Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1166/11.0PBEVR.E1
Relator: MARTINS SIMÃO
Descritores: DENÚNCIA CALUNIOSA
AUTORIDADE
PRESIDENTE DA CÂMARA
Data do Acordão: 07/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - O conceito de autoridade a que alude o artigo 365º do Código Penal abrange não só os Tribunais e demais instâncias formais (Ministério Público e Órgãos de Polícia Criminal), mas também todos os agentes da administração pública (central, regional e local) a quem a lei comete a tarefa de investigar e de sancionar contraordenações, e abrange ainda todos os agentes da administração pública a quem compete aplicar sanções disciplinares.
II - O Presidente de Câmara Municipal é uma autoridade para efeitos do disposto no artigo 365º do Código Penal.
III - Se alguém denuncia falsamente, perante qualquer autoridade, a prática de ato criminal ou disciplinar, para efeitos de instauração de procedimento criminal, incorre na prática do crime de denúncia caluniosa, independentemente da entidade que recebeu a denúncia ser competente ou não para a investigação do crime.
Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO

Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I –Relatório
Por decisão de 27-5-2014, proferida no processo comum singular com o número acima mencionado do tribunal Judicial de Portel, a acusação foi julgada procedente por provada e em consequência o arguido RJF, id. a fls. 346 foi condenado pela prática de um crime de denúncia caluniosa p. e p. no art. 365º do C.Penal na pena de 90 (noventa) dias de multa à razão diária de € 7.00, o que perfaz a quantia de € 630,00.
Inconformado o arguido recorreu, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:
« 1- O presente recurso vem interposto da sentença do Tribunal Judicial de Portel, datada de 27/05/2014; proferida, neste processo nº 1166/11.0 PBEVR, que condenou o arguido RJF, pelo crime de denúncia caluniosa previsto e punido pelo artigo 365.º do Código Penal na pena de 90 dias de multa, à razão diária de 7,00 €, o que perfaz 630,00 €.
2- Por não se conformar com ela, interpõe da mesma o presente recurso, com os fundamentos que seguem, que consistem na impugnação da matéria de facto (todos os factos da acusação dados como provados) e pela impugnação da matéria de direito (não existência de autoridade, não existência de intenção nem do dolo).
3- facto (2.º) : CIB manteve uma relação de namoro com o arguido RJF entre os dias 13 e 23 de Agosto de 2011, tendo aquela terminado tal namoro por considerar que o arguido era demasiado possessivo em relação a si deve ser considerado não provado com base na seguinte prova:
- Declarações do arguido, na parte que está entre 03:27 e 03:32; entre 04:05 e 04:32 e entre 04:50 e 05:50; o arguido declara que não teve nenhuma situação de namoro com a CIB. Que foram amigos.
- Declarações da testemunha NFB, na parte que está entre 04:04 e 04:14 e entre 04:40 e 04:50, esta testemunha declara que a irmã lhe apresentou o arguido como amigo. Nega a relação de namoro.
- Declarações da testemunha JMP, na parte que está entre 07:28 e 07:50, esta testemunha nega a relação de namoro.
4- O facto 2: O arguido não aceitou bem aquela separação, tendo tentado por diversas vezes reatar a mesma com CIB.
Em todo o caso, este facto deve ser dado como não provado face à não comprovação do 1.º facto.
5.- O facto (3.º): No dia 06 de Outubro de 2011, pelas 02h14, o arguido Ricardo RJF Fernandes enviou, através do fax número (....), o documento assinado em nome de "RJF" e dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de Portel, do qual constava a seguinte declaração : "Eu RJF", funcionário desta Câmara Municipal de Portel, já algum tempo tenho notado uma estagiária a CIB estagiaria de gestão, notei com frequência vendem droga dentro das instalações dos edifícios da Câmara de Portel faz charros quase a apanhei so que disfarçou mas o cheiro era visível e vender aos funcionários das oficinas e particulares na hora de almoço junto ao refeitório, isto traz grandes quantidades pelo quem compra comenta e elas também consomem todo o tipo de droga pelo sei e vejo agradecia uma breve resolução neste assinto então projudicar a Camara e difamar. Agradeço uma resposta. Encontro-me todos os dias na informática desta camara. Agradecimentos. RJF"

