Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1064/16.0GDSTB.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DO RECORRENTE
PROVA PERICIAL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 09/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: ANULADA A DECISÃO
Sumário: I – Não cumpre o ónus previsto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, sendo por isso de rejeitar o recurso quanto à impugnação da matéria de facto se o recorrente se limita a indicar toda a prova produzida, sem indicação dos concretos pontos de facto em que esteja em desacordo, pretendendo uma reapreciação de toda a matéria de facto;
II – O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, podendo o julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, desde que fundamente a divergência (artigo 163º do CPP): mas tal possibilidade de divergência deve conter-se no âmbito dos mesmos conhecimentos do juízo científico emitido;
III – Verifica-se erro notório na apreciação da prova se no relatório da autópsia se conclui que houve intenção de matar por parte do arguido e o tribunal recorrido não só contrariou a perícia quanto à intenção de matar, como a contrariou fora do específico campo do conhecimento científico em causa, fazendo apelo a declarações e ausência de depoimentos que afrontam o senso comum.
Decisão Texto Integral: Proc. n. 1064/16.0GDSTB.E1



Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


A - Relatório:
No Tribunal Judicial de Comarca de Setúbal - Inst. Central, Sec. Criminal, J 2 - correu termos o processo comum colectivo supra numerado no qual é arguido BB, solteiro, nascido a (…) a quem foi imputada a prática, em co-autoria material e concurso real e efectivo, na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artºs 131º e 132º, nº 2, alª e) e um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artºs 143º, 145, nºs 1, alª a) e 2 e 132º, nº 2, alª e); e um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artº 143º, todos do Código Penal.
O ofendido CC constituiu-se como assistente e deduziu pedido de indemnização cível contra o arguido, ora demandado.
Em sede de audiência de discussão e julgamento apresentou desistência de queixa relativamente aos dois crimes de ofensa à integridade física, um na sua forma qualificada, tendo sido homologada tal desistência apenas quanto ao crime de ofensa à integridade física simples e tendo sido relegado para final o conhecimento quanto à outra desistência da queixa.
Mais desistiu do PIC formulado contra o demandado e arguido, desistência essa devidamente homologada por sentença.
O filho do falecido, DD, constituiu-se como assistente e deduziu PIC também contra o arguido e ora demandado.
EE, na qualidade de viúva do falecido deduziu PIC também contra o arguido e ora demandado tendo falecido na pendência da ação e, na sequência de tal, sido ordenada a remessa para os meios comuns para apreciação de tal pedido em ordem a não atrasar intoleravelmente o processo, dada a sua natureza urgente por se encontrar o arguido e demandado preso.
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A final, por acórdão de 25.01.2018, decidiu o tribunal recorrido:
- julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada, a acusação e, em consequência:
a. Absolveu o arguido BB da prática, em autoria material e na forma consumada, em concurso real, da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artºs 131º e 132º, nº 2, alª e) e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artºs 143º, 145, nºs 1, alª a) e 2 e 132º, nº 2, alª e) do Código Penal;
b. Condenou o arguido BB pela prática, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, p. e p. pelo artigo 147º, nº 1 do Código Penal;
c. Aplicou ao arguido BB o regime especial para jovens (Lei nº 401/82, de 23/09) e condenou-o na pena de um ano e 10 meses de prisão;
d. Suspendeu a execução da pena aplicada ao arguido BB, por igual período de tempo, sujeita a regime de prova, com especial enfoque no acompanhamento psicológico (cfr. artº 50º e 53º, nºs 1 e 2 do CP); e
- julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o PIC formulado e, consequentemente:
a. Condenou o demandado BB a pagar ao demandante DD a quantia de 25.000,00€, a título de danos não patrimoniais;
b. E no mais legal.
***
O assistente, não se conformando com a decisão, interpôs recurso formulando as seguintes (transcritas) conclusões:
a) Inconformado com o Douto Acórdão, interpõe o assistente/Demandante o presente recurso, por considerar que o acórdão ora recorrido padece do vício de erro notório na apreciação da prova, porquanto entende que os factos dados como provados no douto acórdão, não encontram suporte na prova produzida, nomeadamente nos depoimentos das testemunhas prestados em audiência de discussão e julgamento, comparativamente às declarações prestadas em sede de inquérito e aos demais elementos de prova existentes nos autos;
b) Bem como, por discordar com o direito aplicado;
c) Por outro lado, dos meios de prova em que, segundo o Tribunal “a quo”, assentou a sua convicção, considera-se que foram indevidamente e erradamente interpretados;
d) O Tribunal “a quo” valora inadequada e erroneamente os meios de prova produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento em detrimento de outras provas tão ou mais relevantes, como é o caso das recolhidas em fase de inquérito;
e) Versando o presente recurso, também, na impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, tal terá repercussões na aplicação do Direito realizada pelo Tribunal “a quo”, nomeadamente quanto a pena aplicada ao arguido;
f) Desde logo, as declarações prestadas pelo Arguido/Demandado apresentam contradições ao longo do seu discurso, bem como quando comparadas com as suas declarações em sede de Interrogatório Judicial e com as declarações de outras testemunhas;
g) O Arguido/Demandado apresenta arrependimento, peso de consciência pela morte de FF e sentimento de culpa que não se vislumbra o alcance que esse quer atribuir com tais sentimentos, considerando a sua negação dos factos, mas que o Tribunal vem no Douto Acórdão erradamente considerar que o Arguido/Demandado apresentou confissão e que as suas declarações foram coerentes;
h) As declarações do Arguido/Demandado não são dignas de serem credibilizadas, pois este apresenta um discurso incoerente, impreciso e contraditório;
i) Ao longo da Audiência de Discussão e julgamento, tentou-se apurar a ocorrência de pontapés na face da vítima FF que CC afirma coerentemente ter presenciado, entre outras testemunhas, que em sede de inquérito também o afirmaram, pese embora, em Julgamento o negassem, o Arguido/Demandado nunca disse não ter pontapeado a vítima FF, dizendo sim, não se recordando se lhe deu pontapés, mas em Interrogatório Judicial afirma que deve ter dado pontapés, não se lembrando de quantos;
j) Ao longo do testemunho prestado por CC, que se revelou coerente e isento, houve manifesta intenção de o responsabilizar pelo sucedido;
k) A testemunha CC, contrariamente ao declarado pelo Arguido/Demandado, afirmou inequivocamente que este e FF conheciam o Arguido/Demandado desde sempre;
l) Mais foi CC, coerente, preciso e idóneo na forma como descreveu os acontecimentos dos factos ocorridos em 10/12/2016, corroborando a sua versão apresentada em sede de inquérito;
m) O Tribunal “a quo” valorou de forma errada, tendo mesmo desconsiderado, o testemunho de CC;
n) Confrontadas as declarações de GG e HH em sede de Audiência de Discussão e Julgamento com as prestadas em sede de inquérito, é patente que estes praticaram um crime de falsas declarações, o que leva a não se compreender, a inércia por parte do Ministério Público que tão bem conhece os autos, não promover no sentido de serem extraídas as competentes certidões para procedimento criminal;
o) As testemunhas referidas na alínea anterior, assumiram, em detrimento da verdade, uma verdadeira postura de testemunhas abonatórias, mas que acabaram por ser contraditórias entre si e, comparativamente aos demais testemunhos, na própria descrição dos factos, bem como no tocante à personalidade do Arguido/Demandado, não conseguindo articular entre si uma versão fidedigna, considerando-se as suas declarações incoerentes;
p) A testemunha II, corroborou em audiência a sua versão apresentada em sede de inquérito e a versão descrita por CC;
q) Do seu testemunho, contrariamente ao que consta no Douto Acórdão não resulta que não tenham existido os pontapés que o arguido desferiu na vitima;
r) Também II prestou um testemunho idóneo, esclarecedor, corroborativo e isento;
s) No Douto Acórdão, é gritante a constatação da omissão de factos relatados por algumas testemunhas, bem como a interpretação errónea das declarações de algumas testemunhas, que importam para a descoberta da verdade e isso carece da audição do julgamento;
t) Entre outras, o referido na alínea anterior, constata-se nas declarações prestadas pela testemunha JJ e do Inspector KK;
u) No Douto Acórdão é considerado inadmissível como meio de prova os depoimentos recolhidos pelo Inspector KK no local dos factos, logo após a sua ocorrência, e que foram levados ao Tribunal, leva a questionar a razão pela qual, quando o Arguido/Demandado é presente a Juiz, se a medida de coacção de prisão preventiva não foi fundamentada com base nesses indícios recolhidos pelo Inspector KK no local;
v) Por outro lado, no Douto Acórdão desvaloriza-se as declarações do Inspector KK, quando na realidade foi este que recolheu indícios e conduziu os autos que sustentaram uma acusação, em que se imputa ao Arguido/Demandado a prática de um crime de homicídio qualificado;
w) As testemunhas abonatórias, que declaram todas elas conhecer o Arguido/Demandado há longos anos, acabaram por ser contraditórias entre si;
x) Do Douto Acórdão, resultam provados factos que ouvida a gravação do julgamento se poderá constatar que jamais se provaram;
y) Não se compreende, porque razão foi omitido no relatório social do arguido, os desacatos por este desencadeados no estabelecimento prisional onde se manteve em prisão preventiva;
z) Nos demais meios de prova constata-se que o arguido ingere bebidas alcoólicas e que é uma pessoa conflituosa, com histórico de violência;
aa) Nos demais meios de prova constata-se que não podem subsistir duvidas que o arguido desferiu pontapés na Vitima, após a cabeçada que o fez embater no solo;
bb) Dúvidas não subsistem, que o Douto Acórdão se encontra viciado de erros na apreciação da prova, tendo valorado inadequadamente a mesma, manifestando um claro e incompreensível favorecimento ao Arguido/Demandado;
cc) Considera-se que nos presentes autos, estamos efectivamente na presença de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelos artigos 131º e 132º nº 2 alínea e) do Código Penal, porquanto o elemento objectivo do tipo de crime se encontra preenchido, bem como no que respeita ao elemento subjectivo, o dolo existe, é elevado, pois o Arguido/Demandado com a sua conduta quis obter o resultado – a morte – contrariamente ao que é entendido pelo douto acórdão.
