Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2290/10.1TASTB-A.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
PROVA PROÍBIDA
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
PORNOGRAFIA DE MENORES
FOTOGRAFIA E FILMAGEM DE CARIZ SEXUAL
DIREITO À IMAGEM E PROTECÇÃO DA VIDA PRIVADA
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
INTERESSE JURÍDICO PREPONDERANTE
Data do Acordão: 11/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
1. O mero direito à imagem dos suspeitos, quer o seu direito à intimidade da vida privada (por estarem em causa aspetos da sua vida sexual), não são penalmente tutelados nos casos em que, como no presente, as fotografias e filmes em causa, da autoria dos próprios, reproduzem a materialidade de crimes de abusos sexuais de menores e constituem mesmo a materialidade de eventuais crimes de fotografias e filmagens ilícitas.

2. Nos crimes em causa (v.g. abuso sexual de menores e pornografia infantil) o legislador acolheu a prevalência do interesse na perseguição penal face aos interesses e direitos individuais dos menores, nomeadamente os mais ligados à chamada vitimização secundária, onde se inclui o direito à intimidade.

3.Atenta a opção legislativa pela promoção oficiosa do processo penal nestes casos de crimes contra menores, não faria sentido erigir em prova absolutamente proibida a que pudesse afetar a intimidade ou imagem do menor, nem tão pouco deixar ao representante legal do menor incapaz de consentir a decisão sobre o aproveitamento e valoração de prova pré constituída, importante para a descoberta da verdade.

4. Por outro lado, a utilização das reproduções de imagens e atos envolvendo a intimidade de menor é acompanhada de algumas medidas tendentes a minorar o efeito lesivo daquela utilização, em diferentes fases do processo, como é o caso da exclusão da publicidade do ato processual (arts 87º nº3 e 321 n.º2, do CPP) ou da proibição de revelação da identidade da vítima (art. 88.º, nº2 c), do CPP).

5. Por último, a utilização em processo penal das reproduções em causa, pode permitir mesmo a dispensa ou diminuição de outros atos no processo que, envolvendo a participação ativa do menor, sejam mais lesivos dos seus direitos e interesses comprometidos pela perseguição penal.
Decisão Texto Integral:
Em conferência, acordam os Juízes na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório

1. – Nos presentes autos de Inquérito que correm termos nos serviços do MP junto do Tribunal Judicial de Setúbal em que se investiga a prática de crimes de abuso sexual de menor dependente p. e p. pelo art. 172º nºs 1 e 2 do C. Penal, com prisão de 1 a 8 anos, o MP requereu ao senhor Juiz de Instrução (JI) a emissão de mandados de busca para apreensão de DVD´s e fotografias com imagens de cariz sexual dos suspeitos D e da sua companheira V, em atos de abuso sexual de diversas crianças.

O MP requereu ainda que - para registo documental de toda a informação neles existentes, nomeadamente fotografias - fosse autorizada a visualização do conteúdo de dois telemóveis e cartões, os quais foram apreendidos ao suspeito, que os detinha ilicitamente no EP de Pinheiro da Cruz onde se encontra a cumprir pena de prisão (cfr fls 39 e 34 a 38, dos presentes autos).

2. – O senhor JI indeferiu o requerido, pelo despacho de 08.04.2011, que constitui fls 44 a 56 destes autos de recurso em separado, cujo teor aqui se reproduz integralmente:

«CONCLUSÃO - 08-04-2011

(Termo eletrónico elaborado por Escrivão Adjunto Elina B. Marques)

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No âmbito do presente inquérito é investigada a prática de, além do mais, um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punível no artigo 86º, da Lei número 5/2006, de 23 de fevereiro, recaindo fundadas e fortes suspeitas da prática de tal crime sobre D, melhor identificado nos mesmos.

De facto, a ofendida T, que residiu longos anos na casa do suspeito, referiu a existência na mesma de uma caçadeira por este furtada.

Mostra-se ser essencial a apreensão da arma, uma caçadeira por este furtada, para o esclarecimento dos factos indiciados e respetiva prova.

Assim, com o intuito de ser(em) apreendido(s) o(s) supra referido(s) objeto(s) (artigo 178º, do Código de Processo Penal), e ao abrigo do disposto no artigo 174º, número 2, do mesmo diploma, ordeno que, com as formalidades a que se reportam os artigos 176º e 177º número 1, do aludido código, se proceda a busca domiciliária na(s) seguinte(s) residência(s), respetivo(s) anexo(s), arrecadação(ões), e garagem(ns), quintal(ais), espaço(s) adjacente(s) à residência(as) e caixa(s) postal(ais), se necessário com arrombamento de portas:

Quinta das ----, Palmela.

Não presidirei, atento o elevado volume de serviço.

Passe e entregue os respetivos mandados de busca ao Ministério Público, os quais deverão ser cumpridos no prazo máximo de 30 dias (artigo 174º, número 4, do Código de Processo Penal).

No que toca á apreensão de DVD’s com filmagens de cariz sexual do suspeito D e sua companheira V, e acesso a fotografias presentes no telemóvel do mesmo, importa referir o seguinte.