Este facto deve ser alterado, devendo ficar com a seguinte teor:
No dia 06 de Outubro de 2011, pelas 02h14, através do fax número (....), foi recebido, na Câmara Municipal de Portel, o documento assinado em nome de "RJF" e dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de Portel, do qual constava a seguinte declaração : " Eu RJF" , funcionário desta Câmara Municipal de Portel, já algum tempo tenho notado uma estagiária a CIB estagiaria de gestão, notei com frequência vendem droga dentro das instalações dos edifícios da Câmara de Portel faz charros quase a apanhei so que disfarçou mas o cheiro era visível e vender aos funcionários das oficinas e particulares na hora de almoço junto ao refeitório, isto traz grandes quantidades pelo quem compra comenta e elas também consomem todo o tipo de droga pelo sei e vejo agradecia uma breve resolução neste assinto então projudicar a Camara e difamar. Agradeço uma resposta. Encontro-me todos os dias na informática desta camara. Agradecimentos. RJF"

Este facto deve ser alterado com base na seguinte prova :
- Declarações da testemunha JMP, na parte que está entre 01:18 e 01:34, esta testemunha declara que o número (....) pertence à residência dele, da mulher e do arguido.
- Havia, pois, 3 pessoas a residir na habitação, onde estava instalado o fax (....).
- O arguido nega o envio do fax para a Câmara de Portel.
Com fundamento no principio in pro reo, deve ser dado como não provado que o fax foi enviado pelo arguido.
6º - O facto (4.º):
O arguido assinou como "RJF", funcionário da divisão de informática da Câmara Municipal de Portel, bem sabendo que tal pessoa não existia, tendo como propósito atribuir a credibilidade necessária àquela denúncia bem como ocultar a sua verdadeira identidade.
Este facto deve ser considerado como não provado com base na seguinte prova:
- Declarações da testemunha NAL, na parte que está entre 03:58 e 04:13, esta testemunha declara que : "não aprofundei nunca ... depois fiquei esclarecido também de que não eram verdadeiros os remetentes";
Entre 05:58 e 06:14, esta testemunha declara que : "Esta pessoa RJF não é funcionário da Câmara".
7º- O facto (5.º): Ao proceder da forma supra descrita, o arguido sabia que imputava a CIB, estagiária da Câmara Municipal de Portel, condutas que não eram verdadeiras e que as mesmas eram susceptíveis de configurar ilícito criminal.
Este facto deve ser considerado como não provado, em consequência da falta de prova dos factos anteriores (1.º, 2.º, 3.º e 4.º).
Também, não foi produzida prova que permita comprovar o presente facto. 8.º O facto (6.º): Ao enviar tal participação, o arguido agiu com a intenção de que fosse instaurado procedimento contra a CIB.
Este facto deve ser dado como não provado com base na seguinte prova:
- Declarações da testemunha NAL, na parte que está entre 03:58 e 04:13, onde esta testemunha declara que : "não aprofundei nunca depois fiquei esclarecido também de que não eram verdadeiros os remetentes";
Entre 05:58 e 06:14, esta testemunha declara que : "Esta pessoa RJF não é funcionário da Câmara";
- Conteúdo do fax, onde não há a menor referência a tal fim;
- O Presidente da Câmara de Portel não é autoridade nos termos e para os efeitos do disposto no n.º1 do artigo 365.º do Código Penal, pois não tem competência / atribuição para instaurar procedimento criminal nem o dever jurídico de receber denúncias criminais de terceiros e de as comunicar ao Ministério Público.