dd) Pelo que, se entende não merecer acolhimento constante no Douto Acórdão, no que se refere à alteração e da alteração do crime de homicídio qualificado, p.p. pelos artigos 131º e 132º nº 2 alínea e) do Código Penal para um crime de ofensas à integridade física agravada pelo resultado p.p. pelo artigo 147º nº 1 do Código Penal.
ee) Nestes termos, e face a toda a sustentabilidade do presente recurso, que não suscita duvidas que o arguido desferiu uma cabeçada e pontapés na vitima com o intuito de a matar, a censurabilidade da conduta do Arguido/Demandado, o dolo que se considera elevado, dúvidas não subsistem que o Arguido/Demandado, terá que ser condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelos artigos 131º e 132º nº 2 alínea e) do Código Penal, sendo a medida concreta da pena a aplicar privativa da sua liberdade e próxima dos limites máximos, sem prejuízo, do mesmo vir a beneficiar do regime especial para jovens, considerando a idade do Arguido/Demandado à data dos factos.
ff) E assim, consequentemente, por toda a prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento e acima de toda esta a já existente nos autos, no que respeita ao PIC deduzido pelo Assistente/Demandante, pela sustentabilidade do presente recurso, ser o Arguido/Demandado, nos termos do artigo 483º do Código Civil, obrigado a indemnizar o Assistente/Demandante, pelos danos não patrimoniais a este causados no pagamento de uma quantia manifestamente mais elevada que a que foi fixada no Douto Acórdão.
gg) No que respeita aos dois indivíduos que assistiram aos factos, objecto dos presentes autos, mas que não integraram a prova, deverão os mesmos ser identificados por forma a contribuir para aquela que é a importância da Justiça, ou seja, a descoberta da verdade.
hh) As testemunhas GG e HH, pela sua conduta propositada e impropria, praticaram um crime de falsas declarações e deverão ser responsabilizadas pela prática de tal crime.
Termos em que e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., Venerandos Desembargadores devem conceder provimento ao presente recurso, com o que se fará inteira JUSTIÇA
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A Digna procuradora da República respondeu ao recurso interposto defendendo a sua improcedência, concluindo:
1. O arguido vinha acusado da prática em autoria material e em concurso real, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artºs 131º, nº1 e 132º, nº2, al.e) do Código Penal e um crime de ofensa à integridade física qualificado, p. e p. pelos artºs 143º e 145º, nºs 1, al.a) e 2 e 132º, nº2, al.e, todos do Código Penal
2. O arguido BB foi condenado nos autos à margem referenciados, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, agravado pelo resultado, p. e p. pelo artº 147º, nº1 do Código Penal na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova.
3. Não se conformando com o acórdão, vem o assistente recorrer, invocando, em síntese, ter ocorrido erro na apreciação da prova, concretamente entre as declarações prestadas pelo arguido em primeiro interrogatório judicial e as da audiência de julgamento, bem como quanto às contradições dos depoimentos das testemunhas em sede de inquérito, em confronto com as do julgamento; Não foi valorado o depoimento de CC e do inspector da PJ, bem como do opc, em conjugação com o exame pericial; As testemunhas GG e HH prestaram falsas declarações em julgamento, não tendo o MºPº e o Colectivo tirado as legais consequências do acto; O arguido devia ter sido condenado pela prática do crime de homicídio, tal como vinha acusado; Deverão ainda ser inquiridas duas testemunhas que presenciaram os factos mas que não constavam do rol da acusação.
4. Salvo o devido respeito, o recurso da matéria de facto não visa a reapreciação de toda a prova produzida, mas apenas a detecção e correção de erros de julgamento.
5. Não tendo o recorrente cumprido tal ónus e constituindo o texto da motivação, o limite da correção possível das conclusões, conclui-se que, se as especificações a que alude o art.º 412º, nº 3, do CPP não constam sequer do texto da motivação, o efeito será o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso nesse âmbito.
6. Quanto à revista restrita, o recorrente confunde o vício do erro notório processualmente definível como um erro evidente que se surpreende na análise do texto da sentença, à luz das regras da experiência com um erro de julgamento considerado como a incorrecta apreciação da prova produzida que determina que os factos sejam indevidamente julgados provados ou não provados.
7. No caso dos autos, não tendo sido lidas, em audiência de julgamento, as declarações prestadas pelo arguido no inquérito, a valoração das suas declarações, constitui valoração proibida de prova, nos termos do art.355.º do C.P.P.
8. Igualmente quanto às testemunhas GG e HH, não tendo tais declarações sido lidas (houve oposição da defesa) em audiência de julgamento, não puderam ser contraditadas, nem podem, agora, ser trazidas à colação, como fez o assistente.
9. Salvo o devido respeito o recorrente confunde o vício do erro notório processualmente definível como um erro evidente que se surpreende na análise do texto da sentença à luz das regras da experiência com um erro de julgamento considerado como a incorrecta apreciação da prova produzida que determina que os factos sejam indevidamente julgados provados ou não provados.
10. O texto do acórdão recorrido, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação dos apontados vícios posto que daquele decorre que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e dele não resulta qualquer incompatibilidade entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão, assim como nele não se detecta qualquer equívoco ostensivo contrário a facto do conhecimento geral ou ofensivo das leis da física, da mecânica, da lógica ou de conhecimentos científicos criminológicos e vitimológicos.
11. Relativamente aos factos provados e no que concerne aos elementos objectivos do tipo apenas se apurou que o arguido tenha desferido uma cabeçada a FF, causando-lhe fractura dos ossos do nariz.
12. Mais se provou que o FF se encontrava com uma taxa de alcoolemia superior a 2,67 g/l de álcool no sangue, pelo que, na sequência da cabeçada caiu ao solo, sofrendo uma luxação atloido-axoldeia com contusão do tronco cerebral e consecutiva hemorragia para as cavidades do encéfalo.
13. Mais foi entendido que o arguido, com a cabeçada, não teve dolo de matar nem vislumbrou que a sua conduta pudesse levar a tal resultado, pelo que nem sequer a título de dolo eventual pôde ser imputada ao arguido, o crime de homicídio (qualificado ou simples) avançado em sede de acusação pública.
14. O Colectivo fez uma análise de toda a prova, conjugando a testemunhal, incluindo o agente da GNR e o inspector da PJ, com a pericial.
15. Quanto ao assistente CC, o seu depoimento foi descredibilizado, já que o mesmo se encontrava no interior do seu veículo, sendo que os factos ocorreram atrás do mesmo, pelo que ele não tinha visão sobre o local dos factos.
