condutas previstas naquelas alíneas do artigo 186.º, n.º 3, do CIRE – vide, por todos, Acórdão da Relação de Évora de 03.11.2016, processo n.º 5291/15.0T8STB-C.E1 (relator Mário Serrano), publicado em www.dgsi.pt. Por força do disposto no artigo 186.º, n.º 4, as presunções previstas nos n.ºs 2 e 3 são aplicáveis à atuação de pessoas singulares, embora com as adaptações que a sua natureza e a diversidade das situações imponham. Feitas estas considerações gerais e regressando ao caso sub judice, a apelante entende que se mostra preenchida a factualidade prevista nas alíneas b) – ter o devedor criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas; d) – ter disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros e f) – Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário aos interesses deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto – todas do artigo 186.º/2, do CIRE. Para tal desiderato, a apelante alega que o contrato de arrendamento que o insolvente outorgou com a sua progenitora e que teve por objeto o prédio urbano sito na Rua D. (…), (…), no (…), arrendamento feito pelo prazo de 29 anos e mediante o pagamento de uma renda de € 50,00 mensais, «é um ato que prejudica o interesse da credora-reclamante/apelante e demais credores», pois que a venda em sede de processo de insolvência do referido imóvel que está onerado com uma hipoteca a seu favor, não faz caducar os direitos do locatário. Que dizer? Como resulta do exposto supra, a qualificação da insolvência como “culposa” pressupõe, sempre, a concreta verificação de uma das condutas previstas no artigo 186.º, n.º 2 e n.º 3, do CIRE, e que essa conduta haja ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, pois como referem Carvalho Fernandes/João Labareda, ob. cit., pág. 681, «apesar de o n.º 2 não estabelecer, em nenhuma das suas alíneas, um limite temporal para a relevância dos factos nelas previstos, a sua articulação com o n.º 1 leva-nos a sustentar que é de atender, para o efeito, ao prazo neste estatuído». Évora, 14 de setembro de 2023 Cristina Dá Mesquita José Manuel Barata (1.º Adjunto) Eduarda Branquinho (2.ª Adjunta) __________________________________________________ [1] As noções de “dolo” e de “culpa grave” devem ser entendidas nos termos gerais – assim, Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, pág. 680. [2] Vide, neste sentido, entre outros, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-12-2010, processo n.º 46/07.8TBSVC-O.L1-7, no qual se escreveu «perante a verificação de cada uma das situações previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, a insolvência será sempre considerada como culposa, sem necessidade da demonstração do mencionado nexo de causalidade» e na doutrina Carneiro da Frada, A Responsabilidade dos administradores na insolvência, ROA 66, setembro de 2006, pág. 27, e Luís de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 9.ª Edição, 2019, pág. 286. Já a professora Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2018, Almedina, pág. 301, faz notar que «é necessário discriminar os factos previstos no artigo 186.º: os descritos no n.º 2 e os descritos no n.º 3 e, dentro do primeiro grupo, os descritos nas alíneas a) a g) e os descritos nas alíneas h) e i). Se as alíneas a) a g) do n.º 2 do artigo 186.º correspondem indiscutivelmente a presunções (absolutas) de insolvência culposa as alíneas h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º mais parece ficções legais – dado que a factualidade descrita não é de molde a fazer presumir com segurança o nexo de causalidade entre o facto e a insolvência, que é, a par da culpa (dolo ou culpa grave), o requisito fundamental da insolvência culposa, segundo a cláusula geral do n.º 1 do artigo 186.º». [3] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, pág. 681. [4] Todos publicados em www.dgsi.pt [5] O regime e os efeitos mais severos da nulidade encontram o seu fundamento teleológico em razões de interesse público predominante ao passo que as anulabilidades se fundam na infração de requisitos dirigidos à tutela de interesses predominantemente particulares – assim, Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição atualizada, Coimbra Editora, Limitada, pág. 610. |