Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | TOMÉ DE CARVALHO | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA COMISSÁRIO | ||
Data do Acordão: | 01/31/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | A competência para a apreciação de litígios em que esteja em causa uma acção de reivindicação, a que é indexado um pedido de indemnização por ocupação indevida por parte de um Município ou de uma Empresa Municipal pertence aos Tribunais Comuns, face à relação de dependência existente entre as pretensões concretamente deduzidas. (Sumário do Relator) | ||
Decisão Texto Integral: | Processo nº 814/11.6TBBNV.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local de Competência Cível de Benavente – J1 * Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório: Na presente acção declarativa de condenação proposta por “(…) e Imobiliária de Salvaterra, SA” contra Município de Salvaterra de Magos e “(…) – Empresa Municipal para Tratamento de Resíduos Sólidos, EIM”, esta última veio interpor recurso da sentença proferida nos autos. * A sociedade Autora pede a condenação das Rés a reconhecerem o seu direito de propriedade sobre um imóvel e a restituírem-lhe a parte ocupada do mesmo, livre e desocupada, com todas as edificações demolidas e o solo totalmente descontaminado, bem como a condenação em indemnização, desde 11/08/2010 e por todo o tempo que durar a ocupação, em quantia não inferior a € 3.000,00 mensais até efectiva restituição. * Para o efeito, a Autora alegou que é dona e legítima possuidora do prédio denominado Quinta do (…) e que, em meados de 1999, parte determinada desse imóvel veio a ser ocupada pelo Município de Salvaterra de Magos. Nessa parte foram implantados um furo de captação de águas subterrâneas, uma estação de transferência de resíduos sólidos urbanos e um Ecocentro, ficando a área delimitada. Depois, houve uma cedência do Município à terceira Ré, que tem vindo a ocupar parte do imóvel para o exercício da sua actividade. A Autora notificou judicialmente as aqui Rés para que restituíssem parte do imóvel ocupado no prazo de 6 meses a contar da data desse acto, afirmando que essa ocupação era ilícita e geradora de responsabilidade civil. * Devidamente citadas, em articulados autónomos, as Rés apresentaram defesa por impugnação. * A Autora apresentou articulado de resposta. * Foi requerida a intervenção provocada dos vários municípios que fazem parte da (…). Por despacho proferido a 05 de Fevereiro de 2013, foi indeferida a intervenção provocada deduzida. * Foi proferido despacho saneador e fixada a matéria de facto assente e base instrutória (cfr. fls. 173 a 176). * Realizado o julgamento, o Tribunal «a quo» decidiu: a) Absolver o Réu Município de Salvaterra de Magos dos pedidos deduzidos pela Autora “(…) e Imobiliária de Salvaterra, SA”. b) Condenar a Ré “(…) – Empresa Municipal para Tratamento de Resíduos Sólidos EIM”, a reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre o prédio denominado Quinta do (…), sito na Freguesia de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz predial sob o artigo (…) da Secção (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos, com o nº (…), e a restituir à Autora a parte ocupada, correspondente a 15.380m2 do mesmo, livre e desocupada, com todas as edificações demolidas e o solo descontaminado. c) Condenar a Ré (…) – Empresa Municipal para Tratamento de Resíduos Sólidos EIM, a pagar à Autora a quantia de € 1.900,00, mensais, desde 11/08/2010 e até à efectiva entrega do imóvel, sendo que, à data da propositura da presente acção – 12/05/2011 –, o valor em dívida cifrava-se em € 17.100,00, absolvendo-se do demais peticionado. * A recorrente não se conformou com a referida decisão e apresentou alegações que continham as seguintes conclusões: A) A sentença ora posta em crise foi proferida por Tribunal incompetente em razão da matéria atento o facto a relação controvertida caber à jurisdição administrativa tendo presente que a Recorrente gere em nome da … (Associação de Municípios de Coruche, Benavente, Salvaterra de Magos, Almeirim, Alpiarça, Chamusca, Cartaxo para o Tratamento de Resíduos Sólidos) todo o processo de tratamento de resíduos sólidos urbanos, matéria essa de competência dos poderes públicos que lhe delegaram e a encarregaram expressamente por estatuto, para esse fim. B) Sendo assim aplicável ao presente litígio o artigo 4º, nº 1, alínea d), do ETAF, que atribui competência à jurisdição administrativa para fiscalização da legalidade de quaisquer actos jurídicos praticados por quaisquer entidades no exercício de poderes públicos. C) Sendo aqui esse o caso, a decisão recorrida viola as regras