Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
10109/15.0T8STB-A.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
HERANÇA INDIVISA
Data do Acordão: 06/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O saldo positivo, apurado em acção de prestação de contas sobre uma herança, deverá ser distribuído pelos herdeiros, mesmo que não haja ainda qualquer partilha.
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº. 10.109/15.0T8STB-A.E1 – APELAÇÃO (SETÚBAL)


Acordam os juízes nesta Relação:

A Apelante/executada (…), residente na Av. (…), Lote (…), Vila Nova de Milfontes, vem interpor recurso do douto despacho que foi proferido a 18 de Janeiro de 2017 (ora a fls. 20 a 24 dos autos), e que lhe indeferiu liminarmente os embargos que deduzira à execução, bem como o incidente de oposição à penhora, por apenso aos autos de execução que lhe haviam instaurado, no Tribunal da Comarca de Setúbal, os exequentes, ora embargados, (…), (…), residentes na Praceta de (…), n.º (…), Setúbal e (…), residente na Av. (…), n.º 2, Edifício (…), apartado (…), Lisboa, no seguimento da prestação de contas efectivada em relação à administração da herança indivisa aberta por óbito de ... (falecido em 06 de Novembro de 2005), no período de 01 de Janeiro de 2008 a 03 de Março de 2009 – com o fundamento aduzido nesse despacho de que é “indiscutível que os exequentes estão munidos de título executivo face ao qual é evidente a existência de uma obrigação, tal como o é a identificação dos exequentes como credores e da executada como devedora”; e ainda que, ao contrário do entendimento por si perfilhado, de que “tal responsabilidade, a existir, é da herança e não dela própria, faltando que o direito de cada um dos interessados seja determinado no inventário, o que não aconteceu ainda”, “é a embargante responsável e do seu património perante os exequentes” (“salvo o devido respeito, pensamos que a embargante labora num equívoco ao confundir administração com partilha da herança”) –, intentando a sua revogação e alegando, para tanto e em síntese, que não concorda com o que assim vem decidido, pois que “prestou contas relativamente às heranças no que concerne a frutos/proveitos em cada uma delas”, mas crê não ter que distribuir os resultados positivos da prestação de contas, quer porque “a conta penhorada à ordem da acção executiva é sua propriedade e do cônjuge e não da herança” e, ainda, porque “a herança está aberta, são conhecidos os seus herdeiros, mas não aferidos e determinados os seus quinhões e/ou responsabilidades da herança”. E assim, no limite, a não se revogar o douto despacho recorrido, devia pelo menos vir a ser suspensa a “execução e a penhora até final dos inventários”, dando-se o pretendido provimento ao recurso apresentado.
Os Apelados/exequentes (…), (…) e (…) vêm apresentar contra-alegações (a fls. 34 verso a 40 verso dos autos), para dizerem, também em síntese, que a apelante não tem razão, pois que o douto despacho de 23-03-2015, já transitado em julgado, constituiu-a “na obrigação de proceder à distribuição do saldo pelos Recorridos nos exactos termos nele determinados, pelo que estes são credores da Recorrente e não da Herança Indivisa aberta por óbito de (…), tendo legitimidade para lhe exigir coercivamente o cumprimento daquela obrigação e para proceder à penhora do seu património”. E deve a Apelante vir, ainda, a ser condenada por litigância de má-fé “em multa e indemnização aos recorridos” ou, caso assim se não entenda, em taxa sancionatória excepcional “face à manifesta improcedência da oposição à execução e à penhora e do presente recurso e ao evidente e único propósito de protelar o pagamento do saldo devido aos recorridos”. Pelo que, rematam, deve o recurso de Apelação ser julgado totalmente improcedente.
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Vem dada por provada a seguinte matéria de facto (para além da que já constava do relatório da sentença):

