Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1329/15.9T8EVR.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: PROVA DOCUMENTAL
MANDATO FORENSE
Data do Acordão: 01/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A prova é produzida na audiência e não na internet, sendo certo que cada uma das partes tem o seu encargo de produzir a prova que lhe convém.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1329/15.9T8EVR.E1
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…) Informática, Lda. intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, contra (…), advogado, peticionando a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 180.000,00, a título de indemnização, acrescida de juros de mora até efectivo pagamento.
Alegou, para tanto, incumprimento do mandato conferido ao R..
*
O R. contestou.
*
Foi admitida a intervenção de Seguradoras Unidas (antes designada Tranquilidade), entidade com quem a Ordem dos Advogados celebrou um contrato de seguro.
A seguradora contestou.
*
Depois de realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu o R. do pedido.
*
Desta sentença recorre a A. impugnando a matéria de facto bem como a solução de direito.
*
A recorrida seguradora contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
*
A impugnação incide sobre os seguintes factos que o tribunal deu por não provados (e que a recorrente, como é natural, pretende ver provados):
a) O procedimento ANCP – AQ 2010 PECI foi publicado a 03-05-2010.
b) O procedimento ANCP – AQ 2010 CI foi publicado a 10-05-2010, tendo o respectivo relatório final sido proferido em 20-09-2010.
c) O procedimento ANCP – AQ 2010 EI foi publicado a 06-07-2010, tendo o respectivo relatório final sido proferido em 25-10-2010.
e) Com a prévia qualificação referida em 14) a autora facturou a quantia de € 798.200,00, obtendo um lucro de € 79.820,00, correspondente a 10% da facturação.
g) A ANCP já tinha aceite introduzir um valor no texto da garantia bancária num outro concurso em que a autora era concorrente.
*
Em relação aos três primeiros, cuja impugnação se baseia num endereço de internet (espap.pt), permitimo-nos reproduzir um passo das contra-alegações:
«Vagueando por tal website rapidamente se torna complicado localizar os concursos que a Recorrente trouxe à discussão nestes autos. A Recorrida não os localizou, e não foi por inépcia (sendo certo que nem teria que o fazer…)».
Com efeito, não se descortinam facilmente os concursos a que a recorrente se refere. Por outro lado, a prova é produzida na audiência e não na internet, sendo certo que cada uma das partes tem o seu encargo de produzir a prova que lhe convém. Como escreve também a recorrida, «[i]nsinuar que, deveria ir o Douto Tribunal a quo “navegar” no site da Espap e procurar os documentos dos concursos ANCP – AQ 2010 PECI, ANCP – AQ 2010 CI e ANCP – AQ 2010 EI porque são do conhecimento público e de todos os cidadãos é desonerar-se do ónus da prova.
«Cabia à Recorrente juntar ao processo documentos comprovativos de tais concursos já que, como a própria diz, são do conhecimento público e de todos os cidadãos».
Nem se pode dizer que se tratem de facto notórios ou de que o tribunal tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções (cfr. art.º 412, Cód. Proc. Civil).
Relativamente à certidão do processo que correu termos no Tribunal Administrativo de Beja, a sua força probatória está indicada no art.º 371.º, Cód. Civil: ela apenas abrange os factos praticados pela autoridade ou os factos atestados (confirmados) com base na percepção do autor do documento. A realidade que se descreve no documento não é abrangida pela força probatória plena.
Assim, mantém-se estes factos tal como foram julgados.
*
Em relação à al. e), existe um lapso, de que a recorrente dá conta, quando nela se refere o n.º 14 quando, afinal, o número correcto é o 15. Mas é só um lapso.
Quanto ao mais (a facturação da recorrente e o seu lucro), os documentos pouco adiantam tal como não adianta o depoimento da testemunha (…), contabilista. Ficamos sem saber qual era realmente a facturação real da empresa (tanto a testemunha como o legal representante da recorrente indicam valores diferentes) tal como ficamos sem saber qual o respectivo lucro e, como nota a recorrida, se tal lucro é o de toda a actividade da empresa ou só da parte que ganhava nos concursos púbicos a que concorria.