9- O facto (7.º): O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, ciente que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
Este facto deve ser dado como não provado, face ao conteúdo do fax e ao facto de ter sido enviado ao Presidente da Câmara de Portel e não ao Ministério Público ou à GNR de Portel.
10- Quanto à matéria de Direito, não se verifica o preenchimento do tipo de crime de denúncia caluniosa previsto e punido pelo artigo 365.º n.º1 do Código Penal, porque o Presidente da Câmara Municipal de Portel não é uma autoridade nos termos e para efeitos do disposto da mesma disposição legal e o arguido não actuou com a intenção de ser instaurado procedimento criminal contra a CIB.
11- O conceito de "autoridade" pressuposto, no n.º 1 do artigo 365.º do Código Penal, no que se reporta ao procedimento criminal, cinge-se ao Ministério Público e aos órgãos de polícia criminal (PJ, GNR e PSP).
13- O crime de denúncia caluniosa - procedimento criminal (artigo 365.º n.º 1 do Código Penal) - pressupõe que o arguido actue com dolo directo ( artigo 14.º n.º 1 do Código Penal), cujo elemento intelectual pressupõe o conhecimento de que está perante o Ministério Público, a PJ, a GNR ou a PSP e pressupõe, ainda, que o fim que prossegue seja o de ver instaurado procedimento criminal.
14.º O fax, pelo seu conteúdo, e pelo facto de ser enviado ao Presidente da Câmara Municipal de Portel, que não tem competência para instaurar procedimento criminal nem tem o dever jurídico de o comunicar ao Ministério Público, mostra que o seu autor não visou a instauração de procedimento criminal contra a CIB.
15.º- O crime de denúncia caluniosa - artigo 365.º n.º 1 do Código Penal - é um crime de perigo concreto, que só se consuma com a instauração do procedimento criminal contra determinada pessoa.
16º- Não se verificou, pois, o perigo real e concreto, pelos motivos supra referidos, de ser instaurado procedimento criminal contra a CIB, o que não só não aconteceu como esteve muito longe disso.
17º- In casu, a instauração de procedimento criminal contra a CIB era um dado de previsível verificação, ex ante, como impossível, como aconteceu.
18- Face ao exposto, não está preenchido o tipo de crime de denúncia caluniosa previsto e punido no artigo 365.º n.º 1 do Código Penal; motivo por que, em consequência, o arguido deve ser absolvido da acusação, contra si, deduzida.
19.º O artigo 365.º nº 1 do Código Penal interpretado no sentido de que um presidente de Câmara é autoridade, para efeitos do cometimento dum crime de denuncia caluniosa, quando se denunciam factos com o fim de obter a instauração de procedimento criminal contra alguém, é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 219.º n.º 1, 1.º, 26.º n.º 1 e 18.º da Constituição da República Portuguesa, porque autoridade é o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal.
20- A sentença violou (viola) os artigos 365.º n.º1 e 14.º n.º1 do Código Penal; 219.n.º 1 da Constituição da República; artigo 3.º n.º c) do Estatuto do Ministério Público; 48.º, 53.º, 55.º, 241.º e 248.º n.º1 do Código de Processo Penal e 9.nº1 do Código Civil; pelo que deve ser revogada e o arguido absolvido. Assim, será feita JUSTIÇA !».

