Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
47/21.3GAFFZ.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: CRIME DE RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Constitui elemento essencial do crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal a utilização de ameaça grave ou de ofensa à integridade física contra membro das forças de segurança, com o propósito de impedir que o mesmo pratique ato relativo ao exercício das suas funções, devendo a ameaça ou a violência serem preordenadas ao referido fim e idóneas, em termos de causalidade adequada, a obter o resultado pretendido pelo agente.

II - Agredir com cotoveladas e murros agentes de autoridade que se encontram a desenvolver legitimamente as funções que lhes estão atribuídas e, simultaneamente, ameaçá-los que a apresentação de queixas diárias à sua hierarquia, com o propósito deliberado de impedir a concretização dos atos funcionais dos militares, é grave, de forma alguma poderá ser enquadrado na reação normal e expectável de qualquer indivíduo à sua detenção e demanda tutela penal ao nível do crime resistência e coação sobre funcionário, pois que é em tal tipo penal, e não noutro, que se protege o bem jurídico claramente afetado com os referidos comportamentos: a autonomia funcional do Estado.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:


Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.
Nos presentes autos de processo comum singular que correm termos no Juízo Local Criminal de Tomar, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, com o n.º 47/21.3GAFZZ foi o arguido (...), condenado pela prática de:
- Um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão, substituída pela pena de 360 (trezentos e sessenta) dias de multa à taxa diária de 7€ (sete euros), o que perfez o montante de 2.520,00€ (dois mil, quinhentos e vinte euros);
- Um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, ex vi do artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 do Código da Estrada, na pena de 80 (oitenta) dias de multa;
- Dois crimes de injúria na forma agravada, previstos e punidos pelos artigos 181.º e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, nas penas de 80 (oitenta) dias de multa, para cada um dos crimes;
- Em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicada aos crimes de desobediência e de injúria agravada, na pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 7,00€ (sete euros), o que perfez o montante de 840,00€ (oitocentos e quarenta euros);
- Na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal.
*
Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:
“1. Vem o presente recurso interposto por se considerar que, na sentença condenatória proferida, o Tribunal a quo: a) incorreu em erro de julgamento quanto à decisão da matéria de facto, designadamente no que diz respeito aos pontos 14., 23., 24. e 25. dos factos considerados provados; b) julgou, errada e incorrectamente, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo previsto no n.º 1 do artigo 347.º do Código Penal, condenando – mal, segundo se propugna – o Arguido, aqui Recorrente, pelo crime de resistência e coação sobre funcionário; c) o quantitativo diário da pena de multa – de 7,00€ (sete euros) – fixado pelo Tribunal a quo mostra-se desadequado e desproporcional à situação económica e financeira do Arguido, aqui Recorrente, e dos seus encargos pessoais; e, por fim, d) a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, fixada pelo Tribunal a quo – de 5 (cinco) meses – mostra-se também, por se revelar excessiva, desadequada e desproporcional à culpa do Arguido e às concretas circunstâncias do caso em apreço.
Senão, vejamos:
2. Salvo melhor entendimento, o Tribunal a quo julgou errada e incorrectamente os pontos 14., 23., 24 e 25 da matéria de facto, considerando como provados factos fulcrais para a qualificação jurídico-penal do tipo de ilícito de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punível nos termos do número 1 do artigo 347.º do Código Penal, porquanto os mesmos não têm correspondência na prova produzida em sede de audiência de julgamento, sendo, aliás, contraditórios com a mesma.
3. Os elementos de prova produzidos em audiência de julgamento patenteiam uma realidade material distinta, contraditória da “realidade” construída pelo Tribunal a quo, e que, na posição defendida pelo Arguido e aqui Recorrente, não tem justificação ou fundamento.
4. Os depoimentos prestados pelas testemunhas da acusação (militares da GNR … demonstram que o julgamento feito pelo Tribunal a quo, quanto aos concretos pontos da matéria de facto dados como provados indicados (factos vertidos nos pontos 14., 23., 24. e 25.), está inquinado de erro notório e que a análise crítica da referida prova conduz, necessária e forçosamente, a um resultado diferente daquele que veio a ser firmado pelo Tribunal a quo.
5. Impor-se-ia ao Tribunal a quo uma decisão da matéria de facto – designadamente quanto aos factos dados como provados sob os n.ºs 14., 23., 24. e 25. – uma decisão diversa e contrária àquela que veio a ser firmada, em face das seguintes concretas provas, produzidas em sede de audiência de julgamento:
a. Depoimento presado pela testemunha (…) (militar da GNR) na sessão de audiência de julgamento realizada no dia 19 de Maio de 2021, entre as 12:23:45 e as 12:58:28, gravada através do sistema integrado de gravação digital (ficheiro áudio 20210519114744_2949552_2871732), disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, designadamente nos minutos 25, 26 e 28 a 31;
b. Depoimento presado pela testemunha (…) (militar da GNR) na sessão de audiência de julgamento realizada no dia 19 de Maio de 2021, entre as 12:59:55 e as 13:21:29, gravada através do sistema integrado de gravação digital (ficheiro áudio 20210519114744_2949552_2871732), disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, designadamente nos minutos 3, 4 e 15 a 17.
6. Em fade das concretas provas indicadas, resulta notório que o Arguido, aqui Recorrente, terá atingido o militar (…) uma única vez e apenas no decurso das manobras que os militares da GNR estavam a desenvolver para o virar e o colocar em posição de decúbito ventral (de barriga para baixo), a fim de o algemarem.
7. Aliás, no minuto 31 do depoimento da Testemunha (...) (transcrito na motivação do presente recurso), a M. Juiz a quo sintetiza os factos, referindo que, do depoimento já prestado pela Testemunha, o Tribunal a quo entendeu “que o senhor [o Arguido] se deita de barriga para cima e os senhores militares tentaram virá-lo para o algemar nas costas, como é o procedimento habitual. Ele esbracejou tentando… impedindo ser algemado… e, nessa situação, terá atingido com uma cotovelada, no sentido de não ser algemado […]”.
8. Tal síntese obteve total concordância da Testemunha, ficando, assim e ao contrário do entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo na decisão ora sindicada, assente que o militar da GNR (...) foi atingido com uma cotovelada apenas (e não com várias, como foi, depois, considerado provado pelo Tribunal a quo) e que tal ocorreu quando o Arguido esbracejava, tentando obstar à detenção e à colocação das algemas.
9. Acresce que, em nenhuma circunstância (seja na parte do depoimento transcrito, seja na restante), a Testemunha refere ter sido atingida por qualquer murro do Arguido; e também não refere em circunstância alguma que o Arguido tenha atingido o colega (o militar (...)) com qualquer murro ou cotovelada (o que também não aconteceu).
10. Assim, ao contrário do considerado pelo Tribunal a quo, da prova produzida em sede de audiência de julgamento não resulta que o Arguido tenha atingido os militares da GNR com “várias cotoveladas e murros” ou que o Arguido e Recorrente tivesse intenção de molestar o corpo ou a saúde de qualquer dos militares da GNR. Aliás, tal como resulta do excerto do depoimento acima transcrito, a Testemunha refere desconhecer se a cotovelada que a veio a atingir no nariz foi intencional.
11. O Tribunal a quo foi além do que resulta da prova: ao contrário do entendimento firmado pelo Tribunal a quo, o Arguido não teve intenção de atingir o corpo ou a saúde de qualquer dos militares da GNR, pelo qua a sua conduta tem de ser forçosamente entendida como uma reação à força que os militares da GNR estavam a usar contra ele no decurso das manobras de o virarem e algemarem (não podemos deixar de ter em consideração que o Arguido, aqui Recorrente, se encontrava deitado no chão e que usa uma prótese, pela amputação quase total do mesmo inferior esquerdo., a qual se deslocou, impedindo-o de se movimentar e causando-lhe dores).
12. Da mesma forma, em face do depoimento prestado pela Testemunha (...) resulta notório que ambos os militares terão sido atingidos pelo Arguido (o militar (...), com uma cotovelada e o militar (...), com um empurrão) no decurso das manobras de detenção e como forma de reação à força que os mesmos empregavam nessa detenção, não tendo o Arguido intenção de atingir os militares no seu corpo, nem de lhes causar quaisquer lesões (as quais, refira-se, foram apenas superficiais, não implicando qualquer consequência ou incapacidade para ambos os militares da GNR).
13. Ou seja, nenhuma das Testemunhas inquiridas refere ter sido atingida por “várias cotoveladas e murros” desferidas pelo Arguido, aqui Recorrente; as “várias cotoveladas e murros” desferidas pelo Arguido, aqui Recorrente, terão sido “dadas para o ar”, sem que (com excepção de uma cotovelada e de um empurrão) chegassem a atingir qualquer dos militares.
14. Assim, a valoração do Tribunal a quo relativamente aos pontos da matéria de facto dada como provada – pontos 14., 23., 24, e 25. – não tem qualquer reflexo na prova produzida em sede de audiência de julgamento, pelo que o Tribunal a quo violou o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.º do CPP, e, bem assim, as normas plasmadas nos artigos 124.º/1 e 125.º do CPP, porquanto, conjugadas as regras da experiência e do normal acontecer com os elementos probatórios em causa, impor-se-ia decisão diversa daquela que veio a ser proferida.