16. Nem o MºPº nem o Exmº Colectivo consideraram ser de prescindir dos depoimentos das testemunhas GG e HH, descredibilizando-os na sua totalidade e, nessa sequência, promovendo ou ordenando a extracção de certidão para procedimento criminal.
17. Mas ainda que assim fosse, tal não implicaria, como pretende o assistente, que se substituíssem as testemunhas indicadas na acusação, ouvindo outras, que no entender do recorrente, também assistiram aos factos.
18. Como o assistente bem sabe, a acusação fixa o objecto do processo e este há muito se encontra estabelecido, sendo extemporâneos os pedidos de inquirição de testemunhas.
19. Não se mostram violadas quaisquer normas jurídicas.
20. O acórdão recorrido não merece reparo e deve ser mantido.
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O arguido respondeu igualmente concluindo:
A) Recorre o assistente / demandante DD da douta sentença, sendo que analisados os fundamentos do recurso, consideramos que a douta sentença recorrida não merece as críticas que lhe são assacadas. As razões invocadas para a não conformação com a douta sentença traduzem-se na existência de erro notório na apreciação da prova.
B) Verifica-se o erro notório na apreciação da prova sempre que o juízo formulado revele uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários, de todo insustentáveis.
C) O assistente / demandante não impugna nenhum dos factos dados como provados nem como não provados nem indica em que sentido deveriam ser correctamente julgados e as provas que suportariam essa decisão.
D) No caso em apreço parece resultar que o assistente / demandante se insurge contra a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo procurando impugná-la no contexto do mais amplo recurso dessa mesma matéria.
E) Para impugnar validamente a matéria de facto o assistente / demandante tinha que individualizar os concretos pontos que constam da decisão recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, da materialidade dada como provada e não provada.
F) Tinha que indicar as concretas passagens dos meios de prova produzidos examinados em audiência que no seu entender imporiam decisão diversa, e as que deveriam ser renovadas.
G) Quanto a nós o recorrente não cumpre o ónus da impugnação especificada nos termos legalmente exigíveis, pois não basta remeter para a totalidade de declarações e depoimentos e argumentar que não lhes deveria ter sido conferida credibilidade ou que deveriam ter sido considerados credíveis.
H) O controlo pela relação sobre a matéria de facto proferida em primeira instância não visa a formação de uma nova convicção sobre cada facto impugnado mas sim apurar da razoabilidade dos fundamentos enunciados em abono da convicção expressada.
I) O recorrente limitou-se a contrapor à convicção alcançada pelo tribunal uma outra, que é a sua, baseada em meios de prova avaliados à sua maneira sem indicar o erro em que incorreu o tribunal a quo por referência ao conteúdo especifico do meio de prova e ao facto impugnado havendo assim insuficiência de recurso que o torna manifestamente improcedente.
J) Mais acresce ainda que o tribunal a quo fundou a sua convicção beneficiando da oralidade e da imediação, situação esta que está vedada a este tribunal de recurso.
K) Decidiu também com recurso à livre apreciação da prova que assenta na livre convicção do julgador, com base nas regras da experiência.
L) Ora no caso em apreço, e pelo que já se referiu, a fundamentação da decisão recorrida expõe de forma clara e percetível quer ao comum do cidadão, quer ao tribunal superior, quais as provas e o raciocínio lógico seguido na sua análise, não nos merecendo também nesta parte, qualquer reparo à sentença recorrida.
M) Face ao exposto entendemos não se mostrarem violados quaisquer dispositivos legais, devendo-se manter a sentença do tribunal a quo nos seus precisos termos.
Termos em que deve negar-se provimento ao presente recurso, e em consequência, ser integralmente confirmada a douta sentença recorrida.
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O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação apôs visto nos autos, razão pela qual não se deu cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.
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B - Fundamentação:
B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
A. No dia 10 de dezembro de 2016, em hora não concretamente apurada mas entre as 00h00 e a 1h00, o arguido encontrava-se no “Café…”.
B. No mesmo local e à mesma hora encontravam-se FF, CC e II.
C. Nessa noite, o assistente CC muniu-se de um busca-pólos e, na esplanada do “Café…”, começou a exibi-lo e a manuseá-lo e referiu, entre o mais, que tal instrumento era apto a furar.
D. No dia 10 de dezembro de 2016, naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o demandante CC, com a mão aberta, desferiu umas pancadas no pescoço do II, bem como umas bofetadas, enquanto solicitava que este lhe pagasse umas cervejas.
E. O assistente CC, entretanto, afastou-se do local e entrou no seu carro, tendo ficado de costas para o “Café …”.
F. O II, entretanto, dirigiu-se para o carro onde estava o assistente CC e, nesse ínterim, o arguido decidiu comprar as cervejas para oferecer ao FF, ao CC e ao próprio II tendo, inclusive, naquela altura e em circunstâncias não apuradas oferecido uma cerveja ao assistente CC, que a recusou.
G. O FF e o arguido trocaram palavras entres si e, de seguida, o arguido desferiu uma cabeçada no rosto do FF, atingindo-o na cara, cabeçada essa que o fez cair, de imediato no chão.
H. Na sequência da queda, o FF bateu com a parte posterior da cabeça no passeio, que se encontrava na sua trajetória de queda.
I. O FF era portador de uma TAS de 2,67g/l +/– 0,34g/l.
J. Apercebendo-se do que estava a passar-se na rua, GG, proprietário do café, dirigiu-se para perto do local onde se encontravam o arguido e o FF, tendo o arguido BB, aconselhado pelo GG, abandonado o local.
K. A vítima permaneceu prostrada no chão, sem qualquer reação e, pese embora os esforços de reanimação levados a cabo pela equipa do INEM, que ali compareceu, o óbito foi declarado no local pelas 1h50m, do dia 10 de dezembro de 2016.
L. Na sequência da agressão acima mencionada, traduzida na cabeçada desferida pelo arguido e subsequente queda, FF sofreu as seguintes lesões na cabeça:
a. Hematoma arroxeado, com o tamanho da palma da mão de uma criança e escoriação em área como uma dedada, para cima e para fora da bossa central direita;
b. Hematoma arroxeado infra-orbital direito;
c. Ferida contusa irregularmente transversal, no infra-cílio direito, com infiltração hemorrágica vizinha, com 2cm de comprimento.
d. Escoriação linear, irregularmente transversal, com 1cm de comprimento, na pirâmide nasal, circundado por halo equimótico arroxeado, na metade superior da pirâmide nasal, aparentando ligeiro desvio para a direita, crepitando à mobilidade local.
e. Equimose arroxeada, em área como grande dedada, na região mentoniana esquerda;
f. Múltiplas marcas equimóticas arroxeadas lineares com diversas orientações e com dimensões entre os 1 e 8 cm de comprimento, na hemiface esquerda sob fundo equimótico de tonalidade arroxeadas abrangendo a totalidade da hemiface;
g. Equimoses arroxeadas em áreas como grandes dedadas na região mentoniana, tanto direita como esquerda;
h. Inúmeras petéquias do tamanho de bicos e cabeças de alfinetes sobretudo em ambas as regiões malares;
i. Duas escoriações lineares, irregularmente verticais, medindo 6mm cada, no hemilábio superior esquerdo;
j. Duas equimoses arroxeadas, em áreas como dedadas, uma na mucosa do hemilábio superior esquerdo e outra na mucosa do hemilábio inferior direito;
k. Mobilidade acentuada dos dentes 4.1 e 4.2, com infiltração hemorrágica da gengiva circundante; e
l. Fratura cominutiva dos ossos próprios do nariz acompanhada de desvio direito da pirâmide nasal e de grande infiltração hemorrágica vizinha.

M. Para além disso, a vítima, em virtude do embate no passeio causado pela queda que deu, sofreu lesões internas ao nível da cabeça, concretamente:
a. Hemorragia meníngea sub-dural cobrindo em talha ambos os hemisférios cerebrais;
b. Hemorragia meníngea constituída por sangue líquido e coagulado que cobre o encéfalo, o cerebrelo e o tronco cerebral;
c. Contusão do tamanho de avelã no romboencéfalo, concretamente no bulbo raquidiano, acompanhado de hemorragia meníngea que inunda o quarto ventrículo e a pia-mater cerebelosa, com extensão para o espaço meníngeo a montante e a jusantes.