da competência em razão da matéria, o que resulta na incompetência absoluta do Tribunal recorrido para julgar a causa, em consequência deve ser a recorrente absolvida da instância, face à excepção dilatória, prevista nos artigos 577º, alínea a), 576º, nº 2 e 96º, todos do CPC. Caso assim não se entenda, diz-se que: D) Resulta da matéria de facto dado por provada [cfr. § D), E) e I)] e prova testemunhal e também documental que o Tribunal recorrido classificou de credível pelo conhecimento directo dos factos. E) Que a aqui recorrente sempre actuou por ordem e direcção da (…) detentora da totalidade do seu capital social, e que a criou para a gestão dos resíduos dos municípios seus associados. F) A Recorrente sempre tem actuado sobre determinação e ordens da (…), até por consignação estatuária. G) Daí, e nos termos do disposto no artigo 500º do CC, a recorrente é uma mera comissária, actuando em nome e sobre a direcção e determinação da comitente (…). H) Acresce que o edificado existente na parcela ora objecto da apresente lide, foi, tal como resulta da prova produzida e tida em conta em sede de julgamento atento o teor da sentença recorrida. I) O edificado, dizia-se, é propriedade da (…), não podendo a Recorrente desmantelar ou de qualquer forma fazer desaparecer, aquilo que não lhe pertence e que é titularidade de um entre público, no caso uma Associação de Municípios. J) Sendo pois, nessa parte, a sentença ora recorrida inexequível. Dito isto: K) O Tribunal, tendo presente as mais elementares regras do senso comum, mediante os factos tidos por assentes, os factos que deu como provados e, a razão de ciência evidenciada pelas testemunhas, só poderia ter dado como provado que a recorrente actuou enquanto comissário da comitente (…). L) Resultando com a subsunção à norma ao caso aplicável, o artigo 500º do CC que a haver alguém responsável pelo dever de indemnizar a Autora, seria sempre a comitente (…) e nunca a sua comissária (…). M) Decidindo de forma diversa não fez o Tribunal “a quo” a justiça aplicável ao caso. N) Deveria o Tribunal recorrido a interpretar e aplicar as normas jurídicas indicadas no sentido de absolver totalmente a Recorrente (…). Nestes termos, e nos melhores de Direito, com o mui Douto suprimento de V. Exª(s): Deve ser dado provimento à excepção dilatória de incompetência do Tribunal recorrida em razão da matéria, com a absolvição da instância da aqui Recorrente. Ou, caso assim não se entenda, deve ser dado provimento ao pedido da recorrente, sendo a recorrente absolvida nos presentes autos. Assim se fazendo Justiça». * A parte contrária apresentou alegações, nas quais defende que o recurso deve ser julgado improcedente. * Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. * II – Objecto do recurso: É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC). Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação: i) Da excepção de competência em razão da matéria. ii) E, subsidiariamente, do mérito da causa, na vertente da relação de comissão estabelecida e das respectivas consequência ao nível da indemnização e da demolição das inovações introduzidas na propriedade. * III – Matéria de facto: 3.1 – Factos provados: A. Pela apresentação (…) de 1992/07/29 foi registado em nome de “(…) e Imobiliária de Salvaterra, SA”, o imóvel denominado Quinta do (…), sito na Freguesia de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz predial sob o artigo (…) da Secção (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos, com o nº (…). B. Em 18/01/2010, a Autora requereu a notificação judicial avulsa do Município de Salvaterra de Magos e de “(…) – Empresa Municipal para Tratamento de Resíduos Sólidos EIM”, dando conhecimento aos Réus de que a Autora exige a restituição da parte que ocupam no imóvel a esta pertencente no prazo máximo de 6 meses a contar da data em for efectuada a notificação, devendo, à data da entrega, a parte do imóvel que ocupam ser restituída livre e desocupada de todos os bens, pertencentes e materiais depositados, sejam estes móveis ou imóveis. C. As Rés foram pessoalmente notificadas em 10 de Fevereiro de 2010. D. A Ré (…) vem explorando e gerindo a estação de transferência de Salvaterra de Magos, desde a sua constituição. E. A Ré (…) EIM foi constituída em 1 de Fevereiro de 2005. F. Encontra-se ocupada uma área não inferior a 15.380m2, de um total de 56,322 hectares, do imóvel referido em A). G. Na área referida em F) foi implantado um furo de captação de águas subterrâneas, uma estação de transferência de resíduos sólidos urbanos e um ecocentro. H. E a área delimitada fisicamente com muros e vedações metálicas. I. Foi cedida à Ré (…) a gestão do ecocentro e da estação de transferência de resíduos sólidos urbanos. J. Fazendo aí chegar diariamente, por camião do lixo, os diversos tipos de resíduos recolhidos no concelho, para posterior transferência, também rodoviária, para outro lugar. L. O uso do imóvel feito pela Ré (…) acarretou a desvalorização do mesmo. M. Atendendo à dimensão da parte ocupada (não inferior a 15.380 m2), a sua localização, e acessibilidades, o valor locativo da mesma é de mil e novecentos euros, mensais. * 3.2 – Factos não provados: 1. Em meados de 1999 a área referida em F) foi ocupada pela Ré Município de Salvaterra de Magos. 