15. Com efeito, em face das concretas passagens dos depoimentos das Testemunhas e, bem assim, das regras da experiência comum, o Tribunal a quo só poderia ter considerado como provado que, no decurso do processo de detenção e reagindo à força empregue pelos militares da GNR, o Arguido esbracejou, desferindo murros, cotoveladas e empurrões, acabando por atingir o militar da GNR (...) no nariz, com uma cotovelada, e empurrando uma vez o militar da GNR (...).
16. O Arguido, que não teve intenção de atingir o corpo ou a saúde dos militares, esbracejou e obstou à força empregue na tarefa de algemagem, tendo, incidentalmente (ou seja, sem intenção), atingido os referidos militares da GNR.
17. Em síntese, de tudo o que se vem expondo, impor-se-ia ao Tribunal a quo o julgamento dos referidos pontos da matéria de facto no sentido que passa a expressar-se. Assim:
14. Em seguida, quando os militares o tentavam deter, o Arguido esbracejou reagindo à força empregue na detenção e desferiu murros, sem atingir qualquer dos militares da GNR.
[…]
23. O arguido atuou da forma que se deixou descrita (proferindo as supra mencionadas expressões e desferindo cotoveladas, murros e empurrões) com o propósito de se eximir ao cumprimento dos comandos que aqueles militares lhe pretendiam impor, concretamente de ser detido e conduzido ao Posto da GNR,
nomeadamente para elaboração do expediente, na sequência da recusa do arguido em se submeter ao teste de pesquisa de álcool no sangue.
24. [Não provado].
25. [Não provado].
18. Não o tendo julgado assim, conforme descrito, incorreu o Tribunal a quo em erro de julgamento.
Não obstante, e sem prescindir no atrás alegado,
19. O Tribunal a quo considerou – mal, segundo se propugna – demonstrada “a utilização, por parte do arguido, de violência e ameaça grave, com vista a impedir que os militares da GNR exercessem as suas funções, no caso, levassem a cabo a detenção, sabendo que os mesmos atuavam no exercício dessas mesmas funções” e, consequentemente, considerou preenchidos os elementos subjectivos e objectivos do tipo previsto e punível no número 1 do artigo 347.º do Código Penal, condenando o Arguido, aqui Recorrente, pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário.
20. O crime de resistência e coação sobre funcionário, pressupõe a verificação dos seguintes requisitos: a) a oposição a que funcionários, membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, pratiquem ou continuem a praticar acto legítimo compreendido nas suas funções, ou constrangimento a que pratiquem acto relacionado com as suas funções mas contrário aos seus deveres; b) que tal oposição ou constrangimento sejam operados através de violência (física ou moral) ou de ameaça grave; c) que o agente tenha conhecimento que está perante um funcionário, membro das forças armadas, militarizadas ou de segurança; e, d) que tenha conhecimento de que a oposição e ou o constrangimento, através da violência ou ameaça, o impeçam de praticar o ato relacionado com as suas funções ou de prossegui-lo.
21. Ora, salvo melhor entendimento, no caso em apreço não se mostram verificados todos aqueles requisitos.
22. Com efeito, tal como resulta do acima exposto e ao contrário do entendimento firmado pelo Tribunal a quo, o Arguido, aqui Recorrente, não empregou violência ou ameaça grave na sua conduta e não atuou com o intuito (vontade livre e consciente) de empregar qualquer violência ou ameaça.
23. O Arguido, aqui Recorrente, reagiu à força empregue pelos militares nas manobras de detenção, esbracejou (e, com isso, desferiu murros, cotoveladas e empurrões), atingindo acidentalmente os militares da GNR (numa dessas vezes, atingiu o militar (...), no nariz e em outra, através de um empurrão, atingiu o militar (...)).
24. Esta mesma questão tem vindo a ser amplamente debatida nos nossos Tribunais, sendo jurisprudencialmente assente que a conduta do agente que “esbraceja e empurra” os militares da GNR, opondo-se às manobras de detenção, não é subsumível no tipo “resistência e coacção sobre funcionário”. Veja-se, a tal propôsito, os acórdãos proferidos pelo TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA em 20-12-2018 (processo n.º 1155/16.8TBSTB.E1, relatado pelo Venerando Desembargador ANA BARATA BRITO) e em 20-03-2018 (relatado por JOÃO LATAS); pelo TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, em 17-04-2013 (em que foi Relator MELO LIMA), entre outros.
25. E não pode deixar de se ter em consideração que, no caso em apreço, a detenção do Arguido Recorrente não foi inviabilizada ou impossibilitada pela cotovelada e/ou pelo empurrão que acabaram por atingir cada um dos dois militares da GNR no momento em que o Arguido, aqui Recorrente, esbracejava e se debatia e sim pelo facto de ele se ter queixado de dores nas costas e na zona da amputação, que motivaram os militares a acionar os meios de socorro e a conduzi-lo ao hospital.
26. E mesmo que assim se não entendesse – o que não se concede e apenas se equaciona por mero dever de patrocínio – sempre teria que se considerar que a conduta perpetrada pelo Arguido, aqui Recorrente, de esbracejar e se debater perante a força empregue pelos militares da GNR, quando o mesmo se encontrava deitado no chão e limitado nos seus movimentos (até devido à prótese que usa), não seria hábil a inviabilizar a detenção através da colocação de algemas e a pôr em causa a prática do acto relativo ao exercício das funções dos militares da GNR em causa.
27. Da mesma forma, não pode ter-se por verificado o elemento objectivo do tipo no que se refere às expressões proferidas pelo Arguido, aqui Recorrente, e consideradas provadas pelo Tribunal a quo no ponto 17 da matéria de facto dada como provada, pois que tais expressões não se revelam, no caso concreto, hábeis ou susceptíveis de perturbar a liberdade de acção dos militares da GNR, até porque, como acima se referiu, a detenção não foi efectuada em virtude de o Arguido, aqui Recorrente, ter manifestado queixas por dores nas costas e na zona da amputação.
28. O critério de avaliação do grau de ameaça para se considerar preenchido o crime de resistência e coacção sobre funcionário há-de assentar na idoneidade da violência ou da ameaça para perturbar a liberdade de acção do funcionário; e, no caso, ficou demonstrado, de forma inequívoca, que a acção dos militares da GNR não foi perturbada (não fossem as queixas referidas pelo Arguido, aqui Recorrente, a detenção deteria sido efetuada).
29. O Tribunal a quo não poderia, em face da matéria de facto dada como provada e, sobretudo, com as alterações que se lhe impõem em face das concretas provas acima analisadas, ter condenado o Arguido, e aqui Recorrente, pela prática de tal crime, pois que a conduta perpetrada pelo Arguido não integra o crime de resistência e coação sobre funcionário, pelo que se imporia ao Tribunal a quo – e, salvo melhor entendimento, impõe-se, nesta sede, ao Tribunal ad quem – a absolvição do Arguido, aqui Recorrente, de tal crime.
Sem conceder no atrás alegado,
30. O Tribunal a quo fixou em 7,00€ (sete euros) o quantitativo diário da pena de multa aplicada ao Arguido e aqui Recorrente, referindo ter considerado que o Arguido, aqui Recorrente, “está em situação de reforma e aufere pensão no valor de € 460 mensais, tendo, ainda, rendimentos provenientes de negócio com sucatas e reside em casa própria com a mulher, que trabalha […]”.
31. Porém, o Tribunal a quo não considerou, como se lhe impunha, todos os elementos de que dispunha relativos à situação económica e financeira do Arguido, aqui Recorrente, e, sobretudo, os elementos relativos aos seus encargos pessoais.
32. Com efeito, apesar de residir em casa própria com a esposa que trabalha (auferindo uma remuneração líquida de cerca de 630,00€) – sendo certo que a responsabilidade por factos ilícitos não se comunica à cônjuge do Arguido, pelo que os rendimentos auferidos pela mesma não podem ser tidos em consideração –, o Arguido, aqui Recorrente, tem ao seu encargo uma filha maior (estudante, frequentando a Universidade de Lisboa e residindo nessa cidade de Lisboa, em quarto arrendado).
33. É consabido que as despesas de um estudante universitário em Lisboa são avultadas, pois que, além de tudo o quanto se refere às despesas escolares (propinas, manuais, materiais de desgaste), existem todos os encargos com habitação, alimentação e transportes (na cidade de Lisboa e entre essa cidade e a cidade de origem, em deslocação a casa). E que, na cidade de Lisboa, os valores das rendas mensais (ainda
que apenas relativas a quartos) são bastante elevadas, rondando os 500,00€ (quinhentos euros).
34. O Arguido, aqui Recorrente, encontra-se em situação de reformado por invalidez (motivada na amputação do seu membro inferior esquerdo), auferindo uma reforma de cerca de 460,00€ (quatrocentos e sessenta euros).
35. Os rendimentos da actividade de comércio de sucata – apesar de terem sido considerados pelo Tribunal a quo – não foram aferidos em audiência de julgamento.
