Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
459/16.4GBABF-A.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: SUBSTITUIÇÃO DA PENA DE MULTA POR PRESTAÇÃO DE TRABALHO
CASO JULGADO FORMAL
Data do Acordão: 03/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Não obstante a sujeição aos legais procedimentos, não existe uma rígida preclusão quanto às formas de pagamento voluntário da multa, impedindo que o condenado venha a fazer opção diferente depois de uma inicial ou, até, voltar à opção anterior (como no caso sucede), desde que o faça de modo tempestivo e justificado.

II - Por isso, também, a circunstância do sentido da anterior apreciação não dever afastar a possibilidade de outra subsequente e em sentido diverso, mesmo que sem invocada excepcionalidade, se os requisitos dos referidos arts. 489.º e 490.º se mostrarem acatados e, sobretudo, se concluir que o deferimento do pretendido realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos de processo sumário em referência do Juízo Local Criminal de Albufeira do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o arguido G foi condenado, por sentença de 30.03.2016, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, além do mais, na pena de 55 (cinquenta e cinco) dias de multa à razão diária de 6 (seis) euros, num total de € 330,00.

Na sequência de requerimento do arguido, de 17.03.2017, para substituição da multa por trabalho, proferiu-se o seguinte despacho:

O arguido foi condenado nos presentes autos na pena principal de 55 dias de multa (fls. 41).
Por requerimento de fls. 83 veio requerer a substituição da multa por trabalho.

Nos termos do art. 48º do Código Penal (CP), a requerimento do arguido a multa pode ser substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando se concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. De acordo com os arts. 48º nº 2 e 58º nº 3 do CP cada dia de multa é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas.

No caso presente o cumprimento da pena através da prestação de trabalho em substituição da multa, nos termos do art. 48º nº 1 do Código Penal, mostra-se suficiente e adequado a realizar as finalidades da punição.

Do mesmo modo, tendo em conta o motivo que levou ao indeferimento de fls. 64 sobre o requerido a fls. 60 (uma informação veiculada pela DGRS sobre uma alteração da vontade do arguido, da qual se indiciava ter deixado de ser sua intenção cumprir trabalho), afigura-se-me justificado o requerimento de fls. 83.

Pelo exposto substituo a pena de multa a que o arguido foi condenado por 55 (cinquenta e cinco) horas de trabalho.

O trabalho será prestado em benefício da entidade identificada a fls. 76, e realizado sob orientação e fiscalização da DGRSP.

Solicite à DGRSP que reporte qualquer irregularidade detetadas na prestação do trabalho.

Desde já se adverte o arguido que se culposamente não cumprir os dias de trabalho pelos quais, a seu pedido, a multa foi substituída, designadamente colocando-se intencionalmente em condições de não poder trabalhar; recusar-se sem justa causa a prestar trabalho ou infringir grosseiramente os deveres decorrentes da pena a que foi condenado, poderá vir a cumprir prisão subsidiária pelo tempo da multa correspondente reduzido a dois terços, podendo o arguido nesse caso evitar a execução da prisão subsidiária, total ou parcialmente, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado.
Notifique nos termos do art. 490º nº 3 do CPP.

Inconformado com tal despacho, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do despacho exarado pelo Mmo. Juiz a fls. 89 dos autos, onde substituiu a pena de multa em que o arguido G. foi condenado por 55 horas de trabalho;

2. Tal questão já havia sido apreciada em igual anterior requerimento e indeferida, por posição contrária manifestada pelo arguido já junto da DGRSP aquando da solicitação para elaboração do competente plano;

3. O arguido manifestou junto daquela entidade que iria diligenciar pelo pagamento faseado da multa, o que nunca requereu, nem nada pagou;

4. Não pode pois, quando notificado pessoalmente para explicar o motivo do não pagamento da multa sob pena de conversão em prisão subsidiária, dirigir-se à DGRSP e solicitar nova substituição de prestação de trabalho;

5. Também não pode a DGRSP, por sua iniciativa, elaborar o competente plano, quando já anteriormente havia sido indeferido o pedido;