Assim, e tal como o tribunal recorrido, entendemos que os «factos não provados e) e f) resultaram da insuficiente prova produzida, porquanto as declarações de parte prestadas pelo gerente, bem como a prova testemunhal, não foram suficientemente esclarecedores no que diz respeito ao concreto lucro obtido pela empresa nos fornecimentos que efectuou na decorrência do procedimento de qualificação anterior, sendo que igualmente não foram corroborados por prova documental suficiente, porquanto as facturas juntas aos autos não expressam os valores alegados pela autora, inexistindo quaisquer outros documentos contabilísticos que suportem os mesmos. Mais especificamente cumpre salientar que ao contrário do que consta da petição inicial o legal representante da autora referiu nas suas declarações um lucro previsível de € 20.000 por concurso. Por outro lado, a testemunha (…) – contabilista da empresa – mencionou uma facturação total da autora nos anos de 2009 a 2011 de cerca de € 750.000,00 / € 800.000,00, sendo que a margem de lucro seria na ordem dos 9% / 11%, não conseguindo concretizar qual a percentagem daquela facturação que corresponderia a bens fornecidos no âmbito do acordo quadro celebrado em 2009, pelo que igualmente este depoimento não se mostrou suficiente para se concluísse qual o lucro que a autora obteve na decorrência do anterior concurso de qualificação».
Mantém-se este facto como não provado.
*
Por último, o da al. g), a recorrente baseia-se apenas do depoimento de parte do seu gerente — o que é manifestamente insuficiente.
Assim, nada se altera.
*
A matéria de facto é a seguinte:
1) A autora candidatou-se junto da ANCP, E.P.E. a três concursos públicos de prévia qualificação para a celebração de acordo quadro para fornecimento de papel, economato e consumíveis de impressão (AQ 2010 PECI), de cópia e impressão (AQ 2010 EI) e de equipamento informático (AQ 2010 EI).
2) (…) dos quais foi excluída em virtude de não ter feito prova da sua capacidade financeira.
3) (…) tendo em conta que a garantia bancária a ser emitida nos termos do Código dos Contratos Públicos não é aceite pelos bancos e a autora não dispunha de rácios EBITDA por ser uma micro-empresa.
4) Em face da sua exclusão dos referidos concursos a autora contratou os serviços de advocacia do ora réu, com vista a impugnar judicialmente os mesmos.
5) Na sequência, em 13 de Novembro de 2010, o réu mandatado pela autora deu entrada de uma providência cautelar, que correu termos sob o n.º 383/10.4BEBJA, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja.
6) (…) na qual peticionava a suspensão dos concursos com vista à interposição da competente acção administrativa especial a interpor.
7) Em sede de contestação a ANCP veio invocar a caducidade do direito de acção da autora, quer para intentar a providência cautelar, quer para a respectiva acção principal de contencioso pré-contratual.
8) Em resposta o réu alegou ser aplicável o disposto no artigo 389.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, pelo que teria 30 dias para intentar acção principal após o trânsito em julgado da decisão da providência cautelar, bem como a aplicação do artigo 58.º, n.º2, do CPTA.
9) O réu não interpôs a acção principal.
10) Em 29 de Julho de 2011, foi proferida decisão no âmbito do processo referido em 5) que julgou extinto o processo por impossibilidade superveniente da lide por caducidade do direito de acção, nos termos dos artigos 59.º, 89.º, 114.º, n.º 3, al. e), 123.º, n.º 1, alínea a) e 101.º, todos do CPTA.
11) O réu foi notificado daquela decisão em 12 de Agosto de 2011, não interpôs recurso, tendo a mesma transitado em julgado em 31 de Agosto de 2011.
12) (…) consequentemente a autora ficou impedida em definitivo de impugnar os concursos referidos em 1).
13) No procedimento ANCP – AQ 2010 PECI o respectivo relatório final foi proferido em 25-08-2010.
14) Por não ter ficado previamente qualificada nos concursos referidos em 1) a autora não pôde fornecer os respectivos bens e serviços às entidades públicas nos concursos públicos que abriram para seu fornecimento, nos anos de 2010, 2011 e 2012.
15) Anteriormente, a autora conseguiu a sua prévia-qualificação no procedimento de 2009, que vigorou até ao 1.º semestre de 2011.
16) O réu remeteu ao gerente da autora um email datado de 20 de Abril de 2011, com o seguinte teor: «(…) Ainda não avancei com a acção principal porque entendo que não nos adianta avançar para perder. Tenho estudado o assunto, como certamente compreendes e o meu sentido de responsabilidade não me permite avançar sem, pelo menos uma segurança que reputo mínima. Porque certezas, ninguém as terá. O tribunal está ao corrente da evolução do processo concursal, mas a verdade é que a juíza ainda não se pronunciou e eu tinha todo o interesse que isso acontecesse antes de agir. De modo que também tenho estado na expectativa, para não te fazer perder dinheiro e tempo e, por outro lado, não criar expectativas que depois se não verifiquem, o que para mim não é nada agradável, como compreendes (…)».