Mas, ainda que o tivessem sido – o que não ocorreu, e incumbia ao Tribunal a quo – não alterariam substancialmente a posição económica e financeira do Arguido. Tratam-se de rendimentos residuais; e de uma actividade esporádica que o Arguido, aqui Recorrente, desenvolve para minimizar os exíguos rendimentos que aufere da referida pensão de invalidez.
36. O valor diário fixado pelo Tribunal a quo representa praticamente metade do rendimento diário do Arguido (se considerarmos o rendimento mensal de 460,00€, por dia o Arguido tem disponível cerca de 15,00€ e o quantitativo diário foi fixado em 7,00€), valor que, considerados os seus encargos pessoais (alimentação, água, eletricidade e gás, despesas escolares da filha estudante), se revela manifestamente excessivo e desproporcional.
37. O Arguido, aqui Recorrente, não dispõe de capacidade económica e financeira que fundamente o quantitativo em causa fixado pelo Tribunal a quo. Mal andou, pois, o Tribunal a quo ao fixar aquele valor diário, impondo-se, nesta sede, a substituição ou redução do valor em causa para o quantitativo diário de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos).
38. O Tribunal a quo violou, assim, o disposto no número 2 do artigo 47.º do Código Penal.
Ainda sem prescindir no atrás alegado,
39. O Tribunal a quo decidiu condenar o Arguido, aqui Recorrente, na pena acessória de proibição de o mesmo conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses, a qual, porém, se mostra desadequada, excessiva e manifestamente desproporcional, se considerados os critérios legais orientadores da sua determinação (artigo 71.º e número 2 do artigo 40.º, ambos do Código Penal) e das concretas circunstâncias que envolveram os factos em sindicância, relativos ao crime de desobediência, ultrapassando, no entender do Arguido, aqui Recorrente, a medida da culpa.
40. O vasto conjunto de circunstâncias a que o Tribunal a quo fez apelo não foi corretamente ponderado e sopesado (sobretudo no que se refere às consequências da conduta do Arguido, que, como acima se referiu, não foram gravosas), tendo apenas funcionado em prejuízo do Arguido, e aqui Recorrente.
41. Na determinação da medida concreta da pena acessória em causa, o Tribunal a quo não considerou na devida medida, em claro prejuízo do Arguido e aqui Recorrente, todas as circunstâncias do caso concreto, designadamente o facto de não terem resultado consequências gravosas da sua conduta.
42. Da mesma forma, e por ter considerado como provados os factos vertidos nos pontos 14., 23., 24., e 25. da matéria de facto, o Tribunal a quo amplificou a conduta do Arguido, e aqui Recorrente, considerando preenchidos os elementos do tipo de coação e resistência sobre funcionário que, na verdade e como acima se alegou, se não verificaram.
43. Acresce que as circunstâncias que depõem a favor do Arguido, aqui Recorrente – designadamente a ausência de antecedentes criminais e a inserção familiar e social do Arguido – não foram, na devida medida, consideradas pelo Tribunal a quo, que, salvo melhor entendimento, numa decisão excessiva e desproporcional, prosseguiu com a determinação da pena acessória que, salvo melhor entendimento, se crê desproporcional, porquanto elevada e desadequada.
44. As características que ao caso concreto cabem e que devem ser tidas em consideração na determinação da medida concreta da pena (no caso, da pena acessória), como se impõe nos termos do artigo 71.º do Código Penal, conduziriam necessariamente à aplicação ao Arguido de uma pena inferior àquela que veio a ser fixada.
45. Em face de todo o exposto, ponderada a ilicitude dos factos, a culpa do Arguido, e aqui Recorrente, e as exigências de prevenção geral e especial requeridas, a determinação de uma pena acessória de medida inferior – de 3,5 (três meses e meio) meses – ainda realizaria (e realizará!, segundo se propugna), de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição e será mais adequada ao caso concreto e à medida da culpa do Arguido, mais harmoniosa, proporcional e justa.
46. Neste seguimento, e não o tendo o tendo feito, violou o Tribunal a quo o plasmado no número 2 do artigo 40.º e nos números 1 e 2 do artigo 71.º, e na alínea c) do número 1 do artigo 69.º, todos do Código Penal.
Normas jurídicas violadas pelo Tribunal a quo: 125.º, 124.º/1 e 127.º do Código de Processo Penal; artigo 47.º/2; artigo 40.º; artigo 71.º/1/2, e na alínea c) do número 1 do artigo 69.º, todos do Código Penal.”
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que:
“a) Altere a redação dos pontos 14. e 23. da matéria de facto dada como provada e dê como não provados os factos constantes dos pontos 24. E 25.;
b) Em consequência da alteração da fundamentação de facto – designadamente quanto aos concretos pontos da matéria de facto dada como provada acima identificados – e por não se mostrarem
preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo, que absolva o Arguido, aqui Recorrente, da prática do crime de coação e resistência sobre funcionário, p. e p. pelo número 1 do artigo 347.º do Código
Penal;
c) Fixe um quantitativo diário da pena de multa adequado e proporcional, de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos), considerando as concretas circunstâncias do caso, a situação económica e financeira do Arguido, aqui Recorrente, e, bem assim, os seus encargos pessoais e familiares;
d) Altere a pena acessória de proibição de o Arguido, aqui Recorrente, conduzir veículos a motor, aplicando-lhe a mesma pelo período de 3,5 (três meses e meio) meses (…)”
*
O recurso foi admitido.
Na 1.ª instância, o Ministério Público respondeu ao recurso, tendo pugnado pela sua improcedência e pela consequente manutenção da decisão recorrida, face à inexistência de erro de julgamento quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito, tendo apresentado as seguintes conclusões.
“- não merece reparo nem demonstra erro de julgamento terem sido dados como provados os factos vertidos na factualidade assente constante da douta sentença recorrida, pois que os mesmos reflectem a produção de prova feita em audiência, bem como, uma análise crítica e conjugada de todos meios de prova.
- a actuação do recorrente, que desferiu cotoveladas e murros com que atingiu um dos militares da GNR, integra o conceito penal de violência, com idoneidade bastante para obstar a que aqueles praticassem acto relativo às funções que exercem e que pretendiam exercer. E tanto basta para que se mostrem preenchidos os elementos do tipo de crime de resistência e coacção sobre funcionário previsto e punido pelo art. 347° n°1 do CP.
- atendendo à concreta situação económica do recorrente e dada como provada, o quantitativo diário de € 7,00 (praticamente no limite mínimo) mostra-se adequado, não merecendo censura.
- a pena acessória de proibição de conduzir por 5 meses aplicada ao recorrente, respeita os limites fixados na lei e está conforme aos factos, às circunstâncias que rodearam a sua prática, à culpa do arguido e às exigências de prevenção, nos termos do art. 71º do CP, revelando-se necessária, adequada e proporcional.
- deve ser negado provimento ao recurso e manter-se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos.”
*
A Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da improcedência do recurso.
*
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, tendo sido apresentada resposta que reiterou os fundamentos do recurso.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
***
II – Fundamentação.
II.I Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.
No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber:
A) - Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, por errada valoração da prova produzida em audiência, em desrespeito pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127º do CPP.

B) - Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de direito:
a) Por errada qualificação jurídica dos factos, ou seja, em virtude de os factos provados não integrarem os elementos objetivos e subjetivos do crime de resistência e coação sobre funcionário pelo qual o arguido foi condenado.
b) ) Por errada aplicação dos princípios e regras legalmente previstos para a determinação das medidas das penas.
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II.II - A decisão recorrida.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença que, deu por provados e não provados os seguintes factos:
Factos provados
Discutida a causa, encontram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
1. No dia 01.05.2021, cerca das 17:30 horas, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca MERCEDES, modelo E220, com a matrícula (...), na Rua General Humberto Delgado, Gravulha, Águas Belas, Ferreira do Zêzere).
2. Sendo que, nestas circunstâncias, foi dada ordem de paragem ao arguido, pelos militares (…), da Guarda Nacional Republicana (GNR), para fiscalização.
3. Assim, no âmbito da mencionada fiscalização, os militares da GNR solicitaram ao arguido que se submetesse ao teste qualitativo de despistagem de álcool no sangue pelo ar expirado.
4. Nesta ocasião, o arguido dificultou a realização do mencionado teste, várias vezes, uma vez que o arguido inspirava, em vez de expirar e, quando expirava, parava o sopro a meio, impedindo a realização do teste.
5. Nesta sequência, os militares da GNR informaram o arguido sobre as consequências legais de o arguido, de forma consciente, voluntária e deliberada, não realizar o teste de forma correta.
6. Assim, o arguido acabou por realizar o teste qualitativo de despistagem de álcool no sangue pelo ar expirado, revelando uma taxa de álcool no sangue de 1,14 gramas por litro.
7. Nestes termos, o arguido foi informado, pelos militares, que teria de os acompanhar até ao Posto Territorial da GNR de Ferreira do Zêzere, para realizar o teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue pelo ar expirado.
8. Contudo, de imediato, o arguido afirmou aos militares (...) e (...) «que não se iria deslocar até ao posto da GNR» e «que não iria realizar o teste».