2. As construções referidas em G) e H) foram feitas pelo Município. 3. Em data não apurada, a cedência referida em I) foi feita pela ré Município de Salvaterra de Magos. 4. Na sequência da notificação referida em B) e C), vieram a ser encetadas negociações com o Município de Salvaterra de Magos e com a (…). 5. O uso do imóvel pela Ré Município de Salvaterra de Magos acarretou a sua desvalorização. 6. O valor locativo da mesma é de € 3.000,00 mensais. 7. Em 1999, a Ré Município de Salvaterra de Magos, na qualidade de representante da Associação (…), contactou a Autora para aferir da possibilidade de esta associação instalar no terreno a referida estação de tratamento. 8. Ao que esta acedeu. * IV – Fundamentação: 4.1 – Da incompetência em razão da matéria: O artigo 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa postula que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. São assim tradicionalmente da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, como decorre do artigo 64º do Código de Processo Civil e do artigo 40º[1] da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto). A regra precipitada no artigo 96º do Código de Processo Civil determina a incompetência absoluta do tribunal nos casos de infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional. A recorrente pretende que seja declarada a incompetência em razão da matéria do Juízo Local Cível de Benavente e a recorrida defende que se está perante uma questão nova que não foi objecto de apreciação por parte do Juízo Local de Competência Cível de Benavente. Porém, não é exactamente assim à interpretação correcta que deve ser promovida na disciplina precipitada no nº 1 do artigo 97º[2] do Código de Processo Civil. Ao abrigo dispositivo vinga a solução que, mesmo que não suscitada em momento anterior, a violação das regras de competência em razão da matéria que respeitem a Tribunais de outras ordens de jurisdição pode ser suscitada enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa. A respeito da oportunidade da arguição ou do conhecimento oficioso, como sublinham Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, «estabelece-se, atenta a gravidade das infracções em causa, que podem ter lugar em qualquer estado do processo, seja em 1ª instância, seja em instância de recurso, enquanto não houver sentença de mérito transitada em julgado»[3]. Esta concepção apoia-se na lição de Anselmo de Castro que asseverava que quando «a lei diz que a competência absoluta deve ser suscitada oficiosamente pelo Tribunal em qualquer estado do processo (…), isso significa que enquanto não houver decisão concreta (…), e não se tratando da excepção do nº 2 do artigo 102º[4], o Tribunal pode conhecer dela, mesmo em recurso, ainda que as partes não tenham alegado a incompetência absoluta do Tribunal que proferiu a decisão recorrida»[5]. Esta visão é igualmente partilhada por Manuel Andrade[6], Castro Mendes[7] e Antunes Varela[8] e, assim sendo, não se pode afirmar que estamos perante uma questão nova cuja apreciação está subtraída ao conhecimento do Tribunal «ad quem». * Nos presentes autos a recorrida pretende sindicar decisão de reivindicação da propriedade de uma parcela de um imóvel, com a demolição de construções e descontaminação de solos e de atribuição de uma indemnização pela utilização indevida dessa propriedade. Compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, à luz do comando constitucional impresso no nº 3 do artigo 212º da Constituição da República Portuguesa. Como ideia matricial da fixação dos critérios de atribuição de jurisdição existe uma relação material e teleologicamente administrativa quando um dos sujeitos, seja público ou privado, actua no exercício de um poder de autoridade, com vista à realização de um interesse público legalmente definido. E, na sua essência genética, existe uma relação material e teleologicamente administrativa quando um dos sujeitos, seja público ou privado, actua no exercício de um poder de autoridade, com vista à realização de um interesse público legalmente