A digna magistrada do Ministério Público veio requerer:

a) Seja ordenada busca para apreensão de DVD’s com filmagens de caráter sexual em que intervêm o suspeito D, a sua companheira V, e diversos menores não concretamente identificados;

b) Seja autorizada e ordenada a recolha e análise do conteúdo dos telemóveis apreendidos, designadamente com vista a apurar se os mesmos possuem armazenados ficheiros de fotografia relacionados com a prática dos factos.

Compulsados os autos há neles indícios de que até março de 2010, na residência que ocupava, sita em Quinta -----, Palmela, e onde ainda reside a sua companheira V e os seus dois filhos menores, o suspeito manteve relações de cópula com a ofendida T.

Em sede de declarações, a mesma esclareceu ainda que nesta residência o casal mantinha relações de sexo à sua frente como à frente dos seus filhos menores, bem como ali guardavam filmes caseiros em DVD’s onde apareciam o D e a V em atos de abuso sexual de diversas crianças, tendo também ali visto fotografias deles com crianças, praticando atos de natureza sexual.

A fazer fé na versão da ofendida, as vítimas crianças não identificadas terão sido obrigadas a manter relações sexuais com o suspeito D e com a sua companheira, contra a sua vontade, e bem assim terão sido filmadas e fotografadas tais práticas, por pessoa desconhecida.

A terem ocorrido tais filmagens e captações fotográficas, as mesmas foram realizadas sem consentimento das vítimas, e contra a sua vontade.

A filmagem das vítimas, em tais circunstâncias, constituiu um ilícito criminal - a acrescer aos outros - sendo suscetível de se subsumir, esse comportamento, ao tipo legal de crime de gravações e fotografias ilícitas previsto e punível pelo artigo 199º, número 2, al. a), do Código Penal, e eventualmente ao tipo legal de crime de devassa da vida privada previsto e punível pelo artigo 192º número 1, al. b), do Código Penal.

Se a filmagem das vítimas constituiu um crime, com ofensa ao direito à imagem e intimidade dos ofendidos, a sua divulgação ou utilização sem consentimento dos visados constitui outro crime (cfr. artigo 199º nº 2 al. b), do Código Penal).

Como se sabe, ressalvados os casos previstos na lei, são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada (artigo 124º, número 3, do Código de Processo Penal).

Segundo preceitua o número 1 do artigo 167º do Código de Processo Penal, as reproduções mecânicas, fotográficas e cinematográficas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal.

Em suma, a divulgação de tais filmagens no processo penal, sem o consentimento das vítimas, e sem uma causa que exclua a sua ilicitude, não deixa de constituir um ilícito criminal.

Atente-se a que não há nos autos qualquer consentimento das vítimas ou de quem teria, eventualmente, poderes para o dar. Na realidade, até a sua identidade permanece desconhecida.

Atente-se ainda aos valores em jogo, a perseguição criminal dos agentes de um crime, de um crime grave, por um lado, e, do outro lado, não apenas a esfera mais nuclear da intimidade como também a própria "dignidade humana".

"Uma fotografia feita sem consentimento ou qualquer outra legitimação lesa seguramente o direito de personalidade, mas ela só constituirá um atentado à dignidade humana quando tiver por objeto eventos cujo segredo corresponda ao interesse da pessoa fotografada e, para além disso e à luz da conceção geral dos valores ético-pessoais, releve da esfera da intimidade no seu conteúdo humano-típico (...) Tal vale seguramente para a expressão íntima da vida sexual (...). As fotografias ou gravações ocultas que em tais casos se façam resultam na objetivação duradoira de uma irrepetível situação interpessoal de caráter eminentemente pessoal, que contraria a dignidade humana" (Peters, citado por Costa Andrade, in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, 2006, Coimbra Editora, pág. 263).

Seguimos aqui Costa Andrade (obra citada, pág. 266 e ss.), quando se posiciona no sentido de que o princípio da ponderação de interesses é imprestável para os casos em que a fotografia ou o registo da imagem atingiu a esfera mais nuclear da intimidade (e não apenas a esfera dos outros graus da privacidade), a qual constitui uma área nuclear inviolável, mesmo para efeitos de justiça e de perseguição criminal, nomeadamente para utilização como prova no processo penal.

E isto por que não está em causa apenas o direito da vítima à sua imagem, mas algo mais, a sua própria intimidade e dignidade humana.

Como refere Costa Andrade (Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 1999, Coimbra Editora, pág. 737), a esfera da intimidade constitui uma área nuclear e inviolável, fora do alcance da prossecução de interesses legítimos (causa de exclusão da ilicitude para a divulgação de factos relativos à vida privada, prevista no número 2 do artigo 192º do Cód. Penal).

As "exigências de justiça" a que alude o número 2 do artigo 79º do Cód. Civil, não afeta este sentido do ordenamento, pois aquele normativo deverá ser interpretado sem prejuízo do estabelecido no artigo 167º do Código de Processo Penal, e a utilização ou valoração de fotografias ou filmes obtidos sem consentimento não se encontram, por si, legitimadas, pelo simples facto de se destinarem a servir como prova em processo penal (Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 1999, Coimbra Editora, pág. 739).