9. Mais dizendo, aos militares da GNR (...) e (...) «já me vão foder outra vez, não vou fazer teste nenhum, quero que vocês se fodam, guardas do caralho».
10. E, ato continuo, o arguido foi para o interior do seu veículo automóvel, chegou a porta, abrindo-a, em seguida e de forma brusca, quase embatendo com a porta num dos militares da GNR.
11. Assim, na sequência do comportamento do arguido e em face da recusa de se submeter ao teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue pelo ar expirado, foi-lhe dada voz de detenção, pelos militares da GNR.
12. Nesta sequência e de imediato, o arguido disse aos dois militares: «que não podia ser detido, por ter uma prótese na perna».
13. Ato contínuo, o arguido deitou-se no chão, em decúbito dorsal, dificultando a sua detenção pelos militares da GNR.
14. Em seguida, quando os militares o tentavam deter, o arguido desferiu várias cotoveladas e murros nos militares.
15. Atingindo nomeadamente o militar (...), no nariz, causando-lhe dores e rubor na região da ponte nasal.
16. E empurrando ainda o militar (...), causando-lhe dores e uma distensão no ombro direito.
17. Ainda nestas circunstâncias, o arguido dirigiu-se aos militares (...) e (...) e disse-lhes: «vou-vos fazer a vida negra, nunca mais se vão esquecer de mim, seus merdas», «vou fazer queixa ao comando geral que vocês não valem nada», «vai cair uma queixa diária sobre vocês, seus cornos», «vais saber o que custa a vida, cabrão».
18. Ainda nestas circunstâncias, como o arguido manifestou que tinha dores no corpo, foi conduzido ao Hospital de Tomar, por uma ambulância dos Bombeiros Voluntários de Ferreira do Zêzere.
19. Já no Hospital de Tomar, o arguido voltou a dirigir-se aos militares (...) e (...) e a dizer-lhes: «seus cornos de merda», «não se vão esquecer de mim», «eu vou atrás de vocês», «amanhã falamos».
20. Na sequência dos comportamentos do arguido, os militares da GNR (...) e (...) tiveram de ser assistidos no Hospital de Tomar.
21. O arguido, ao recusar-se a efetuar o teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue pelo ar expirado, agiu com o propósito concretizado de se eximir à ação da justiça, não obstante ter consciência que incorria na prática de um crime de desobediência.
22. O arguido estava ciente da qualidade de autoridade pública dos militares da GNR, (...) e (...), que se encontravam ao serviço e devidamente fardados.
23. O arguido atuou da forma que se deixou descrita (proferindo as supra mencionadas expressões e desferindo pancadas, cotoveladas, murros e empurrões nos militares (...) e (...)) com o propósito de se eximir ao cumprimento dos comandos que aqueles militares lhe pretendiam impor, concretamente de ser detido e conduzido ao Posto da GNR, nomeadamente para elaboração do expediente, na sequência da recusa do arguido em se submeter ao teste de pesquisa de álcool no sangue.
24. O arguido bem sabia que, ao atuar da forma descrita, colocava em causa a autoridade subjacente aos militares, não se tendo, mesmo assim, abstido de a concretizar.
25. Ao atuar da forma que se deixou descrita, desferindo pancadas, cotoveladas, murros e empurrões nos militares (...) e (...), o arguido agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo e saúde daqueles e de lhe provocar as dores e lesões verificadas, sabendo que os mesmos eram militares da GNR e que se encontravam a exercer as suas funções.
26. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, ciente da qualidade de agentes da autoridade pública daqueles militares da GNR, (...) e (...), que se encontravam em serviço e devidamente fardados, com o propósito concretizado de utilizar as suprarreferidas expressões, bem sabendo que as mesmas eram idóneas a ofender a honra, a dignidade e consideração dos suprarreferidos agentes de autoridade, quer pessoal, quer enquanto membros da GNR, o que representou.
27. O arguido atuou sempre de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei criminal, não se tendo, mesmo assim, abstido de as concretizar.
Mais se provou que:
28. O arguido era motorista rodoviário e está reformado, auferindo pensão no valor de 460€ mensais.
29. Aufere, também, rendimentos incertos negociando em sucata.
30. Vive com a esposa, em casa própria, sendo aquela auxiliar e auferindo cerca de 630€ mensais.
31. Tem uma filha maior, que se encontra a estudar, e está a seu cargo.
32. O arguido não tem antecedentes criminais.
Factos não provados
Nada mais se provou, com interesse para aferir da responsabilidade criminal do arguido, designadamente que:
I. Nas circunstâncias descritas em 15, o arguido atingiu o militar (...) com um murro.”
***
II.III - Apreciação do mérito do recurso.
A) Do invocado erro na apreciação da prova.
Sabendo-se que os recursos são soluções de natureza jurídico processual, que se encontram vocacionados para verificar a existência e, sendo caso disso, para corrigir erros de julgamento – quer os que resultam da violação de normas direito processual, quer os emergentes da não aplicação ou da aplicação incorreta de normas de direito substantivo – importa ter presente que no caso dos recursos sobre a matéria de facto, «o tribunal ad quem não julga de novo (…)como se inexistisse uma decisão de primeira instância. E a sindicância dessa decisão (…) não inclui ainda a compressão da margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar (…).»[1]
No presente recurso encontra-se impugnada a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, invocando-se, assim, a existência de um erro de julgamento.
Os poderes de cognição dos Tribunais da Relação encontram-se expressamente consignados no artigo 428.º do CPP, dispondo o mesmo que “As Relações conhecem de facto e de direito”.
Importa ter presente que a impugnação da matéria de facto em sentido amplo, ou a invocação de um erro de julgamento – com observância dos ónus impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 acima transcritos – não se confunde com a invocação dos vícios consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP, que denominamos de impugnação restrita. Na impugnação restrita, diferentemente do que sucede na impugnação da matéria de facto em sentido amplo, os vícios da decisão, consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP e invocados no recuso, deverão resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Conforme decorre do disposto no artigo 412.º, nº 3.º do CPP, o erro de julgamento, ocorre quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova bastante, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
A este propósito, preceitua o art.º 412.º do CPP, com referência à motivação e às conclusões do recurso:
“(…) 3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a ) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b ) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c ) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas , as especificações previstas nas alíneas b ) e c ) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 364.º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Na situação dos autos, encontramo-nos perante uma impugnação ampla da matéria de facto, realizada com respeito pelo disposto no artigo 412.º do CPP. Relativamente à satisfação de tais requisitos, escreve Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação à referida norma, no Comentário do Código de Processo Penal “[a] especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (…)” ; “[a] especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (…) [m]ais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento”. “(…) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação.”[2]
Verificamos assim que para a arguição de um erro de julgamento não é suficiente a invocação de mera divergência de entendimento do recorrente relativamente à convicção formada pelo julgador, uma vez que é a este que a lei atribui o poder de apreciar livremente as provas, o que deverá fazer de acordo com o disposto no artigo 127.º CPP, ou seja, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, mas segundo parâmetros racionais controláveis.
Assim, sempre que seja impugnada a matéria de facto, por se entender que determinado aspeto da mesma foi incorretamente julgado, o recorrente deverá indicar expressamente: tal aspeto; a prova em que apoia o seu entendimento; e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida. Tais indicações constarão, pois, da motivação do recurso, que deverá ser elaborada de forma a permitir apontar ao Tribunal ad quem o que, na perspetiva do recorrente, foi mal julgado, oferecendo uma proposta de correção que possa ser avaliada pelo tribunal de recurso.[3]
E foi isso que o recorrente fez nos presentes autos, tendo assinalado os factos que, em concreto, considera erradamente julgados e tendo apresentado as provas em que sustenta o seu entendimento, quer transcrevendo parte dos depoimentos que entendeu relevantes, quer indicando as passagens da gravação que registam tais depoimentos.
***
Previamente à incursão que se impõe realizar sobre as provas concretas produzidas nos autos e que sustentaram a decisão recorrida, importa fazer uma breve referência ao princípio da livre apreciação da prova, que encontra consagração legal no artigo 127.º CPP.
Assim, caberá reter que, segundo tal princípio processual penal, «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente». Tal liberdade de apreciação da prova assenta em pressupostos valorativos e obedece aos critérios da razão, da lógica, da experiência comum e dos conhecimentos científicos disponíveis, tendo por referência a pessoa média suposta pela ordem jurídica, pelo que, de forma alguma, poderá confundir-se com arbítrio.
Encontra-se a referenciada liberdade orientada para a objetividade, com vista a lograr obter a verdade validamente adquirida. A formação da convicção do julgador só será válida se for fundamentada e, desse modo, se tiver a capacidade de se impor aos seus destinatários através da demonstração do processo intelectual e lógico seguido para a afirmação da verdade dos factos, para além de dúvida razoável.
Como assinala Figueiredo Dias[4], a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade meramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova), e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objetivável e motivável, capaz de se impor aos outros.
Deste modo, importa reter que o princípio da livre apreciação da prova consignado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, não representa a possibilidade de uma apreciação puramente subjetiva, arbitrária, baseada em meras impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, antes pressupõe uma cuidada valoração objetiva e crítica e, em boa medida, objetivamente motivável, de harmonia com as regras da lógica, da razão, da experiência e do conhecimento científico.
