Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1869/15.0T8STR.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 12/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: REVOGADA
Sumário: 1. A competência material do tribunal constitui um pressuposto processual e afere-se pela forma como o autor configura o pedido e a respectiva causa de pedir, ou seja, determina-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como o autor estrutura o pedido e os respectivos fundamentos.
2. Os tribunais administrativos apreciam a responsabilidade civil extracontratual de sujeitos de direito privado somente se lhes for aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais entidades públicas.
3. Para determinar o tribunal materialmente competente, o critério a adoptar deve assentar na competência para julgamento da questão determinante: quem for competente para julgar a questão determinante é também competente para julgamento das questões conexas.
4. É da competência dos tribunais comuns o julgamento de uma causa em que o Estado, com base no art. 46.º n.º 1 do DL 503/99, de 20 de Novembro, pretende a condenação de sujeitos de direito privado no pagamento de danos incorridos ao suportar os vencimentos devidos a um agente da PSP durante um período de baixa ocasionado por facto ilícito dos demandados.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Na Instância Local do Entroncamento, o Estado Português – Polícia de Segurança Pública demandou AA, BB e CC, pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 39.931,17, com base na responsabilidade civil destes por lesões físicas causadas a um agente da PSP, a quem o A. pagou diversas quantias durante o período de tempo que esteve incapacitado para o trabalho.
Após contestação pelo R. BB, fundamentalmente impugnando a sua intervenção no evento danoso, a Mm.ª Juiz a quo, ponderando que a causa de pedir era complexa e se consubstanciava não apenas no exercício do direito de regresso por parte do A., mas igualmente na qualificação dos factos como acidente de serviço, matéria esta que seria da competência dos tribunais administrativos, excepcionou a incompetência em razão da matéria.
Inconformado, o A. apresentou recurso e concluiu:
1.º A decisão que declarou o tribunal/Instância Local de competência genérica do Entroncamento incompetente em razão da matéria para conhecer da acção intentada pelo Estado, viola o preceituado nos artigos 4.º do ETAF, o artigo 64.º do NCPC e o artigo 40.º da lei n.º 62/2013, de 26/08 e artigo 211.º n.º 1 e 212.º n.º 3 da CRP – cf. o artigo 639.º n.º 2, al. a) do NCPC.
2.º As aludidas normas apontam claramente no sentido de ser este tribunal competente em razão da matéria para conhecer da acção intentada pelo Estado, em virtude de por um lado, inexistir norma que preveja a competência dos tribunais administrativos para conhecer de tal acção (competência residual) e, por outro lado, ser o objecto da acção uma situação jurídica regulada pelo direito privado (critério de atribuição positiva de competência).
3.º De facto, constitui fundamento da acção intentada pelo Estado Português o exercício do direito de sub-rogação legal previsto no artigos 483.º, 490.º, 562.º e 592.º, todos do Código Civil e conforme Acórdão do STJ n.º 5/97 de 14-01-1997 (in DR I Série A, de 27-03-1997) – todas normas de direito civil e não de direito administrativo.
4.º Em virtude de o Estado ter pago ao agente principal da P.S.P. DD, salários e despesas médicas durante o período em que este esteve de baixa na sequência da agressão de que foi vítima pelos RR. – sendo que, relativamente a tais factos correu termos o PCC 130/11.3GAENT no âmbito do qual dois dos RR. foram condenados pela prática de crime de homicídio na forma tentada na pessoa do lesado agente principal DD.
5.º O lesado apesar de estar de folga e trajar à civil no momento em que foi vítima da agressão, não deixa de considerar-se no exercício de funções, por força de norma expressa constante do Estatuto dos Profissionais da P.S.P., designadamente os artigos 10.º, n.º 3, 12.º, n.º 2, 56.º, n.º 1 e 57.º n.º 5 do Dec.-Lei n.º 243/2015, de 19/12 (vd. os artigos 5.º, n.º 2, 7.º, 32.º e 33.º, n.º 3 todos do Dec.-Lei n.º 299/2009 de 14/10 em vigor à data da propositura da acção).
6.º Tais normas prevêem expressamente que «o serviço da P.S.P. é de carácter permanente e obrigatório», instituindo-se um regime de disponibilidade permanente obrigatória e o dever profissional de em qualquer situação (mesmo fora da área da competência funcional e fora do horário normal de serviço) os agentes da P.S.P. exercerem as suas funções ainda que com sacrifício dos seus interesses pessoais.
7.º Pelo que, não existe qualquer fundamento para na acção discutir em primeira linha se a agressão de que o agente principal da P.S.P. foi vítima pelos RR foi um «acidente de serviço» - o que constituiu o único fundamento invocado na decisão recorrida para considerar o tribunal comum incompetente em razão da matéria.
8.º Na verdade, não existe qualquer dúvida sobre essa questão face às normas legais invocadas - não se tratando de uma questão controvertida na acção.
9.º Sendo certo também, que não tendo nenhum dos RR contestado a acção pondo em causa a existência de um «acidente de serviço», tal questão não terá de ser discutida na presente acção e deverá considerar-se assente.
10.º Mas ainda que assim não fosse, tratar-se-ia sempre de uma questão prejudicial que teria como consequência a eventual suspensão da instância - e não a absolvição a instância por incompetência do tribunal em razão da matéria.
11.º Aliás, a acção em causa apenas não foi enxertada na acção penal, em virtude de à data em que foi proferido despacho de acusação ainda não existirem os elementos necessários para deduzir o respectivo pedido.
12.º Por último, dir-se-á que natureza da relação-jurídica objecto da acção de regresso não interfere com a competência material do tribunal para conhecer do objecto da acção.
13.º Termos em que deverá a decisão recorrida ser revogada e, consequentemente, declarar-se/reconhecer-se ser o tribunal/Instância Local do Entroncamento o tribunal competente em razão da matéria para julgar a acção intentada pelo Estado Português, determinando-se a tramitação legal subsequente.