Refere Costa Andrade a fls. 838 de tal obra:

“No plano jurídico-constitucional, não haverá obstáculos intransponíveis à consagração, também aqui, de um regime semelhante ao das escutas telefónicas. Este é porém, um passo que o legislador ordinário não quis dar e que, por vias disso, o intérprete e o aplicador da lei não estão, por si, legitimados a empreender (…). Tal sempre estaria de resto, precludido pelo disposto no artigo 167º do Código de Processo Penal (Valor probatório das reproduções mecânicas). Que representa a consagração positivada da opção do legislador de não reconhecer à realização da justiça criminal – pese embora a sua inquestionável dignidade constitucional – a prevalência necessária para justificar os atentados à palavra ou à imagem. Assim, por desígnio tão expresso como unívoco do legislador, a prossecução das finalidades (repressivas) imanentes ao processo penal, maxime, a descoberta da verdade material, não legitima a produção, por particular ou por autoridade pública, sem consentimento, de gravação, fotografia, ou filme. Como não legitima a sua utilização ou valoração sem consentimento em processo penal. Independentemente do seu estatuto adjetivo-processual, nomeadamente no contexto das proibições de prova (…) tanto a produção como a utilização (valoração) das gravações e fotografias configuram, no plano substantivo, expressões irredutíveis de ilicitude criminal.”

Os negritos são de nossa lavra.

Ora não sendo possível a utilização, como meio probatório, de tais gravações/fotografias (artigos 126º, número 3, 167º, número 1, ambos do Código de Processo Penal e 194º, número 2, do Código Penal), não é de autorizar a sua apreensão, ou sequer visualização.

Face a todo o exposto, indefiro o requerido, nesta parte.
*
Mais vem requerer o Ministério Público seja autorizada a visualização do conteúdo dos aparelhos de telemóvel apreendidos ao suspeito e melhor identificados a fls. 128, bem como dos cartões que nos mesmos se mostrem colocados, para registo documental de toda a informação.

Os atuais telemóveis constituem aparelhos sofisticados, que além da capacidade de realizar comunicações, permitem, não raras vezes, a captação de imagens, quer isoladas (fotogramas) quer em sequência rápida (videogramas, também por vezes apelidados, impropriamente, de “filmes”).

Ou seja, funções que em tempos idos eram exclusivos de câmaras fotográficas (analógicas ou digitais) e de vídeo.

Podem igualmente manter registos de endereços – as chamadas agendas eletrónicas.

Alem disso, mantêm registos não só do conteúdo de certas comunicações escritas, como também da sua atividade, v.g. os chamados dados de tráfego (os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pelo utilização da rede por ex. id. do destinatário, duração da comunicação, data e hora).

Os registos presentes num telemóvel com tais características poderão assim revestir essas quatro naturezas, sendo igualmente diferenciado o tipo de formalismo a que deverá obedecer a recolha desses elementos, afim de poderem ser considerados como elementos probatórios.

Assim:

a) os registos de endereços estão sujeitos ao regime das apreensões e exames, tal como se de uma agenda em papel se tratasse, de notar que este tipo de objeto em particular possui conteúdo de caráter pessoal, todavia, esse caráter pessoal não impede que um Órgão de Polícia Criminal, desde que previamente autorizado por um juiz de instrução, as apreenda e tome conhecimento do seu conteúdo, exceção feita, para o caso de nelas se conter informação íntima (respeitante ao “nicho de privacidade” que se impõe que o Estado, mesmo no exercício do jus puniendi, respeite, cfr., Ac. Do Tribunal Constitucional número 607/2003, in DR, II Série, de 8 de abril de 2004), em relação à qual existirá uma proibição de prova, sendo que uma agenda, mesmo pessoal, não deve confundir-se com um diário íntimo – neste sentido ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/10/2004, proc. 5150/2005-3, in www.dgsi.pt [1].

b) os registos relativos ao conteúdo das mensagens enviadas e recebidas[2]e os dados de tráfego estão sujeitos ao disposto nos artigos 187º a 189º do Código de Processo Penal;
e,

c) os registos de imagem (única ou em sequência) estão sujeitos ao regime disposto nos artigos 167º e 172º, com referência ao artigo 126º, número 3, do mesmo diploma.

Nos presentes autos, investigam-se factos eventualmente consubstanciadores da prática de vários crimes de abuso sexual de menor dependente, previstos e puníveis pelo artigo 172º, números 1 e 2, do Código Penal, crime punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

Encontram-se apreendidos à ordem do inquérito dois telemóveis, contendo os respetivos “SIM”’s, que comprovadamente foram utilizados pelo suspeito da autoria dos referidos factos.

Considero que, face aos elementos que constam dos autos, e melhor identificados no relatório policial de fls. 131, em conjugação com os demais elementos probatórios já carreados para os autos, o acesso às agendas telefónicas e registos de chamadas e mensagens recebidas e enviadas dos telemóveis apreendidos revelam-se de interesse para a descoberta da verdade material, bem como para as necessidades de obtenção de prova, designadamente para apurar o modus operandi do visado, da natureza da sua relação com a ofendida, bem como os contactos por ele eventualmente estabelecidos.

