Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
30/10.4JASTB-C.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: COMUNICAÇÕES TELEMÁTICAS
DEVER DE SIGILO
FORNECIMENTO DE DADOS
RECUSA
SANÇÃO
Data do Acordão: 01/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
1. A taxa sancionatória excepcional prevista no art. 521º do Código de Processo Penal aplica-se a comportamento processual que entorpeça o andamento do processo injustificadamente, ou seja, sem motivo razoável para tal.

2. Se (também na lei do cibercrime) há reserva de juiz para obtenção de determinadas provas – como sucede no caso do fornecimento de dados de tráfego e de conteúdo –, se a PT está obrigada a deveres de segredo e impedida de fornecer esses dados excepto se o juiz autorizar, se aquela operadora colocou uma dúvida quanto à qualificação (como dado de base e/ou como dado de tráfico) de determinada informação pretendida pelo Ministério Público apresentando uma argumentação abstractamente sustentável, é ao juiz de instrução e não ao Ministério Público que compete resolver essa dúvida.

3. Não é a repetição da afirmação, pelo Ministério Público, da legalidade de um procedimento – legalidade do pedido dos dados em causa pelo titular do inquérito sem necessidade de autorização judicial – que resolve o problema suscitado pela PT. Esta decisão compete também ao Juiz, sob pena de se frustrar, de modo indirecto, a tutela constitucional da garantia de juiz.

4. E tal decisão judicial, sobre a (im) prescindibilidade de autorização do juiz, será necessariamente prévia (e prejudicial) à avaliação de um posterior comportamento processual da operadora e à eventual condenação desta em taxa sancionatória “excepcional”.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No inquérito n.º NUIPC 30/10.4JASTB, dos Serviços do Ministério Público de Setúbal, foi proferida decisão judicial em que se condenou PT – Comunicações, S.A., em taxa sancionatória excepcional, por recusa na prestação de informação solicitada pelo Ministério Público no inquérito.

Inconformada com o assim decidido, recorreu a sancionada, concluindo:

“I – A ora requerente desde sempre, como é seu dever legal, tem prestado todas as informações que lhe são solicitadas, observando, no entanto, o dever de sigilo das comunicações eletrónicas, bem como o dever de sigilo profissional a que está adstrita.

II - Tais deveres (sigilo das comunicações eletrónicas e sigilo profissional) representam verdadeiras imposições legais, impedindo a ora requerente, de prestar a informação requerida, salvo se for solicitada ou autorizada pelo assinante/utilizador dos serviços de comunicações eletrónicas ou mediante autorização do Juiz de Instrução Criminal.

III - A fim de dar cumprimento aos mencionados deveres legais considerou-se legalmente impedida nos presentes autos de juntar a informação solicitada pelo Ministério Publico, por entender que os elementos pedidos se encontrarem abrangidos pelo sigilo das comunicações eletrónicas.

IV - Na verdade, e embora os dados solicitados (identificação do titular/utilizador do IP), quando isoladamente considerados devem ser classificados como dados de base, no caso concreto, estando em causa a identificação do titular/utilizador de IP’s dinâmicos, os dados de base devem ser considerados dados de tráfego, pelo facto de se encontrem associados à data e hora da respetiva comunicação, cuja divulgação é passível de violar o direito à reserva da vida privada do respetivo utilizador, razão pela qual, nestes casos, o legislador exige o consentimento prévio do seu titular ou a autorização do Juiz de Instrução.

V – Com efeito, não foi, nem poderia ser, por mero capricho ou vontade de desobedecer, nem tão pouco de entorpecer o andamento do processo, que a requerente não deu cumprimento à solicitação formulada pelo Ministério Público, mas tão só por estar convicta de que o fornecimento da informação solicitada constituiria uma violação do dever de sigilo das comunicações eletrónicas a que está vinculada e, consequentemente, um comportamento ilícito.

VI - Efetivamente, a ora requerente, ao atuar desta forma, fê-lo por estar convencida da licitude da sua conduta, agiu conforme a Lei e, de modo algum, pretendia, com tal atuação, violar o dever de cooperação a que se encontra adstrita, nem tão pouco inviabilizar o bom andamento do processo.

VII - Tal era a sua convicção de que estava a atuar conforme o ordenamento jurídico, que, ao ser notificada do despacho que julgou ilegítima a recusa, de imediato, juntou aos autos a informação requerida pelo Ministério Público.

VIII - Donde se conclui que a conduta adotada pela requerente (fundamento da condenação aplicada) não consubstancia qualquer recusa em colaborar com a justiça, nem poderá ser entendida como uma forma de impedimento que obste ao bom andamento do processo.

XIX – Por conseguinte, não deve ser passível de condenação, dado que não viola o disposto no artigo 519º do Código Processo Civil e artigo 521º do Código Processo Penal, na redação dada pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro.

X – Considerando a argumentação anteriormente aduzida, afigura-se, à ora requerente, não existir suporte legal que sustente a sanção (multa) fixada, não havendo, consequentemente, lugar à aplicação da mesma. Reitera ainda que sempre esteve e continua a estar, de boa-fé, pugnando, por uma conduta consentânea com os princípios enformadores da ordem jurídica. ”.

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo por seu turno:

“1.Tendo a PTC sido notificada do despacho que a condenou em multa, por carta registada remetida em 28/11/2011, o prazo de interposição do recurso terminou no dia 19/12/2011, por aplicação do disposto nos artigos 27°, n.05 do RCP, 104° e 113°, n.02 do CPP.

2. Verificando-se que o Recurso interposto deu entrada em 21/11/2011, sendo já o 2° dia posterior ao termo do prazo, sem estar acompanhado do pagamento da multa a que se refere o artigo 107°, alínea b) do CPP, deveria a Recorrente ter sido notificada para pagar a multa agravada nos termos preceituados nos artigos 107°-A do CPP e 145°, n.06 do CPC, pois de tal pagamento depende a validade do acto processual praticado, e consequentemente, o recebimento do recurso.

3. Caso o Recurso venha a ser recebido, desde já se refere que o mesmo não vem acompanhado de qualquer depósito correspondente ao valor da multa em que a recorrente foi condenada nos presentes autos, pelo que deverá ser fixado ao mesmo efeito meramente devolutivo, nos termos do artigo 408°, n.º2, alínea a) do CPP, o que se requer.

4. A questão de saber se o despacho recorrido fez uma correcta aplicação do artigo 519° do CPC, ao condenar a recorrente em multa por não ter fornecido aos autos os elementos de identificação do utilizador de um determinado IP dinâmico, em determinado dia e hora, depende da posição que se adoptar quanto à natureza daqueles dados e, em consequência, sobre qual a entidade com competência para os solicitar

5. Os dados de tráfego são relativos a comunicações concretas, e no que ás comunicações electrónicas diz respeito abarcam a data, a duração e a frequência das ligações efectuadas à internet por determinado utilizador, e esses já constam dos autos.

6. Os dados de identificação do utilizador de um determinado IP dinâmico, em determinado dia e hora, constituem dados de base, pois não se pretende nenhuma informação relativa a comunicações concretas, mas tão só a identificação do utilizador.

7. A natureza destes dados não se altera em função do facto de o IP ser fixo ou dinâmico pois se o IP fosse fixo, igualmente se solicitaria a identificação completa do titular em determinado dia e hora, pois que desconhece o Ministério Público, nem tem porque conhecer, o início e termo do contrato celebrado entre a PTC e o utilizador.

8. O artigo 14°, n.º4, alínea a) da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro) especifica claramente que os fornecedores de serviços devem comunicar ao processo os dados relativos aos seus clientes ou assinantes designadamente a identificação completa com os elementos a que se refere a mencionada alínea a), excepcionando dados de tráfego, o que não é o caso.

9. O Ministério Público é a autoridade judiciária competente para dirigir o inquérito, e o pedido de dados de base não constitui matéria da competência reservada do Juiz de Instrução, conforme resulta do disposto nos artigos 269º n.º , alínea e), 187° e 189° do CPP, pelo que deveria a PTC ter fornecido os dados solicitados.

10. Não o fazendo, invocou o dever de sigilo para além do que lhe era permitido e entorpeceu o andamento do procedimento criminal.”

Neste Tribunal, o Sra. Procuradora-geral Adjunto pronunciou-se no sentido da improcedência, mas nada acrescentando.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:

“Nos serviços de telecomunicações distinguem-se três espécies de dados:

1. os relativos à conexão à rede, ditos dados de base;

2. os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pelo utilização da rede (por ex. localização do utilizador e do destinatário, duração de utilização, data e hora, frequência) chamados dados de tráfego; e,

3. os dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem, apelidados dados de conteúdo.

Os dados de base constituem os elementos necessários ao acesso à rede, designadamente através da ligação individual e para utilização própria do respectivo serviço. São dados de natureza pessoal, e o seu titular deve ter sobre eles o direito de reserva. Quem detêm a informação sobre dados de base, fica sujeito a dever de sigilo profissional - artigo 17º da Lei número 67/98, de 16 de Outubro.

Os elementos de informação relativos aos dados de base (designadamente a identificação do utilizador e sua morada), tendo em consideração que o sigilo profissional em causa releva de um simples interesse privado do utilizador, que não contende com a sua esfera privada intima, deverão ser comunicados, a pedido de qualquer autoridade judiciária, para fim de investigação criminal, por apelo ao preponderante dever de cooperação com a justiça.

Aliás, é isto que resulta do disposto no número 3, do referido artigo 17º da Lei número 67/98, de 16 de Outubro.

Sendo deduzida escusa, deverá seguir-se o regime processual do incidente previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal.

Refira-se que a lei do cibercrime (Lei número 109/2009, de 15 de Setembro) não estabelece (por esquecimento do legislador, quiçá) qualquer limitação à aplicação do disposto no referido preceito.
Isto posto, cumpre apreciar e decidir.

O Ministério Público solicitou em primeira mão dados à PT Comunicações, S.A. e PT Prime, S.A. (ofícios de fls. 45 e 46). Tal sociedade, invocando o dever de sigilo nas comunicações electrónicas, recusou-se a fornecer-lhe tais dados (fls. 59-61).

Analisando a questão, presume-se que em cumprimento do disposto no artigo 135º, número 2, do Código de Processo Penal, o Ministério Público concluiu pela ilegitimidade da escusa (fls. 84-89) e ordenou a prestação da referida informação.

Ao que as entidades visadas recusaram, novamente, prestar a informação solicitada (fls. 94-96).

Decidindo.

Sempre foram dados de base, os que foram solicitados às entidades visadas, por ofícios de fls. 45 e 46.

Na realidade, o facto de o IP address (morada do internet protocol, sendo que os computadores ligados à WWW –“world wide web”, ou rede mundial, por contraposição às redes locais ou privadas - normalmente utilizam, para comunicarem uns com os outros, o protocolo TCP/IP – abreviatura de “Transmission Control Protocol/Internet Protocol”) ser fixo ou dinâmico não tinha qualquer relevância face ao objecto da informação.

Explicando, o Ministério Público apenas solicitou que se fornecesse os dados de identificação e morada da pessoa que em determinada altura, utilizava um determinado IP address. Nunca foi solicitado às entidades visadas que informassem o Ministério Público sobre o conteúdo das comunicações feitas, ou sequer sobre a sua duração ou em que altura foram feitas.

Na realidade, é lógico que o Ministério Público já sabia em que altura tinham sido feitas as comunicações – só assim poderia dirigir o pedido de informação (sabido que é que os IP address dinâmicos funcionam como “slots”, vão sendo preenchidos sucessivamente por diversos utilizadores consoante estejam disponíveis para tal).

Situação diferente sucederia se o Ministério Público tivesse solicitado à PT que informasse quantas comunicações o utilizador de uma determinada IP address realizou num determinado período de tempo, ou, por exemplo, quais os seus destinatários. Esta informação abrangeria inquestionavelmente dados de tráfego.

Mas não, o Ministério Público apenas solicitou, como objecto da informação, dados de base (dados identificativos do titular de um contrato, no caso). De alguns dados de tráfego, já ele dispunha, e até os transmitiu às entidades visadas, com vista a permitir a satisfação do seu pedido (menos extensivo).

Donde, dúvidas não existem de que as entidades visadas efectivamente andaram mal ao não terem fornecido ao Ministério Público os dados que lhe foram solicitados por ofício de fls. 45 – 46.

Como acima se referiu, em relação aos dados de base, ainda que cobertos pelo sistema de confidencialidade a solicitação do assinante, tendo em consideração que o sigilo profissional em causa releva de um simples interesse pessoal do utilizador que não contende com a respectiva esfera privada íntima, os correspondentes elementos de informação deverão ser comunicados, a pedido de qualquer autoridade judiciária, para fins de investigação criminal, em ordem ao prevalecente dever de colaboração com a justiça (artigo 17º, número 3, da Lei número 67/98, de 16 de Outubro).

Em conformidade com a posição exposta, não se mostra fundada a recusa das internet service providers “PT Comunicações, S.A.” e PT Prime S.A. em fornecer ao Ministério Público os elementos solicitados, uma vez que as identificações completas dos utentes dos quais terão partido as mensagens em causa constituem dados de base.

Também propugnada em diversa jurisprudência, da qual se destaca, a título de exemplo o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-3-2003, número convencional JTRP00035308, in www.dgsi.pt.

Ora concluindo-se, como se concluiu, pela ilegitimidade da escusa, ordena-se, à PT Prime, S.A. que forneça as informações aludidas a fls. 111, ponto 1 (para tanto expeça a secção o competente ofício, e junte cópia da mesma e deste despacho para melhor referência).
*
Nos termos do disposto no artigo 4º do Código de Processo Penal, apenas nos casos omissos devem aplicar-se as normas do Código de Processo Civil.

O disposto no artigo 519º desse diploma, no que toca à condenação em multa de entidades que não sejam partes no processo, tem regulação análoga em processo penal, designadamente, pelo disposto no artigo 521º, número 2, do Código de Processo Penal (redacção dada pelo Decreto-lei número 34/2008, de 26 de Fevereiro).

Dispõe-se em tal preceito legal, sob a epígrafe “Casos especiais”:

“ 1 - À pratica de quaisquer actos em processo penal é aplicável o disposto no Código de Processo Civil quando à condenação no pagamento de taxa sancionatória excepcional.

2 - Quando se trate de actos praticados por pessoa que não for sujeito processual penal e estejam em causa condutas que entorpeçam o andamento do processo ou impliquem a disposição substancial de tempo e meios, pode o juiz condenar o visado ao pagamento de uma taxa fixada entre 1 UC e 3 UC.”

No presente caso, temos efectivamente que a PT Prime, S.A., apesar de ter visto a sua escusa ser indeferida pelo Ministério Público, persistiu teimosamente na sua recusa, o que implicou que os autos viessem, desnecessariamente, ao juiz de instrução.

Na realidade, e como especialista da área de telecomunicações que é, não se encontram razões para tanta renitência, sendo claro, desde o início, que apenas dados de base lhe estavam a ser solicitados, o que para si deveria ser clarividente.

A sua conduta entorpeceu o andamento do processo, e implicou a disposição adicional de meios (do Ministério Público e Judiciais), com evidente dispêndio inútil de tempo.

Tendo em conta o que se deixou dito, é de lhe aplicar a condenação a que alude o supra referido preceito, fixando-se a multa em quantidade correspondente a 2 UC’s.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, independentemente do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), a questão a apreciar é a do (des)acerto da condenação em taxa sancionatória excepcional por recusa na prestação de informação solicitada pelo Ministério Público no inquérito.

O despacho supra transcrito aglutina, materialmente, duas decisões:

(a) decisão sobre a natureza e caracterização dos dados ou informações solicitadas pelo titular do inquérito à recorrente e sobre o dever de colaboração e informação ao Ministério Público que sobre esta efectivamente impenderia no caso presente;

(b) decisão sobre a avaliação do comportamento processual da recorrente, de não prestação imediata da informação.

O recurso restringe-se à segunda decisão, de acordo com a circunscrição do objecto definido pela recorrente.

Abordar-se-á, por isso, a matéria objecto da primeira apreciação apenas na medida do indispensável à decisão sobre o bem ou mal fundado da condenação em taxa sancionatória excepcional.

Os factos processuais relevantes, que precedem a prolação da decisão em crise, são os seguintes:

Em 29.11.2010, o Ministério Público solicitou a PT Prime, sob pena de punição por desobediência, a disponibilização da identificação do titular do endereço IP e respectivo grupo data hora com referência aos seguintes dados (…)

Em 15.12.2010 a PT respondeu no sentido de considerar que as informações pretendidas configuravam “dados de tráfego” – por permitirem identificar o utilizador, a localização, a duração da comunicação e o seu destino, e não “dados de base”, solicitando por isso o “despacho de autorização do juiz de instrução de forma a legitimar a PT Comunicações, SA a juntar aos autos os dados de tráfego solicitados” (fls. 5).

Em 17.05.2011 o Ministério Público despacha no sentido de reiterar a solicitação à PT, novamente sob pena de punição por desobediência, afirmando que os dados pretendidos são dados de base e, logo, obteníveis sem necessidade da intervenção do juiz de instrução criminal.

(A certidão do recurso não fornece a data de notificação deste despacho à recorrente).

Em 01.07.2011, a PT reitera o pedido de remessa de despacho de autorização judicial, de forma a sentir-se “legitimada a juntar aos autos os dados de tráfego solicitados”. Reconhecendo que a identificação de um IP fixo é um dado de base, distingue-a, no entanto, da situação em causa no presente inquérito. Esta envolverá, na sua alegação, a solicitação de IP´s dinâmicos. E, “tratando-se os IP’s solicitados de IP’S dinâmicos, isto é, números de série atribuídos pelo software de gestão de rede para cada ligação que é efectuada, podem, por tal facto, ser utilizados por várias pessoas ao longo do tempo (…) é um elemento relativo à conexão à rede que individualmente considerado não reúne condições para identificar o seu titular. Nesta medida, os dados respeitantes à identificação de IP dinâmico, são dados de tráfego porquanto para apurar a identidade do seu titular será necessária a análise do rasto da comunicação electrónica, ou seja não basta o IP só por si, mas sim a data e hora de ligação do mesmo à internet, isto é, a comunicação concretamente efectuada”.

Em 09.11.2011, o Ministério Público promove então ao juiz de instrução criminal que ordene à PT que forneça os dados pretendidos e que lhe aplique “sanção em valor condigno com o grau de violação dos seus deveres e com o seu elevado poder económico, por incumprimento da determinação do Ministério Público com a consequência de ter ignorado a fundamentação invocada no segundo despacho do Ministério Público, em manifesta falta de colaboração com a justiça”.

Cumpre aferir do bem fundado desta decisão, ou seja, decidir se o comportamento processual da recorrente é passível de cominação com taxa sancionatória excepcional prevista no art. 521º do Código de Processo Penal.

Na (sua) leitura dos factos processuais supra descritos, o senhor juiz de instrução criminal considerou ocorrer uma “persistência teimosa” na recusa por parte da PT, “uma vinda desnecessária ao juiz de instrução”, uma “ausência de razões para tanta renitência por parte de um especialista na área das telecomunicações”, uma “clareza desde o início sobre os dados de base que estavam a ser solicitados”, um “entorpecimento do andamento do processo”, “um evidente dispêndio inútil de tempo”.

Em conformidade, considerou verificada a previsão do art. 521º, nº 2 do Código de Processo Penal. E sancionou em taxa de justiça.

O artigo 521º do Código de Processo Penal preceitua, no nº 1, que “à pratica de quaisquer actos em processo penal é aplicável o disposto no Código de Processo Civil quanto à condenação no pagamento de taxa sancionatória excepcional”, acrescentando o nº 2 que “quando se trate de actos praticados por pessoa que não for sujeito processual penal e estejam em causa condutas que entorpeçam o andamento do processo ou impliquem a disposição substancial de tempo e meios, pode o juiz condenar o visado ao pagamento de uma taxa fixada entre 1 UC e 3 UC.

A norma legal, acertadamente convocada, é pois o art. 521º, nº2 do Código de Processo Penal, já que a PT Comunicações, S.A. não ocupa no processo a posição de sujeito processual e o Código de Processo Penal possui assim norma expressa que regulamenta a situação.

No presente caso, a PT Comunicações, S.A., não forneceu ao Ministério Público os dados por este solicitados. E não o fez por duas vezes, “apesar de ter visto a sua escusa ser indeferida pelo Ministério Público”.

Não cremos, no entanto, que a situação sub judice configure recusa injustificada merecedora de sanção pecuniária.

A taxa sancionatória em causa – de seu nome, “excepcional” – aplica-se a condutas que entorpeçam o andamento do processo ou impliquem a disposição substancial de tempo e meios injustificadamente, no sentido de ausência de motivo atendível para tal comportamento processual.

No caso, a PT não se recusou, verdadeiramente, a fornecer os elementos pretendidos.

Opôs-se, sim, a facultá-los na ausência de uma decisão judicial que o determinasse.

Considerou que “não configurando tais dados o conceito de “dados de base”, mas sim dados de tráfego, encontram-se abrangidos pelo sigilo das comunicações electrónicas, previsto no artigo 4º, n.º 1 e 2, da Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto, bem como pelo disposto no artigo 9º, nº1 e nº2, da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho de 2008, por força do nº 2 do artigo 11º da Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro”. Por último, salientou “o nº4 do artigo 14º da Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro, nos termos do qual os dados de tráfego ou de conteúdo se encontram excluídos do âmbito de aplicação do citado normativo

Este artigo 14.º da Lei do cibercrime trata da injunção para apresentação ou concessão do acesso a dados.

E preceitua, na parte ora relevante, que “1 — Se no decurso do processo se tornar necessário à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, a autoridade judiciária competente ordena a quem tenha disponibilidade ou controlo desses dados que os comunique ao processo ou que permita o acesso aos mesmos, sob pena de punição por desobediência; (…) 3- Em cumprimento da ordem descrita nos n.ºs 1 e 2, quem tenha disponibilidade ou controlo desses dados comunica esses dados à autoridade judiciária competente ou permite, sob pena de punição por desobediência, o acesso ao sistema informático onde os mesmos estão armazenados. 4 — O disposto no presente artigo é aplicável a fornecedores de serviço, a quem pode ser ordenado que comuniquem ao processo dados relativos aos seus clientes ou assinantes, neles se incluindo qualquer informação diferente dos dados relativos ao tráfego ou ao conteúdo, contida sob a forma de dados informáticos ou sob qualquer outra forma, detida pelo fornecedor de serviços (…); 7 — O regime de segredo profissional ou de funcionário e de segredo de Estado previsto no artigo 182.º do Código de Processo Penal é aplicável com as necessárias adaptações.

A informação pretendida integra-se em área coberta pela protecção de segredos com tutela constitucional (arts 32º, nº8, 34º, 35º da Constituição da República Portuguesa). E a reserva de juiz é a regra em matérias que se prendam com a produção de provas obtidas à custa de compressão dessa protecção (art. 269º, al. e) e f) do Código de Processo Penal).

A situação dos autos não apresenta a linearidade da que foi recentemente objecto da decisão deste TRE de 20-12-2012 (Ana Bacelar Cruz). Aí se considerou que

“I. A defesa de entendimento que se considera adequado à salvaguarda de sigilo a que se está obrigado, com o propósito de o quebrar nas condições que se entendem isentas de responsabilidade, não pode considerar-se como conduta que embaraça o regular andamento de um processo. II. Em simultâneo, não pode julgar-se ilegítima a recusa na prestação de elementos solicitados e impor-se a sanção prevista no n.º 2 do artigo 521.º do Código de Processo Penal. Tal sanção apenas pode ser imposta se, tornando-se definitiva a decisão sobre a ilegitimidade da recusa, quem está obrigado a prestar informações persistir em não as fornecer”.

Naquele caso, em situação idêntica à presente, logo perante a (primeira) recusa da PT no fornecimento de dados, o Ministério Público apresentou o inquérito ao juiz de instrução para prolação de decisão sobre o pedido dos dados e para condenação em taxa sancionatório excepcional.

Só que, verdadeiramente, uma “segunda recusa” como a que ocorre sub judice, nada altera aos fundamentos da decisão.

Se maior morosidade processual provocou, pode esta ser imputada ao titular do inquérito, que não o apresentou ao juiz de instrução criminal no imediato.

O Ministério Público é dominus do inquérito. Dirige a investigação, selecciona e escolhe as provas, pauta-se por critérios de objectividade e de legalidade. Mas não pode substituir-se ao juiz de instrução nas tarefas a este legalmente (e constitucionalmente) reservadas.

E se (também na lei do cibercrime) há reserva de juiz para obtenção de determinadas provas (como sucede no caso do fornecimento de dados de tráfego e de conteúdo), e se a PT está obrigada a deveres de segredo e impedida de fornecer esses dados excepto se o juiz o autorizar, e se esta colocou uma dúvida quanto à qualificação de determinada informação como dado de base e/ou como dado de tráfico, apresentando uma argumentação abstractamente ainda sustentável, é ao juiz e não ao Ministério Público que compete resolver essa dúvida.

Não é a repetição da afirmação (pelo Ministério Público) da legalidade de um procedimento – legalidade do pedido efectuado pelo Ministério Público dos dados em causa – que resolve o problema suscitado pela PT. A decisão deste compete ao Juiz. Se assim não fosse, frustrar-se-ia, de modo indirecto, a tutela constitucional da garantia de juiz.

Não estamos a dizer que seja legítima a recusa no fornecimento de dados de base ao Ministério Público, nem que o fornecimento desses dados exija autorização judicial prévia. O que, a afirmar-se, configuraria interpretação contra legem.

Queremos, sim, apenas expressar que a concreta dúvida justificada – no sentido de razoavelmente colocada – quanto à caracterização de determinada informação como dado de base ou como dado de tráfego, sendo os primeiros facultáveis sem mais ao Ministério Público, mas exigindo já os segundos a prévia autorização judicial – tem de ser resolvida por um juiz de instrução.

Esta decisão judicial será necessariamente prévia (e prejudicial) à avaliação de um posterior comportamento processual da operadora.

E nada altera o facto do Ministério Público “já ter decidido a escusa, persistindo a operadora na recusa”, pois a reserva de juiz abrange o pronunciamento sobre tal questão.

Então, na aferição da pertinência da condenação em taxa sancionatória, do que se trata não é de saber se os dados em causa são efectivamente de base ou de tráfico, mas se para a PT a dúvida se colocou com razoabilidade.

E a resposta é positiva.

A certidão de decisão judicial proferida noutro processo, junta aos autos pela recorrente a fls. 50, ilustra a mesma dúvida. Dúvida que ali apresentara e que (lhe) fora decidida em sentido oposto. Ali, a apresentação do inquérito ao juiz de instrução criminal mereceu despacho judicial a tratar as informações idênticas às presentes como dados de tráfego. Ou seja, a tese argumentativa que a recorrente aqui desenvolve fora anteriormente acolhida noutro processo judicial.

Não pode assim dizer-se, como se faz na decisão recorrida, que “a PT, apesar de ter visto a sua escusa ser indeferida pelo Ministério Público, persistiu teimosamente na sua recusa, o que implicou que os autos viessem, desnecessariamente, ao juiz de instrução". Nem tão pouco que “como especialista da área de telecomunicações que é, não se encontram razões para tanta renitência, sendo claro, desde o início, que apenas dados de base lhe estavam a ser solicitados, o que para si deveria ser clarividente”.
Acresce que a Lei do cibercrime é relativamente recente. Introduz regras novas nos procedimentos de obtenção de prova, inexistindo ainda sobre elas o necessário labor jurisprudencial (e doutrinário) que consolide práticas, sedimente conceitos e clarifique procedimentos.

Dá Mesquita alerta para os “espaços de dúvida e indefinições no tecido normativo sobre prova electrónica e telecomunicações no direito processual português” que “multiplicam as áreas de opacidade normativa. Além das dificuldades dos juristas acederem a uma fenomenologia diferente daquela em que estabeleceram os seus cânones e pré-compreensões sobre os mundos do direito e da vida, emerge o problema da natureza difusa das fronteiras de previsões normativas e das próprias divisões de competências judiciárias e processuais. Plano em que, pelo menos na fase de inquérito, importaria ponderar uma maior flexibilização em termos de legitimação de um procedimento judicial de cautela, ao nível da intervenção judicial provocada por impulso do titular da acção penal.” (em Prolegómeno sobre Prova Electrónica e Intercepção de Telecomunicações no Direito Processual Penal Português – O Código e a Lei do Cibercrime Processo Penal, em Prova e Sistema Judiciário, 2010)

Considera ainda o autor “importante o estabelecimento de uma maior flexibilidade na apreciação preventiva judicial, desde que a questão lhe seja suscitada pelo Ministério Público, no sentido de a eventual cautela procedimental do titular da acção penal determinar dois correlativos: (1) Auto-vinculação na sujeição a uma pronúncia judicial sobre a questão suscitada; (2) Dever judicial de apreciação do mérito do pedido ainda que se admitisse a competência do requerente para conhecer a questão”.

E sublinha “os elevados perigos de assunções cartesianas de exclusão da competência judicial de matérias controversas concretamente submetidas ao juiz de instrução pelo Ministério Público. Num duplo plano: (a) Densidade da garantia de juiz que deve permitir a apreciação de questões directamente submetidas ao juiz de instrução relativamente ao recurso de meios tecnológicos que não se apresentam directa e inequivocamente regulados na lei como competência própria do titular do inquérito; (b) Riscos para a previsibilidade e eficácia do sistema derivados de abordagens vinculadas a interpretações mais restritas do âmbito da reserva judicial”.

Por tudo se conclui que, independentemente do (de)mérito da rigorosa configuração das informações pretendidas como de base ou de tráfego – mérito cujo conhecimento, repete-se, extravasa o âmbito do recurso –, o comportamento processual da recorrente não integra a previsão do art. 521º do Código de Processo Penal e não é passível da censura cominada.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

Julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão na parte em que condenou a recorrente em taxa sancionatória excepcional.
Sem custas.

Évora, 22.01.2013

(Ana Maria Barata de Brito)

(António João Latas)