O R. BB contra-alegou e concluiu:
1- O Ministério Público, em representação do Estado Português, veio interpor Recurso da Douta Sentença, a qual absolve os RR da instância, por absoluta incompetência do Tribunal;
2- Considera o Tribunal a quo que terá de ser verificado e julgado em tribunal administrativo a existência de acidente em serviço do lesado que é PSP, previamente a se verificar qualquer direito de regresso!
3- Considerando-se assim como tribunal sem competência em razão da matéria, razão pela qual absolveu os RR da instância.
4- Em virtude do Estado ter pago ao agente não significa de per si que existe relação subjacente à indemnização por parte dos ora recorridos.
5- O que efectivamente terá de ser verificado pelo Tribunal administrativo, o qual tem exclusiva competência nesta matéria!
6- Mais, o MP veio apresentar PI e ora Recurso contra os três arguidos que inicialmente foram identificados em fase de inquérito, não tendo observado a absolvição do aqui recorrido, o então arguido BB, existindo quanto a este, para além do mais, uma total ilegitimidade, excepção que se alegou em sede de contestação.

Também o R. CC contra-alegou e concluiu:
1- O Ministério Público, em representação do Estado Português, veio interpor Recurso da Douta Sentença, a qual absolve os RR da instância, por absoluta incompetência do Tribunal;
2- Considera o Tribunal a quo que terá de ser verificado e julgado em tribunal administrativo a existência de acidente em serviço do lesado que é PSP, previamente a se verificar qualquer direito de regresso!
3- Considerando-se assim como tribunal sem competência em razão da matéria, razão pela qual absolveu os RR da instância.
4- Em virtude do Estado ter pago ao agente não significa de per si que existe relação subjacente à indemnização por parte dos ora recorridos.
5- O que efectivamente terá de ser verificado pelo Tribunal administrativo, o qual tem exclusiva competência nesta matéria!
6- Mais, o MP veio apresentar PI e ora Recurso contra os co-réus, no entanto atendendo ao conteúdo da Petição Inicial, verifica-se in casu, está em causa a qualificação de um acidente como de serviço. Sofrido por um agente da PSP quando “encontrando-se de folga trajado à civil, conduzia o seu veículo ligeiro de passageiros de matricula 00-AT-00 da Estrada Nacional...”, o que confere à relação jurídica em causa a natureza administrativa, sendo que os acidentes de serviço são regulados pelo mencionado DL NO 503/99, ao qual, subsidiariamente, aplicam-se as regras do Código do Procedimento administrativo (cf. Art. 53° do D.L.)
7- Nesta senda, num raciocínio de subsunção lógica, releva apurar se ocorreu (ou não) um acidente de serviço à luz do DL NO 503/99 de 20/11-facto não assente, atendendo à circunstância de, no momento em que os demais factos ocorreram, o agente estar de folga, trajado à civil e conduzi o seu veículo ligeiro-para que se possa ajuizar da pertinência dos pagamentos realizados pela PSP ao seu agente.

APLICANDO O DIREITO
Da competência material
De acordo com o art. 211.º n.º 1 da Constituição, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Por contraponto, o art. 212.º n.º 3 dispõe competir aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Na determinação do conceito de relação jurídico administrativa ou fiscal, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira[1], deve ter-se presente que «esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.»
Conforme vem afirmando a jurisprudência[2], a competência material do tribunal constitui um pressuposto processual e afere-se pela forma como o autor configura o pedido e a respectiva causa de pedir, ou seja, determina-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como o autor estrutura o pedido e os respectivos fundamentos. Daí que, para se determinar a competência material do tribunal, haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.
Comentando o art. 4.º do ETAF, o qual concretiza a competência dos tribunais administrativos e fiscais, Mário Aroso de Almeida[3] afirma que «pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídica administrativa e fiscal e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais, assim como aqueles que, embora não versem sobre matéria jurídica administrativa e fiscal, são expressamente atribuídos, por norma especial, à competência desta jurisdição – sendo que encontramos no artigo 4.º do ETAF algumas disposições especiais com este alcance.»
O art. 4.º n.º 1 als. f), g) e h) do ETAF dispõe o seguinte: «1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: (…) f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo; g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo acções de regresso; h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.»
Deste conjunto normativo resulta um ponto essencial: para além da apreciação da responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas públicas, dos titulares dos seus órgãos e dos demais servidores públicos, os tribunais administrativos apreciam a responsabilidade civil extracontratual de outros sujeitos (maxime, sujeitos de direito privado) acaso lhes seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais entidades públicas.
Apenas com esta base se vem decidindo pela competência dos tribunais administrativos no julgamento de acções de responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado, concessionárias de exploração de auto-estradas, por violação dos deveres que lhe cabem nos termos do contrato de concessão, uma vez que se entende que as mesmas exercem prerrogativas de poder público, nos termos do art. 1.º n.º 5 da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro.
No caso, pretende-se a condenação RR. no pagamento de danos incorridos pelo Estado, ao suportar os vencimentos devidos a um agente da PSP durante um período de baixa ocasionado por facto ilícito dos demandados. De acordo com o art. 46.º n.º 1 do DL 503/99, de 20 de Novembro, «os serviços e organismos que tenham pago aos trabalhadores ao seu serviço quaisquer prestações previstas no presente diploma têm direito de regresso, contra terceiro civilmente responsável pelo acidente ou doença profissional, incluindo seguradoras, relativamente às quantias pagas.»
Está em causa, pois, essencialmente uma acção de responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados, aos quais não é aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais entidades públicas. A responsabilidade aquiliana dos RR., a definir nos termos gerais dos arts. 483.º e segs. do Código Civil, constitui assim o cerne da causa, e como tal determina a competência da jurisdição comum.
Como se afirma no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 20.02.2015, tirado no mesmo processo citado na decisão recorrida (Proc. 00047/10.9BEAVR-B), para determinar o tribunal materialmente competente, “o critério a adoptar deve assentar na competência para julgamento da questão determinante: quem for competente para julgar a questão determinante é também competente para julgamento das questões conexas.”
Se é certo que, naquele caso, se considerou ser a questão determinante a qualificação do acidente como de serviço, no caso dos autos a condenação dos RR. assentará, sempre, na determinação da sua responsabilidade civil por facto ilícito. Se é certo que outras questões poderão ter relevo, nomeadamente a qualificação dos factos como acidente de serviço, as mesmas são meramente acessórias, uma mera etapa para chegar à questão principal, e essa é definitivamente de direito civil.
De todo o modo, faz-se notar que, na contestação junta aos autos, não se discute sequer a qualificação dos factos como acidente de serviço – a impugnação do R. Albino Cruz incide essencialmente sobre a sua não intervenção no evento danoso e quanto aos danos descritos na petição inicial defende-se com o seu desconhecimento. Logo, a qualificação como acidente de serviço não está erigida, sequer, em questão polémica, e muito menos determinante para a condenação dos RR..

DECISÃO
Destarte, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e declara-se a jurisdição comum materialmente competente para o conhecimento da causa.
Custas do recurso pelos RR..

Évora, 15 de Dezembro de 2016

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Mário Branco Coelho (relator)

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Isabel de Matos Peixoto Imaginário

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Maria da Conceição Ferreira
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[1] In Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, págs. 566 e 567.
[2] Cfr. o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 07.05.2015, Proc. 010/15, e do Supremo Tribunal de Justiça de 14.05.2009, Proc. 09S0232, ambos publicados em www.dgsi.pt.
[3] In Manual de Processo Administrativo, 2013, Almedina, pág. 157.