O Ministério Público respondeu ao recurso pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Nesta Relação, o Exmo. Procuradora Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer no sentido de ser mantido o acórdão recorrido.
Observado o disposto no art. 417º nº 2 do CPPenal, o arguido não apresentou resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Fundamentação
Do julgamento resultaram provados os seguintes factos:
CIB manteve uma relação de namoro com o arguido RJF entre os dias 13 e 23 de Agosto de 2011, tendo aquela terminado tal namoro por considerar que o arguido era demasiado possessivo em relação a si.
O arguido não aceitou bem aquela separação, tendo tentado por diversas vezes reatar a mesma com CIB.

No dia 06 de Outubro de 2011, pelas 02h14, o arguido RJF enviou, através do fax número (....), o documento assinado em nome de "RJF" e dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de Portel, do qual constava a seguinte declaração : " Eu RJF" , funcionário desta Câmara Municipal de Portel, já algum tempo tenho notado uma estagiária a CIB estagiaria de gestão, notei com frequência vendem droga dentro das instalações dos edifícios da Câmara de Portel faz charros quase a apanhei so que disfarçou mas o cheiro era visível e vender aos funcionários das oficinas e particulares na hora de almoço junto ao refeitório, isto traz grandes quantidades pelo quem compra comenta e elas também consomem todo o tipo de droga pelo sei e vejo agradecia uma breve resolução neste assinto então projudicar a Camara e difamar. Agradeço uma resposta. Encontro-me todos os dias na informática desta camara. Agradecimentos. RJF"