1) A execução baseia-se nas seguintes decisões judiciais já transitadas em julgado:
a) Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11 de Setembro de 2014, prolatado em processo especial de prestação de contas, em que foram Autores os ora exequentes, e em que foi Ré a embargante/executada, que julgou parcialmente procedente o recurso e determinou a alteração da douta sentença proferida em 1ª instância fixando o saldo final positivo apurado num valor de € 180.143,98 (cento e oitenta mil, cento e quarenta e três euros e noventa e oito cêntimos) relativamente à administração da herança indivisa aberta por óbito de (…), no período de 01 de Janeiro de 2008 a 03 de Março de 2009;
b) Douto despacho de 23 de Março de 2015, proferido no processo de inventário requerido para partilha da herança de (…) cujo dispositivo é o seguinte: “Assim sendo e deferindo-se o requerido, determino se notifique a cabeça-de-casal (…) para, nos termos e para os efeitos do artigo 2093.º, n.º 3, do Cód. Civil, distribuir o saldo positivo relativo à administração da herança durante o período compreendido entre 01-01-2008 e 03-03-2009, no valor global de € 159.957,75 (considerando já a dedução efectuada da quantia necessária para os encargos do ano subsequente), devendo no prazo de 10 dias entregar aos interessados (…), (…) e (…) a respectiva quota-parte de acordo com o direito de cada um, nos exactos termos requeridos a fls. 1788”.
2) Em branco.
3) O requerimento de fls. 1788 tem, além do mais, o seguinte conteúdo:
3 – Do saldo positivo apresentado pela cabeça de casal no referido processo entendeu esta ser necessário reter a quantia de € 20.186,23 a título de fundo de maneio para fazer face aos encargos do novo ano (…).
4 – Assim, o saldo positivo a distribuir pelos interessados é de € 159.957,75 (€ 180.143,98 - € 20.186,23). (…)
8 – Nestes termos, e pelas razões expostas, vêm os interessados requerer a V.ª Ex.ª, nos termos do artigo 2093º, nº 3, do Código Civil, se digne ordenar a notificação da cabeça de casal para no prazo de 10 dias pagar aos requerentes as quantias do referido saldo correspondentes aos respectivos direitos, a saber:
À interessada (…), a quantia de € 53.319,25, correspondente a 1/3 do citado saldo;
Aos interessados (…) e (…), a quantia de e € 53.319,25, correspondente a 1/3 do referido saldo, cabendo a cada um destes a quantia de € 26.659,625, sob pena de, por apenso ao presente processo de inventário, se proceder a penhora de bens e se seguirem os termos posteriores da execução por quantia certa, ao abrigo do disposto no n.º 5 do artigo 944.º do CPC (antigo n.º 4 do artigo 1016.º)”.
4) No requerimento executivo alega-se a aplicabilidade do n.º 5 do artigo 944.º do NCPC ao caso concreto, aí se citando jurisprudência e doutrina sobre a matéria, e indica-se como valor líquido o montante de € 106.638,50, correspondendo ao somatório de € 53.319,25 + € 26.659,625 + € 26.659,625 (reportando-se estas duas parcelas aos créditos dos exequentes … e …).
5) Nos autos de execução foi penhorado o saldo de uma conta bancária de que é titular a embargante (aberta na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da …, CRL, com o identificador n.º …), sendo tal saldo no valor de € 114.866,33 (cento e catorze mil, oitocentos e sessenta e seis euros e trinta e três cêntimos).
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Ora, a questão que demanda apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem é a de saber se deverá ainda manter-se o douto despacho que indeferiu in limine os embargos à execução e a oposição à penhora na sequência da acção especial de prestação de contas que apresenta, agora, um saldo positivo, e que a interessada e cabeça-de-casal (…) não quer fazer distribuir pelos demais herdeiros, por não haver ainda partilha. É isso que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões que vêm alinhadas no recurso apresentado.
[Os Apelados expõem, de resto, com clarividência, a posição da Apelante no recurso, a fls. 35 dos autos, na motivação das suas doutas contra-alegações: “Por conseguinte, face às conclusões do recurso, afigura-se que as questões suscitadas são essencialmente as mesmas suscitadas nos embargos e oposição à penhora, ou seja, prendem-se com a exequibilidade do título executivo e com a responsabilidade da recorrente e do seu património perante os ora recorridos entendendo aquela que tal responsabilidade é da herança e não dela própria, cabeça-de-casal, sendo certo que ainda não foram determinados no processo de inventário n.º 536/09.8TBSTB os quinhões hereditários dos interessados, o que, na sua perspectiva, impossibilita a distribuição do saldo em causa”.]