*
O arguido, que nos presentes autos assume a qualidade de recorrente, afirma não ter sido produzida prova bastante demonstrativa da autoria dos factos atinentes ao crime de resistência e coação sobre funcionário pelo qual foi condenado. Pretendendo impugnar a matéria de facto considerada provada pelo tribunal a quo, o recorrente observou as exigências legais necessárias à impugnação da matéria de facto constantes do artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do CPP acima explicitadas, pois que:
- Indicou os pontos concretos da sua discordância, concretamente os factos constantes dos pontos 14., 23., 24. e 25. dos factos provados.
- Especificou os pontos do suporte informático em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados de que se socorreu, passagens que transcreveu na sua motivação de recurso.
- E explica as razões pelas quais, no seu entendimento, tal prova levaria a decisão diversa da recorrida.
Realizemos então a análise crítica das provas sobre as quais o recurso assentou o invocado erro de julgamento.
Importa em primeiro lugar atentar na forma como o tribunal a quo justificou a sua decisão quanto à parte que se impugna: “Motivação
Na audiência de julgamento, debateram-se duas versões contraditórias dos factos: a apresentada pelos militares da GNR, coincidente com a acusação, e a do arguido, negando os factos e afirmando tratar-se de detenção sem motivo e com agressões gratuitas por parte dos militares da GNR.
Ora, concatenando a prova produzida entendemos dar credibilidade ao depoimento prestado pelos militares da GNR (…), por lógico, coerente, unânime, pormenorizado, sem hesitações, não sendo crível que se procedesse a uma detenção sem motivo, quando os militares não tinham qualquer conflito com o arguido, pessoa que até sabiam que tinha uma prótese na perna e que, por esse motivo, teria, à partida, mais dificuldade em defender-se.
Os referidos militares descreveram as circunstâncias em que abordaram o arguido, explicaram ao Tribunal os motivos da realização da referida fiscalização, os procedimentos adotados na sua execução, bem como as comunicações que ao arguido transmitiram e a reação do mesmo perante estas, nomeadamente as expressões proferidas e os gestos efetuados. Como se disse, estas testemunhas depuseram de forma unânime, objetiva e consistente, merecendo a credibilidade do Tribunal, já que não conhecem o arguido, nem nada têm contra ele.
Tal credibilidade foi reforçada pelo facto de as lesões apresentadas pelo arguido, constantes dos documentos que apresentou em sede de audiência de julgamento (e confirmadas pela testemunha (…), mulher do arguido), serem compatíveis com a versão apresentada pelos militares, designadamente nos pontos descritos em 13 a 16 dos factos provados.
O arguido, por seu turno, apresentou uma versão “saltando” etapas, sem conseguir explicar a sequência lógica dos factos, omitindo explicação para determinados comportamentos, reforçando insistentemente que os militares o agrediram sem motivo e que só pararam quando perceberam que este tinha uma prótese na perna (sendo que, quanto a esta última parte, os militares explicaram o motivo pelo qual já sabiam que o arguido tinha a prótese).
Acresce que a falta de credibilidade das declarações do arguido decorre ainda do facto de ter omitido o rendimento que aufere do negócio da sucata, quando inquirido sobre as condições económicas, acabando por admiti-lo quando confrontado com tal facto, que era do conhecimento funcional do Tribunal. Acresce, ainda, a postura manifestada pelo arguido em sede de audiência de julgamento, agressiva, impulsiva e até provocatória, em tudo compatível com a descrição dos factos constantes da acusação
Ora, assim, não foram as declarações do arguido suficientemente idóneas para abalar o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas, que foram, efetivamente, coerentes e credíveis, não levantando ao Tribunal qualquer dúvida sobre a veracidade dos seus depoimentos, pelo que aquelas foram desconsideradas pelo Tribunal.
Quanto aos factos que integram o elemento subjetivo, porquanto insuscetíveis de prova direta, decorrem dos factos objetivos provados, o que, considerando as regras da
experiência comum e através de presunções naturais, permite de forma segura inferir tais conclusões.
No que concerne à situação pessoal e sócio-económica do arguido, ponderaram-se as suas declarações e no que diz respeito aos antecedentes criminais, teve-se em atenção o certificado de registo criminal junto aos autos.”
Analisada a prova produzida nos autos, constatamos que a motivação transcrita, no que diz respeito ao que foi relatado em audiência por cada um dos intervenientes, arguido e testemunhas, está alinhada com o que foi efetivamente dito por cada um deles.
Nas suas declarações o arguido apesar de ter assumido o contexto que o coloca no momento e no local dos factos, a ser fiscalizado por agentes de autoridade, concretamente pelos militares da G.N.R., (…), confirmou apenas que na interação com os militares surgiram problemas, mas negou todos os comportamentos que lhe vinham imputados na acusação.
Por seu turno, os militares descreveram o sucedido, nos termos que vieram a ser julgados provados, tendo precisado os vários momentos circunstanciais relevantes que ocorreram durante a fiscalização ao arguido.
Os dados objetivos constantes do auto de notícia, junto aos autos com a referência citius 7662826, dão consistência ao que foi narrado pelas referidas testemunhas, não sobrando dúvida, também por esta via, quanto à veracidade dos factos tidos por provados.
No que concernente às lesões produzidas pelo arguido no corpo dos militares (...) – lesão no nariz – e (...) – distensão no ombro direito – lesões que se encontram consignadas no relatório médico junto com o auto de notícia, foram as mesmas confirmadas pelos próprios, tendo ambos descrito, de forma consentânea, pormenorizada e credível, as circunstâncias e a forma como se consumaram tais agressões.
A discordância do arguido relativamente à sentença impugnada reporta-se à decisão de considerar como provados os seguintes factos:
“14. Em seguida, quando os militares o tentavam deter, o arguido desferiu várias cotoveladas e murros nos militares.
(…)
23. O arguido atuou da forma que se deixou descrita (proferindo as supra mencionadas expressões e desferindo pancadas, cotoveladas, murros e empurrões nos militares (...) e (...)) com o propósito de se eximir ao cumprimento dos comandos que aqueles militares lhe pretendiam impor, concretamente de ser detido e conduzido ao Posto da GNR, nomeadamente para elaboração do expediente, na sequência da recusa do arguido em se submeter ao teste de pesquisa de álcool no sangue.
24. O arguido bem sabia que, ao atuar da forma descrita, colocava em causa a autoridade subjacente aos militares, não se tendo, mesmo assim, abstido de a concretizar.
25. Ao atuar da forma que se deixou descrita, desferindo pancadas, cotoveladas, murros e empurrões nos militares (...) e (...), o arguido agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo e saúde daqueles e de lhe provocar as dores e lesões verificadas, sabendo que os mesmos eram militares da GNR e que se encontravam a exercer as suas funções.”
Vejamos se lhe assiste razão.
*
Escrutinada toda a prova produzida nos autos, designadamente ouvidas as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas produzidos em audiência, não procede, a nosso ver, a argumentação trazida aos autos pelo arguido no sentido de que o mesmo, visando obstar à detenção, concretamente à algemagem, apenas “esbracejou reagindo à força empregue na detenção e desferiu murros, sem atingir qualquer dos militares da GNR.”.
Efetivamente, dos depoimentos de ambos os militares, perfeitamente articulados, coerentes e consentâneos, resulta claro que o arguido, apesar de ter sido informado pelos militares, que se encontravam devidamente uniformizados e no exercício de funções, dos motivos pelos quais iria ser detido e conduzido ao posto – uma vez que o teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue pelo ar método de ar expirado havia tido resultado positivo – ainda assim não se inibiu de os insultar e de os agredir, tendo-os atingido nos seus corpos, com murros e cotoveladas, o que lhes causou lesões. De forma alguma poderemos aceitar que, tal como defende o arguido, no facto 14. apenas devesse ter-se por provado que o arguido esbracejou, não tendo atingido os militares, sendo certo que dos próprios relatórios médicos juntos com o auto de notícia resulta que o militar (...) apresentava “rubor na região da ponte nasal, sem outras alterações, sem aparente lesões nas fossas nasais” e o militar (...) sofreu uma “distensão ao nível do ombro direito, com crepitações à movimentação da articulação, sobretudo à abdução”, lesões que, analisado todo o circunstancialismo que envolveu a detenção e a resistência à mesma oferecida pelo arguido, só poderá ter resultado das condutas deste último, concretamente dos murros e cotoveladas que o mesmo levou a cabo e que atingiram os militares. Deve, pois, manter-se a redação do facto 14. constante da sentença.
O mesmo se dirá dos factos constantes dos pontos 23., 24., e 25., pois que o conjunto da prova produzida não deixa margem para qualquer dúvida relativamente aos factos de o arguido ter atuado com o propósito de se eximir ao cumprimento dos comandos que os militares lhe pretendiam impor (facto 23.), de ter atuado sabendo que colocava em causa a autoridade dos militares (24.) e de ter agido com o propósito de molestar o corpo e saúde daqueles (facto 25).