6. De igual modo, não podia o Mmo Juiz a quo voltar a apreciar a questão e autorizar nova substituição da multa por prestação de trabalho, sem que houvesse sido arguida qualquer nulidade no anterior despacho ou invocada qualquer alteração superveniente das circunstâncias que justificasse a apreciação de novo requerimento;

7. Não pode pois, o arguido, a seu belo prazer, escolher e impor ao Tribunal qual a modalidade da pena que pretende cumprir, variar temporalmente na sua opção, alternadamente, ou seja, determinar de sua iniciativa o tempo, o modo e o local, subvertendo o carácter e finalidade da pena que lhe foi aplicada;

8. A pena de multa terá sempre que representar algum significado e sacrifício económico para o condenado, sob pena de, assim não sendo, se desprestigiar tal pena, que acabará por perder validade e deixará de assegurar a vigência da norma violada;

9. O mesmo se diga relativamente à substituição da pena de multa pela prestação de trabalho, não podendo em nenhuma das situações significar uma despenalização nem mesmo o esvaziamento dos fins das penas;

10. A decisão recorrida violou assim o disposto nos arts. 40.º, 47.º e 48.º do Cód. Penal e 489.º e 490.º do Cód. Proc. Penal, pelo que deverá ser revogada;

11. Ademais, violou também tal decisão o princípio do ne bis idem, na sua vertente de caso julgado formal, pois que nenhuma nulidade ou alteração superveniente das circunstâncias descritas no requerimento anteriormente apresentado e indeferido pelo Mmo. Juiz a quo, nos termos do disposto nos arts. 577.º, al. 1), 580.º, 581.º, n.º 3 e 620.º, 625.º, 628.º do Cód. Proc. Civil, aplicável ex vi do art. 4.º do Cód. Proc. Penal e 118.º do Cód. Proc. Penal.

12. Deverá tal decisão ser declarada nula e substituída por outra que indefira o novo requerimento de substituição da pena de multa por trabalho.

O recurso foi admitido.

O arguido não apresentou resposta.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concordando com a fundamentação do recurso e no sentido de que o mesmo merece provimento.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), o arguido nada disse.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP e conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. I-A Série de 28.12.1995.

Delimitando-o, reside em apreciar de fundamento para revogação do despacho, que substituiu a multa por trabalho, em virtude de violação das invocadas disposições legais, atinentes às finalidades da punição, àquela substituição, ao prazo para pagamento da multa e à relevância do anteriormente apreciado.

Apreciando:
Através da compulsa dos autos no que aqui interessa, aliás reflectido na motivação do recurso, resulta:

O arguido apresentou requerimento, em 25.05.2016, para substituição da pena de multa em que foi condenado por prestação de trabalho, invocando as suas condições pessoais e económicas e as finalidades da punição.

O Ministério Público promoveu o deferimento do requerido, por tempestivo e admissível.

Nessa sequência, o Tribunal, por despacho de 22.06.2016, determinou que, nos termos do artigo 490.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, solicite à DGRS informações complementares relativas ao local e horário do trabalho a realizar, enviando cópia do requerimento do arguido.

A 29.08.2016, a DGRSP veio informar que o arguido entrou em contacto com aquela equipa, afirmando que iria diligenciar junto do tribunal no sentido de proceder ao pagamento faseado da multa.

Face a essa informação, o Tribunal, por despacho de 16.11.2016, indeferiu a substituição da multa por trabalho anteriormente requerida pelo arguido.

Mais ordenou que "Notifique-se o arguido para que, em dez dias, diga o que tiver por conveniente sobre os motivos do não pagamento da multa, designadamente para que comprove, nos termos do art. 49º nº 3 do Código Penal, que o incumprimento não lhe é imputável. Adverte-se o arguido que, a menos que se verifique que a falta de pagamento da multa não lhe é imputável (ou a pague entretanto), a mesma será convertida, nos termos do art. 49º nº 1 do CP, em prisão subsidiária, pelo período correspondente ao remanescente não pago.

O arguido foi pessoalmente notificado desse despacho em 01.12.2016.