N. Ainda como consequência da queda e do embate no passeio, a vítima sofreu lesões ao nível da coluna vertebral e medula, concretamente luxação atloido-axoideia (ou atlanto-axial, noutra nomenclatura mas relativa à mesma lesão) com grande infiltração hemorrágica vizinha, acompanhada de foco de contusão e hemorragia meníngea.
O. As lesões referidas em M. e N. foram causa directa e necessária da morte de FF, consequência da luxação atloido-axoideia com contusão do tronco cerebral e consecutiva hemorragia para as cavidades do encéfalo;
P. Ao desferir uma cabeçada no rosto do FF quis o arguido ofender a vítima na sua integridade física, o que fez.
Q. O arguido, ao fazer com que, por via da cabeçada por ele desferida, o FF caísse e se lesionasse da forma descrita, não agiu com o dever de cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, tendo representado, como possível, a realização de tal morte sem, no entanto, se ter conformado ou querido essa realização.
R. Sabia o arguido que a sua conduta lhe era proibida e, ainda assim, atuou do modo descrito.
2.1.1. Factos provados na sequência da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento
A. Nas festas de …, no Verão de 2016, o arguido e o assistente e demandante CC, por razões não concretamente apuradas, envolveram-se em luta corporal.
B. A partir dessa altura e até ao dia 10 de dezembro de 2016, o assistente CC passou a, com frequência e acompanhado de terceiros, procurar o arguido no “Café …”, nomeadamente apodando-o de “maricas” e “filho da puta” e lançando-lhe, também, olhares, os quais eram interpretados pelo arguido como provocadores.
C. Na noite de 28 para 29 de outubro, o assistente CC, acompanhado de terceiros, nomeadamente de um cidadão de nacionalidade brasileira, foram ao “Café …”, tendo, dirigindo-se ao arguido, proferido as expressões já referidas em B.
2.1.2. Das condições pessoais do arguido
A. O arguido BB é natural do Barreiro e é o mais novo dos dois filhos do casal.
B. O seu desenvolvimento pessoal e social decorreu integrado no agregado familiar de origem.
C. A nível económico, existe uma boa situação financeira, alicerçada pelos rendimentos do progenitor como pequeno empresário.
D. A progenitora, até ao seu falecimento e desde há 7 anos, encontrava-se sem atividade laboral, em virtude de doença oncológica.
E. Os progenitores vieram a separar-se em 2015, ficando o arguido a residir com a mãe e com a irmã. Pese embora o divórcio, o pai do arguido continuou a garantir o apoio e ajuda necessários ao agregado familiar.
F. O arguido iniciou as atividades letivas em idade regular e tem, como habilitações literárias, o 9º ano de escolaridade, reprovou três anos, com abandono escolar no ano transato, a fim de poder trabalhar.
G. A nível laboral trabalhou em jardins, durante as férias escolares em 2015 e, em agosto de 2016, iniciou trabalho na construção civil, não tendo havido problemas quer com o empregador, quer com os colegas de trabalho.
H. À data da prática dos factos, residia com a mãe e com a irmã, 23 anos, estudante de Direito, numa vivenda com uma área de terreno de cerca de 900m2, propriedade do pai do arguido.
I. A subsistência do agregado familiar estava a cargo da progenitora. No entanto, porque esta não se encontrava a trabalhar, o arguido decidiu abandonar o seu percurso académico e iniciar atividade laboral, a fim de poder ajudar com as despesas inerentes à alimentação e encargos com fornecimento e manutenção dos serviços públicos na habitação, pese embora o progenitor mantivesse também ajuda financeira.
J. O arguido encontrava-se a juntar dinheiro para comprar um trator agrícola em ordem a cuidar de uma propriedade de família, com três hectares, onde passava grande parte do seu tempo livre a cuidar dos animais.
K. É frequentador de espaços de convívio noturno, nomeadamente, do café perto da sua casa, onde os factos ocorreram, onde mantém convívio com jovens da sua idade.
L. Em virtude da reclusão do arguido, o progenitor passou a residir com o agregado familiar, tendo a mãe do arguido falecido no início de janeiro de 2017.
M. Na sequência do falecimento da mãe, o arguido apresentou um humor deprimido, não saindo da cela, nem comunicando com os demais companheiros tendo sido encaminhado para as consultas de psicologia no EP.
N. É um aficionado dos cavalos, o que constitui um passatempo para ele. É um individuo calmo, reservado, honesto, humilde, muito trabalhador, habilidoso e responsável, com bom comportamento, amigo e protetor do seu amigo. É considerado muito responsável e de muita confiança.
O. No EP tem mantido tem mantido um comportamento adequado e ajustado às normas e regras internas, sem registo de infrações disciplinares. Tem, também, demonstrado interesse em aumentar os seus estudos, tendo-se inscrito no ano letivo 2016/2017 e no presente ano letivo na turma de formação de adultos (nível secundário), sendo assíduo às aulas.
P. Tende a afastar-se das situações de conflito e tensão.
Q. Tem, desde o início da reclusão, recebido apoio exterior, por intermédio de visitas, do pai, avós e amigos.
R. Não tem antecedentes criminais. Denotou sincero arrependimento por ter desferido a cabeçada na vítima sendo que as consequências do sucedido têm vindo a perturbá-lo, criando-lhe ansiedade, tristeza e preocupação.
S. No que concerne à sua postura perante os factos, tende a deprimir, encontrando-se permanentemente a “ruminar” a sua culpa e emite juízos de culpa sobre o sucedido e o seu comportamento.
2.1.3. Do pedido de indemnização cível formulado pelo também assistente DD
A. O assistente e demandante DD é filho da vítima FF sendo que tinha 17 anos à data da prática dos factos.
B. A vítima, há cerca de três meses antes dos factos, havia-se separado da mulher tendo o ora assistente e demandante ido morar com a vítima por ter com ele uma ligação muito forte e rever na figura do seu pai o ídolo e o homem que lhe transmitia os valores pelos quais o assistente sempre se quis pautar.
C. O assistente e demandante e a vítima tinham uma ligação de amor, carinho.
D. A morte da vítima, nas circunstâncias em que ocorreram e pelo estado em que a vítima ficou deixaram o assistente e demandante em estado de choque.
E. O assistente e demandante ficou traumatizado com o estado em que viu o seu pai.
F. Com a notícia da morte do seu pai, o assistente e demandante sentiu-se perdido, porquanto, não querendo viver com a sua mãe, apenas queria viver com a vítima, enquanto seu progenitor.
G. As Responsabilidades Parentais foram reguladas no sentido do assistente e demandante DD ficar à guarda e cuidados da sua tia paterna, LL.
H. O assistente e demandante vive numa constante revolta com o sucedido.
I. O assistente e demandante entrou numa tristeza, desgosto e depressão que se fechou em si próprio, não conseguindo exteriorizar os seus sentimentos.
J. Vive diariamente triste e perturbado pela ausência do seu pai, refletindo-se isso no seu descanso, e não consegue apagar da memória o estado em que viu o seu pai depois de falecido.

*
B.1.2 - E como não provados os seguintes factos:
Da acusação
A. Na noite de 28 para 29 de outubro de 2016, o arguido dirigiu-se ao assistente CC dizendo “Eu hoje vou bater neste gordo”.
B. CC tentou ignorar as provocações que o arguido lhe dirigiu, saiu do café e voltou a entrar sendo que, quando se encontrava ao balcão do mesmo, e de costas para o arguido, este aproximou-se dele.
C. O arguido, assim que a vítima caiu no chão e não obstante esta não apresentar nenhum tipo de reacção, começou a desferir-lhe violentos pontapés que o atingiram na cabeça.
D. O CC, vendo FF caído no chão, sem reacção e a ser violentamente agredido, dirigiu-se ao arguido tentando agarrá-lo para que este parasse de desferir pontapés na cabeça da vítima.
E. O arguido, perante a intromissão de CC e pretendendo continuar a pontapear a vítima, afastou-o desferindo-lhe vários murros que o atingiram na cara.
F. O GG viu o arguido a agredir a vítima desferindo-lhe pontapés na cabeça nem que o assistente CC o tentava afastar.
G. O GG, de imediato, agarrou o arguido pelas costas e arrastou-o pela força para dentro do café, a fim de fazer cessar as agressões.
H. O arguido agiu com ira, ira essa sem qualquer razão aparente.
I. O arguido agiu com a intenção de tirar a vida ao FF.
Do pedido de indemnização cível formulado pelo também assistente DD
A. O demandado teve intenção de entrar em conflito com o FF.
*
B.1.3 - E apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes considerandos:
«A convicção do Tribunal assentou numa análise da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, avaliada segundo juízos de experiência comum e critérios de razoabilidade, não tendo ficado consignados, quer na matéria de facto provada, quer na matéria de facto não provada, as alegações conclusivas ou irrelevantes para a boa decisão da causa:
Assim:
No que concerne ao Relatório de Autópsia de fls. 176 a 186 cumpre referir o seguinte.
A vítima tinha, à data do óbito, 43 anos de idade e 1,83m de altura.
É de salientar que não existem quaisquer fraturas nos ossos da cabeça. Também não existem quaisquer fraturas nas cavidades orbitarias e globos oculares, nem, tampouco, nas fossas nasais, seios maxilares, frontais e esfenoidais. Continuam sem existir fraturas no osso hióide e nas estruturas cartilagíneas (pescoço), bem como inexistem fraturas no tórax.
Assim, na tese da acusação, o arguido teria desferido violentos pontapés já após a vítima estar caída no chão, o que teria provocado a morte, em virtude das lesões sofridas na cabeça.
Ora, tal tese é absolutamente incompaginável com a total ausência de fraturas nos ossos nos termos supra descritos: o desferir pontapés com violência na cabeça da vítima levaria a, necessariamente, que fossem provocadas fraturas em todos e quaisquer dos ossos da cabeça.
Diga-se, aliás, que as fraturas que foram relatadas no Relatório de Autópsia foram as dos ossos da face, onde se relata uma “fratura cominutiva (ou seja, o osso encontra-se partido em vários e pequenos pedaços irregulares resultantes de uma forte pancada) dos ossos próprios do nariz, acompanhada quer de desvio direito da pirâmide nasal, quer de grande infiltração hemorrágica vizinha”, além, também, de outras lesões sempre na face da vítima.
Assim, face à ausência de outras fraturas, e por referência à tese da acusação, mister é concluir-se que as únicas fraturas existentes são as referidas, as quais não são obviamente, concordantes com o desferimento de vários e múltiplos pontapés mas sim concordantes com o desferir de uma forte cabeçada na vítima.
De referir que o arguido tinha 1,84 de altura, ou seja, uma altura próxima à da vítima (1,83m). Tal semelhança de alturas com a vítima vem infirmar a tese de que o arguido terá desferido a confessada cabeçada no rosto da vítima, adequada a provocar aquelas lesões assinaladas, repercutidas nas fraturas do nariz.
Mas o relatório de autópsia revelou-se, ainda, essencial para se concluir que, na altura do acontecimento, a vítima tinha uma TAS de 2,67g/l +/- 0,34g/l.
Tal vale por dizer que a vítima se encontrava embriagada, atenta a TAS de que era portadora o que, no dizer da autópsia, é referido como seguramente influenciado pelo álcool.
Ora, tal embriaguez, associada à cabeçada que levou do arguido, é perfeitamente adequada a fazê-lo cair e, ao cair, sofrer a luxação atloido-axoldeia com contusão do tronco cerebral (O Tronco cerebral ou tronco encefálico é a porção do sistema nervoso central, situada entre a medula espinhal e o diencéfalo, sendo quase na sua totalidade intracraniano (apenas uma porção do bulbo é exocraniana). Ocupa a fossa craniana posterior diante do cerebelo) e consecutiva hemorragia para as cavidades do encéfalo.
Diga-se, aliás, que as pessoas ouvidas foram unânimes em declarar que, após a cabeçada, a vítima caiu no chão, de barriga para cima, ligeiramente de lado, tendo ficado inanimada e tendo batido com a cabeça no passeio. Tal é, igualmente consentâneo, com a circunstância de a vítima ter vindo a falecer, não da cabeçada desferida pelo arguido, mas sim das lesões sofridas pelo impacto da queda, pancada essa, segundo as testemunhas ouvidas, dada no passeio (o qual é de pedra, o que resulta, não só das declarações, mas das próprias fotos de fls. 19 e ss.) associada, ainda, à diminuição dos reflexos causados pelo estado de embriaguez, sendo que tal pancada incidiu na parte posterior da cabeça.
Quanto à ligeira lesão no membro superior direito da vítima, tal poderá ter ocorrido aquando da queda ou, eventualmente, num gesto defensivo aquando do desferimento da cabeçada, embora com pouca expressão. De salientar que os membros não apresentam qualquer fratura.
Quanto às fotografias de fls. 19 a 27, as testemunhas que foram com elas confrontadas foram claras ao referir os pontos em que se localizavam os diversos sujeitos na altura dos factos, levam-nos às seguintes conclusões:
Do local onde se encontrava, o assistente e demandante cível CC não tinha uma visão direta sobre o local onde ocorreu a agressão, porquanto se encontrava virado de costas para tal local, sendo que os factos ocorreram por detrás.
As fotos da face da vítima são absolutamente – e tão-somente quanto a isto – consentâneas com uma cabeçada e um inchaço proveniente de uma queda e são absolutamente incompagináveis com o desferir de pontapés, situação em que a face se encontraria, seguramente, em muito pior estado (não nos podemos esquecer que o arguido tinha, à data dos factos, 17 anos, 1,84m de altura pelo que o desferir pontapés na cabeça e rosto da vítima levaria, necessariamente, à sua destruição e à verificação de fraturas de ossos, o que não sucedeu).
Conseguem ver-se, na foto de fls. 19, as cervejas compradas pelo arguido quando o assistente CC estava a pressionar o II para este comprar tais bebidas e o arguido interveio, no sentido de apaziguar os ânimos, oferecendo ele a cerveja. De salientar que o assistente CC tinha estado a desferir “calduços” (desferir pancadas com a mão aberta no pescoço de outra pessoa) ou “bofetadas amigáveis” no II para este comprar cervejas. Embora este tenha referido que havia sido na brincadeira, é por demais conhecida a carga violenta, agressiva e humilhante que este tipo de “brincadeiras” tem.
Resulta, ainda, das fotos cotejado com o depoimento das testemunhas que se encontravam no local, que a vítima caiu de cabeça para trás, com a face virada para cima e ligeiramente para um dos lados e que bateu com a parte posterior da cabeça no passeio que, claramente, vê-se que é de pedra.
Tal análise permite-nos concluir que as lesões ocorridas na zona do nariz/parte central da face foram causadas pela cabeçada e que as demais, nomeadamente as verificadas na parte de trás da cabeça, foram causadas pela queda no passeio e foram estas últimas que foram causais da morte, segundo o relatório de autópsia.
Quanto às fotos de fls. 58 e 60, atinentes ao arguido, levam-nos a concluir que este tinha uma altura de 1,84, ou seja, uma altura muito semelhante à da vítima o que é consentâneo com o desferir uma cabeçada nesta na zona central da face, por referência às lesões e demais elementos apresentados, nos termos já supra referidos.
O “Auto de Apreensão” de fls. 61 tem de ser cotejado com o Relatório Pericial de fls. 202 e 203.
Resulta de tais documentos que os vestígios de sangue da vítima se encontram apenas e tão-somente na camisola envergada pelo arguido e não nas calças. Tal é consentâneo com uma cabeçada desferida na vítima e afasta, também, o desferir de pontapés.
De referir que do “Auto de Apreensão” de fls. 61 faz-se menção de que apenas foi apreendido aquele material por não existirem mais outros que contivessem vestígios. Ora, se tivessem sido desferidos os pontapés da forma que consta da acusação, necessariamente que haveria tal tipo de vestígios no calçado do arguido e tal elemento de prova teria sido seguramente colhido por constituir uma prova essencial para estabelecer o nexo causal entre os pontapés alegadamente desferidos na cabeça da vítima e as lesões verificadas.
O relatório de fls. 231-B a 233 respeita ao assistente e demandante CC sendo certo que, quanto a este particular, houve lugar a desistência de queixa e não se provaram os factos integradores do tipo de crime em apreço.
Relativamente aos termos médico-legais houve lugar a uma investigação interpretativa nos diferentes sites da internet, em ordem a que pudessem ser apreensíveis os conceitos sob a forma de linguagem corrente, não técnica.
Foi também valorado o relatório social do arguido, relativamente ao qual este deu o seu consentimento para ser usado, bem como o seu CRC.
O arguido BB, visivelmente deprimido e perturbado com todo o processo, prestou um depoimento isento e absolutamente coerente relativamente à fatualidade por ele percecionada.