Todavia, e atento o modo de execução da atividade delituosa, a mesma proporciona alguma abertura à utilização útil de outros meios probatórios menos invasivos, nomeadamente, o testemunhal.

De facto e indeferindo-se o requerido, nesta fase, não é possível concluir que a obtenção de prova que se visa com o mesmo e que é necessária aos fins da presente investigação se tornaria provavelmente impossível ou muito difícil.

Assim, e pelo exposto, indefiro, também nesta parte, o requerido, com a exceção do acesso aos agendas dos referidos aparelhos, o qual permitirá estabelecer alguns pontos de desenvolvimento para a investigação, e não se considera demasiado invasivo, atentos os interesses em causa.

Deste modo, ao abrigo do disposto no artigo 171º, número 1, do Código de Processo Penal, e tendo por base o princípio de limitação de direitos que decorre do disposto no artigo 177º, número 1 do mesmo diploma, autorizo o acesso para fins exclusivamente de recolha de prova, por parte do Órgão de Polícia Criminal às agendas telefónicas dos telemóveis e SIM’s referidos a fls. 139-140.

No que toca ao acesso a imagens registadas nos referidos aparelhos, vale o que ficou dito no despacho anterior.

Regressem os autos ao Ministério Público.

***
Setúbal, data supra

Processado e revisto pelo signatário – artigo 94º, número 2, do Código de Processo Penal

V. Pedro Nunes
(Juiz de Instrução Criminal)»

3. – Inconformado, recorreu o MP, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:

Conclusões:

I - Nos autos de inquérito à margem referenciados investiga-se a prática de vários crimes de abuso sexual de menor dependente, p e p no art. 172º, nº1 e 2, do C. Penal.

II – Na sequência das declarações prestadas pela menor T, que afirmou que os suspeitos D e V, guardavam na sua residência filmes caseiros em DVD’s onde apareciam o D e a V em atos de abuso sexual de diversas crianças, tendo ali também visto fotografias deles com crianças praticando atos de natureza sexual, foi requerida a busca a esta residência para apreensão destes objetos.

III – Foi ainda requerida a visualização do conteúdo dos aparelhos de telemóvel apreendidos ao suspeito como dos cartões que nos mesmos se mostrassem colocados e de fotografias relacionadas com os crimes em investigação nos autos.

IV – Este requerimento mereceu o indeferimento do Mmo. Juiz de Instrução por considerar que integram um método proibido de prova.

V – Os objetos cuja apreensão foi requerida integram o próprio instrumento do crime pelo que não podem manter-se na posse e para uso do seu autor.

VI – A sua apreensão e o tratamento, com sujeição a exame e se necessário a perícia, não constitui método proibido de prova.

VII – As imagens que a suspeita guardará na sua residência e que podem encontrar-se nos aparelhos de telemóvel apreendidos também não integram, como invoca o Mmo. Juiz, crime de fotografia ilícita ou até de devassa da vida privada.

VIII – Integram sim a prática de um crime de pornografia infantil. As crianças envolvidas e que poderão ser visualizadas em tais imagens foram vítimas de crime de abuso sexual.

IX – Não sendo identificáveis, não podem, de facto, prestar o seu consentimento para a junção de tais objetos ao processo; mas

X – Não sendo junto o instrumento do crime que o Estado visa punir impede-se a mesma punição.

XI – Os objetos em questão não constituem método proibido de prova, a obter no decurso da investigação por meio de tortura, coação ou ofensa a terceiro. São o instrumento e objeto do próprio crime, a conduta ilícita que o Estado visa punir.

XII – O despacho recorrido viola as previsões contidas nos art. 125º, 126º, 178º, nº1 e 187º, nº1, al. a), do CPP, cuja correta interpretação determina as apreensões requeridas sem colocar qualquer obstáculo à utilização de tais objetos como meio de prova, o seu exame ou sujeição a perícia, a visualização do conteúdo dos aparelhos de telemóvel apreendidos com registo documental de todas as imagens que integrem a prática do crime.

Deve pois a decisão recorrida ser substituída por outra conforme com a interpretação sufragada no presente recurso e cuja apreciação se requer.

4. – Nesta Relação, a senhora magistrada do MP conclui igualmente pela total procedência do recurso.

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso.

É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

No caso concreto, são as seguintes as questões suscitadas pelo MP recorrente, as quais importa decidir:

- Da legalidade da busca na residência do suspeito para apreensão de DVD´s com filmagens de atos sexuais entre os suspeitos e menores de identidade não apurada e

- Da legalidade da visualização do conteúdo de dois telemóveis apreendidos ao suspeito no EP de Pinheiro da Cruz, onde aquele cumpre pena de prisão, para aceder a fotografias que aí se encontrarão guardadas.

O despacho recorrido indeferiu ainda o acesso ao registo de chamadas e mensagens recebidas e enviadas dos dois telemóveis referidos, por considerar ser possível o recurso a meios de prova menos intrusivos para prova dos factos respetivos, mas essa parte do despacho não foi questionada na motivação e suas conclusões, pelo que não integra o objeto do presente recurso.