É certo que, nas declarações que prestou, o arguido não assumiu a intencionalidade de se eximir ao cumprimento dos comandos que lhe foram impostos, de pôr em causa a autoridade dos militares ou de os agredir. Porém, consabidamente, a convicção probatória não se sustenta apenas na prova direta, sendo que, relativamente aos elementos subjetivos do tipo e à culpa, a prova direta apenas poderia resultar de confissão. Outras formas, igualmente válidas, existem e deverão ser tidas em consideração no processo de convencimento do julgador, tais como a valoração da prova indireta.
A prova por presunção é legítima, realizando-se por ilação que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigos 349.º e 351.º do Código Civil). Assim tem sido reconhecido por várias instâncias superiores, designadamente pelo Tribunal Constitucional e pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
Ora, nas circunstâncias do caso em apreciação, a prova indireta foi efetivamente tida em consideração pelo Tribunal “a quo” para formar convicção no sentido da prova dos factos de caráter subjetivo tidos como provados, o que expressamente resulta do seguinte trecho da motivação da convicção probatória acima transcrita: “Quanto aos factos que integram o elemento subjetivo, porquanto insuscetíveis de prova direta, decorrem dos factos objetivos provados, o que, considerando as regras da experiência comum e através de presunções naturais, permite de forma segura inferir tais conclusões.”
Efetivamente, na situação dos autos, tal prova indireta ou por presunção, terá por exclusiva referência os factos internos, relativos à liberdade de atuação, intenção e consciência da ilicitude por banda do arguido. Ora, com exceção da confissão, não existe outro modo de se realizar esta prova que não seja o de a escorar nos factos objetivos assentes e deles inferir, por presunção, os factos desconhecidos, para tanto se servindo o julgador das regras da experiência comum, dando aplicação ao princípio da livre apreciação da prova a que acima nos reportámos e que encontra previsão legal no artigo 127.º CPP. Pressuposto disso é que se tenham por seguros os factos que permitem legitimamente fazer as inferências, o que “in casu” manifestamente sucede.
Vertendo ao caso concreto, constatamos que o arguido, aquando do procedimento de algemagem, levado acabo pelos militares, atuou da seguinte forma: “13. Ato contínuo, o arguido deitou-se no chão, em decúbito dorsal, dificultando a sua detenção pelos militares da GNR.
14. Em seguida, quando os militares o tentavam deter, o arguido desferiu várias cotoveladas e murros nos militares.
15. Atingindo nomeadamente o militar (...), no nariz, causando-lhe dores e rubor na região da ponte nasal.
16. E empurrando ainda o militar (...), causando-lhe dores e uma distensão no ombro direito.”
Para efeitos de valoração da prova indireta, importa colocar o homem médio suposto pela ordem jurídica na posição do arguido para que possamos inferir – partindo da sua conduta objetiva, que se traduziu em desferir várias cotoveladas, murros e empurrões nos militares, adequados a causarem-lhes as consequentes lesões consignadas nos factos provados, e levando em conta os conhecimentos que possuía – que o mesmo sabia que com a sua conduta iria magoar e ofender o corpo dos militares e obstaculizar à sua detenção, o que quis, tendo decidido livremente agir da forma descrita.
Ademais, parece-nos evidente que o referido homem médio suposto pela ordem jurídica sabe que se lhe encontra vedada pela lei penal a possibilidade de desferir cotoveladas, murros e empurrões em militares devidamente uniformizados, no exercício das suas funções, de forma a causar-lhes lesões, com a intenção de evitar que aqueles cumpram as funções que lhes estão adstritas.
No que diz respeito ao crime cuja prática vem posto em causa pelo arguido no recurso, o excerto dos factos provados acima transcrito – factos 13. a 16. – dá-nos a visão global da conduta do arguido, claramente reveladora de desprezo censurável pelos valores da ordem e da autoridade que regem a vida em sociedade.
Realçamos que a conduta que agora se aprecia, que se consubstanciou em desferir várias cotoveladas, murros e empurrões nos militares, adequados a causarem-lhes lesões e a obstaculizarem a algemagem e a detenção, se encontra enquadrada num comportamento globalmente agressivo e ofensivo, comportamento que, aliás, justificou a algemagem.
Tendo presente a atitude global retratada e a forma de atuação do arguido, que se revelou adequada à produção de lesões no corpo dos militares e à não concretização da algemagem no momento, entendemos encontrar-se demonstrado nos autos que o arguido agiu nos termos consignados nos pontos 23., 24. e 25. dos factos provados, ou seja, que:
“23. O arguido atuou da forma que se deixou descrita (proferindo as supra mencionadas expressões e desferindo pancadas, cotoveladas, murros e empurrões nos militares (...) e (...)) com o propósito de se eximir ao cumprimento dos comandos que aqueles militares lhe pretendiam impor, concretamente de ser detido e conduzido ao Posto da GNR, nomeadamente para elaboração do expediente, na sequência da recusa do arguido em se submeter ao teste de pesquisa de álcool no sangue.
24. O arguido bem sabia que, ao atuar da forma descrita, colocava em causa a autoridade subjacente aos militares, não se tendo, mesmo assim, abstido de a concretizar.
25. Ao atuar da forma que se deixou descrita, desferindo pancadas, cotoveladas, murros e empurrões nos militares (...) e (...), o arguido agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo e saúde daqueles e de lhe provocar as dores e lesões verificadas, sabendo que os mesmos eram militares da GNR e que se encontravam a exercer as suas funções.”, nada havendo a alterar quanto à redação de tais factos.
Bem andou, assim, o tribunal “a quo” em decidir como decidiu, inexistindo o invocado erro na apreciação da prova.
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***
D) Do erro de julgamento da matéria de direito.
a) Quanto à qualificação jurídica dos factos, em virtude de os factos provados não integrarem os elementos objetivos e subjetivos do crime de resistência e coação sobre funcionário pelo qual o arguido foi condenado.
Propugna o recorrente que a factualidade provada não permite concluir pela prática do crime de resistência e coação sobre funcionário pelo qual foi condenado, em virtude de não se ter sido demonstrada “a utilização, por parte do arguido, de violência e ameaça grave, com vista a impedir que os militares da GNR exercessem as suas funções, no caso, levassem a cabo a detenção, sabendo que os mesmos atuavam no exercício dessas mesmas funções”.
Analisemos se lhe assiste razão.
O crime de crime de resistência e coação sobre funcionário encontra-se previsto e punido no artigo 347º do CP, que dispõe:
“Artigo 347º
Resistência e coação sobre funcionário
1 - Quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique ato relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique ato relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, é punido com pena de prisão até cinco anos.
(…)”.
O bem jurídico protegido pelo tipo legal em análise não tem natureza eminentemente pessoal, assentando antes o seu escopo na autonomia funcional do Estado. Assim, o crime é único, ainda que sejam vários os funcionários visados com a coação.[5]
Trata-se de um crime de perigo, já que o preenchimento do tipo não depende da efetiva ocorrência de lesão e de um crime de execução vinculada, uma vez que não pode ser realizado por mais nenhum meio a não ser através do emprego de violência ou de ameaça.
Constitui, assim, elemento essencial do tipo a utilização de ameaça grave ou de ofensa à integridade física contra membro das forças de segurança para se opor a que o mesmo pratique ato relativo ao exercício das suas funções. A ameaça tem, pois, que ser preordenada como forma de oposição ao exercício das funções por parte do agente da autoridade. E tem que ser idónea, em termos de causalidade adequada, a obter o resultado pretendido pelo agente.
No entanto, conforme refere Cristina Líbano Monteiro[6], “diferentemente do que sucede no crime de coação do artigo 154º do C. Penal, não se torna necessário que à adequação do meio, se siga um comportamento coagido. Tanto a resistência eficaz como a resistência ineficaz estão compreendidas na ofensa típica. Trata-se de um crime material, uma vez que deve exigir-se, para a consumação, um resultado intermédio: que a ação violenta ou ameaçadora tenha atingido, de facto o seu destinatário (…)”. Continuando a citar a Professora Cristina Líbano Monteiro, diremos ainda que “da parte do agente, o tipo legal exige sempre uma atuação constrangedora; mas essa atuação pode pretender levar o sujeito passivo a agir ou deixar de agir. A agir quando não o devia fazer ou a deixar de agir quando o seu dever era atuar”.[7],
Verifica-se a ameaça grave sempre que a ação afete a segurança e a tranquilidade da pessoa a quem se dirige e seja suficientemente séria para produzir o resultado pretendido. Por outro lado, a violência a que se alude no corpo do artigo 347º nº 1 do CP não tem que consistir numa agressão física, bastando a simples hostilidade idónea a coagir, impedir ou dificultar a atuação legítima do funcionário.
Ao nível do tipo subjetivo, este tipo legal exige, para o seu preenchimento, o dolo, em qualquer das suas modalidades, previstas no artigo 14º do CP.
Levando em conta as precedentes considerações sobre o crime em análise e atentando na factualidade imputada ao arguido que resultou provada nos autos – designadamente os factos constantes dos pontos 7. a 27. dos factos provados – nenhuma dúvida pode restar de que o caso que ora nos ocupa se lhe subsume inteiramente, já que, com a sua conduta, o arguido tentou, através do emprego de violência e de ameaça grave, opor-se a que os militares que o fiscalizavam, face à anterior recusa do mesmo em realizar o teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, o algemassem para, subsequentemente, o transportarem ao posto da GNR.