Desde logo admitiu ter desferido a cabeçada que levou à queda da vítima e, também desde logo, declarou sincero arrependimento e muita consternação e preocupação por todo o sucedido, remetendo-se a profundos sentimentos de culpa e não aceitando o desfecho de toda a fatualidade tendo, no seu próprio dizer, “um peso na consciência”. Por outro lado, referiu sempre não se lembrar de ter desferido quaisquer pontapés na vítima.
Explicou coerentemente a fatualidade envolvente aos factos, nomeadamente, a atitude pseudo-amistosa dos “calduços” (bofetadas desferidas pelo assistente no pescoço) e “bofetadas amistosas” ao II para o pressionar a comprar cervejas. Como já foi supra referido, todos nós sabemos a carga humilhante e agressiva que tal tipo de “calduços” e “bofetadas amistosas” têm. Tal resulta das regras de experiência comum.
Mais referiu que foi num espírito de conciliação que acabou por comprar as cervejas. Embora não tenha ficado seguramente provado se seriam três ou quatro cervejas, elas foram compradas pelo arguido para que os ânimos se apaziguassem sendo certo que o assistente CC recusou a que lhe era destinada, o que foi corroborado por este. Por outro lado, referiu claramente que o assistente CC, por diversas vezes, o havia procurado para o provocar e insultar sendo que o apodava, entre outras epítetos que não logrou esclarecer, de “maricas” e “filho da puta”.
De referir que o arguido estava num momento de especial sensibilidade atento o recente conhecimento de que a mãe padecia de cancro, coisa de que, aliás, o próprio assistente CC tinha conhecimento, segundo as suas próprias declarações.
De referir, também, que o assistente CC e as pessoas que o acompanhavam não frequentavam geralmente o “Café …” e apenas geralmente iam lá, para provocar o arguido, sempre incitados pelo assistente CC.
Mais esclareceu o arguido que, nessa noite de 10 de dezembro de 2016, o FF estava embriagado (o que a autópsia corroborou), e que, na sequência da pressão do assistente CC para o II oferecer cervejas, o arguido acabou por, para acalmar os ânimos, ido comprar e oferecer as tais cervejas. Diga-se, aliás, que tal comportamento é consentâneo com o transmitido pela testemunha Psicóloga Drª …, cujo depoimento será abaixo analisado.
O arguido referiu, ainda, a verificação do episódio referido em 2.1.2.A., relativamente ao qual houve um desentendimento entre ele e o assistente CC o qual redundou numa luta corporal.
As declarações do assistente e demandante CC foram, porque incongruentes e contrariadas pelos demais meios de prova, valoradas habilmente.
Na verdade, apesar de ter tentado passar uma imagem de indiferença e de não querer mal ao arguido resultou precisamente o contrário tanto mais que acabou por referir que nas festas de …, tinha havido uma luta corporal entre o arguido e ele próprio.
Relatou que o arguido lhe ofereceu uma cerveja, em ocasião imediatamente anterior aos factos, cerveja essa que recusou.
Apenas o assistente CC referiu que o arguido desferiu, depois da cabeçada aplicada à vítima e quando esta se encontrava no chão, inanimada, diversos pontapés.
Quanto a este particular, duas observações: aquando do desferimento da cabeçada, não tinha ângulo de visão sobre os factos, porque estava de costas, dentro do carro; por outro lado, não obstante no local se encontrarem, entre outras pessoas, o próprio arguido, II, HH e GG, foi a única pessoa das ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento que referiu que o arguido desferiu os pontapés na vítima, quando esta se encontrava já inanimada e caída no chão e que, ao intervir para parar tais agressões, foi também ele agredido pelo arguido.
Ou seja, tal versão não foi corroborada por mais nenhuma testemunha, nomeadamente das que se encontravam no local no dia e hora dos factos para além de não ter também qualquer suporte pericial e/ou documental.
Referiu, também, que nunca havia provocado o arguido e que afivelava uma postura de indiferença perante este, o que foi contrariado por todos os demais meios de prova que foram produzidos quanto a esta matéria, apesar de ter reconhecido que tinha havido entre eles um desentendimento ocorrido na festa de …, no Verão de 2016.
Finalmente, há que referir que, segundo as suas próprias explicações, por referência às fotografias de fls. 19 e seguintes, não tinha qualquer visão direta sobre o local da prática dos factos, porquanto se encontrava no seu carro, de costas para o local dos factos, virado na direção oposta aos mesmos.
De referir que, já depois de praticamente produzida toda a prova quanto aos factos, veio a desistir das queixas, bem como do PIC formulado.
Foi logo homologada a desistência da queixa quanto aos factos ocorridos na noite de 28 para 29 de outubro de 2016 (apesar de tal queixa ter sido apresentada extemporaneamente, como resulta, nomeadamente, de fls. 41vº e 236) atenta a aceitação por parte do arguido e, quanto à queixa relativa aos factos ocorridos a 10 de dezembro de 2016, não restaram os mesmos provados não se tendo, sequer, apurado, se seria passível de desistência de queixa, atenta a sua natureza. Foi, igualmente, homologada, por sentença, a desistência do PIC formulado.
A testemunha II encontrava-se no local aquando da prática dos factos, a tudo tendo assistido e prestou um depoimento isento e coerente.
De salientar que esta testemunha, como ela própria referiu, padece de surdez parcial e foi o alvo dos “calduços” e das “bofetadas amistosas”, tudo na “brincadeira”, por parte do assistente e da vítima FF, este último embriagado, para que lhes pagasse umas cervejas.
Mais esclareceu que foi na sequência de tal que o arguido acabou por ir pagar as cervejas para apaziguar os ânimos, atento o comportamento “de bofetadas amistosas” e “calduços” nele desferidos “na brincadeira”.
Não deixa de ser extremamente significativo o comportamento do assistente ao agirem como agiram, para com um individuo que, padecendo de surdez, é pressionado para comprar cervejas. A violência e o caráter intimidativo e humilhante, disfarçado de “brincadeira” veio, a final, a provocar o comportamento do arguido, ao ir buscar as cervejas, oferecendo-as, ao assistente – que a recusou –, à vítima e ao II numa tentativa de apaziguar os ânimos.
Assistiu esta testemunha ao comportamento da vítima a falar com o arguido e viu o arguido a desferir a cabeçada na vítima tendo esclarecido que a vítima caiu, de imediato, no chão, inanimada e sendo certo que não viu o arguido a desferir quaisquer pontapés na vítima, sendo que não poderia ter deixado de ver, caso eles tivessem ocorrido, por se encontrar no local.
Essencial foi o depoimento da testemunha GG a qual, porque dono do “Café …” e porque se encontrava no local no dia e hora dos factos, assistiu a praticamente toda a fatualidade.
Assim, no depoimento prestado, esclareceu que o assistente CC, acompanhado de terceiros, vinha com frequência ao café com o intuito de provocar o arguido, provocações traduzidas em olhares e em observações arrogantes contra o arguido.
Foi esta testemunha quem referiu, também, que, por uma ocasião, o assistente CC fez-se acompanhar de um cidadão de nacionalidade brasileira tendo este ameaçado, instigado pelo assistente CC, o arguido e tendo “querido bater” (SIC) no arguido.
Esta testemunha também referiu que, na ocasião, o assistente CC “andava dentro-e-fora” (SIC) com um busca-pólos, numa atitude provocatória contra o arguido. Diga-se, aliás, que não se vê qualquer fundamento ou razão para alguém ir para um espaço de convívio munido de um busca-pólos e assumir atitudes provocatórias com tal instrumento.
Também assistiu ao episódio da compra das cervejas, as quais serviu ao arguido (referiu três cervejas), e as razões que subjazeram a tal compra: o arguido foi comprá-las para apaziguar os ânimos até porque o assistente CC estava a dar as tais “bofetadas amigáveis” ao II para este lhes oferecer cervejas.
O arguido manteve-se sempre calmo, e estava sóbrio, ao contrário do assistente CC, que se mostrava provocador, sendo que este último se encontrava alcoolizado (o que também resultou provado da autópsia à vítima).
Mais esclareceu que tinha bom ângulo de visão sobre toda a cena e que o local se encontrava bem iluminado encontrando-se a cerca de 6 metros. Assim, não viu quaisquer pontapés desferidos pelo arguido contra a vítima sendo que esta, após a queda, ficou inanimada no chão. Foi, então, que o arguido abandonou o local, a conselho dele. Os factos terão ocorrido seguramente depois do período de jantar.