2. Decidindo da legalidade da busca na residência do suspeito para apreensão de DVD´s e acesso às fotografias guardas nos telemóveis apreendidos ao suspeito.

Nos presentes autos de inquérito, investiga-se, para além do mais, a prática de atos sexuais pelo suspeito D (n. 1962) na pessoa de T (n. em 19.12.1995), quando vivia ao seu cuidado e da suspeita V, em período compreendido entre o ano de 2007 e maio de 2010.

Conforme aludido supra, o senhor JI indeferiu o requerimento do MP no sentido de ser autorizada a busca na residência dos suspeitos – D e V - com vista à apreensão de DVD,s com filmagens de atos sexuais entre os suspeitos e menores de identidade não apurada, conforme relatado pela ofendida T (n. 19.02.1995) e uma outra criança.

O senhor juiz a quo indeferiu o acesso às fotografias alegadamente guardadas nos dois telemóveis apreendidos ao suspeito, como se de máquinas fotográficas digitais se tratasse, o que nos parece correto no essencial e não é questionado no recurso, pelo que se apreciará e decidirá unitariamente das questões da busca e apreensão dos DVD,s e do acesso às fotografias ali guardadas, uma vez que está em causa a mesma questão jurídica.

Vejamos

2.1. - A questão de direito probatório suscitada nos autos é, essencialmente, a de saber se podem ser utilizados como prova nos presentes autos filmagens e fotografias alegadamente realizadas pelo suspeito D, em que este e a suspeita V sujeitam menores não identificados a manter relações sexuais consigo, conforme pretende o MP recorrente, ou se a proteção constitucional e ordinária dos direitos à imagem e à reserva da vida privada e à dignidade da pessoa humana, impede tal utilização, conforme decidiu o senhor juiz a quo.

Cumpre apreciar e decidir.

2.2. – O art. 167º do CPP determina que quaisquer reproduções mecânicas, incluindo reproduções fotográficas e filmagens, só valerão como meio de prova relativamente aos factos ou coisas reproduzidas, se não forem ilícitas, nos termos da lei penal.

Assim, o legislador processual penal faz depender a possibilidade de valoração das reproduções mecânicas como meios de prova do regime da tutela penal substantiva dos bens jurídicos comprometidos com aquelas reproduções, nomeadamente a imagem (no que aqui importa), mas também outros bens jurídico-penais que possam ser violados através de reproduções mecânicas, como sucede com a reserva da vida privada e familiar, entre outros. «Por expressa remissão da lei processual, a disciplina da admissibilidade/inadmissibilidade adjetiva destes meios de prova começa por ser um problema de licitude/ilicitude material.» C. Andrade, Sobre as proibições…p. 242

Conforme aludido, estão em causa fotografias e filmagens realizadas pelo próprio suspeito, que alegadamente registam a prática pelos suspeitos de crimes contra menores, de idade não determinada, pretendendo o MP a apreensão e acessos àquelas reproduções para prova daqueles mesmos crimes.

Ora, em casos como o presente, há que considerar que a realização dos filmes e fotografias não viola, de forma penalmente relevante, o direito à imagem (art. 199º C. Penal) dos suspeitos nem o seu direito à intimidade (art. 192º do C. Penal), desde logo porque aquelas reproduções são da autoria dos próprios.

No que respeita à pretendida utilização daquelas reproduções para prova dos crimes de abuso sexual de menores e de fotografias e filmagens ilícitas (art. 199º C.P.), alegadamente praticados pelos suspeitos contra menores não identificados, consideramos que aquela utilização contra os suspeitos não é igualmente típica/ ilícita, nomeadamente em face do disposto no art. 199º nº2 b) e 192º nº1 b), ambos do C. Penal.

2.3. - Na verdade, quer o mero direito à imagem dos suspeitos, quer o seu direito à intimidade da vida privada (por estarem em causa aspetos da sua vida sexual), não são penalmente tutelados nos casos em que, como no presente, as fotografias e filmes em causa reproduzem a materialidade de crimes de abusos sexuais de menores e constituem mesmo a materialidade de eventuais crimes de fotografias e filmagens ilícitas.

Assim é, porquanto deve entender-se que a consagração legal e constitucional do direito à imagem e do direito à intimidade, entre outros direitos fundamentais de personalidade, não pode levar à responsabilidade penal (v,g, pelas incriminações constantes do arts 199º e 192º, do C. Penal) resultante da sua utilização como prova em processo penal nos casos em que verifique igualdade de razões com as situações que têm levado ao entendimento de que não são puníveis as condutas das vítimas de extorsão, coação ou injúrias, que procedem a gravações de conversas incriminadoras com os respetivos agentes destes crimes.

Como diz C. Andrade, ao referir-se àquelas situações no âmbito da análise de questões pertinentes à determinação da área da tutela típica e da ilicitude/causas de justificação, em matéria de incriminação por gravações (e fotografias) ilícitas[3], como momento comum àquelas mesmas situações, “…sobressai um comportamento ilícito ou ao menos, eticamente censurável, por parte da pessoa cuja palavra é, sem o seu consentimento gravada. Igualmente comum e consensual entre a doutrina e a jurisprudência, é o entendimento de que os autores destas gravações não devem ser criminalmente sancionados.»