17) A interveniente «Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.» segura, nos termos das condições particulares, gerais e especiais do seguro de responsabilidade civil profissional celebrado com a Ordem dos Advogados, através da apólice n.º (…), o risco decorrente da acção ou omissão dos advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados no exercício da sua função.
18) Nos termos do Ponto 10 das condições particulares, sob a epígrafe Período de Cobertura, a apólice em causa vigora pelo período de 24 meses, com data de início de 01-01-2012 às 00 e término às 00 de 01-01-2014.
19) De acordo com o Ponto 7 das condições particulares, a seguradora assume a cobertura da responsabilidade do segurado por todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador do seguro ocorridos na vigência das apólices anteriores, desde que participados após o inicio da vigência da presente apólice, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional, coberta pela presente apólice, e, ainda, que tenham sido cometidos pelo segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente apólice.
20) Nos termos do Ponto 12 do artigo 1.º das condições especiais da apólice, considera-se reclamação toda a comunicação de qualquer facto ou circunstância concreta conhecida pela primeira vez pelo segurado e notificada oficiosamente por este à seguradora.
21) Nos termos do artigo 3.º das condições especiais da apólice, ficam excluídas da cobertura da apólice as reclamações por qualquer facto ou circunstancia conhecidos do segurado à data de início do período de seguro, e que já tenham gerado ou possa razoavelmente vir a gerar reclamação. 22) A referida apólice tem como limite de indemnização o capital total de € 150.000,00 anual e por sinistro.
23) (…) tendo sido fixada uma franquia de € 5.000,00 por sinistro.
24) Por carta datada de 22 de Outubro de 2012, remetida ao réu, a interveniente «Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.» declinou a responsabilidade no sinistro.
*
Em relação ao mérito da causa, a sentença considerou dois pontos sobre a execução do mandato.
No primeiro, em que concluiu pela irresponsabilidade do R., abordou duas situações:
«No que diz respeito à primeira situação – entrada da providência cautelar fora do prazo – cumpre mencionar que o réu entendia não ser aplicável o prazo previsto no artigo 101.º do CPTA, mas sim o prazo previsto no artigo 58.º, n.º 2, alínea b).
«Quanto à segunda situação – não entrada da acção principal – o réu optou por requerer a antecipação do juízo final na providência cautelar, por considerar ser aplicável ao caso determinada disposição legal, ao invés de interpor a competente acção principal».
A sentença entendeu que a opção por uma estratégia processual, entre outras, não constitui violação do contrato de mandato uma vez que qualquer delas seria razoável e plausível (citando o ac. da Relação de Lisboa, de 28 de Abril de 2016); apenas aconteceu que o tribunal não aceitou a solução defendida pelo Ilustre Mandatário.
O segundo ponto diz respeito ao facto de o R. não ter recorrido da decisão que julgou caducada a providência cautelar. Entendeu aqui que era obrigação do R. ter recorrido mas que não está demonstrado que obteria com grande probabilidade a revogação do despacho. Por este motivo, também entendeu a que não havia obrigação de indemnizar.
A recorrente, pelo contrário, defende que o R. não tinha alternativa se não a aplicar as regras estritas sobre o contencioso pré-contratual, designadamente, o seu art.º 101.º (que estabelece o prazo de um mês) e não o art.º 58.º (prazo de três meses), ambos do CPTA.
*
Concordamos parcialmente e sem prejuízo da sentença recorrida.
A remissão que o art.º 101.º faz para o art.º 58.º refere-se tão-só ao modo de contagem do prazo e não quanto a este propriamente dito. Não podia haver dúvidas que os «processos do contencioso pré-contratual devem ser intentados no prazo de um mês» (art.º 101.º) o que significa que o prazo geral fica afastado. Não se trata de optar entre uma estratégia ou outra, ou de optar entre uma das diversas interpretações veiculadas pela jurisprudência (que não existe neste caso); o prazo é só aquele e a lei é clara a esse respeito.
O mesmo se dirá à escolha da não proposição da acção por ser ter antes pedido a inversão do contencioso, figura do processo civil também existente no contencioso administrativo (art.º 121.º, n.º 1); mas esta é uma escolha do tribunal e não da parte (ao contrário do processo civil, face ao disposto no art.º 369.º, n.º 1, Cód. Proc. Civil).