definido. No desenvolvimento da mencionada vinculação constitucional, o artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais veio estabelecer inovações no âmbito da jurisdição e nele estão incluídas as situações de responsabilidade civil extracontratual[9]. O Tribunal de Conflitos tem vindo a editar jurisprudência no sentido que constitui entendimento pacífico que a competência em razão da matéria do Tribunal se afere pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo Autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respectivos fundamentos (causa de pedir)[10] [11]. Nesta situação concreta, à luz do pedido formulado e da causa de pedir apresentada, não estamos perante uma simples acção em que se discuta a responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa colectiva de direito público. Na realidade, estamos no âmbito de uma relação predominantemente de foro privado em que a questão fundamental está associada à apreciação de uma matéria com contornos reais. Neste domínio, em caso de conflito positivo de competências, na hipótese da cumulação de pedidos, tem vindo a prevalecer o princípio geral que, existindo relação de dependência ou subsidiariedade, a acção deve ser proposta no Tribunal competente para a apreciação do pedido principal. E esta ideia encontra respaldo na jurisprudência do Tribunal de Conflitos, quando este assevera que cabe aos Tribunais da jurisdição comum a competência para conhecer de acções em que, com invocação do direito de propriedade e da sua violação pelo Réu, o Autor peça a declaração desse direito e a restituição da coisa, ainda que com esses pedidos se cumulem outros de natureza indemnizatória[12]. Como se alerta noutro acórdão do Tribunal de Conflitos, as acções de reivindicação devem ser conhecidas pelos Tribunais Comuns, cuja competência é residual[13]. Idêntica conclusão se retira do acórdão do mesmo Tribunal de 07/07/2016[14] [15]. Analisada, a estruturação do pedido, na configuração dada à relação jurídica controvertida, sobressai a ideia que a parte activa visava primordialmente a condenação dos Réus a reconhecerem que era dona e legítima possuidora da totalidade do prédio reivindicado e que a detenção aqui em discussão era abusiva e desprovida de título habilitante E, assim sendo, a parcela em causa deveria ser restituída no estado em que se encontrava à data da sua ocupação e consequentemente indemnizada essa violação injustificada do direito de propriedade. Esta jurisprudência é transponível para o caso em apreço e não é a circunstância de parte das pretensões se situarem no âmbito da responsabilidade civil extracontratual (e, portanto, o seu conhecimento ser da competência dos Tribunais Administrativos), que pode afastar a competência dos Tribunais Comuns. Em suma, a competência para a apreciação de litígios em que esteja em causa uma acção de reivindicação (com fundamento no direito de propriedade em que se aprecia a prova da titularidade desse direito sobre a coisa reivindicada e a sua ocupação pelos demandados), a que é indexado um pedido de indemnização por ocupação indevida por parte de um Município ou de uma Empresa Municipal pertence aos Tribunais Comuns, face à relação de dependência existente entre as pretensões concretamente deduzidas. Nesta perspectiva, julga-se improcedente o recurso com base no fundamento da incompetência absoluta em razão da matéria. * 4.2 – Do Erro de Direito: 4.2.1 – Da relação de comissão: A Recorrente afirma que sempre tem actuado sobre determinação e ordens da (…) e que, assim, nos termos do disposto no artigo 500º do Código Civil, é uma mera comissária, actuando em nome e sobre a direcção e determinação da comitente. E, neste espectro lógico-jurídico, a “(…) – Empresa Municipal para Tratamento de Resíduos Sólidos, EIM” deveria ter sido absolvida e a condenação passaria a incidir na pessoa da … (Associação de Municípios de Coruche, Benavente, Salvaterra de Magos, Almeirim, Alpiarça, Chamusca, Cartaxo para o Tratamento de Resíduos Sólidos). Todavia, como esta associação de municípios não é parte na acção e assim é manifestamente inviável a sua condenação no plano processual. A lei estabelece a situação de responsabilidade do comitente no aludido artigo 500º[16] do Código Civil, ao prever que aquele que encarregar outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar. Em termos dogmáticos, a responsabilidade do comitente, pode qualificar-se como uma responsabilidade por facto de outrem, extracontratual e objectiva. A obrigação de indemnizar do comissário deve ser entendida em termos amplos, de modo a abranger não só a prática de os factos ilícitos culposos do comissário mas também a