2.4. - Ora, embora a atipicidade ou licitude da gravação, filmagem ou fotografia levada a cabo pela vítima de outro crime, não implique, por si, a mesma conclusão para a utilização das reproduções respetivas, em virtude de o legislador incriminar expressamente a utilização contra vontade de reproduções licitamente obtidas (al. b) do nº2 do art. 199º do C. Penal), parece-nos que as razões que conduzem à atipicidade ou exclusão da ilicitude do comportamento da vítima, devem estender-se à utilização das reproduções em processo penal.

Isto é, se partirmos da consideração que a vítima que gravou ou fotografou sem consentimento ou contra a vontade do reproduzido, não deve ser punida (v.g. nos termos do art. 199º do C. Penal português), porque estamos perante hipótese de redução teleológica do tipo, em virtude de, v.g., a conduta criminosa do gravado, filmado ou fotografado, fazer caducar a proteção jurídica conferida ao direito à imagem ou à palavra[4], a mesma construção leva à atipicidade da utilização daquelas mesmas reproduções para prova em processo penal.

Na verdade, só a valoração em processo penal das reproduções obtidas pela vítima confere cabal lógica e coerência ao juízo de atipicidade ou licitude da sua conduta, visto que esta é dirigida à demonstração da prática do crime em função do próprio sistema de justiça, maxime do processo penal. Seria incongruente reconhecer a atipicidade da gravação de ameaças ou extorsão por parte da vítima, mas julgar punível a utilização daquelas reproduções para prova do crime em processo penal, pelas autoridades oficiais.

Em casos como o presente, foram os suspeitos quem procedeu ao registo fotográfico e videográfico de fatos indiciariamente criminosos, ao mesmo tempo que, ao fazê-lo, praticavam ainda – indiciariamente – o crime de fotografias ilícitas, p. e p. pelo art. 199º nº2 do C. Penal, para além, eventualmente, do crime de pornografia de menores p. e p. pelo art. 176º do C. Penal. Dificilmente se compreenderia, pois, que a tutela do seu direito à imagem ou à intimidade, pudesse fundar a tipicidade ou ilicitude da mera utilização das reproduções em processo penal, impedindo ou dificultando seriamente a averiguação e eventual punição pelos crimes em causa, utilização esta que está na base da atipicidade ou licitude da conduta da vítima que obteve as imagens em causa.

Conforme se escreveu no Ac. do TRP de 17.12.1997, pode «… ser utilizada como meio de prova de um crime de ameaças a cassete que contém a gravação da mensagem ditada pelo ofendido para o telemóvel do arguido, para, aí, ficar gravada (…) não havendo qualquer ilicitude por parte do ofendido ou das autoridades na obtenção dessa gravação, não tem cabimento a necessidade de consentimento do arguido para a sua posterior utilização como meio de prova em processo penal …]».

2.6. - Em boa verdade, porém, o tribunal a quo não fundamentou o seu indeferimento na tutela de direitos dos suspeitos, mas antes na tutela legal e constitucional dos direitos à imagem e, sobretudo, à intimidade da vida privada dos menores.

Sem razão, porém, sendo certo que do ponto de vista político criminal, sempre ficaria por compreender que o Estado visse impedida ou seriamente comprometida a perseguição criminal por crimes gravemente lesivos dos direitos dos menores ofendidos, em nome de direitos que os mesmos poderiam mesmo não querer exercer, em favor da perseguição criminal.

Vejamos porquê.

2.7. - Começando por analisar o crime de Gravações e fotografias ilícitas, previsto no art. 199º do C. Penal, na sua atual versão, no caso presente a incriminação pertinente à decisão do caso concreto é a prevista no nº2 al. b) e não no nº1, do art. 199º do C. Penal, pois estão em causa fotografias e filmagens de pessoas e não gravações da palavra falada, sendo certo que não se verifica completa sobreposição entre ambas as incriminações.

Assim, o que está em causa saber é se a apreensão e visualização como meios de prova nos presentes autos, das fotografias e filmagens em causa constitui utilização das respetivas fotos e filmes, contra vontade das pessoas representadas (in casu os menores) e não sem o seu consentimento, contrariamente ao que parece ter entendido o despacho recorrido.

De acordo com a síntese de Leal Henriques e Simas Santos, “ … enquanto no primeiro caso [nº1] a ação só é lícita se consentida, aqui [nº2] é lícita mesmo quando não consentida desde que não contrarie a vontade da pessoa” - Cfr. C. Penal anotado, 2º vol. 1996 p. 407.

A propósito da contrariedade da vontade da pessoa filmada ou fotografada, enquanto elemento objetivo do tipo, entende C. Andrade que bastará a contrariedade com a vontade presumida da pessoa fotografada ou filmada, devendo entender-se que a valoração de foto ou filmagem de arguido em processo penal é feita contra a sua vontade presumida - cfr Comentário Conimbricense I, 1999, p. 833 -, o que significa que em casos como o presente poderia ser típica a utilização das fotos e filmagens contra os suspeitos, por ser de presumir que os mesmos são contra tal utilização.