O depoimento, igualmente isento e coerente, da testemunha HH foi, precisamente, no mesmo sentido.
Esta testemunha, que se encontrava no local no dia e hora dos factos, esclareceu que, já antes era frequente o assistente CC, acompanhado de terceiros, vir provocar o arguido ao “Café …”. Assistiu ao episódio do busca-pólos, em que o assistente CC, munido de tal instrumento, provocava o arguido e que referiu, de forma audível para o arguido, que aquele instrumento servia para escrever ou furar, sendo que entendeu tal, claramente, como uma provocação ao arguido.
Também assistiu ao arguido ir buscar as cervejas sendo que ouviu o assistente a gritar.
Viu o corpo da vítima já caído no chão, um pouco de lado. Também não viu quaisquer pontapés desferidos pelo arguido.
Esclareceu que o FF ainda respirava e tentou ajudá-lo e socorrê-lo. Tudo terá acontecido por volta das 00h00m.
A testemunha …apenas assistiu ao episódio do dia 28 para 29 de outubro, o qual foi objeto de desistência de queixa, devidamente homologada.
Não deixa, no entanto, de ser estranho esta testemunha ter referido que conduziu o assistente CC ao hospital nesse dia sendo certo que os bombeiros também vieram reclamar – o que foi deferido – o pagamento desse mesmo transporte.
A testemunha …, Agente da GNR chegou ao local já depois dos factos, tendo apenas constatado a situação de que a vítima se encontrava no local.
O Inspetor KK também não assistiu aos factos tendo apenas, informalmente, colhido os depoimentos prestados na altura e tendo-os transmitido ao Tribunal o que, legalmente, é inadmissível como meio de prova.
Referiu, no entanto, que uma das lesões verificadas na vítima, correspondente a uma lesão mínima no membro superior, poderia corresponder a uma lesão defensiva. Também referiu, em termos opinativos, que as lesões que a vítima apresentava na cabeça poderiam ser resultado de pontapés desferidos.
No que concerne ao PIC formulado pelo assistente e demandante DD revelaram-se essenciais os depoimentos das testemunhas ouvidas a esta matéria.
(…)
***
Cumpre conhecer.
É sabido que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação. Assim, são estes os pontos de facto e de direito que surgem nas conclusões do recorrente como expoentes de inconformidade:
i. - em primeiro lugar o erro de julgamento – conclusões a) e c) a bb);
ii. - a errada qualificação jurídica dos factos – conclusões b) e cc) a ee);
iii. - o montante do PIC – conclusão ff);
iv. - o pedido de identificação de dois indivíduos para serem inquiridos como testemunhas – conclusão gg);
v. - o pedido de responsabilização criminal de duas testemunhas – conclusão hh).
A ordem de conhecimento das questões propostas será alterada na medida em que as referidas em iv. e v. deverão ser abordadas desde logo.
*
B.2 – As duas questões suscitadas pelo recorrente em iv. e v. (o pedido de identificação de dois indivíduos para serem inquiridos como testemunhas e o pedido de responsabilização criminal de duas testemunhas) são “não-questões”.
Desde logo porquanto não foram questões apreciadas pelo tribunal recorrido e o recurso não se destina a apreciar questões novas, no sentido de não serem questões que tenham sido objecto de decisão recorrível. E as questões indicadas não foram objecto de decisão pelo tribunal recorrido.
É certo que se pode invocar omissão, mas nunca de pronúncia, sim quanto às situações de facto que o recorrente indica como existentes – e que este tribunal desconhece se o serão – e que, se existentes e patentes, implicariam uma decisão do tribunal recorrido. Mas então outra deveria ter sido a conduta do recorrente.
Tratando-se, ambas, de questões que dizem respeito à produção de prova, elas deveriam ter sido suscitadas nos momentos próprios - momento de apresentação do rol de testemunhas e audiência de julgamento - de forma a provocar decisão do tribunal e, se existente essa e desfavorável, a ser objecto de recurso interlocutório, a subir a final.
Inexistente aquela (decisão) e este (recurso interlocutório), as matérias não podem ser abordadas no recurso da decisão final.
São, pois, improcedentes estas razões de inconformidade do recorrente.
*
B.3 – Quanto à insatisfação do recorrente relativamente à matéria de facto, comecemos pela afirmação de que o recorrente não invoca um dos vícios de conhecimento oficioso constantes do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, a saber, o conceito de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, a “contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão” e o erro notório na apreciação da prova, sustentando a sua insatisfação em matéria de facto, por alegação de erros de julgamento por apelo a prova produzida e erroneamente apreciada pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação - números 3 e 4 do artigo 412º do CPP.
Esta impugnação ampla da matéria de facto nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3 e 4 do Código de Processo Penal, a incidir sobre os erros de julgamento e sobre a prova produzida em audiência de julgamento, apresenta quatro pressupostos essenciais e uma razão de ser.
Assim, sistematizando, ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais:
a) – A observância do ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância – al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal;
b) - A especificação das provas a atender - al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal;
c) - Que essas provas imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam - al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal;
d) - Por referência ao consignado em acta, esta entendida em sentido amplo e aqui com o significado de “gravações” sonoras, com indicação concreta das passagens em que se funda a fundamentação, no caso de prova pessoal (por impossibilidade de ter acesso à oralidade e imediação) - nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.
Isto porque a reponderação de facto pela Relação se cinge a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso.
A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. Do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico.
Motivo porque é inócuo pedir uma ilimitada, irrestrita, apreciação da prova, que constituiria um mero segundo julgamento.
Ora, no caso o recorrente – em absoluto - não cumpre nenhum dos ónus previstos nos nsº 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, nem nas motivações, nem nas conclusões, o que torna o seu argumentário não passível de convite à correção.
Nesta parte é o recurso de rejeitar, já que o arguido – sem indicar pontos de facto em que esteja em desacordo - se limita a indicar toda a prova produzida, pretendendo uma reapreciação de toda ela. Ou seja, o arguido quer um novo julgamento. Mas não é função desta Relação fazer um novo julgamento.
Portanto, o recurso na parte em que invoca a existência de erro na apreciação da prova por impugnação ampla da matéria de facto é de rejeitar.
*
B.4 – No que à errada qualificação jurídica dos factos diz respeito, o argumentário do recorrente centra-se exclusivamente na invocação de erro de julgamento, como claramente se extrai das suas seguintes conclusões:
cc) - Considera-se que nos presentes autos, estamos efectivamente na presença de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelos artigos 131º e 132º nº 2 alínea e) do Código Penal, porquanto o elemento objectivo do tipo de crime se encontra preenchido, bem como no que respeita ao elemento subjectivo, o dolo existe, é elevado, pois o Arguido/Demandado com a sua conduta quis obter o resultado – a morte – contrariamente ao que é entendido pelo douto acórdão.
dd) - Pelo que, se entende não merecer acolhimento constante no Douto Acórdão, no que se refere à alteração e da alteração do crime de homicídio qualificado, p.p. pelos artigos 131º e 132º nº 2 alínea e) do Código Penal para um crime de ofensas à integridade física agravada pelo resultado p.p. pelo artigo 147º nº 1 do Código Penal.
ee) - Nestes termos, e face a toda a sustentabilidade do presente recurso, que não suscita duvidas que o arguido desferiu uma cabeçada e pontapés na vitima com o intuito de a matar, a censurabilidade da conduta do Arguido/Demandado, o dolo que se considera elevado, dúvidas não subsistem que o Arguido/Demandado, terá que ser condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelos artigos 131º e 132º nº 2 alínea e) do Código Penal, sendo a medida concreta da pena a aplicar privativa da sua liberdade e próxima dos limites máximos, sem prejuízo, do mesmo vir a beneficiar do regime especial para jovens, considerando a idade do Arguido/Demandado à data dos factos.

Isto é, não existe propriamente desacordo quanto à solução jurídica da decisão recorrida, sim uma insatisfação quanto à matéria de facto.
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B.5 – Tudo isto não invalida que este tribunal tenha o dever - porque de oficiosidade do conhecimento se trata – de conhecer da existência de qualquer dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do C.P.P.. E um de tais vícios ocorre.
Desde logo poderá existir contradição nestes dois excertos da fundamentação de facto:
- No início de fls. 11 - «De referir que o arguido tinha 1,84 de altura, ou seja, uma altura próxima à da vítima (1,83m). Tal semelhança de alturas com a vítima vem infirmar a tese de que o arguido terá desferido a confessada cabeçada no rosto da vítima, adequada a provocar aquelas lesões assinaladas, repercutidas nas fraturas do nariz.»