O arguido assinou como "RJF", funcionário da divisão de informática da Câmara Municipal de Portel, bem sabendo que tal pessoa não existia, tendo como propósito atribuir a credibilidade necessária àquela denúncia bem como ocultar a sua verdadeira identidade.
Ao proceder da forma supra descrita, o arguido sabia que imputava a CIB, estagiária da Câmara Municipal de Portel, condutas que não eram verdadeiras e que as mesmas eram susceptíveis de configurar ilícito criminal.
Ao enviar tal participação, o arguido agiu com a intenção de que fosse instaurado procedimento contra a CIB.

O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, ciente que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
Contestação
O arguido, à data do envio do fax, não se encontrava na sua residência.
O arguido desempenhava as funções de segurança na empresa VVV.

Condições económicas
O arguido está desempregado e vive da ajuda dos pais e namorada.
O arguido estudou até ao 9º ano de escolaridade e obteve equivalência ao 12º ano de escolaridade.
O arguido vive em casa dos pais que fornecem 100 euros à semana.
Não tem condenações registadas no Certificado de Registo Criminal.
Factos não Provados:
Na hora em que foi enviado o fax estava a trabalhar e não se encontrava ninguém em casa.
O arguido deixou as chaves no veículo de CIB, e apesar de insistir na devolução, aquela não as devolveu.

Fundamentação da Prova:
Prova por declarações
O arguido prestou declarações.
Nesse âmbito, o arguido negou todos os factos constantes da acusação, negou a relação de namoro – segundo ele apenas teve com a ofendida duas vezes e que apenas a convidou para beber um café, em Évora, junto ao templo de Diana.- e afirmou que a ofendida foi vista junto à área de residência. Acrescentou o facto de as chaves da sua residência em Portalegre terem ficado com a ofendida. Ficou premente que o arguido teve uma relação de conhecimento/ amizade com a ofendida, quando aquele prestou serviço na Universidade. Posteriormente, tanto o arguido como a ofendida decidiram estreitar conhecimento e incentivaram uma amizade por telefone, que durou um ano, por troca de mensagens, sem qualquer contacto sexual.
Do depoimento da testemunha CIB evidenciou-se que esta nunca teve vontade de concretizar uma relação mais séria de índole passional com o arguido. Embora referisse que teve um relacionamento com o arguido durante o período de 10 dias, foi obrigada a terminar porque ele era bastante possessivo. Perante o fim do relacionamento, o arguido ficou desagradado com a situação.
Constitui prova objectiva e pré-constituída que foi enviado fax do número correspondente ao da residência do arguido conforme resulta de fls. 73 a 194.
A única ligação que existe com aquele fax e a ofendida é a pessoa do RJF. Por dois motivos: morava naquela casa juntamente com os pais, tinha o contrato de fornecimento de serviços telefónicos em seu nome. Mais ninguém na casa do arguido, conhecia a ofendida ou teve qualquer contacto com ela.
O teor da missiva de fls. 73 denota que quem a enviou sabia da ofendida, o que fazia e onde trabalhava. Quem afirmou tais factos teve ou tinha uma relação pessoal com a ofendida ao ponto de lhe imputar o fumar e a venda de charros.
É convicção deste tribunal que foi o arguido quem elaborou o fax e enviou. Isto porque não conseguiu lidar com a rejeição de CIB. O tribunal teve por credíveis, pela forma como depôs, o depoimento de CIB, que descreveu que esteve com o arguido em Évora e Portel, e só assim podia este tomar conhecimento do sítio e envolvência onde a ofendida se inseria
A circunstância de o arguido se encontrar a trabalhar no momento do envio do fax não abala a nossa convicção.
Não será desconhecida a possibilidade de temporizar a demora de envio de faxes que nem sempre correspondem à data efectiva de expedição.
Por isso, ainda, que o arguido e o pai venham dizer que não se encontravam em casa, tal não afasta o facto de o fax contra a pessoa da ofendida ter sido enviado da casa do arguido. Se não foi o arguido, foi o pai ou a mãe, mas como estes não têm interesse contra a ofendida, terá necessariamente de ser o arguido, fragilizado, pelo rompimento da amizade telefónica com a ofendida e que não ficou mais séria, resolver denegrir atacando anonimamente a ofendida, sob o nome de RJF. Para esse efeito, decidiu programar o fax para uma hora em que estivesse a trabalhar.
Com as testemunhas NAL e PFF, ficou assente que RJF não existe no departamento informático da CM de Portel.
Das testemunhas trabalhadoras na CM de Portel, resultou que enquanto a ofendida lá trabalhou, nunca teve qualquer ligação com drogas tampouco nas instalações camarárias.
A testemunha NFB declarou a existência de contactos entre o arguido e a ofendida, o que fundou a convicção do tribunal.
Mas a testemunha JF que apresentou um depoimento parcial e interessado não logrou em criar qualquer convicção que pela forma como depôs evidenciou a necessidade de afastar o filho de qualquer responsabilidade.
A tese por este avançada de que a ofendida teria ido a Portalegre, entrado na sua residência e enviado o fax, ficou completamente postergada porque não existiu prova que permitisse a sua verificação. Até, de acordo com as regras da experiência, que sentido faria a ofendida ir a Portalegre lançar um fax com factos negativos e torpes contra si que colocaria em causa a sua posição de estagiária e, por isso, precária na CM de Portel. Uma verdadeira cabala rebuscada de auto prejuízo da ofendida à qual não se dá a mínima credibilidade. Com efeito, fez-se prova dos factos constantes da acusação: foi o arguido quem elaborou o fax de fls. 73 e enviou a CM de Portel, sabendo que não correspondia à verdade tais imputações.
O elemento subjectivo decorreu das regras de experiência comum; decorreu da autoria fictícia imputada a RJF, trabalhador inexistente no departamento de informática camarário e da natureza dos factos imputados que tão ostensivos eram inverosímeis.
A imputação efectuada pelo arguido tinha como objectivo a instauração de um procedimento criminal conta a CIB, considerando que eram expressamente dirigidas à pessoa do presidente da Câmara Municipal de Portel, i. e.. a autoridade pública para comunicar todos os factos praticados pelos seus trabalhadores ou subalternos.
Quanto à reputação e condições pessoais, familiares e sociais do arguido, atendeu-se às declarações do arguido.
Ponderou-se, finalmente o Certificado de Registo Criminal.
No que concerne aos factos não provados, decorreram da ausência de prova suficiente ou da existência de prova vaga e imprecisa que permitisse uma resposta positiva.