A DGRSP dirigiu, então, uma informação aos autos, a 15.12.2016, referindo que o arguido compareceu nas suas instalações, afirmando não lhe ser possível proceder ao pagamento faseado da multa, (...) pretendendo, assim, executar Prestação de Trabalho a Favor da Comunidade.

Por sua livre iniciativa, a DGRSP elaborou um plano de prestação de trabalho e remeteu-o à apreciação do tribunal.

O Ministério Público pronunciou-se, em 05.01.2017, no sentido de que tal substituição já havia sido anteriormente requerida e indeferida sendo, portanto, inadmissível legalmente nova substituição, devendo quer a DGRSP quer o arguido ser informados de tal e o mesmo diligenciar pelo pagamento imediato da pena de multa em que havia sido condenado, sob pena de eventual conversão em prisão subsidiária, caso não fosse possível a cobrança coerciva.

O Tribunal ordenou, por despacho de 09.01.2017, que a defesa fosse notificada para esclarecer se pretendia requerer novamente a substituição da multa por trabalho.

Por requerimento de 07.03.2017, a defesa reiterou o anterior requerimento, concretamente mencionando as suas condições pessoais e económicas de modo inteiramente idêntico, pugnando pela substituição da multa por trabalho.

Sobre tal requerimento, incidiu o referido despacho, ora recorrido, que deferiu a requerida substituição.

Ao invés, o recorrente preconiza a sua revogação.

Vista a sua argumentação, assenta, no essencial, por um lado, na postura do arguido e, por outro, na circunstância de que a substituição da multa por trabalho já, antes, havia sido indeferida.

Vejamos.

Além do pagamento da multa em diferido ou em prestações, a que alude o art. 47.º, n.º 3, do Código Penal (CP), a possibilidade de substituição da multa por trabalho encontra-se prevista no art. 48.º do mesmo diploma, sendo, todas elas, formas de cumprimento voluntário dessa pena, que se inserem na ideia prevalente de obviar, quanto possível, ao incumprimento e, além do mais, à conversão da mesma em prisão subsidiária (art. 49.º do CP).

Assim, segundo esse art. 48.º, n.º 1, A requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Por seu lado, o art. 489.º do CPP, sob a epígrafe Prazo de pagamento, dispõe:

1 - A multa é paga após o trânsito em julgado da decisão que a impôs e pelo quantitativo nesta fixado, não podendo ser acrescida de quaisquer adicionais.

2 - O prazo de pagamento é de 15 dias a contar da notificação para o efeito. 3 - O disposto no número anterior não se aplica no caso de o pagamento da multa ter sido diferido ou autorizado pelo sistema de prestações.

E no tocante à substituição da multa por trabalho, prevê o art. 490.º do CPP:

1 - O requerimento para substituição da multa por dias de trabalho é apresentado no prazo previsto nos n.ºs 2 e 3 do artigo anterior, devendo o condenado indicar as habilitações profissionais e literárias, a situação profissional e familiar e o tempo disponível, bem como, se possível, mencionar alguma instituição em que pretenda prestar trabalho.

2 - O tribunal pode solicitar informações complementares aos serviços de reinserção social, nomeadamente sobre o local e horário de trabalho e a remuneração.

3 - A decisão de substituição indica o número de horas de trabalho e é comunicada ao condenado, aos serviços de reinserção social e à entidade a quem o trabalho deva ser prestado.

4 - Em caso de não substituição da multa por dias de trabalho, o prazo de pagamento é de 15 dias a contar da notificação da decisão.

Na situação em análise, decorre que o arguido requereu atempadamente a substituição da multa por trabalho - a sentença terá transitado em julgado em 13.05.2016, como o recorrente refere, e o seu requerimento foi apresentado em 25.05.2016 -, nada havendo, pois, a censurar à sua manifestação de disponibilidade para trabalhar, atenta a sua invocada situação económica, retratando séria dificuldade em pagar a multa de modo diverso.

Nesta sequência, o encetar de contactos do Tribunal com a DGRSP, bem como desta entidade com o arguido, surgem como normal desenvolvimento das condições em que esse trabalho poderia vir a ser prestado.

