Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1234/15.9T8STR.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PESSOA SINGULAR
Data do Acordão: 09/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O Processo Especial de Revitalização não deixa de abranger devedores pessoas singulares que não sejam empresários nem exerçam, por si mesmos, qualquer actividade autónoma e por conta própria.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

(…) e (…) intentaram conjuntamente Processo Especial de Revitalização (PER), alegando, além do mais, serem casados entre si no regime de comunhão de adquiridos e encontrarem-se em situação económica difícil, sentindo séria dificuldade para cumprir pontualmente as suas obrigações e manter a sua subsistência, mas sendo possível a sua recuperação financeira.

Em 04-05-2015 foi proferido despacho (fls. 49 e 50 dos autos) que indeferiu liminarmente o procedimento, por entender, em síntese, que o PER não se destina aos devedores pessoas singulares que não sejam empresários nem exerçam, por si mesmos, qualquer actividade autónoma e por conta própria.

Inconformados com o assim decidido, recorreram os requerentes, pugnando pela revogação da decisão, com a consequente admissibilidade do procedimento, invocando, em síntese conclusiva:

«1 – A sentença proferida pelo tribunal “a quo” deve ser julgada nula por falta de fundamentação, uma vez que o julgado limitou-se a remeter para o conteúdo de um acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, sem fazer a sua própria interpretação, ou pelo menos, justificar porque acolhe tal entendimento, além de que, não são indicadas as normas legais aplicáveis, e que justificaram o desfecho dado ao requerimento apresentado pelos ora Recorrentes;

2 – A douta decisão não foi oportunamente proferida, visto que a eventual apreciação liminar a fazer no âmbito do artigo 17.º-C, nº 3, alínea a), é uma apreciação formal, uma verificação do cumprimento dos requisitos que os artigos 17.º-A e 17.º-B exigem, sem considerar aspectos materiais, cuja análise caberá em momento posterior;

3 – A posição explanada no acórdão para o qual o Meritíssimo Juiz “a quo” remete, no entendimento dos Recorrentes não deve proceder, dado que é consubstanciada com a perspectiva da troika, e com os objectivos da mesma para o nosso País, mas bem sabemos que a troika olha a números, limita-se ao que lhe interessa, e ao que está cá para fazer, até porque não se pode imiscuir a tal ponto que o Estado onde actue perca a sua soberania;

4 – As pretensões do memorando da troika podem servir de auxílio teleológico, mas quem altera e cria em último reduto é o legislador e não a troika, e é a intenção, o fim, a rácio que este perspectivou que deve ser tida em consideração, e não o que foi de certa forma imposto por entidades externas;

5 – Neste sentido, não se pode ignorar que o legislador refere expressamente “todos os devedores”, pelo que se o mesmo tivesse pretendido seguir os fins exclusivos troika a redacção do artigo diria “às empresas e empresários em nome individual”, e não o fez, assim como não exclui devedores pela sua categoria;

6 – Pelo que têm legitimidade para recorrer ao Processo Especial de Revitalização tanto as empresas como as pessoas singulares, sejam ou não comerciantes;

7 – Mostra-se violado o preceituado no artigo 17.º-A do CIRE e o artigo 154.º e 615.º, nº 1, alínea b), do CPC;

8 - Pelo que a douta decisão em recurso deve ser revogada e substituída por outra que defira a pretensão dos Recorrentes, no sentido de prosseguirem termos os autos de Processo Especial de Revitalização liminarmente indeferidos.

A finalizar ainda se impetra o douto suprimento de V. Exa. para as deficiências do nosso patrocínio, clamando-se, JUSTIÇA!!!»

Inexistem contra-alegações.

Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

Os factos com interesse para a decisão são os anteriormente referidos.

2 - Objecto do recurso.