Mas não cremos que ora assista razão à Apelante na pretensão que deduz neste recurso, salva naturalmente melhor opinião que a nossa, tendo o douto despacho colocado e decidido bem a problemática que lhe estava suscitada nos embargos – e sendo até lapidar e definitivo quando sentencia: “salvo o devido respeito, pensamos que a embargante labora num equívoco ao confundir a administração com a partilha da herança”.

Pois que, efectivamente, como se aduz no douto despacho, o património do de cujus (…) não se acha, ainda, partilhado entre os demais interessados (que são as partes nestes embargos) – para além de não o estar, também, o património da sua esposa pré-falecida (…), correndo ambos os inventários agora cumulados. Mas não é nenhuma partilha que está em causa, de momento; o que está em causa é o saldo positivo que foi encontrado no douto Acórdão desta Relação já transitado em julgado, na acção especial de prestação de contas que correu termos entre os herdeiros. Ora, o apuramento desse saldo positivo, e a respectiva distribuição pelos herdeiros, não pode confundir-se com qualquer partilha sendo institutos jurídicos diversos.
Ninguém quer ainda saber dos bens da herança, a quem calham e em que percentagem. O que está em causa é a distribuição de um saldo já apurado.

Pelo que não há motivo para as preocupações avançadas pela embargante sobre a exequibilidade do título executivo e, por arrastamento, sobre a própria legitimidade para figurar nos autos como executada. Como se aduz na matéria de facto supra apurada, aquilo que veio a definir a obrigação, rectius o saldo final positivo apurado na acção de prestação de contas, foi o douto Acórdão desta Relação de 11 de Setembro de 2014, já transitado em julgado, e o douto Despacho da 1ª instância, proferido a 23 de Março de 2015, também transitado, exarado nos autos de inventário a que essa prestação de contas dizia respeito, o qual determinou a quantia que a agora embargante tinha que pagar aos demais interessados, lhe fixou até um prazo de 10 dias para o fazer e disse quais eram as percentagens do saldo (que também indicou) a entregar a cada um deles – “nos exactos termos requeridos a fls. 1788”, onde estava tudo discriminado, ao cêntimo. Esse é que constitui, naturalmente, o título executivo.
Ora, tudo isso transitou em julgado e haverá que cumpri-lo (pois veja-se que o art.º 705º, nº 1, do CPC estatui que “são equiparados às sentenças, sob o ponto de vista da força executiva, os despachos e quaisquer outras decisões ou actos da autoridade judicial que condenem no cumprimento duma obrigação”).
Pelo que o título executivo que aqui está em causa não suscita as dúvidas que a embargante dizia que suscitava (e também quanto à sua ilegitimidade para figurar na própria execução).

Consequentemente, não tendo sido dado cumprimento voluntário ao que ali fora ordenado, passou-se à execução contra a obrigada (não contra qualquer herança indivisa ou já partilhada), nos termos do n.º 5 do artigo 944.º do CPC, que, por isso, tem aqui uma plena e justificada aplicação, ao contrário do que é defendido pela executada/embargante, ora apelante. Aí se prescreve, com efeito, que “Se as contas apresentarem saldo a favor do autor, pode este requerer que o réu seja notificado para, no prazo de 10 dias, pagar a importância do saldo, sob pena de, por apenso, se proceder a penhora e se seguirem os termos posteriores da execução por quantia certa”. E citando, a este propósito, o douto despacho ora recorrido: “É o que impressivamente observa João António Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, volume III, 4ª edição, a páginas 90: Mas a incidência da regra do artigo 1016.º, n.º 4, já não poderá questionar-se quando, apurado definitivamente o saldo e fixada a quantia a reter pelo cabeça-de-casal com vistas à satisfação dos encargos da administração relativa ao novo ano, o interessado com direito a receber parte determinada desse saldo, pretenda realizar esse direito”.