responsabilidade objectiva (pelo risco e por factos lícitos risco e factos lícitos)[17]. O regime de responsabilidade objectiva do comitente pelos factos danosos praticados pelo comissário assenta nos seguintes pressupostos (i) existência de uma relação comissão, (ii) prática de factos danosos pelo comissário no exercício da função e (iii) responsabilidade do comissário[18]. A comissão existe quando alguém encarrega outrem de agir por conta do primeiro[19]. A comissão pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este. E na leitura de Pires de Lima e Antunes Varela «só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo»[20]. Ou, na formulação de Almeida Costa, «para que se verifique responsabilidade objectiva do comitente, impõe-se, em primeiro lugar, a existência de uma relação de comissão, traduzida num vínculo de autoridade e subordinação correspectivas»[21]. Na visão de Menezes Leitão é necessário que a «função praticada pelo comissário possa ser imputada ao comitente, por os actos nela compreendidos serem praticados exclusivamente no seu interesse e por conta sua, ou seja, suportando ele as despesas e os ganhos dessa actividade. Essa situação acontecerá no âmbito do contrato de trabalho (art. 1152º), mas também no contrato de mandato (art. 1157º) e noutras situações em que os resultados da função confiada ao comissário se repercutam directamente na esfera do comitente. Já não haverá, porém, comissão nas situações em que, apesar de ser encomendado um serviço a outrem, esse serviço corresponda a uma função autonomamente exercida pelo devedor, a qual não lhe é por isso delegada por um comitente»[22]. Sobre a relação jurídica de comissão podem ainda ser consultados Vaz Serra[23] [24], Rui Alarcão[25], Pessoa Jorge[26], Ribeiro Faria[27], José Carlos Brandão Proença[28], Pedro Nunes de Carvalho[29], Carneiro da Frada[30], Maria da Graça Trigo[31] [32], Sofia Sequeira Galvão[33], Pedro Múrias[34], Nuno Morais[35], Maria Victória Rocha[36] e Ana Mafalda Barbosa[37]. Perscrutada a matéria de facto assente apurou-se que à Ré (…) foi cedida à Ré a gestão do ecocentro e da estação de transferência de resíduos sólidos urbanos, que esta sociedade explorando e gerindo [factos D) e I)]. Não existe assim respaldo na matéria de facto qualquer cenário jurídico que se integra na figura da comissão. Dito de outra forma, não se está perante uma situação em que uma pessoa tenha encarregado outra, gratuita ou onerosamente, de uma comissão de serviço, em acto isolado ou duradouro. Pelo contrário, aquilo que resulta inequívoco é que esse serviço corresponde a uma função autonomamente exercida pelo devedor e que não se reconduz a uma actuação em nome e sob as instruções e ordens de outrem. Na medida em que os requisitos de acionamento da responsabilidade pelo risco fundada numa relação de comissão são cumulativos[38], a ausência dessa relação autoridade e subordinação afasta a tese proposta pela Recorrente. A ser assim, seja pela via da privação do direito de uso, seja através do recurso ao instituto do enriquecimento sem causa (opção da sentença recorrida, que nessa parte não foi impugnada), parece adequada a atribuição de uma compensação indemnizatória com base no valor locativo apurado na perícia efectuada nos autos, contada a partir da data limite para desocupação do imóvel fixada na notificação judicial avulsa. Em conclusão, com base neste fundamento, não existe motivo para alterar a sentença recorrida com base nos argumentos recursivos apresentados. * 4.2.2 – Da demolição das construções existentes: A recorrente afirma que o edificado é propriedade da (…) e, por isso, não pode desmantelar ou de qualquer forma fazer desaparecer, aquilo que não lhe pertence e que é titularidade de um entre público. E, nessa perspectiva, a sentença ora recorrida é inexequível [conclusões I e J)]. Da intercepção entre os factos provados D)[39] e I)[40] resulta de forma transparente que a Ré (…) não é dona do espaço e apenas lhe foi cedida a gestão do ecocentro e da estação de transferência de resíduos sólidos urbanos sub judice. Aliás, na conciliação entre o clausulado contratual, os factos apurados e o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos (Decreto-Lei nº 194/99) resulta que a Ré, enquanto empresa municipal, presta os serviços por delegação dos municípios ou, neste caso, da associação de municípios (artigos 6º e 17º). E essa delegação de competência não impede a procedência dos pedidos de restituição e indemnização por responsabilidade civil extracontratual – aqui sem prejuízo do acionamento de eventual direito de regresso – mas é obstaculativa da pretensão de demolição por não existir qualquer