Face ao disposto nos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, números 1 e 3, do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir (ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil) são as seguintes:

2a. - Análise da eventual nulidade da sentença por falta de fundamentação;

2b. - Saber se pode ser feita uma análise material dos factos e dos elementos que constituem o requerimento que dá início ao PER no âmbito de decisão proferida no cumprimento do artigo 17º-C, nº 3, alínea a), do CIRE, ou se só pode ocorrer numa fase posterior, limitando-se a decisão proferida no cumprimento do artigo 17.º-C, nº 3, alínea a), do CIRE a uma apreciação meramente formal da presença dos requisitos previstos no artigo 17.º-A e B do CIRE.

2c. - Saber se o PER se destina também aos devedores pessoas singulares que não sejam empresários nem exerçam, por si mesmos, qualquer actividade autónoma e por conta própria.

3 - Análise do recurso.

2a. - Análise da eventual nulidade da sentença por falta de fundamentação.

Os recorrentes criticam a decisão recorrida pelo facto de a sua fundamentação se limitar a fazer remissão para um acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, transcrevendo parte dele, nada mais acrescentando para além da mera perfilhação da interpretação aí exposta, a não ser o seguinte:

“Resulta do requerimento que antecede que os devedores são, no caso do requerente marido, trabalhador por conta de outrem (pedreiro) e, no caso da requerente mulher, desempregada.

Conforme se decidiu no Ac. TRG de 23-2-2015, proc. nº 3700/13.1TBGDM.P1” (transcrição de parte do acórdão): “Esta interpretação é, efectivamente, a que parece mais conforme ao Tribunal com o espírito da lei, mais precisamente do instituto do processo especial de Revitalização (…)”.

Nos termos do artigo 668º, nº 1, alínea b), do CPC, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Como nos diz Rodrigues Bastos [1], a falta de motivação aqui prevista é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão, sendo que uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença.

Por outro lado, "só a falta absoluta de fundamentação é causa de nulidade da sentença, mas já não a que decorre de uma fundamentação incompleta, errada, medíocre, insuficiente ou não convincente". [2]

No caso dos autos, resulta à saciedade que a fundamentação da decisão recorrida existe, embora por referência a uma decisão jurisprudencial (que, rectifica-se, não é da Relação do de Guimarães mas sim da Relação do Porto) onde se explica detalhadamente, com numerosas referências doutrinárias, porque se entende que o PER não se destina aos devedores pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários nem exerçam, por si mesmos, qualquer actividade autónoma e por conta própria.

Ora, "constitui afirmação corrente a de que a sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro acto jurídico a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos [artigo 236.º CC] - pelo que as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial são igualmente válidas para a interpretação de uma sentença - o que determina que a sentença deve ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto." [3]

Um declaratário normal, colocado na posição real dos destinatários da sentença recorrida, facilmente se apercebe de qual é a fundamentação do decidido, ou seja, o indeferimento liminar por inadequação processual absoluta e insanável.

Poderão os ora recorrentes não concordar com a fundamentação da decisão, mas tal discordância, só por si, como resulta meridianamente claro, não consubstancia qualquer nulidade.

Inexiste, pois, a invocada nulidade.

2b. - Saber se pode ser feita uma análise material dos factos e dos elementos que constituem o requerimento que dá início ao PER no âmbito de decisão proferida no cumprimento do artigo 17.º-C, número 3, alínea a), do CIRE, ou se só pode ocorrer numa fase posterior, limitando-se a decisão proferida no cumprimento do artigo 17.º-C, número 3, alínea a), do CIRE a uma apreciação meramente formal do presença dos requisitos previstos no artigo 17.º-A e B do CIRE.