De facto, com o propósito de obstar à concretização da algemagem, o arguido não só desferiu várias cotoveladas e murros nos militares, como ainda os ameaçou com a apresentação e queixas diárias ao Comando Geral da GNR.
Ora no que diz respeito à violência física utilizada pelo arguido – empurrões, murros e cotoveladas – entendemos que a mesma se subsume ao tipo legal em análise, pois que tais agressões físicas, a nosso ver, revelam-se, em si mesmas, adequadas a impedir ou dificultar a atuação legítima dos militares. Não partilhamos do entendimento exposto no recurso no sentido de que o arguido “não empregou violência ou ameaça grave na sua conduta (…) reagiu à força empregue pelos militares nas manobras de detenção, esbracejou (e, com isso, desferiu murros, cotoveladas e empurrões), atingindo acidentalmente os militares da GNR (…)”. Resulta claramente da factualidade provada que o arguido, para além de ter esbracejado, aquando da sua detenção, deliberadamente desferiu várias cotoveladas e murros nos militares.
Pese embora não ignoremos a jurisprudência citada pelo recorrente – designadamente os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 20.12.2018, relatado pela Desembargadora Ana Barata Brito e de 20.03.2018, relatado pelo Desembargador António João Latas o acórdão da Relação do Porto de 17.04.2013, relatado pelo Desembargador Melo Lima, todos disponíveis em www.dgsi.pt. – entendemos, porém, que a situação apreciada nos presentes autos assume contornos diferentes das que em tais arestos foram tratadas, desde logo, porquanto, em tais situações, e ao contrário do que sucede no caso dos autos, os comportamentos dos arguidos se consubstanciaram apenas em “esbracejar”, “empurrar” e “afastar-se” dos agentes de autoridade, não tendo assumido a gravidade inerente a cotoveladas e murros, que, aliás, vieram a causar lesões aos militares que tentavam proceder à detenção do arguido.
Do mesmo modo, no que tange às ameaças utilizadas pelo arguido com vista a impedir a sua detenção, as mesmas integram o conceito de “ameaça grave” contido no tipo penal de resistência e coação sobre funcionário, pois que, tal como se refere na sentença recorrida, expondo o entendimento doutrinal e jurisprudencial que subscrevemos, “(…) tem decidido a jurisprudência e entendido a doutrina que a ameaça de procedimento criminal ou disciplinar com intuito de prejudicar o visado, constitui sempre ameaça grave, independentemente do fundamento da queixa (ou falta dele) – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14.06.2006, Proc. 1742/06, www.dgsi.pt.
De facto, como se diz no Comentário Conimbricense do Código Penal (tomo I, p. 357, §18) - em anotação ao crime de coação - 154.º (aplicável ao crime de resistência e coação (Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo III, p. 342 §12) - “deverá referir-se que a ameaça de procedimento jurídico e, especialmente, de queixa ou denúncia criminal constituiu sempre uma ameaça como mal importante (e por isso, também, ameaça grave) quer aquele ou estas sejam sem si fundados ou infundados ou seja, e mais corretamente, de boa ou de má fé”.
Não podemos, assim, entender que o comportamento do arguido sindicado no presente recurso não seja dotado de idoneidade suficiente para inviabilizar os atos funcionais dos militares, ou que integre “níveis de oposição e constrangimento que sejam normalmente de esperar no exercício das suas funções[8] e muito menos que consubstancie “manifestações moderadas de resistência e hostilidade”[9].
Ao contrário, parece-nos evidente que agredir com cotoveladas e murros agentes de autoridade que se encontram a desenvolver legitimamente as funções que lhes estão atribuídas e, simultaneamente, ameaçá-los que a apresentação de queixas diárias à sua hierarquia, com o propósito deliberado de impedir a concretização dos atos funcionais dos militares, é grave, de forma alguma poderá ser enquadrado na reação normal e expectável de qualquer indivíduo à sua detenção e demanda tutela penal ao nível do crime resistência e coação sobre funcionário, p. e p. no artigo 347º do CP, pois que é em tal tipo penal, e não noutro, que se protege o bem jurídico claramente afetado com os referidos comportamentos: a autonomia funcional do Estado.[10]
Deste modo, verificado o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal em causa e inexistindo, no caso em apreço, quaisquer circunstâncias que excluam a ilicitude ou a culpa, somos, pois, a concluir ter-se o arguido constituído como autor material de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido no artigo 347º do CP.

c) Do erro quanto aos princípios e regras legalmente previstos para a determinação das medidas das penas.
Será importante recordar os princípios basilares e orientadores da matéria que temos em análise.
Assim, estabelece o artigo 40º do CP que a finalidade das penas é a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena exceder a medida da culpa do infrator.
A medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, determina-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, com respeito pelos critérios definidos pelo artigo 71.º do CP.
Tendo como balizas a culpa – que constitui o limite máximo – e a prevenção geral – que coincide com o limite mínimo – a medida concreta da pena determinar-se-á de acordo com as necessidades de prevenção especial.
Realizado o enquadramento normativo, analisemos então as circunstâncias do caso em apreço.
O recorrente não questiona as penas principais fixadas pelo tribunal a quo – nem a pena de um ano de prisão aplicada pela prática do crime de resistência e coação sobre funcionário, substituída pela pena de 360 (trezentos e sessenta) dias de multa, nem as penas de 80 dias de multa aplicadas pela prática dos crimes de injúria agravada e de desobediência, nem tão pouco a pena única de 120 dias de multa aplicada no cúmulo jurídico realizado relativamente às penas de multa – o que põe em causa nesta sede, é a fixação do quantitativo diário da pena de multa em € 7,00 e, bem assim, a aplicação da pena acessória de inibição de conduzir de 5 meses, propugnado a redução do primeiro para €5,50 e da segunda para 3 meses e 15 dias.
Pensamos, porém, que, ao contrário do que sustenta o recorrente, quer o quantitativo diário da pena de multa, quer o período da pena acessória de inibição de conduzir, foram determinados pelo tribunal “a quo” com justificação bastante. Vejamos.
Atentemos na factualidade provada relevante e não questionada pelo arguido:
“(…) 3. Assim, no âmbito da mencionada fiscalização, os militares da GNR solicitaram ao arguido que se submetesse ao teste qualitativo de despistagem de álcool no sangue pelo ar expirado.
4. Nesta ocasião, o arguido dificultou a realização do mencionado teste, várias vezes, uma vez que o arguido inspirava, em vez de expirar e, quando expirava, parava o sopro a meio, impedindo a realização do teste.
5. Nesta sequência, os militares da GNR informaram o arguido sobre as consequências legais de o arguido, de forma consciente, voluntária e deliberada, não realizar o teste de forma correta.
6. Assim, o arguido acabou por realizar o teste qualitativo de despistagem de álcool no sangue pelo ar expirado, revelando uma taxa de álcool no sangue de 1,14 gramas por litro.
7. Nestes termos, o arguido foi informado, pelos militares, que teria de os acompanhar até ao Posto Territorial da GNR de Ferreira do Zêzere, para realizar o teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue pelo ar expirado.
8. Contudo, de imediato, o arguido afirmou aos militares (...) e (...) «que não se iria deslocar até ao posto da GNR» e «que não iria realizar o teste».
9. Mais dizendo, aos militares da GNR (...) e (...) «já me vão foder outra vez, não vou fazer teste nenhum, quero que vocês se fodam, guardas do caralho».
10. E, ato continuo, o arguido foi para o interior do seu veículo automóvel, chegou a porta, abrindo-a, em seguida e de forma brusca, quase embatendo com a porta num dos militares da GNR.
(…)
21. O arguido, ao recusar-se a efetuar o teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue pelo ar expirado, agiu com o propósito concretizado de se eximir à ação da justiça, não obstante ter consciência que incorria na prática de um crime de desobediência.
(…)
28. O arguido era motorista rodoviário e está reformado, auferindo pensão no valor de 460€ mensais.
29. Aufere, também, rendimentos incertos negociando em sucata.
30. Vive com a esposa, em casa própria, sendo aquela auxiliar e auferindo cerca de 630€ mensais.
31. Tem uma filha maior, que se encontra a estudar, e está a seu cargo.
32. O arguido não tem antecedentes criminais.”.
*
No que diz respeito ao quantitativo diário da pena de multa, preceitua o artigo 47º, nº 2 do CP que:
Artigo 47º
Pena de multa
“2 - Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre (euro) 5 e (euro) 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais”.”
Dando aplicação aos critérios fixados estritamente económicos fixados pela norma transcrita, afigura-se-nos adequado e equitativo o quantitativo diário estabelecido na sentença recorrida. De facto, auferindo o arguido uma pensão de reforma no valor de €460,00 mensais, a que acrescem rendimentos incertos provenientes do seu negócio com sucata, rendimentos que, para fazer face às despesas do seu agregado familiar, se juntam ao vencimento mensal da sua esposa no montante de €630,00, vivendo o casal em casa própria relativamente à qual não suportam quaisquer encargos, e tendo como despesas extraordinárias apenas as relativas aos encargos com os estudos de uma filha em Lisboa, o valor de € 7,00 diários como quantitativo das penas de multa revela-se, a nosso ver, absolutamente justo e equilibrado.