2.8. - Já não será assim, porém, no que respeita às vítimas que embora menores possam manifestar validamente a sua vontade quanto a bens jurídicos disponíveis, como é o caso do direito à imagem, por terem eventualmente mais de 16 anos de idade, em face do disposto nos arts. 38º e 39º, do C. Penal), que, referindo-se ao consentimento, valerá igualmente para a manifestação de vontade em sentido contrário, enquanto elemento típico de crime.

Na verdade, sendo indiciariamente vítimas de alguns dos crimes em causa nos presentes autos de inquérito, menores que podem ter mais de 16 anos, nada permite concluir que os mesmos se oporiam à utilização das fotos e filmagens em processo penal contra os seus agentes, nem tal corresponde à normalidade da vida social, pois situa-se em plano completamente diverso (se não mesmo, em plano adverso) dos casos em que a violação do seu direito à imagem se dá no interesse do agente ou de terceiros, em prejuízo da vítima. Assim sendo, a utilização daquelas reproduções mecânicas não preencheria a previsão do nº2 al. b) do art. 167º do C. Penal, por não ocorrer contra a vontade - manifestada ou presumida – daquelas vítimas concretas.

2.9. - Quanto a eventuais vítimas menores de 16 anos e, portanto, a quem a lei de processo não reconhece capacidade para prestar o seu consentimento em sentido amplo, ou seja, o acordo gerador de atipicidade ou o consentimento enquanto causa de justificação, parece-nos que a questão coloca-se igualmente no campo da tipicidade, mas resolve-se em termos diferentes.

Ou seja, nos casos em que as fotografias ou filmagens reproduzem a materialidade de crime contra menores de 16 anos (como sucede in casu, no que respeita a eventual crime de abuso sexual de crianças) ou em que aquelas reproduções constituem, elas mesmas, a materialidade do próprio crime (como sucederá in casu, relativamente ao crime de fotografias e filmagens ilícitas de menores, indiciariamente perpetrado pelo suspeito D), a utilização das reproduções respetivas não é sequer tipicamente configurável como contrária à vontade dos menores de 16 anos, em nome do interesse destes, tal como o direito penal e processual penal configura e regula este mesmo interesse.

Isto é, pelo menos nos casos em que é público o crime contra menores de 16 anos cuja materialidade é reproduzida nas fotografias ou filmagens, não pode deixar de entender-se que a opção legal pela oficiosidade do procedimento criminal, acarreta no plano substantivo a exclusão da ilicitude ou mesmo da tipicidade da utilização daquelas reproduções como prova em processo penal, na medida em que as mesmas sejam importantes para a descoberta da verdade e a consequente condenação dos culpados.

2.10. - Nos crimes em causa (v.g. abuso sexual de menores e pornografia infantil) o legislador acolheu a prevalência do interesse na perseguição penal face aos interesses e direitos individuais dos menores, nomeadamente os mais ligados à chamada vitimização secundária, onde se inclui o direito à intimidade. «As exigências que o processo encerra (v.g. inquirições e exames que contendem com o cerne mais secreto e profundo da intimidade de cada um), os esforços que a vítima tem de implementar para a prossecução da investigação, constituem fontes de stress tão intensas, ou mais, que os factos que lhe deram origem»[5].

Não obstante isso, «colhida a notícia criminis o MP tem de dar início ao inquérito, mesmo contra os mais elementares interesses do menor. Não está na sua disponibilidade, ou sequer na disponibilidade daquele, ponderar os custos e os benefícios da perseguição criminal e optar pela solução mais vantajosa.»[6].

Podemos, pois, dizer no plano da coerência legislativa, que o sacrifício da imagem do menor e da sua esfera da intimidade, através da visualização de atos que apesar de terem lugar ao arrepio da sua vontade não deixam de lhe dizer respeito, enquadra-se no campo mais geral dos direitos e interesses do menor sacrificado pela opção pelo caráter público destes crimes. No entanto, mais do que de estrita coerência, parece-nos dever falar-se na generalidade dos casos num argumento de maioria de razão a favor da licitude ou atipicidade da utilização de fotos ou filmagens que reproduzam a materialidade do crime, na medida em que esta utilização pode permitir uma participação menos ativa do menor no processo, dispensando-se a prática ou repetição de alguns atos processuais mais intrusivos que o acesso às imagens registadas. É o caso das declarações e examos médico-legais, através dos quais «A criança tem de revelar toda a sua intimidade a terceiros, que lhe são, quase sempre, meros desconhecidos. (…) Não podemos esquecer que «para a criança vítima, relatar a situação de vitimação pode significar reexperimentar de forma intensa e desgastante uma experiência traumática»[7].

2.11. - Concluímos, pois, por um lado, que atenta a opção legislativa pela promoção oficiosa do processo penal nestes casos de crimes contra menores, não faria sentido erigir em prova absolutamente proibida a que pudesse afetar a intimidade ou imagem do menor, nem tão pouco deixar ao representante legal do menor incapaz de consentir a decisão sobre a utilizibilidade e valoração de prova pré constituída, importante para a descoberta da verdade.