O certo, em todo o caso, é que a acção principal não deu entrada no prazo legal e tinha que ser proposta no «respectivo prazo» [art.º 123.º, n.º 1, al. a)].
Assim, entenderíamos que as duas situações referidas na sentença não tinham sido devidamente ponderadas e decididas.
Ponto é que se soubesse quando foi que a recorrente consultou o R. pois isso seria fundamental para aferir o cumprimento das obrigações de Advogado por parte deste. Era em função deste momento que poderíamos dizer se o R. foi diligente ou não. E não se diga que, de acordo com o art.º 799.º, n.º 1, Cód. Civil, ao R. é que caberia alegar tal; e não se diga porque o prazo não integra a negligência mas é antes um seu pressuposto. O que se alega na p.i. (art.º 17.º) é só que a «autora expôs a sua questão ao réu, relativamente a cada um dos concursos em causa, tendo-o consultado a propósito de cada um deles, à medida que as questões se colocavam nos respectivos concursos».
Assim, mais do que uma estratégia errada, o que se passa é que não temos uma medida temporal que permita identificar o momento em que o R. devia ter agido.
*
Em relação ao demais, concordamos com a posição da sentença recorrida bem como com a da recorrida.
Depois de alegar na p.i. que ao «transitar em julgado a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja que conheceu da excepção de caducidade do direito da ora autora, viu esta precludido o direito de acionar judicialmente o seu direito por o mesmo ter caducado pelo decurso do prazo», defende agora que que a «causa adequada à perda de chance da recorrente ver analisada a sua pretensão ficou a dever-se à escolha do procedimento processual feito pelo recorrido aquando da interposição da providência cautelar».
Mas o fundamental, o exigível, «o que era pedido e exigido era provar que caso tivessem sido interpostas as ações e caso tivesse recorrido seria qualificada para os três concursos» (das contra-alegações). O procedimento cautelar é importante mas é só uma antecâmara da decisão final (e nada obriga a que esta seja igual à tomada naquele procedimento). Por isso, o problema, em bom rigor, não tem que ver com a caducidade do procedimento cautelar nem com a falta de interposição de recurso da decisão que declarou a sua caducidade. O importante, a que acrescem ainda as considerações que acima se fizeram a respeito do tempo em que o R. foi consultado pela recorrente, era que se conhecesse a pretensão da recorrente perante o concurso e a possibilidade séria de, com os seus fundamentos, obter ganho de causa.
Ganharia a recorrente a sua acção administrativa? E com base em que razões? Seria expectável o ganho desta causa? Como se escreve no ac. do STJ, de 9 de Julho de 2015, «no campo da responsabilidade civil contratual por perda de chances processuais, em vez de se partir do princípio de que o sucesso de cada ação é, à partida, indemonstrável, mostra-se mais adequado questionar, perante cada hipótese concreta, qual o grau de probabilidade segura desse sucesso, pois pode muito bem acontecer que o sucesso de determinada ação, à luz de um desenvolvimento normal e típico, possa ser perspetivado como uma ocorrência altamente demonstrável, à face da doutrina e jurisprudência então existentes». Ou, como se escreve no ac. da Relação de Lisboa, de 27 de Abril de 2017, a «“perda de chance” consubstancia a perda da possibilidade de obter um resultado favorável, ou de evitar um resultado desfavorável, devendo as possibilidades perdidas gozar de um determinado grau de consistência e probabilidade suficiente de verificação do resultado – tratar-se de “chances” sérias e reais».
Mas sobre isto, além de diversas generalidades, nada se diz.
É certo que a recorrente invoca um acórdão do STA, mas não em primeira mão, em que «um concorrente conseguiu anular o programa de concurso, cujas normas técnicas violavam as disposições legais». Não há nada de novo nisto nem nada de interesse para o nosso caso. Seria um caso igual ao da recorrente?
*
Por último, importa deixar só uma nota.
A recorrente defende que «bastava a existência de uma decisão judicial que não lhe tenha dado razão, para que a recorrente tivesse obtido vencimento nos presentes autos» (p. 35 das alegações). Mas a responsabilidade pela perda de chance não está dependente da perda da acção por si só. Seria um autêntico descalabro se assim acontecesse. A jurisprudência exige mais do que o simples desfecho desfavorável da demanda.
*
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela recorrente.
Évora, 25 de Janeiro de 2018
Paulo Amaral
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho