Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
68/13.0GTSTR.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: EXAME DE PESQUISA DE ÁLCOOL NO SANGUE
TESTEMUNHA DE JEOVÁ
DIREITO DE OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA
Data do Acordão: 10/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
I – o direito de objeção de consciência, entendido como a faculdade de recusar o cumprimento de um dever jurídico com o fundamento de que é incompatível com os preceitos da religião que se professa, tem claramente carácter excepcional e só vigora nos casos expressamente previstos na lei ordinária.

II - A conduta do arguido, ao recusar submeter-se à recolha de sangue para análise de pesquisa de álcool no sangue, sob a invocação de ser crente da religião das Testemunhas de Jeová, não se encontra coberta pelo direito de objeção de consciência de que ele pretende valer-se em sede de recurso, pelo que se não verifica a causa de exclusão da ilicitude prevista na al. b) do nº 2 do art. 31º do CP.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
No Processo Abreviado nº 68/13.0GTSTR, que correu termos no 2º Juízo Criminal Tribunal Judicial de Santarém, por sentença proferida em 7/2/14, foi decidido:

Julgar a acusação procedente, por provada, e em consequência:

A) Condenar o arguido A., pela prática de um crime de desobediência, p. e p. nos arts.348º nº1 al. a) e 69º nº1 al. c), ambos do Código Penal, por referência do disposto no art. 152º nº1 al. a) e nº3 ambos do Código da Estrada, aprovado pelo DL 114/94 de 3 de Maio, na pena de 10 (dez) meses de prisão.

B) Suspender a execução da pena de 10 (dez) meses de prisão aplicada ao arguido, pelo período de 2 (dois) anos.

C) Condenar ainda o arguido, nos termos do disposto na alínea c) do nº1 do art.69º do Código Penal, na pena acessória de conduzir veículos com motor por um período de 7 (sete) meses.

D) Condenar o arguido no pagamento das custas do processo e da taxa de justiça que fixo em 2 UC (art.8.º n.º9 e tabela III do Regulamento das Custas Judiciais);

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:
1. Em 18 de Maio de 2013, pelas 10h20m, o arguido conduzia o veículo, ligeiro de mercadorias, matrícula TN---, no itinerário complementar n.º 2, em Alto da Serra, concelho e comarca de Rio Maior, quando foi interceptado por militares do destacamento de trânsito de Santarém, da Guarda Nacional Republicana, em missão de fiscalização de trânsito.

2. Submetido a teste de despistagem de álcool no sangue, através de aparelho qualitativo de ar expirado, o arguido acusou uma TAS de 2,87 g/l, após o que foi sujeito a novo teste de ar expirado, através de aparelho quantitativo, tendo este indicado, por três vezes, "sopro insuficiente", pelo que o mesmo foi conduzido ao "Hospital Distrital de Santarém", sito na avenida Bernardo Santareno, em Santarém, a fim de se sujeitar a recolha de sangue, por forma a determinar, através da realização de exame toxicológico, o grau de alcoolemia.

3. Porém, chegado a tal unidade de saúde, o arguido recusou que lhe fosse efectuada recolha de sangue para exame de pesquisa de álcool, apesar de tal, por diversas vezes, lhe ter sido determinado por JS, militar da Guarda Nacional Republicana, a prestar serviço no destacamento de trânsito de Santarém, da Guarda Nacional Republicana, e deste o ter informado que tal recusa o faria incorrer num crime de desobediência, retorquindo o arguido na altura que "sou testemunha de Jeová e não faço nenhum exame nem deixo que me tirem sangue" e ainda "não tiro sangue nenhum e em mim ninguém me toca, prefiro desrespeitar as autoridades e desobedecer, já sei que vou ao tribunal, a carta é que ninguém ma tira".

4. Ao recusar submeter-se a exame de pesquisa de álcool no sangue, o qual lhe havia sido determinado pela Guarda Nacional Republicana, o arguido agiu com a intenção de não obedecer a tal ordem, sabendo que a mesma era dada por autoridade competente para tal.

5. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei.

Mais se provou que:

6. O arguido trabalha por conta própria num comércio de madeira, retirando desta actividade quantia não concretamente apurada mas que constitui o seu meio de subsistência.

7. Vive com uma companheira que exerce a actividade de auxiliar num jardim de infância, encontrando-se em situação de baixa médica e auferindo quantia mensal não apurada.

8. Vivem em casa própria.

9. Ingressou no mercado de trabalho com cerca de 13 anos de idade, no desempenho de tarefas indiferenciadas, dedicando-se mais tarde ao corte e venda de madeira por conta própria. O seu percurso a este nível aponta para indicadores de estabilidade, que lhe permitiu a vivência de uma situação económica estável, que garantia a sustentabilidade dos elementos do agregado, constituído pela companheira e 3 filhas.

10. Na comunidade de residência é referenciado como um indivíduo reservado, com poucas amizades, mas que adopta um comportamento ajustado no relacionamento com os outros.

11. O arguido, por factos praticados em 25-07-92, foi julgado e condenado pela prática de um crime de coacção de funcionário e ofensa à integridade física simples, na pena de 8 meses de prisão e 40 dias de multa, pena esta que foi declarada perdoada, por amnistia, no âmbito do processo comum, com o nº---/93.1TBRMR que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Rio Maior, por decisão proferida no dia 29-10-1997.

12. O arguido, por factos praticados em 24-07-98, foi julgado e condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de 600$00 e na sanção acessória de inibição de conduzir veículos automóveis durante dois meses, no âmbito do processo comum singular, com o nº---/98 que correu termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Rio Maior, por decisão proferida no dia 02-12-99, pena esta já julgada extinta.

13. O arguido, por factos praticados em 24-07-98, foi julgado e condenado pela prática de um crime p. e p. pelo art.3º nº1 e 2 do DL 2/98 de 3/1, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de 1.000$00, no âmbito do processo comum singular, com o nº---/00.0TARMR que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Rio Maior, por decisão proferida no dia 16-02-01.

14. O arguido, por factos praticados em 10-07-1999, foi julgado e condenado pela prática de um crime p. e p. pelo art.348º nº1 do Código Penal, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 700$00, no âmbito do processo comum singular, com o nº---/99.6GBCLD que correu termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial das Caldas da Rainha, por decisão proferida no dia 20-02-01, pena esta já julgada extinta.

15. O arguido, por factos praticados em 30-12-2003, foi julgado e condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art.3º do DL de 2/98 de 3/1, na pena de 3 meses de prisão, substituída por multa, no âmbito do processo sumário, com o nº---/03.7GTLRA que correu termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, por decisão proferida no dia 27-01-2004, pena essa já julgada extinta.

16. O arguido, por factos praticados em 11-01-2003, foi julgado e condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art.3º do DL de 2/98 de 3/1, na pena de 1 ano de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de dois anos, no âmbito do processo abreviado, com o nº---/03.0GBCLD que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial das Caldas da Rainha, por decisão proferida no dia 14-04-2004, pena essa já julgada extinta.

17. O arguido, por factos praticados em 11-01-2003, foi julgado e condenado pela prática de um crime p. e p. pelo art.153º nºs 1 e 2 do Código Penal, um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art.143º e 146º, com referência ao disposto no art.132º nº2 al.j) todos do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão, suspensa por 18 meses, no âmbito do processo comum singular, com o nº--/03.2GBCLD, que correu termos no 3º Juízo do Tribunal Judicial das Caldas da Rainha, por decisão proferida no dia 19-01-2006.

18. O arguido, por factos praticados em 08-01-2011, foi julgado e condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.292º nº1 do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão suspensa pelo período de 1 ano, suspensa com regime de prova e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, no âmbito do processo sumário, com o nº--/11.0PTCLD, que correu termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial das Caldas da Rainha, por decisão proferida no dia 20-01-2011, pena essa já julgada extinta.

Da referida sentença o arguido A. veio interpor recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

1 – Não aceita o recorrente que o elenco de factos dados como provados, e a fundamentação apresentada, sejam suficientes para se decidir pela condenação do arguido (art. 410.º, n.º 2 do C.P.P.).

2 – O Meritíssimo Juiz a quo, com o devido respeito, não poderia ter dado como provado que “o arguido acusou uma TAS de 2,87g/l”, pois que esse resultado não pode ser dado como conclusivo, uma vez que apenas resultou do teste de despistagem de álcool no sangue, através do aparelho qualitativo.

3 – Da matéria de facto dada como provada “o arguido … foi sujeito a novo teste de ar expirado, através de aparelho quantitativo, tendo este indicado, por três vezes “sopro insuficiente”, não consta, na douta sentença, nem se provou, a razão, porque não foi possível fazer o teste de alcoolemia, através do aparelho quantitativo. De referir que dos próprios autos, da prova produzida, e da fundamentação da sentença, não resulta que tenha sido facultado ao arguido, pelo Sr. Agente autuante, a possibilidade, sequer, de efectuar o teste de ar expirado, noutro aparelho quantitativo. Desconhecendo-se o motivo, porque não conseguiu, o arguido, expelir o ar em quantidade suficiente para a realização, com êxito, do teste quantitativo, se foi por motivo de doença, de incapacidade, ou até se o aparelho utilizado estava apto e/ou aprovado para o efeito, é de concluir que não houve recusa.

4 - E só após se determinar e provar que o arguido, estava ou não em condições de realizar o teste de alcoolemia através do sopro, e não o tendo conseguido, é que o arguido, nos termos do artigo 153.º n.º 8 do Código da Estrada, “deve ser submetido a colheita de sangue para análise”.

5 - Ora, foi dado como provado pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo que, “chegado a tal unidade de saúde, o arguido recusou que lhe fosse efectuada recolha de sangue para exame de pesquisa de álcool, apesar de tal, por diversas vezes, lhe ter sido determinado por JS, militar da Guarda Nacional Republicana, a prestar serviço no destacamento de trânsito de Santarém, da Guarda nacional Republicana, e deste o ter informado que tal recusa o faria incorrer num crime de desobediência, retorquindo o arguido na altura que “sou testemunha de Jeová e não faço nenhum exame nem deixo que me tirem sangue”

6 - Logo, ficou provado que o arguido/ora recorrente, professa a confissão religiosa “Testemunhas de Jeová”, e que comunicou tal facto ao Sr. Agente de Autoridade. Razão pela qual, o arguido se recusou à recolha de sangue para análise.

7 - Ora, como é do conhecimento comum e geral, as pessoas que professam a religião “Testemunhas de Jeová”, não podem, entre outras coisas, ser submetidas a recolha de sangue, pelo que, o arguido/ora recorrente, em virtude da crença religiosa que professa, não poderia ter outra atitude, que não a recusa, à recolha de sangue!

8 - Da actuação do arguido/ora recorrente, e dos factos considerados provados, não resulta que o arguido/ora recorrente "Ao recusar submeter-se a exame de pesquisa de álcool no sangue, o qual lhe havia sido determinado pela Guarda Nacional Republicana, o arguido agiu com a intenção de não obedecer a tal ordem,..”. Aliás, dos factos dados como provados, se conclui que, o arguido/ora recorrente não aceitou submeter-se a tal exame, apenas e tão só, em virtude da sua crença religiosa, e por esta impossibilitar a colheita de sangue.

9 - O arguido/ora recorrente ao não se submeter á recolha de sangue para análise, por motivos religiosos, não teve intenção de desobedecer a qualquer “ordem ou a mandado legítimos” (art. 348.º do C.P.), nem teve qualquer intenção de não se submeter às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito de álcool (art.º 69.º n.º 1 al. c) do C.P.).

10 - Em face do exposto, ao dar como provado que o arguido comunicou ao agente de autoridade que era “testemunha de jeová”, e por isso não se submetia a análise de recolha de sangue, o Meritíssimo Juiz a quo, salvo o devido respeito, não poderia ter dado como provado que “o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido por lei” e muito menos que o fez de forma dolosa!

11 - Isto porque, o arguido/ora recorrente ao comunicar ao agente de autoridade que era “testemunha de jeová”, e por isso não se submetia a análise de recolha de sangue, fê-lo com base na sua crença religiosa, que, no âmbito da garantia da liberdade religiosa, prescrita no artigo 41.º da Constituição da República Portuguesa, o arguido/recorrente tem direito à “objecção de consciência”, que nos termos do n.º 6 do mesmo preceito constitucional é, segundo o art.º 18 n.º 1 da CRP, de aplicação imediata, sem intermediação.

12 - Inclusivamente, nada ficou provado, que caso fosse apresentado ao arguido outra alternativa, à recolha de sangue para análise, designadamente, ser realizado exame médico para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool, o arguido não teria cumprido a ordem do Sr. Agente de Autoridade da GNR. Razão pela qual, o arguido/recorrente entende ser inconstitucional o n.º 8 do art.º 153.º do C.E., porque só, quando não é possível a submissão a colheita de sangue para análise, por razões médicas, possibilita a realização do exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.

13 - Pelo que, há um erro notório na apreciação da prova (art. 410.º CPP), e forçoso seria concluir pelo Meritíssimo Juiz a quo, que ao dar como provado que o arguido informou o agente de autoridade “na altura que sou testemunha de Jeová e não faço nenhum exame nem deixo que me tirem sangue”, este facto consubstancia uma exclusão da ilicitude nos termos do artigo 31.º do Código Penal.

14 - Em face do supra exposto, o elemento subjetivo do tipo de crime de desobediência, que exige o dolo, não se encontra preenchido, devendo o recorrente, por isso ser absolvido!

15 - Acresce que, o motivo apresentado pelo arguido/recorrente, não foi atendido, e nem sequer foi tido em qualquer consideração, ou sequer na douta sentença, o Meritíssimo Juiz a quo, na parte da fundamentação, se pronúncia sobre o mesmo, pelo que a douta sentença é nula por falta de fundamentação.

16 - Face à matéria dada como provada, e à fundamentação apresentada, não poderia o Tribunal a quo ter dado como provado que o arguido cometeu, culposa, deliberada e conscientemente, o crime de desobediência, violando assim o preceituado nos art.ºs 348.º, 69.º n.º 1 al. c), 152.º e 153.º, 31.º, 40.º e 41.º do Código Penal, art.º 127 .º do C.P.P., art.º. 41.º e 18.º e 32.º da CRP.

17 - Sem conceder, sempre se dirá por mero dever de patrocínio,

O recorrente impugna ainda a pena de prisão e a sanção acessória de inibição de conduzir em que foi condenado:

a) Condeno o arguido A., pela prática de um crime de desobediência, p. e p. nos arts. 348º nº 1 al. a) e 69.º nº 1 al. c) ambos do Código Penal, por referência do disposto no art. 152.º n.º 1 al. a) e n.º 3 ambos do Código da Estrada, aprovado pelo DL 114/94 de 3 de Maio, na pena de 10 (dez) meses de prisão.

b) Suspendo a execução da pena de 10 (dez) meses de prisão aplicada ao arguido, pelo período de 2 (dois) anos.

c) Condeno ainda o arguido, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 69 do Código Penal, na pena acessória de conduzir veículos com motor por um período de 7 (sete) meses.

Com o devido respeito, a medida/quantum da sanção acessória aplicada, é exagerada e deverá ser substituída por outra mais próxima dos valores mínimos previstos, e assim mais ajustada face aos factos em causa., e não se encontra devidamente fundamentada de acordo com o previsto no art.º 374 do CPP.

Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, atentas as razões expostas e de acordo com as precedentes conclusões, requer-se a V. Exas. a substituição da decisão recorrida por outra que absolva o arguido, ora recorrente.

O recurso interposto foi admitido com subida imediata nos próprios autos, e efeito suspensivo.

O MP respondeu à motivação do recorrente, formulando, por sua vez, as seguintes conclusões:

I. A., arguido nos presentes autos de processo comum singular, vem, inconformado com a douta Sentença proferida, interpor recurso da mesma, pela qual foi condenado pela prática, como autor material, de 1 (um) crime de desobediência, p. e p. pelos arts. 348º, n.º 1, al. a) e 69º n.º 1, al. c), ambos do Código Penal, por referência ao disposto no art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 3, ambos do Código da Estrada, na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e, ainda, na pena acessória de conduzir veículos com motor por um período de 7 (sete) meses.

II. Entende o recorrente que o acervo de factos dados como provados na decisão recorrida não são suficientes para sustentar a sua condenação, não concordando, ainda, com a medida da pena de prisão aplicada e, bem assim, da pena acessória.

Entendemos, contudo, não assistir razão ao recorrente.

Senão vejamos.

III. Desde logo, argumenta o recorrente que, nos termos do disposto no art. 41.º, n.º 6 da Constituição da República Portuguesa (CRP), a sua recusa em se submeter a exame de análise ao sangue é uma expressão do exercício do direito de “objecção de consciência” com base na crença religiosa por si professada, enquanto Testemunha de Jeová.

IV. Efectivamente, reconhece a CRP ao cidadão o direito de este seguir a religião e/ou culto que entender, sem ser perseguido ou privado dos seus direitos, mas a Constituição também reconhece que o cidadão não pode ser isento das suas obrigações ou deveres cívicos em virtude das suas convicções ou prática religiosa, sendo que o direito de objecção de consciência não é absoluto, uma vez que o próprio n.º 6 do art. 41.º CRP indica que tal direito é garantido nos termos da lei.

V. Deste modo, e atendendo, ainda, ao disposto no art. 36.º CP, e não obstante o respeito que nos merecem as convicções religiosas do recorrente, só estaríamos em presença de um verdadeiro conflito de deveres se os deveres conflituantes fossem ambos deveres jurídicos ou ordens legítimas emitidas por autoridade, o que não é o caso dos autos, o que significa que o facto de um cidadão professar determinada religião ou credo não o isenta de cumprir as determinações legais, tais como as previstas no art. 153.º CE.

VI. Assim sendo, e contrariamente ao alegado pelo recorrente, não padece a sentença recorrida de qualquer erro na apreciação na prova, porquanto o fundamento alegado pelo recorrente não constitui uma exclusão da ilicitude, nos termos previstos no art. 31.º ou 36.º, ambos do Código Penal.

VII. Nesta sequência, afirma ainda o recorrente não ter actuado com dolo, não se encontrando, pois, preenchido o elemento subjectivo do tipo de crime de desobediência: não obstante, e tomando por referência, uma vez mais, os factos dados como provados e aceites pelo recorrente, o mesmo referiu “não tiro sangue nenhum e em mim ninguém me toca, prefiro desrespeitar as autoridades e desobedecer, já sei que vou ao tribunal, a carta é que ninguém ma tira.”, de onde se retira que o recorrente preferiu desobedecer à ordem proferida, tendo consciência de que tal acarretaria a sua responsabilidade criminal, motivo pelo qual não só se pode concluir que se encontra preenchido o elemento subjectivo do crime de desobediência, como ainda que o recorrente não actuou sobre erro sobre a ilicitude (art. 17.º CP).

VIII. Da mesma forma, bem andou o Tribunal a quo ao dar como provado que “… através de aparelho qualitativo de ar expirado, o arguido acusou uma TAS de 2,87g/l, após o que foi sujeito a novo teste de ar expirado, através de aparelho quantitativo…” (sublinhado nosso), uma vez que tal é consentâneo com a prova documental junta aos autos e, ainda, com a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão de julgamento.

IX. De qualquer forma, cumpre salientar que o crime pelo qual o arguido foi condenado não foi o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto no art. 292.º, n.º 1 CP, mas sim o crime de desobediência, previsto no art. 348.º, n.º 1, al. a) CP, o qual se consumou quando o arguido se recusou a submeter-se a pesquisa de álcool por recolha de sangue.

X. Efectivamente, dispõe o art. 153.º, n.º 8 CE “Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinado deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.” (sublinhado nosso), de onde se retira que, não tendo sido possível a realização da prova por pesquisa de álcool no ar expirado, no caso por das três tentativas o examinado não ter sido capaz de o fazer com um resultado de supro insuficiente, deve o mesmo ser submetido – como o foi - a colheita de sangue para análise.

XI. Efectivamente, e tal como resulta da prova produzida em audiência e é aceite pelo recorrente, só após o arguido ter sido sujeito a exame quantitativo três vezes, não tendo sido, em qualquer uma delas, capaz de expirar ar em quantidade suficiente que permitisse o aparelho fazer uma leitura conclusiva, é que foi o mesmo conduzido ao Hospital Distrital de Santarém para se proceder a colheita de sangue para pesquisa de álcool, cumprindo-se, desta forma, o preceituado na norma legal.

XII. E não se diga que art. 153.º, n.º 8 CE se encontra ferido de inconstitucionalidade, visto que a norma em questão em nada contraria ou fere a convicção religiosa do recorrente.

XIII. Quanto à medida da pena, dir-se-á que, por força do disposto no art. 71º, n.º 1 do Código Penal, a determinação da medida da pena deverá ter em atenção a culpa do agente e as exigências de prevenção que o caso demanda, sendo certo que toda a pena tem como suporte axiológico uma culpa concreta, o que envolve uma proporcionalidade directa entre a pena e a culpa, em caso algum podendo aquela ultrapassar a medida desta – art. 40º, n.º 2 do Código Penal.

XIV. Assim, debruçando-nos sobre o caso vertente, entendemos que, não obstante a discordância do arguido, bem andou o MM. Juiz a quo ao dosear a pena nos termos em que o fez, tendo sido feita uma correcta aplicação do disposto nos arts. 40º, 71º e 77º do Código Penal.

XV. Na verdade, e tal como referido na sentença recorrida, há que considerar que o arguido praticou os factos com um grau de culpa elevado, actuando com dolo directo, sendo que conta já com várias condenações por crime de idêntica natureza, pelo que são acentuadas as necessidades de prevenção especial; por outro lado, atenta a natureza do crime por que vem condenado o arguido, também as exigências de prevenção geral aconselham a aplicação de uma pena afastada do mínimo legal, pois, de outra forma, estar-se-á a pôr em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contra-fáctica das expectativas comunitárias.

XVI. Assim, sendo o crime de desobediência punido com pena de prisão até 1 ano, a pena aplicada de 10 meses mostra-se adequada às exigências de prevenção quer especial quer geral que o caso demanda, não nos merecendo, pois, qualquer reparo a pena aplicada, mostrando-se ajustada.

XVII. De igual modo, atendendo aos factos dados como provados na sentença recorrida, entendemos que a pena acessória fixada na sentença é adequada às elevadas necessidades de prevenção especial (de socialização e de segurança) que, no caso vertente, se fazem sentir, não nos merecendo, também neste particular, qualquer reparo a sentença recorrida, devendo ser mantido o período de pena acessória decretado.

XVIII. Pelo exposto, deverá manter-se na íntegra o decidido na douta Sentença recorrida.

O Digno Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação emitiu parecer sobre o mérito do recurso, defendendo a respectiva improcedência.

O parecer emitido foi notificado ao arguido, a fim de se pronunciar, o que ele não fez.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância da sentença recorrida, expressa pelo recorrente nas suas conclusões, versa essencialmente sobre matéria jurídica (ainda que incidentalmente acabe por pôr em causa algum factualidade provada de natureza subjectiva, relativa à voluntariedade da conduta, à consciência da ilicitude e ao dolo) e centra-se na questão das consequências que o Tribunal «a quo», no entender do recorrente, da invocação por parte dele da qualidade de crente da confissão religiosa denominada Testemunhas de Jeová, para se recusar a submeter-se à recolha de sangue para análise tendente à detecção do grau de alcoolemia de que era portador, depois do insucesso da tentativa de exame ao ar expirado.

Subsidiariamente, impugna a medida das penas, principal e acessória, em que foi condenado.

O tipo fundamental do crime de desobediência é definido pelo nº 1 do art. 348º do CP, como segue:

Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples;
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

Em sede de incriminação, a sentença sob recurso faz igualmente referência ao art. 152º nºs 1 al. a) e 3 do CE (na versão vigente ao tempo dos factos, reformada pelo DL nº 138/12 de 5/7), que é do seguinte teor:

1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:
a) Os condutores;
b) …;
c) ….
2 - ….
3 - As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.

Reproduzimos a totalidade do texto do art. 153º do CE, que regula a fiscalização da condução sob efeito do álcool:

1 - O exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.

2 - Se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, a autoridade ou o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito, ou, se tal não for possível, verbalmente, daquele resultado, das sanções legais dele decorrentes, de que pode, de imediato, requerer a realização de contraprova e de que deve suportar todas as despesas originadas por esta contraprova no caso de resultado positivo.

3 - A contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando:
a) Novo exame, a efectuar através de aparelho aprovado;
b) Análise de sangue.

4 - No caso de opção pelo novo exame previsto na alínea a) do número anterior, o examinando deve ser, de imediato, a ele sujeito e, se necessário, conduzido a local onde o referido exame possa ser efectuado.

5 - Se o examinando preferir a realização de uma análise de sangue, deve ser conduzido, o mais rapidamente possível, a estabelecimento oficial de saúde, a fim de ser colhida a quantidade de sangue necessária para o efeito.
6 - O resultado da contraprova prevalece sobre o resultado do exame inicial.

7 - Quando se suspeite da utilização de meios susceptíveis de alterar momentaneamente o resultado do exame, pode a autoridade ou o agente de autoridade mandar submeter o suspeito a exame médico.

8 - Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.

Sucintamente, a pretensão recursiva principal assenta na invocação de um direito de objecção de consciência, consagrado no nº 6 do art. 41º da CRP, a recusar a recolha de sangue, que lhe adviria da sua condição de crente das Testemunha de Jeová e que excluiria a ilicitude da sua conduta, nos termos do art. 31 do CP.

O art. 31º do CP estatui:
1 - O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.

2 - Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado:
a) Em legítima defesa;
b) No exercício de um direito;
c) No cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade; ou
d) Com o consentimento do titular do interesse jurídico lesado.

Transcrevemos, na íntegra, o teor do art. 41º da CRP:
1. A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável.

2. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa.

3. Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.

4. As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.

5. É garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respectiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas actividades.

6. É garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei.

Antes de entrarmos no ajuizamento da pretensão de recorrente, convirá deixemos expressa uma breve nota prévia.

O Tribunal «a quo» julgou provado que o arguido, ao ser levado ao Hospital a fim de aí ser sujeito a recolha de sangue para análise de detecção de álcool, invocou a qualidade de crente das Testemunhas de Jeová, nos termos descritos no ponto 3 da matéria assente.

Da prova dessa invocação, o arguido, no ponto 6 das conclusões da motivação do recurso, dá o salto lógico para considerar que se encontra demonstrado que ele é efectivamente seguidor da denominação religiosa mencionada.

Ora, como nos parece evidente, o juízo de prova emitido pelo Tribunal «a quo» limitou-se à invocação enquanto facto objectivo, sem cuidar da sua sinceridade, não implicando a prova do facto invocado.

De todo modo, conforme melhor se verificará adiante, carece de interesse para a boa decisão da causa, em face das circunstâncias concretas do caso, averiguar se o arguido professa verdadeiramente a religião das Testemunhas de Jeová.

Mais do que com qualquer imperativo decorrente da adesão a um credo religioso, o dever imposto pela norma do nº 8 do art. 153º do CE colide, antes de tudo, com o direito à integridade física, consagrado pelo nº 1 do art. 25º da CRP.

Temos entendido que o combate à condução sob o efeito do álcool, através dos instrumentos coercivos do direito penal constitui um meio de tutela avançada de direitos constitucionalmente consagrados, como sejam a já referida integridade física e a vida (art. 24º da CRP).

Dito por outras palavras, evitar, por meio da punição dessas condutas, que os condutores conduzam alcoolizados visa impedir a proliferação dos acidentes viários, os quais frequentemente dão origem, para as pessoas neles envolvidas, a lesões da integridade física ou, inclusive, à perda da vida.

A efectivação da análise ao sangue do condutor é único meio fiável de determinação do grau de alcoolemia de que o mesmo é portador, nos casos em que não tenha possível ou se tenha gorado a realização do exame ao ar expirado.

A este propósito, importa ter presente o disposto no art. 18º da CRP:

1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.

2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

Ora, a disposição do nº 8 do art. 153º do CE, na parte em que impõe à pessoa sujeita à fiscalização submeter-se à recolha de sangue para análise num estabelecimento oficial de saúde comporta um atentado de pouca monta à integridade física do visado, que pode ser justificado como meio adequado de evitar a multiplicação de comportamentos potencialmente atentatórios desse bem jurídico e também da vida humana.

Saliente-se que a lei não confere aos agentes da autoridade o poder de fazer executar, por meio da coerção material, a recolha de sangue, se o visado a ela se recusasse, o que poderia ser problemático do ponto de vista do princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana, a que se refere o art. 1º da CRP, mas antes coloca o examinando perante a alternativa entre consentir na recolha de sangue ou incorrer em responsabilidade criminal, a título de desobediência.

Pode dizer-se, pois, que a disposição legal a que nos vimos referindo inclui-se no universo de normas jurídicas infraconstitucionais, definido pelo nº 2 do art. 18º da CRP, que prevê o sacrifício pontual e restrito de um direito constitucionalmente garantido (integridade física) como forma de combater e dissuadir condutas lesivas desse direito e de um direito de ainda maior peso axiológico, como é o direito à vida.

Por conseguinte, o nº 8 do art. 153º do CE impõe uma derrogação de um direito tutelado pela Constituição que é tolerada pelo próprio normativo constitucional.

Nas suas conclusões, o recorrente colocou a tónica da sua argumentação num direito de objecção de consciência, previsto no nº 6 do art. 41º do CRP, que lhe adviria da circunstância de ser seguidor da religião das Testemunhas de Jeová, cujos preceitos interditam a recolha de sangue.

Conforme decorre do teor da cláusula de não discriminação ínsita no nº 2 do art. 41º da CRP, a regra geral é que ninguém pode ser prejudicado (privado de um direito) ou beneficiado (isento de um dever) pelo facto de professar esta ou aquela religião (ou, inclusive, crer em qualquer religião).

Pelo contrário, o direito de objecção de consciência, entendido como a faculdade de recusar o cumprimento de um dever jurídico com o fundamento de que é incompatível com os preceitos da religião que se professa, tem claramente carácter excepcional e só vigora nos casos expressamente previstos na lei ordinária.

Trata-se de um dos casos em que é a própria Constituição que comete ao legislador infraconstitucional a tarefa de concretizar o âmbito de vigência de determinado direito, pelo que não tem aplicação, neste domínio a regra geral da aplicabilidade directa das normas relativas a direitos, liberdades e garantias, prescrita pelo nº 1 do art. 18º da CRP.

Não vislumbramos disposição legal que preveja um direito de objecção de consciência, nos termos em que é configurado pelo nº 6 do art. 41º da CRP, susceptível de ser oposto ao dever prescrito pelo nº 8 do art. 153º da CRP, em matéria de recolha de sangue para análise.

Consequentemente, a apurada conduta do arguido, ao recusar submeter-se à referida recolha de sangue, sob a invocação de ser crente da religião das Testemunhas de Jeová, não se encontra coberta pelo direito de objecção de consciência de que ele pretende valer-se em sede de recurso, pelo que se não verifica a causa de exclusão da ilicitude prevista na al. b) do nº 2 do art. 31º do CP.

No caso em apreço, o direito de objecção de consciência não vigora, independentemente do arguido ter sido ou não sincero ao invocar a sua pertença à mencionada confissão religiosa.

Por outro lado, e embora não tenha sido expressamente invocada pelo recorrente, tão pouco estão reunidos os requisitos da causa de justificação a que se refere a al. c) do mesmo normativo (conflito de deveres), já que, conforme o MP junto da primeira instância o fez notar, na sua resposta à motivação do recurso, a sua verificação pressupõe que a observância pelo agente da proibição contida na norma incriminadora seja incompatível com o cumprimento de algum dever imposto pela ordem jurídica positiva ou de uma ordem legítima de uma autoridade, e não de um dever moral, ético ou decorrente da adesão a um credo religioso.

Também não está em causa a ocorrência de qualquer das hipóteses previstas nas als. a) e d) do normativo em referência.

Tal como a define o nº 1 do art. 32º do CP, a legítima defesa pressupõe sempre uma agressão prévia contra bens jurídicos do agente ou de terceiro, que, no caso, inexistiu.

O bem jurídico especialmente tutelado pela norma que prevê e pune o crime de desobediência é a chamada «autonomia volitiva do Estado, que um é valor de natureza eminentemente pública, insusceptível de ser encabeçado por um particular, pelo que não pode ter havido consentimento do titular do interesse protegido pela incriminação.

Finalmente, em face dos factos apurados e das normas jurídicas relevantes para o efeito, não vislumbramos possível inferir alguma causa «atípica» de exclusão da ilicitude da conduta do arguido, ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 31º do CP.

Não estando a apurada conduta do arguido coberta por qualquer causa de justificação, impunha-se-lhe a observância do dever para ele decorrente do disposto no nº 8 do art. 153º do CP de se submeter à recolha de sangue para análise, com vista à detecção de álcool, uma vez gorado, como se gorou, o exame ao ar expirado.

A isto acresce que a situação factual concreta dada como provada não é sequer compatível com a eventualidade de o arguido ter agido induzido em erro sobre a verificação de alguma causa de exclusão da licitude, o que, a ter acontecido, excluiria o dolo, de acordo com o disposto no art. 16º do CP.

Conforme se encontra consignado no ponto 3 da matéria de facto assente, depois de ter recusado que lhe fosse efectuada a recolha de sangue para análise e de lhe ter sido comunicado por um militar da GNR que tal atitude o faria incorrer num crime de desobediência, o arguido declarou, entre outras coisas, «prefiro desrespeitar as autoridades e desobedecer, já sei que vou ao tribunal, a carta é que ninguém ma tira».

As palavras então proferidas pelo arguido não deixam a mínima dúvida de que se encontrava perfeitamente ciente das consequências jurídico-penais da sua recusa em que lhe fosse recolhido sangue para análise e que de modo nenhum actuou convencido de que alguma circunstância, que então se verificasse, pudesse justificar o seu procedimento, nem que fosse um eventual direito de objecção de consciência como aquele que ele veio invocar em sede de recurso.

Nesta conformidade, o Tribunal «a quo» não podia deixar de ter julgado provado, de acordo com a lógica geralmente aceite, que o arguido sabia que estava vinculado a acatar a ordem transmitida pelos militares da GNR no sentido de se sujeitar à recolha de sangue para análise e quis efectivamente desacatá-la, estando ciente da ilicitude do seu procedimento.

Nas conclusões que formulou, o recorrente alegou que a disposição do nº 8 do art. 153º do CE era inconstitucional, porque não deixa ao examinando a possibilidade de ser sujeito a exame medico para diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, em alternativa à realização de análise ao sangue, a não ser quando esta se revele inviável por razões médicas.

Contudo, o recorrente, nas conclusões ou na motivação propriamente dita, qualquer norma ou princípio da Lei Fundamental que possa ter sido transgredido pelo dispositivo legal impugnado.

De todo o modo, da discussão que vimos fazendo das normas relevantes para a situação factual em apreço não vislumbramos que algum dos deveres impostos pelo nº 8 do art. 153º do CE seja incompatível com normas ou princípios da Constituição, mormente, o direito de objecção de consciência, a que se refere o nº 6 do art. 41º, de que o recorrente pretende valer-se.

Sem indicar quaisquer disposições legais, o recorrente invocou que a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação, por não ter debatido as eventuais consequências jurídicas da invocação pelo arguido da qualidade de crente na religião das Testemunhas de Jeová, quando se recusou a submeter-se à colheita de sangue para exame.

Com efeito, o trecho da sentença dedicado à fundamentação jurídica, na parte relativa ao enquadramento dos factos, cuida apenas da verificação dos elementos constitutivos do tipo criminal da desobediência, não fazendo referência à invocação feita pelo arguido.

Manifestamente o Tribunal «a quo» partiu do princípio que a invocação em causa era irrelevante para a definição da responsabilidade criminal do arguido, juízo esse que teremos de corroborar, em função das razões que expusemos.

Nesta conformidade, o Tribunal só estaria vinculado a conhecer expressamente da questão, se a mesma lhe tivesse sido colocado, o que, tanto quanto pode saber-se, não sucedeu, pois o arguido não apresentou contestação.

Uma vez confirmada a verificação dos pressupostos da responsabilização do arguido, pela prática de um crime de desobediência, importa então abordar a vertente subsidiária da pretensão recursiva: a impugnação da medida das penas, principal e subsidiária, em que foi condenado.

Os critérios, que devem presidir à quantificação da pena concreta, são os estabelecidos pelo art. 71º do CP, o qual, sob a epígrafe «Determinação da medida da pena», estatui:

1 – A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 – Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 – Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.

O nº 1 do art. 40º do CP estabelece como finalidade da aplicação de penas a protecção de bens jurídicos, que se reconduz, essencialmente, à prevenção geral e especial da prática de crimes, e a reintegração do agente na sociedade e o nº 2 do mesmo normativo prescreve que em caso algum a pena ultrapasse a medida da culpa.

Acerca da escolha e da determinação da medida das penas, expende-se na sentença sob recurso (transcrição com diferente tipo de letra):

B) Medida da pena
Definida em abstracto a moldura da pena, será altura de lhe fixar a sua medida concreta, nos termos genericamente equacionados no art. 71º, nº1, do Código Penal, ou seja, tendo em atenção a culpa do agente e as exigências de prevenção de futuros crimes.

No caso concreto importa considerar que:
- a culpa é de grau elevado;
- as razões de prevenção geral são altas dada a frequência com que corre este tipo de crime;
- o arguido agiu com dolo directo;
- conta com várias condenações por crime de natureza idêntica, pelo que são acentuadas as necessidades de prevenção especial.

A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim se delimitará, por maiores que sejam as exigências de caracter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente (cfr. Ac. TRC de 19-06-2013 relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Alberto Mira, consultado in www.dgsi.pt/jtrc).

Tudo ponderado, julgamos adequado aplicar ao arguido uma pena de 10 (meses) meses de prisão.

De acordo com o art.69º nº1 al. c) do Código Penal, é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido, por crimes de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veiculo sob o feito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.

A pena de proibição de condução de veículos com motor, por força do disposto no artº 69º, nº 1, al. a) do C. Penal reveste a natureza de pena acessória visando prevenir a perigosidade do agente.

Importa, assim, aplicar ao arguido a pena acessória de inibição de conduzir veículos com motor.

Tendo em conta os elementos dos autos, vai ainda o arguido condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período de 7 (sete) meses.
*
Dispõe o art.50º nº1 do Código Penal que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

O prazo da suspensão corresponde ao período da pena de prisão, não podendo ser inferior a um ano (art.50º nº5 do Código Penal).

Trata-se de uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, pelo que é necessário que, reportando-se ao momento da decisão, se possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição.

Sendo a pena de prisão fortemente restritiva de um direito constitucionalmente tutelado – a liberdade individual, de acordo com o art.27º da Constituição da República Portuguesa, deve funcionar de acordo com uma lógica de última ratio e verificando-se os pressupostos do art.50º do Código Penal deve o juiz suspender a execução da pena de prisão.

Considerando que o arguido se encontra familiar e profissionalmente inserido, não obstante os seus antecedentes criminais, considera o tribunal que a imposição de uma pena de prisão efectiva seria demasiado penosa e prejudicial para a sua ressocialização, pelo que nada obsta que as finalidades da punição se realizem, de forma mais pedagógica, quer em termos pessoais quer em termos sociais, pela via da suspensão.

Face ao exposto, decide o tribunal suspender a execução da pena de 10 (dez) meses de prisão aplicada ao arguido pelo período de 2 (dois) anos.

A determinação das sanções em que o arguido foi condenado mostra-se inquinada por um evidente erro na fixação do período temporal de suspensão da execução da pena de prisão.

Conforme se refere na fundamentação agora transcrita, o nº 5 do art. 50º do CP estatui que o período de suspensão da pena de prisão será igual à medida desta, não podendo ser inferior a um ano.

A sentença recorrida condenou efectivamente o arguido numa pena de prisão de medida inferior a um ano (10 meses), mas, possivelmente por lapso, fixou a duração da suspensão da respectiva execução.

Embora o arguido não tenha impugnado especificamente a diraão temporal da suspensão, a sua redução só o pode beneficiar, na medida em que a suspensão foi pura e simples, pelo que aquele período de tempo não tem associado qualquer prazo para o preenchimento de alguma condição que onerasse a suspensão.

Assim, quer se mantenha inalterada a medida da pena de pisão, quer se proceda à sua redução em benefício do arguido, sempre se levará a efeito o ajustamento do período da suspensão da respectiva execução ao disposto no nº 5 do art. 50º do CP, diminuindo-o para 1 ano.

A sanção prevista no art. 69º do CP tem a natureza de uma verdadeira pena, ainda que de carácter acessório, pelo que os critérios, que presidem à fixação da sua medida, são, no essencial, os mesmos a que o Tribunal tem de atender na determinação do «quantum» da pena principal, ou seja, os previstos no art. 71º do CP.

Na sentença recorrida, o Tribunal perspectiva de forma em geral correcta os parâmetros a que atendeu na quantificação de ambas as penas que aplicou ao arguido.

Em reforço do que ficou dito apenas se nos oferece dizer que os crimes de condução em estado de embriaguez suscitam fortes exigências de prevenção geral, quanto mais não seja, pela deficiente interiorização pelos membros da sociedade portuguesa da regra comportamental, de aceitação geral noutros países, segundo a qual a condução de veículos e o consumo de bebidas alcoólicas são actividades incompatíveis entre si.

Tais imperativos de prevenção são extensivos aos crimes de desobediência cometidos com a finalidade de o agente se subtrair à fiscalização tendente à detecção de álcool no sangue, recusando-se a efectuar o exame ao ar expirado ou a consentir na recolha de sangue para análise.

Por outro lado, também as necessidades de prevenção especial se apresentam particularmente exacerbadas, em razão dos antecedentes criminais do arguido, o qual foi condenado por oito vezes, predominantemente, pela prática de crimes relacionados com a condução (em estado de embriaguez ou sem habilitação legal) ou que envolvem uma postura adversária em relação à autoridade pública (resistência e coacção a funcionário e desobediência).

A medida da pena acessória foi fixada em 7 meses, dentro de uma moldura que vai de 3 meses a 3 anos (36 meses), pelo o Tribunal «quo» usou seguramente de moderação nessa fixação, pelo que o seu quantitativo não poderá ser objecto de ulterior compressão, onde se comprometerem as finalidades da punição, no domínio da prevenção.

Quanto à medida da pena principal, a sentença recorrida fixou-a em 10 meses dentro uma moldura que vai de 1 mês a 1 ano, o que significa próximo do respectivo limite máximo.

Embora não militem a favor do arguido quaisquer circunstâncias atenuantes atendíveis, como poderiam ser a confissão e o arrependimento, somos de entender, ainda assim, que o ponto de equilíbrio entre as expectativas comunitárias de vigência da norma penal e as necessidades de reintegração social do arguido, que a medida da pena deverá traduzir, poderá ser encontrado a um nível ligeiramente inferior, mas sempre acima do ponto médio da moldura punitiva em referência.

Consequentemente, fixaremos em 7 meses a medida da pena principal.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

a) Conceder parcial provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida no sentido de condenar o arguido, pela prática de um crime de desobediência, p. e p. nos arts.348º nº1 al. a) e 69º nº1 al. c), ambos do CP, por referência do disposto no art. 152º nº1 al. a) e nº3 ambos do CE, aprovado pelo DL 114/94 de 3 de Maio, reduzindo a medida da pena principal para 7 meses de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 1 ano, mantendo-se inalterada a pena acessória aplicada em primeira instância;

b) Negar provimento ao recurso, quanto ao mais, e confirmar a decisão recorrida.

Sem custas.
Notifique.

Évora, 21/10/14(processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Póvoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)