Por outro lado, a utilização das reproduções de imagens e atos envolvendo a intimidade do menor é acompanhada de algumas medidas tendentes a minorar o efeito lesivo daquela utilização, em diferentes fases do processo, como é o caso da exclusão da publicidade do ato processual (arts 87º nº3 e 321 nº2, do CPP) ou da proibição de revelação da identidade da vítima (art. 88º nº2 c) do CPP).

Por último, a utilização em processo penal das reproduções em causa, pode permitir mesmo a dispensa ou diminuição de outros atos no processo que, envolvendo a participação ativa do menor, sejam mais lesivos dos seus direitos e interesses comprometidos pela perseguição penal.

2.12. - Sem levar mais longe a procura do caminho dogmaticamente mais correto para fundamentar a exclusão da responsabilidade penal da utilização das fotografias e filmagens em causa e, portanto, a licitude da sua valoração ((cfr art. 167º do CPP), parece-nos que tal utilização poderá enquadrar-se nas causas de justificação previstas no art. 31º do C. Penal ou ser mesmo considerada atípica.

No sentido da exclusão da ilicitude ou justificação, poderá dizer-se que na génese do problema provocado pela utilização daquelas reproduções em processo penal, se encontra uma situação conflitual em que se debatem interesses contrapostos, a resolver pela prevalência do interesse juridicamente preponderante[8], no quadro dos concretos direitos de intervenção dos titulares de um poder oficial[9], seja no âmbito do exercício de um direito, seja do cumprimento de um dever imposto por lei (cfr art. 31º nº2 b) e C), do C. Penal).

No que se reporta à atipicidade, é pela via da redução teleológica do tipo, nomeadamente pela consideração que nos encontramos fora da área de proteção da norma penal nestes casos de utilização para prova de menores vítimas de crimes públicos, que pensamos encontrar resposta mais sustentada.

Em qualquer das hipóteses, sempre partimos da irresponsabilidade penal da utilização de fotos e filmagens como meio de prova necessário à procura da verdade material em processo penal pelos crimes indiciados nos presentes autos, para concluirmos pela licitude da utilização das fotografias e DVD,s em causa e, portanto, da respetiva apreensão e visualização, nos termos do art. 167º do C.P.P.

Não pode, pois, deixar de proceder o presente recurso.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso interposto pelo MP, revogando-se o despacho recorrido e decidindo, em substituição, ser lícita a pretendida busca e apreensão dos DVDs bem como o acesso ao conteúdo dos telemóveis apreendidos para visualização e utilização como prova em processo penal, das fotografias neles guardadas, tal como requerido pelo MP.

Sem custas.

Évora, 13 de Setembro de 2011

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

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(António João Latas)

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(Carlos Jorge Viana Berguete Coelho)

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[1] Bem recentemente referiu o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 3 de março de 2010, proc. 886/07.8PSLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt : “A consulta da agenda contida num telemóvel não representa uma intromissão nas telecomunicações nem representa a violação da reserva da vida privada. Outrossim, a ponderação investigatória e probatória, da agenda do telemóvel como fator de determinação da sua propriedade, e da relação sequente com o crime praticado, não colide com nenhum núcleo fundamental da dignidade do investigado e está perfeitamente justificada pela ponderação do interesse em perseguir criminalmente quem comete um crime de homicídio voluntário, sob a forma tentada, face à mera determinação dos contactos telefónicos existente na agenda do telemóvel que foi abandonado. Estamos em face de uma situação análoga à da mera agenda, ou do documento, que por mero descuido o agente criminoso esqueceu no local do crime, não existindo qualquer utilização de meio proibido de prova.”

[2] Também neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora,3ª edição, 2009, pag.528, anotação 10, em sentido diverso, o Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão de 15-07-2008, proc. número 3453/2008-5, in www.dgsi.pt .

[3] Refere aquele autor que, no essencial, se discute se as condutas em causa devem considerar-se desprovidas de tipicidade, nomeadamente por sofrer uma redução da área de tutela de sentido vítimodogmático a partir dos limites imanentes aos direitos fundamentais ou, pelo menos, de ilicitude, com base, segundo as diferentes posições doutrinárias, em “quase legítima defesa”, legítima defesa, direito de necessidade, prossecução de interesses legítimos ou num critério geral de interesses – cfr. Costa Andrade, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, 834-840, e Sobre as proibições de prova em processo penal, 242-272.

[4] Vd, o tratamento desta problemática em Costa Andrade, Proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, pp 254-271

[5] Cfr João Conde Correia, O papel do MP no crime de abuso sexual de menores in Julgar, ed. ASJP, nº 12, especial – 2010, p. 164.

[6] Idem p. 165

[7] Cfr João Conde Correia, est, cit. p. 173-4.

[8] Cfr, por todos, F. Dias, Direito penal. Parte Geral I, 2ª ed.,2007 p. 391

[9] Cfr F. Dias, ob. cit. p. 494-5.