Não surpreende, pois, que a DGRSP tenha informado, em 29.08.2016, acerca de pretensão do arguido em proceder ao pagamento da multa de forma faseada, no sentido de que, perante essa mudança de vontade, a sua intervenção já não se justificasse.

Bastando-se com essa informação, o Tribunal entendeu, desde logo, indeferir a substituição da multa por trabalho, não sem que, todavia, tivesse tido o cuidado de notificar o arguido de que haveria de justificar o incumprimento, sob pena de conversão da multa em prisão subsidiária (art. 49.º, n.º 3, do CP).

Tendo o arguido sido notificado em 01.12.2016, a subsequente informação da DGRSP, da pretensão de substituição da multa por trabalho, ocorreu no prazo de 15 dias, ou seja, em 15.12.2016 e, assim, sem que se possa afirmar, não obstante o arguido não se tenha dirigido ao Tribunal, que se alheou da necessidade de pagar a multa ou actuou em detrimento do disposto no n.º 4 daquele art. 490.º.

Nesta conformidade, se compreende, e justifica, que o Tribunal tenha instado o arguido a esclarecer a situação e, se bem que o seu requerimento tenha sido idêntico a anterior, veio, afinal, nele concretizar pretensão que, nas circunstâncias, se entende que não lhe estava vedada.

Com efeito, pese embora o anterior indeferimento, este foi motivado pela informação da DGRSP, relativamente ao que, em tempo oportuno, o arguido, com tolerável dilação, se manteve, depois, em contacto com essa entidade, sem se afastar irremediavelmente da postura de quem tem interesse em cumprir o que lhe fora determinado.

Tanto mais quando, como o recorrente reconhece e defende, não se está perante prazos peremptórios, como vem sendo sufragado por abundante jurisprudência, que, aqui, se dispensa citar, uma vez que essa questão não é suscitada no recurso.

Mais relevante, porém, no caso, é que o sistema de reacções criminais atribui preferência pelas penas não privativas da liberdade, como seja, a pena de multa e, tanto quanto viável, apresenta uma regulamentação maleável tendente a que o cumprimento dessa pena se torne realidade, o que se compagina com a alegada dignidade que tem de representar, sob pena de esvaziamento da sua finalidade punitiva.

Recorde-se Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias Editorial, 1993, pág. 118: A pena de multa só pode ser tomada como instrumento privilegiado da política criminal quando surja não apenas no seu enquadramento legal, mas também no conceito social formado à luz da sua aplicação, como autêntica pena criminal, antes que como mero «direito e crédito do Estado» - ainda que de natureza publicística - contra o condenado.

Não obstante a sujeição aos legais procedimentos, afigura-se que não existe uma rígida preclusão quanto às formas de pagamento voluntário da multa, impedindo que o condenado venha a fazer opção diferente depois de uma inicial ou, até, voltar à opção anterior (como no caso sucede), desde que o faça de modo tempestivo e justificado.

Por isso, também, a circunstância do sentido da anterior apreciação não dever afastar a possibilidade de outra subsequente e em sentido diverso, mesmo que sem invocada excepcionalidade, se os requisitos dos referidos arts. 489.º e 490.º se mostrarem acatados e, sobretudo, se concluir que o deferimento do pretendido realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Toda a problemática que ficou expendida, dentro da lógica que a suporta, revela que o alegado caso julgado formal não deve ser interpretado tão restritivamente quanto o recorrente transparece, uma vez que não se pode descurar a manifestada vontade do arguido, tal como o despacho recorrido sublinha, sendo certo que, conforme se explicitou, o desenvolvimento processual não consente que se afirme que, através da sua atitude, tenha subvertido o que se pretende, afinal, o cumprimento da multa.

Não se impondo acrescidas considerações, entende-se que a decidida substituição da multa por trabalho se apresenta fundamentada e em sintonia com os legais critérios.

Assim, também, não padece de qualquer nulidade/irregularidade.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente,

- manter o despacho recorrido.

Sem custas, dada a isenção de que o recorrente beneficia.

Processado e revisto pelo relator.

Évora, 20.Março.2018
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(Carlos Jorge Berguete)

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(João Gomes de Sousa)