relação de domínio desta Ré sobre as construções ali implantadas. Ou seja, não constando da matéria de facto apurada qualquer demonstração de que o equipamento e as inovações foram adquiridas ou realizadas pela “(…) – Empresa Municipal para Tratamento de Resíduos Sólidos, EIM” tem de se concluir que os mesmos são pertença da associação de municípios, por via da interpretação do artigo 19º da aludida legislação. Deste modo, ao não ter sido admitida a intervenção provocada da … (Associação de Municípios de Coruche, Benavente, Salvaterra de Magos, Almeirim, Alpiarça, Chamusca, Cartaxo para o Tratamento de Resíduos Sólidos) ficou prejudicada a hipótese jurisdicional do Tribunal «a quo» ordenar à “(…) – Empresa Municipal para Tratamento de Resíduos Sólidos, EIM” que promovesse a demolição do edificado. Na realidade, uma pretensão deste tipo deveria ter sido dirigida à entidade proprietária dos referidos bens. Esta conclusão já não se aplica à descontaminação do espaço na medida em que a mesma operação está abrangida nos poderes de gestão que foram confiados a esta entidade. E, neste enquadramento, tem de ser julgar parcialmente procedente o recurso, revogando-se a sentença na parte em que determina a demolição das edificações. * V – Sumário: 1. Quando a lei diz que a competência absoluta deve ser suscitada oficiosamente pelo Tribunal em qualquer estado do processo, isso significa que enquanto não houver decisão concreta, e não se tratando da excepção do nº 2 do artigo 97º do Código de Processo Civil, o Tribunal pode conhecer dela, mesmo em recurso, ainda que as partes não tenham alegado inicialmente a incompetência absoluta do Tribunal que proferiu a decisão recorrida. 2. A competência para a apreciação de litígios em que esteja em causa uma acção de reivindicação, a que é indexado um pedido de indemnização por ocupação indevida por parte de um Município ou de uma Empresa Municipal pertence aos Tribunais Comuns, face à relação de dependência existente entre as pretensões concretamente deduzidas. 3. Para que se verifique um quadro de responsabilidade objectiva do comitente, impõe-se, em primeiro lugar, a existência de uma relação de comissão, traduzida num vínculo de autoridade e subordinação correspectivas, não havendo esta relação nas situações em que o serviço corresponda a uma função autonomamente exercida pelo devedor. * VI – Decisão: Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida, salvo na parte em que ordena que todas as edificações sejam demolidas, sentença que, nessa parte, é revogada. Custas do recurso a cargo da apelante e da apelada, na proporção de 7/10 e 3/10 respectivamente, atento o disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil. Notifique. * (acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil). * Évora, 31/01/2019 José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho Isabel Matos Peixoto Imaginário Maria Domingas Simões __________________________________________________ [1] Artigo 40º (Competência em razão da matéria) 1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. 2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada. [2] Artigo 97.º (Regime de arguição - Legitimidade e oportunidade): 1 - A incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e, exceto se decorrer da violação de pacto privativo de jurisdição ou de preterição de tribunal arbitral voluntário, deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa. 2 - A violação das regras de competência em razão da matéria que apenas respeitem aos tribunais judiciais só pode ser arguida, ou oficiosamente conhecida, até ser proferido despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência final. [3] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 201. [4] A que corresponde actualmente o artigo 97º do Código de Processo Civil. [5] Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Declaratório, vol. II, Almedina, Coimbra, 1982, pág. 77. [6] Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1976, página 105, assinala que «a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes (qualquer delas) e deve ser suscitada ex-oficio pelo Tribunal (artigo 102º); pode sê-lo a todo o tempo – enquanto durar o processo – ou pelo menos (quando seja de menor transcendência a norma infringida) dentro dum largo prazo». [7] João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. I, AAFDL, Lisboa, págs. 562-567. [8] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra 1985, pág. 229, que referem que quanto ao tempo de arguição «a incompetência absoluta pode ser arguida ou conhecida ex officio em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença transitada sobre o fundo da causa (…). Pode, por conseguinte, ser arguida ou suscitada pela primeira vez, tanto na 1ª instância, como na 2ª instância ou até em tribunal de revista». [9] Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais anotados, pág. 59, entendem que «sempre que essas pessoas devam responder extracontratualmente por prejuízos causados a outrem, o julgamento da respetiva causa pertencerá à jurisdição administrativa, independentemente da qualificação do acto lesivo como acto de gestão pública ou de gestão privada». [10] Acórdão do Tribunal de Conflitos, processo nº 047/14, de 30/10/2014. [11] No mesmo sentido podem ser consultados os Acórdãos do Tribunal dos Conflitos: de 21/10/04, proferido no Conflito 8/04; de 23/5/2013, Conflito nº 12/12 e de 21/1/2014, Conflito nº 44/13. [12] Acórdão do Tribunal de Conflitos de 20/09/2018, in www.dgsi.pt. [13] Acórdão do Tribunal de Conflitos de 26/01/2017, in www.dgsi.pt. [14] Acórdão que pode ser consultado em www.dgsi.pt. [15] No mesmo sentido pode ainda ser consultada a seguinte jurisprudência do Tribunal de Conflitos: de 15/05/2013, Proc. 024/13; de 06/02/2014, Proc. 058/13; de 30/10/2014, Proc. 015/14; de 10/09/2014, Proc. 016/14; de 26/01/2017, Proc. 052/14; de 24/05/2017, Proc. 01/17; de 08/03/2017, Proc. 034/16, todos disponíveis em www.dgsi.pt. [16] Artigo 500.º (Responsabilidade do comitente): 1. Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar. 2. A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada. 3. O comitente que satisfizer a indemnização tem o direito de exigir do comissário o reembolso de tudo quanto haja pago, excepto se houver também culpa da sua parte; neste caso será aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 497.º. [17] A este propósito pode ser consultado o interessante estudo de Carolina Miguéis Sanches de Sá, “Dos Fundamentos do artigo 500.º do Código Civil e Respetivos Pressupostos de Aplicação – Algumas Considerações”, disponível na internet. [18] No plano jurisprudencial podem ser consultados os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13/08/2018 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/05/2010, in www.dgsi.pt. [19] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Direito das Obrigações, vol. VIII, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 611. [20] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição revista e Actualizada (com a colaboração de M. Henrique Mesquita), Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pág. 508. [21] Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 1991, pág. 497. [22] Luís Manuel Teles Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 363. [23] Responsabilidade contratual e extracontratual, Boletim do Ministério da Justiça, nº 85 (1959). [24] “Fundamento da Responsabilidade Civil (Em especial, Responsabilidade por Acidentes de Viação Terrestre e por Intervenções Lícitas)”, Boletim do Ministério da Justiça nº 90 (1959). [25] Direito das Obrigações, 1993, Coimbra, pág. 244 e seguintes. [26] Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, 1968, pág. 14. [27] Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, Coimbra, 1990. [28] A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Almedina, Coimbra, 1997. [29] A responsabilidade do comitente, Revista da Ordem dos Advogados, ano 48º, 1988, I. [30] A responsabilidade objectiva por factos de outrem face à distinção entre responsabilidade obrigacional e aquiliana, Direito e Justiça, 1998, vol. XII. [31] Responsabilidade civil do comitente (ou responsabilidade por facto de terceiro), Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, vol. II, Almedina, Coimbra, 2007. [32] Responsabilidade Civil Delitual por Facto de Terceiro, Coimbra Editora, Coimbra, 2009. [33] Reflexões acerca da responsabilidade do comitente no direito civil português, AAFDL, Lisboa, 1990. [34] A responsabilidade por actos de auxiliares e o entendimento dualista da responsabilidade civil, RFDUL, ano XXXVII, n.º 1, 1996. [35] A responsabilidade objectiva do comitente por facto do comissário. A análise do artigo 500º do Código Civil – seus pressupostos e regime, Julgar, nº 6, 2008. [36] “A imputação objetiva na responsabilidade contratual”, RDE, Ano XV, 1989. [37] Estudos a Propósito da Responsabilidade Objetiva, 1ª edição, Princípia, Cascais, 2014 [38] Esta ideia pode ser encontrada no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12/11/2015, in www.dgsi.pt. [39] (D) A Ré (…) vem explorando e gerindo a estação de transferência de Salvaterra de Magos, desde a sua constituição. [40] (I) Foi cedida à Ré (…) a gestão do ecocentro e da estação de transferência de resíduos sólidos urbanos. |