Parece resultar das alegações que os recorrentes entendem que não podia ser feita a apreciação judicial do requerimento, face à natureza especial e urgente do PER e a fase em que o mesmo se encontrava, ou seja defendem que a análise material dos factos e dos elementos que constituem o requerimento que dá início ao processo haveria de ocorrer numa fase posterior e não no âmbito de decisão proferida no cumprimento do artigo 17.º-C, número 3, alínea a) do CIRE, que deve limitar-se a uma apreciação meramente formal da presença dos requisitos previstos no artigo 17.º-A e B do CIRE e, por isso, concluem que o julgador “a quo” não podia fazer apreciações de conotação material e de cariz interpretativo nesta fase processual, uma vez que estavam (estão) preenchidos formalmente os requisitos elencados nestas últimas disposições legais, mesmo que posteriormente se conclua que era uma situação aparente.

Não podemos concordar com os recorrentes, pois não se vê razão, bem pelo contrário, para deixar seguir uma acção que, na óptica do julgador, não pode prosseguir.

De facto, não tem sentido ou utilidade cumprir o disposto na alínea a) do nº 3 do art. 17.º-C do CIRE, ou seja, nomear administrador judicial provisório e deixar o processo avançar, quando se defende que os requerentes não têm legitimidade para intentar o mesmo.

2c. - Saber se o PER se destina também aos devedores pessoas singulares que não sejam empresários nem exerçam, por si mesmos, qualquer actividade autónoma e por conta própria.

Finalmente discordam os recorrentes da posição defendida na decisão correspondente à (já acima mencionada) inadmissibilidade de aplicação do PER.

Alegam que, embora tenha sido concebido a pensar no tecido empresarial, por ser esse o aspecto que importa à troika, o facto é que o legislador também englobou os devedores singulares não comerciantes, oferecendo-lhes uma hipótese de regularização da sua situação financeira por via do PER, que apresenta contornos mais favoráveis que o pesaroso processo de insolvência.

Quid juris?

A questão em causa tem dividido a jurisprudência.

De acordo com uma posição, o PER só se aplica às pessoas colectivas e, de, acordo com outra posição – a que defendemos – aplica-se a qualquer devedor, “titular ou não de uma empresa” ou seja, que tal processo especial também se aplica às pessoas singulares, mesmo que não sejam comerciantes – neste sentido Maria do Rosário Epifânio in Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, 2014, pág. 280), Luís Martins in Recuperação de Pessoas Singulares, 2.ª edição, Almedina, 2012, pág. 15: “Atendendo à forma como a lei foi redigida, e não obstante o processo especial de revitalização inserido no CIRE, ter sido anunciado como um meio de recuperação das empresas, o objectivo de fundo do memorando no que respeita à matéria em causa, era facilitar o resgate efectivo das empresas viáveis e apoiar a reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis...”, pretendendo, de raiz, abranger as empresas e as pessoas singulares. Talvez por esse motivo, os novos arts. 17º-A a 17º-I, que regulam o processo especial de revitalização, em momento algum referem que a sua aplicação está limitada às pessoas colectivas ou entidades equiparáveis, antes anunciando, expressamente, que o processo de revitalização pode ser utilizado “por todo o devedor”. Assim, não deixa de ser aplicável às pessoas singulares, quando estas estejam na situação descrita e sejam financeiramente responsáveis – Cfr. n.º 2 do artigo 17.º-A”;

Também Catarina Serra (in Processo especial de Revitalização – Contributos para uma “rectificação” – Revista da Ordem dos Advogados, Ano 72, Abril/Setembro 2012, Lisboa, páginas 715/741 – a págs. 716 (nota 2) defende esta posição: “O regime do PER aplica-se a qualquer devedor, pessoa singular, pessoa colectiva, património autónomo, titular de empresa ou não, dado o silêncio da lei quanto a quaisquer requisitos (cf. art. 1.º, n.º 2 e art. 17.º-A, n.º 1)”.

E, ainda, no artigo de opinião (“O Processo Especial de Revitalização Aplica-se às Pessoas Singulares?[4]), o Dr. Luís M. Martins defende que “[a]tendento à forma como a lei foi redigida, e não obstante o processo especial de revitalização inserido no CIRE, ter sido anunciado como um meio de recuperação de empresas, o objectivo de fundo do memorando no que respeita à matéria em causa, era “facilitar o resgate efectivo das empresas viáveis e apoiar a reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis…”, pretendendo, de raiz, abranger empresas e pessoas.