- No final de fls. 11 - «Quanto às fotos de fls. 58 e 60, atinentes ao arguido, levam-nos a concluir que este tinha uma altura de 1,84, ou seja, uma altura muito semelhante à da vítima o que é consentâneo com o desferir uma cabeçada nesta na zona central da face, por referência às lesões e demais elementos apresentados, nos termos já supra referidos.»
Formalmente os dois parágrafos são contraditórios, não obstante se possa deduzir de todo o fundamentado que o primeiro terá uma redacção com lapso de redacção.
De qualquer forma é questão que não ganha relevo e apenas se refere por dever formal de correcção do mesmo.
Relevante é a existência de erro notório na apreciação da prova que advém, igualmente, de violação do disposto no artigo 163º do C.P.P., relativo à prova pericial.
Este dispõe que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, podendo o julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, desde que fundamente a divergência. Entende-se que tal possibilidade de divergência se contenha no âmbito dos mesmíssimos conhecimentos – no caso médicos – do juízo científico emitido.
Ora, aqui, face a um relatório de autópsia com conclusão clara, não obstante falho de alguma fundamentação complementar que se imporia esclarecer junto do perito (quer por emissão escrita de novo juízo complementar face a quesitos que lhe deveriam ter sido apresentados ou a sua chamada a audiência com esse mesmo fito), o tribunal recorrido optou por uma leitura contrária à da perícia com fundamento nas declarações do arguido e depoimentos de testemunhas.
E, claramente, a decisão do tribunal contraria o juízo tecnico-científico emitido no relatório de autópsia, quando este afima, na sua conclusão 3ª «A localização, natureza, caracteristicas, n.º de lesões traumáticas infligidas e ainda a violência empregue na sua produção constituem, por si só, elementos idóneos para poderem provocar a morte do ofendido sendo, cumulativamente, estes achados sugestivos de etiologia médico-legal homicida como é aventado na informação
E o tribunal diz que não, que não houve intenção de matar, confiando nos seus conhecimentos médicos obtidos na net, como ressalta da sua fundamentação. A que acresce a construção de uma versão – com base em prova oral – de que a vítima não foi pontapeada na parte frontal da cabeça, sim caiu e bateu com a parte posterior do crâneo no passeio, sendo essa pancada com a parte posterior do crâneo a causa da morte.
Ou seja, na realidade o tribunal recorrido não só contrariou a perícia, como a contrariou fora do específico campo do conhecimento científico em causa, fazendo apelo a declarações e ausência de depoimentos.
Tal poderia ter ocorrido no caso de o juízo emitido pelo tribunal tivesse a devida e convincente fundamentação apenas na fixação da matéria de facto pertinente para o juízo pericial. Acontece que não foi esse o restrito campo de actuação do tribunal recorrido.
Não tendo nós conhecimentos suficientes para conclusões seguras quanto à causa da morte, temos no entanto dúvidas sérias quanto às conclusões do tribunal recorrido por razões que nos surgem claras, pelo menos na sua explanação: não parece que o relatório de autópsia revele qualquer lesão na parte posterior do crãneo que possa ter causado a morte.
Bem ao invés, parece-nos que as lesões se concentraram na parte frontal da cabeça. E também nos sobrevém como duvidoso que uma cabeçada seja a explicação total que justifique as lesões causadas.
De facto as lesões descritas em a) a l) do ponto L) reportam-se todas à parte da frente da cabeça (desde o queixo à testa passando pelos malares-face), nada têm que ver com a parte posterior da cabeça (não há na autópsia uma única marca do pretenso impacto da parte posterior da cabeça no passeio) e excedem manifestamente os efeitos de uma cabeçada no nariz (toda a parte da frente da cabeça da vítima mortal tem lesões)
Os resultados descritos em M) e N) tão pouco se articulam com a ausência de qualquer marca externa na parte posterior da cabeça.
A fundamentação fáctica do Tribunal é manifestamente incompatível com o resultado da autópsia, nada adiantando sobre as múltiplas lesões na parte da frente da cabeça da vítima, ignora a conclusão da perícia (intenção de matar) e apresenta fundamentação que afronta claramente o senso comum (por ex. no tocante aos pontapés que produziriam seguramente mais fracturas) e é contraditória quer com a autópsia quer com os factos provados em L), M) e N) ao referir por exemplo, que “Tal análise permite-nos concluir que as lesões ocorridas na zona do nariz/parte central da face foram causadas pela cabeçada e que as demais, nomeadamente as verificadas na parte de trás da cabeça, foram causadas pela queda no passeio e foram estas últimas que foram causais da morte, segundo o relatório de autópsia.
Por isso que, digam o que disserem as testemunhas e o arguido, o(s) pontapé(s) na cabeça sejam algo de muito provável, desde que estejam correctas estas asserções que fazemos.
Haverá, pois, que ouvir o perito e esclarecer, no mínimo, os pontos indicados tendo em vista apurar:
“As lesões sofridas são consentâneas com um (ou mais) pontapé(s) na cara ou cabeça, no sentido de frente para trás?”
“As lesões sofridas são consentâneas com uma pancada da parte de trás do crânio no passeio?”.
“A morte surge em consequência de qual das hipóteses ora colocadas?”
E determinar de forma clara e insofismável a causa de morte, explicitando (esclarecendo) os termos da conclusão 3ª do relatório de autópsia, ou outra que seja julgada necessária.
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B.6 – Quanto ao montante do PIC o recorrente também aqui manifesta o seu desacordo em função daquilo que entende, deveria ter sido dado como provado, como se surpreende na sua conclusão ff):
ff) - E assim, consequentemente, por toda a prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento e acima de toda esta a já existente nos autos, no que respeita ao PIC deduzido pelo Assistente/Demandante, pela sustentabilidade do presente recurso, ser o Arguido/Demandado, nos termos do artigo 483º do Código Civil, obrigado a indemnizar o Assistente/Demandante, pelos danos não patrimoniais a este causados no pagamento de uma quantia manifestamente mais elevada que a que foi fixada no Douto Acórdão.
De facto o recorrente sequer indica qual o montante que entende adequado para ressarcir danos, que danos devem merecer outra ponderação ou indica vícios de raciocínio ou de apreciação jurídica a propósito do arbitramento indemnizatório. Desta forma, baquearia a sua pretensão.
No entanto, dada a necessidade de reenvio para apreciação da matéria de facto, o seu recurso neste ponto fica sem objecto e, portanto, prejudicado. O mesmo se diga quanto à invocada a errada qualificação jurídica dos factos.
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B.7 – A constatação da existência de erro notório na apreciação da prova reconduz o vício, não à sentença recorrida, sim à audiência de julgamento.
Estando este tribunal de recurso, por ausência de imediação e constatando o erro notório na apreciação da prova, impossibilitado de medir o acerto de apreciação probatória, resta-nos concluir ser, de todo, aconselhável o reenvio total dos autos para novo julgamento, nos termos dos artigos 426º, nº 1 e 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal.
E total na medida em que parte substancial dos factos foram convertidos para uma versão mais favorável ao arguido por via da tese do embate no passeio, pretendendo-se que o tribunal que vier a fazer o julgamento tenha liberdade total de decisão sem amarras processuais ou riscos de contradição.
Sem esquecer que incumbe o tribunal usar dos meios necessários à obtenção da verdade material, incluindo a contraposição das declarações do arguido em audiência com as prestadas no primeiro interrogatório judicial de 12-12-2016 (fls. 82 dos autos), tal se decide nos termos do artigo 356º, n. 3, al. b) do C.P.P..
É o que se determinará.
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C - DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em:
- declarar a existência de erro notório na apreciação da prova e, em consequência, determinam o reenvio total do processo ao tribunal recorrido nos termos dos artigos 426º nº 1 e 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal.
Mais decidem:
- que sejam obtidos esclarecimentos complementares ao relatório de autópsia nos termos supra ditos;
- que sejam contrapostas as declarações do arguido em audiência com as prestadas no primeiro interrogatório judicial de 12-12-2016 (fls. 82 dos autos).
Sem tributação.
Notifique.

Évora, 25 de Setembro de 2018
(Processado e revisto pelo relator)
João Gomes de Sousa (relator)
António Condesso