Claro que a distribuição pelos interessados do saldo positivo das contas é feita “segundo o seu direito”, nos termos do artigo 2.093.º, n.º 3, do Cód. Civil, e a isso se agarra a embargante para dizer que não vai distribuir nada pois ainda não há partilha e, por isso, se não sabe qual é o direito de cada um dos visados.

Mas não pode agora esquecer que já há decisão judicial transitada a dizer precisamente isso – qual é a quota-parte de cada um deles –, pelo que o assunto já está definido, e não pode ser objecto de nova discussão em sede de embargos, vindo ali definido que seja entregue à interessada Maria Engrácia a quantia de € 53.319,25, correspondente a 1/3 do saldo apurado; e aos interessados Pedro e Inês Morgado, a quantia de € 53.319,25, correspondente a 1/3 do referido saldo, cabendo a cada um destes a quantia de € 26.659,625.

Estas considerações valem também para o segmento do recurso que vem dirigido especificamente à oposição à penhora da conta bancária da executada, pois também aí a visada se defendia com a não exigibilidade da obrigação.

E chegamos à última questão suscitada, desta vez pelos Apelados, de vir a condenar-se a Recorrente como litigante de má-fé “em multa e indemnização aos recorridos” ou, caso tal se não entenda, em taxa sancionatória excepcional, “face à manifesta improcedência da oposição à execução e à penhora e do presente recurso e ao evidente e único propósito de protelar o pagamento do saldo devido aos recorridos”.

Mas aqui cremos bem que não assistirá razão aos Apelados, salva melhor opinião, pois não é por se perderem as acções ou os recursos que se ficará logo sob a alçada de tais penalidades, até para não coarctar as possibilidades dos cidadãos defenderem as suas pretensões em Tribunal, e defendê-las vivamente e em plena liberdade, sem medos de virem a ser excepcionalmente sancionados se as suas pretensões não forem atendidas. Nem a manifesta improcedência dos embargos a tal conduz, prevista que está é para atalhar logo no seu seguimento.
Poderia mesmo – a levar-se tal a uma aplicação simples e automática – ficar em risco o próprio princípio constitucional fundante do acesso ao Direito e aos Tribunais.

No caso sub judicio, foi suscitada, com os embargos à execução (e com a oposição à penhora que daqueles decorria), uma questão jurídica interessante e pertinente, na economia do sistema, tendo a visada lançado mão de um meio processual ao seu dispor, numa perspectiva de acautelar uma possível entrega de património em quantia diversa daquela a que os interessados poderiam vir a ter numa futura partilha. Já vimos que processualmente não foi um caminho que se tenha que aceitar (até porque se se verificar, mais tarde, que os valores foram entregues desajustadamente, se terão ainda que acertar as contas), mas é sempre uma possibilidade processual que a visada tomou por boa, não havendo motivos que conduzam à tal perspectiva sancionatória, em qualquer das versões pedidas pelos recorridos: quer pela má-fé, quer através da taxa excepcional.

Razões pelas quais, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se terá agora que manter, intacta na ordem jurídica, a douta decisão da 1ª instância que assim optou e improcedendo o presente recurso de Apelação.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar o douto despacho recorrido, e vindo a indeferir os pedidos dos Apelados de condenação da Apelante por litigância de má-fé ou em taxa de justiça sancionatória excepcional.
Custas a meias por Apelante e Apelados.
Registe e notifique.
Évora, 28 de Junho de 2017
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana
José Francisco de Matos