Discordamos totalmente da alegação do arguido na sua motivação de recurso, no sentido de que “O Tribunal a quo não considerou, como se lhe impunha, todos os elementos de que dispunha relativos à situação económica e financeira do Arguido, aqui Recorrente, e, sobretudo, os elementos relativos aos seus encargos pessoais. Com efeito, apesar de residir em casa própria com a esposa que trabalha (auferindo uma remuneração líquida de cerca de 630,00€) – sendo certo que a responsabilidade por factos ilícitos não se comunica à cônjuge do Arguido, pelo que os rendimentos auferidos pela mesma não podem ser tidos em consideração (…)”.
De facto, a propósito da determinação do quantitativo diário das penas de multa, o tribunal consignou na sentença “Considerando a situação económica do arguido dada como provada, designadamente que o mesmo está em situação de reforma e aufere pensão no valor de €460 mensais, tendo, ainda, rendimentos provenientes de negócio com sucatas e reside em casa própria com a mulher, que trabalha, julga-se adequado fixar o quantitativo diário em 7€ (sete euros).” Do excerto transcrito decorre inequivocamente ter o tribunal considerado todos os elementos factuais apurados relativamente à situação económica do arguido, sendo certo que o vencimento da sua mulher é, obviamente, um dos elementos a ter em conta, conquanto contribui para o rendimento global do agregado familiar que suporta as despesas comuns do casal e, consequentemente, para o rendimento disponível do condenado.
Assim, em nosso entender, a situação económica e financeira do arguido – decorrente da ponderação dos seus rendimentos e dos seus encargos pessoais e familiares, que resultam da factualidade provada – não se compadece com a fixação de um quantitativo diário praticamente equivalente ao seu limite mínimo conforme reclamado no recurso. Não poderá o recorrente olvidar as muitas outras situações que chegam aos tribunais em que os arguidos apresentam uma condição económica bastante mais deficitária do que a sua e em que, justificadamente, se opta pela aplicação de uma quantia diária inferior à que lhe foi aplicada, o que, seguramente, se não justifica no caso em apreço. Acresce que a quantia fixada na decisão recorrida, sendo embora superior à pretendida pelo arguido, continua a situar-se, ainda assim, muito próxima do limite mínimo de € 5,00 estabelecido pelo preceito acima transcrito e muitíssimo afastada sequer do ponto médio da moldura quantitativa aí prevista – entre € 5,00 e € 500,00.
Sopesadas todas as circunstâncias enunciadas, entendemos revelar-se adequada e proporcional à situação económica e financeira do arguido a fixação do quantitativo diário da pena de multa em € 7,00.
*
No que diz respeito à pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, a que se reporta o artigo 69.º, nº 1, al. a) do CP, o tribunal graduou-a em 5 meses, dentro de uma moldura legal de 3 meses a 3 anos.
Sobre a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, recorremos novamente aos ensinamentos do Professor Figueiredo Dias para concluirmos que a determinação da pena acessória obedece aos mesmos critérios que concorrem para determinar a pena principal, ou seja, aos critérios consignados no art.º 71.º do CP, cabendo à sanção de proibição de conduzir, no contexto da circulação rodoviária, uma função preventiva coadjuvante da pena principal:“(…)Se, como se acentuou, pressuposto material de aplicação desta pena deve ser que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso, à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa (...). Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano.”[11]
Assim, considerando que nos termos do disposto no art.º 69, n.º 1, alínea a) do CP, a pena acessória pode ser determinada por um período fixado entre três meses e três anos, no caso dos autos deve ter-se em conta como circunstância que depõe contra o arguido, o grau de ilicitude do facto, que não podemos deixar de considerar elevado, pois que o arguido apresentou uma atitude persistente de obstaculização e de recusa, tendo começado por dificultar a realização do teste através do sistema de ar expirado, ao que se seguiu a recusa expressa em realizar o teste quantitativo, tendo revelado sempre uma postura agressiva e desafiadora, conforme resulta ostensivamente da seguinte factualidade:
“3. Assim, no âmbito da mencionada fiscalização, os militares da GNR solicitaram ao arguido que se submetesse ao teste qualitativo de despistagem de álcool no sangue pelo ar expirado.
4. Nesta ocasião, o arguido dificultou a realização do mencionado teste, várias vezes, uma vez que o arguido inspirava, em vez de expirar e, quando expirava, parava o sopro a meio, impedindo a realização do teste.
5. Nesta sequência, os militares da GNR informaram o arguido sobre as consequências legais de o arguido, de forma consciente, voluntária e deliberada, não realizar o teste de forma correta.
6. Assim, o arguido acabou por realizar o teste qualitativo de despistagem de álcool no sangue pelo ar expirado, revelando uma taxa de álcool no sangue de 1,14 gramas por litro.
7. Nestes termos, o arguido foi informado, pelos militares, que teria de os acompanhar até ao Posto Territorial da GNR de Ferreira do Zêzere, para realizar o teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue pelo ar expirado.
8. Contudo, de imediato, o arguido afirmou aos militares (...) e (...) «que não se iria deslocar até ao posto da GNR» e «que não iria realizar o teste».
9. Mais dizendo, aos militares da GNR (...) e (...) «já me vão foder outra vez, não vou fazer teste nenhum, quero que vocês se fodam, guardas do caralho»”.
A seu favor depõem a ausência de antecedentes criminais e as suas condições de natureza pessoal e familiar.
O tribunal a quo graduou esta pena em medida não muito afastada do seu limite mínimo e consideravelmente abaixo do meio da respetiva moldura abstrata, tendo levado em consideração todas as mencionadas circunstâncias e tendo ponderado adequadamente as necessidades de prevenção geral e especial.
*
A sentença recorrida realizou uma correta e equilibrada ponderação de todas as circunstâncias relevantes, tendo cumprido os critérios legalmente estabelecidos para a determinação das medidas das penas, encontrando-se adequadamente fundamentada.
Nesta conformidade, somos a concluir que, também quanto este fundamento, o juízo realizado pelo tribunal a quo é bem fundado e não merece reparo, pelo que o recurso improcederá.
***
III- Dispositivo.
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias)

Évora, 16 de dezembro de 2021.
Maria Clara Figueiredo
Margarida Bacelar


Sumário
I - Constitui elemento essencial do crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal a utilização de ameaça grave ou de ofensa à integridade física contra membro das forças de segurança, com o propósito de impedir que o mesmo pratique ato relativo ao exercício das suas funções, devendo a ameaça ou a violência serem preordenadas ao referido fim e idóneas, em termos de causalidade adequada, a obter o resultado pretendido pelo agente.
II - Agredir com cotoveladas e murros agentes de autoridade que se encontram a desenvolver legitimamente as funções que lhes estão atribuídas e, simultaneamente, ameaçá-los que a apresentação de queixas diárias à sua hierarquia, com o propósito deliberado de impedir a concretização dos atos funcionais dos militares, é grave, de forma alguma poderá ser enquadrado na reação normal e expectável de qualquer indivíduo à sua detenção e demanda tutela penal ao nível do crime resistência e coação sobre funcionário, pois que é em tal tipo penal, e não noutro, que se protege o bem jurídico claramente afetado com os referidos comportamentos: a autonomia funcional do Estado.
__________________________________________________
[1] Decisão Sumária de 20.02.2019, proferida nesta Relação pela Desembargadora Ana Brito, no proc. 1862/17.8PAPTM.E1.
[2] 3.ª edição, página 1121.
[3] Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 9.ª edição, 2020, página 109.
[4] Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 204 e ss.
[5] Neste sentido se pronunciou o Acórdão do STJ de 17.05.2001, SASTJ n.º 50, pp. 91.
[6] Cristina Líbano Monteiro in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo III, pp. 342.
[7] Cristina Líbano Monteiro in op. cit. pp. 342.
[8] in sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20.03.2018, relatado pelo Desembargador António João Latas.
[9] Idem.
[10] No sentido em que agora decidimos, vide, entre outros, os seguintes acórdãos: Acórdão da Relação do Porto de 14.12.2011, relatado pelo desembargador José Carreto; Acórdão da Relação de Coimbra de 14.09.2016, relatado pelo desembargador Fernando Chaves; Acórdão da Relação de Évora de 18.02.2014, relatado pelo desembargador Renato Barroso; Acórdão da Relação de Évora de 16.02.2016, relatado pelo desembargador Proença da Costa; Acórdão da Relação de Évora de 21.06.2016, relatado pelo desembargador João Amaro; Acórdão da Relação de Évora de 07.03.2017, relatado pelo desembargador João Amaro; Acórdão da Relação de Évora de 20.10.2020, relatado pelo desembargador Alberto Borges; Acórdão da Relação de Évora de 14.07.2020, relatado pela desembargadora Isabel Duarte; Acórdão da Relação de Évora de 17.12.2020, relatado pela desembargadora Fátima Bernardes.
[11] In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, página 165.