Também no artigo publicado no Centro de Estudos Judiciários [5] transparece uma posição que vai ao encontro do que temos vindo a defender, no sentido de que o PER é aplicável da todos os devedores e não só a alguns com determinadas características. Note-se o que vem escrito na respectiva página 46:

“2. Condições de acesso

Têm legitimidade para recorrer ao Processo Especial de Revitalização tanto as empresas como as pessoas singulares, pois a lei refere-se sempre ao devedor e a “todo o devedor”, o que abrange as entidades referidas no art.º 2.º: pessoas singulares e colectivas, herança jacente, associações sem personalidade jurídica e comissões especiais, sociedades civis, comerciais, civis sob a forma comercial, cooperativas, estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada e quaisquer outros patrimónios autónomos. “

Aliás, a interpretação restritiva efectuada na decisão recorrida não tem correspondência na letra da lei, uma vez que se dispõe nos números 1 e 2 do artigo 17°-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que “[o] processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização”, e pode “… ser utilizado por todo o devedor que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação”.

Em face do exposto, procede a apelação, com a consequente revogação do despacho de indeferimento liminar, que deverá se substituído por outro que determine o prosseguimento do Processo Especial de Revitalização, se não ocorrer outro fundamento que a tal obste.

4 - Dispositivo.

Pelo exposto acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar o despacho de indeferimento liminar, o qual deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento do Processo Especial de Revitalização, se não ocorrer outro fundamento que a tal obste.

Custas nos termos a fixar para o Processo Especial de Revitalização.

Évora, 10.09.2015

Elisabete Valente

Maria Alexandra de Moura Santos

António Ribeiro Cardoso

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[1] In Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, página 246.
[2] Ac. STJ de 21-6-2011 no Proc. 1065/06.7TBESP, em www.gde.mj.pt. Neste sentido pode também ver-se Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 687, Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, CPC Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, pág. 703, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221, Alberto dos Reis CPC Anotado, Vol. V, 1984, pág. 140, Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. II, pág. 806, Ac. STJ de 15-3-74 BMJ 235-152, Ac. STJ de 8-4-75 BMJ 246-131, Ac. STJ 24-5-83 BMJ 327-663, Ac. STJ de 4-11-93 CJ-STJ 1993-III-101, Ac. STJ de 8-1-2009 no Proc. 08B3510, Ac. STJ de 18-3-2010 no Proc. 10908-C/1997.L1.S1, Ac. Rel. Lisboa de 4-3-2010 no Proc. 7572/07.7TBCSC-B.L1-6, Ac. Rel. Coimbra de 22-3-2011 no Proc. 1279/08.5TBGRD-H.C1, Ac. Rel. Coimbra de 29-3-2011 no Proc. 129-C/2001.C1 e Ac. STJ de 15-12-2011 no Proc. 2/08.9TTLMG.P1S1, estes em www.gde.mj.pt.
[3] Ac. STJ de 3-2-2011 no Proc. 190-A/1999.E1.S1, www.gde.mj.pt. Neste sentido pode ver-se Ac. STJ de 22-3-2007 no Proc. 06A4449 e Ac. Rel. Coimbra de 25-1-2011 no Proc. 659/08.0TBFND.C1, ambos em www.gde.mj.pt, e Ac. STJ de 28-1-1997 em CJ-STJ 1997-I-83.
[4] Datado de 23.09.2014 e publicado em http://www.insolvencia.pt/artigos/6857-o-processo-especial-de-revitalizacao-aplica-se-a-pessoas-singulares.html.
[5] E-book, Dez./2014, “Processo de Insolvência e Acções Conexas”, publicado: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Processo_insolvencia_acoes_conexas.pdf,