III – Apreciação do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação e por elas limitado – veja-se o Ac. S.T.J. de 19-4-94, C.J., Ano II, Tomo II, pág. 189 e de 29-2-96 proc. nº 46740, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como são os vícios da sentença previstos no art. 410º nº 2 do C. P. Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19.10.95, in D.R. I-A Série de 28.12.95) .
As conclusões do recurso destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância dos recorrentes em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito e por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458,98).
Perante as conclusões do recurso, as questões a decidir são as seguintes:
1ª- Da impugnação da matéria de facto;
2ª- Se estão preenchidos os elementos constitutivos do crime de denúncia caluniosa;
3ª- Se é inconstitucional a interpretação feita do art. 365º nº 1 do C.Penal.

III- 1ª- Da impugnação da matéria de facto.
O arguido alega que foram incorrectamente julgados todos os factos da matéria provada e que devem ser dados como não provados, pelas seguintes razões:
- o do primeiro parágrafo porque negou que tenha tido qualquer relação de namoro com a ofendida, o que foi corroborado pelo seu pai e pelo irmão da ofendida;
- no do 3º § deve eliminar-se, o segmento de que foi o arguido que enviou o fax para a Câmara de Portel, uma vez que negou tal facto e por isso, deve fazer-se apelo ao princípio in dúbio pro reo;
- os factos do § 4º e 6º porque o Presidente da Câmara afirmou que não aprofundou, mas depois ficou esclarecido de que não eram verdadeiros os remetentes, nem o RJF era funcionário da Câmara;
- por fim, aos factos constantes dos 2º, 5º e 7º parágrafos devem ser dados como não provados porque respectivamente, não se provou o do 1º§, os dos 1º a 4º parágrafos e o último, face ao conteúdo do fax que foi enviado ao Presidente da Câmara de Portel e não ao Ministério Público ou à GNR de Portel.
Cumpre apreciar e decidir.
A este tribunal cabe não só ter em conta os excertos da prova indicados pelo recorrente, mas proceder à avaliação de todas as provas que o tribunal considere relevantes para a decisão da causa, como estabelece o art. 412º, nº 6 do CPPenal.
Perante a análise de toda a prova prestada em audiência e a documental junta aos autos, a nossa convicção não diverge da alcançada pelo tribunal a quo.
Vejamos, então, a argumentação do recorrente.
O arguido começa por alegar que não teve qualquer relação de namoro com a ofendida e para comprovar tal facto baseia-se nas das declarações do seu pai e do irmão da ofendida.
Das declarações da ofendida resulta que teve uma relação de conhecimento/amizade com o arguido, quando este prestava serviço na Universidade, que contactaram via telefone, durante cerca de um ano e que namorou com ele durante o período de dez dias, no entanto, foi obrigada a terminar porque ele era bastante possessivo.
Estas declarações da ofendida foram confirmadas, no que respeita à relação de namoro pelo arguido nas conversas, via Facebook entre si e o Auditório de Portel de fls. 64 em que ele declara que “namora com a CIB”, pela testemunha NFB (irmão da ofendida) que afirmou ao minuto 5:30 a 5:40 “que ele dizia que namorava a minha irmã”, (…) da minha irmã nunca ouvi tal coisa” e o facto do relacionamento entre ambos ter terminado é a única explicação plausível para o arguido ter enviado o fax de fls. 73 ao Srº Presidente da Câmara de Portel.
Quanto ao facto nº 3, o arguido alega que deve eliminar-se, o segmento de que foi ele que enviou o fax para a Câmara de Portel, uma vez que negou tal facto e por isso, deve fazer-se apelo ao princípio in dúbio pro reo.
O arguido negou a prática do facto e inexiste prova directa do mesmo, mas para além desta, há que ter em conta a prova indiciária, ou indirecta. Desta, infere-se, por meio de raciocínio, baseado em regras da experiência, da lógica ou da ciência, o facto probando. A prova reside na inferência do facto conhecido, indício ou facto indiciante, para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova.
Os factos conhecidos são os seguintes:
- o fax em causa nos autos foi enviado do número (....) correspondente ao da residência do arguido, como resulta de fls. 73 e 194;
- o arguido residia naquela casa juntamente com os pais, tinha o contrato de fornecimento de serviços telefónicos em seu nome e dos residentes na morada referida, só ele conhecia a ofendida;
- perante o conteúdo do fax quem o enviou sabia onde trabalhava a ofendida e o que fazia, tinha uma relação pessoal com a mesma a ponto de lhe imputar o facto de fumar e vender droga nas instalações da Câmara.
Da conjugação destas circunstâncias, infere-se que dos residentes na morada referida só o arguido conhecia a ofendida e devido ao rompimento da amizade com a mesma resolveu denegrir a sua imagem, usando uma falsa identidade, isto é, sob o nome de RJF, enviou o fax ao Srº Presidente da Câmara de Portel, onde a ofendida trabalhava.
É certo que, à data e hora em que o fax foi enviado, no dia 6-10-2011, pelas 02:41 o arguido estava a trabalhar, exercendo as funções de segurança na localidade de Tramagal como resulta de fls. 332, mas tal facto não põe em causa a nossa convicção, uma vez que a ilação a retirar é a de que o arguido programou o fax para a hora em que estivesse a trabalhar, para assim poder fazer apelo a este argumento no sentido desse defender dos factos.
Também não faz qualquer sentido, a tese do arguido e do seu pai no sentido de que foi a ofendida que entrou na sua casa, uma vez que tinha as chaves da mesma e enviou o fax. Na verdade, como consta da decisão recorrida, o que subscrevemos “de acordo com as regras da experiência, que sentido faria a ofendida ir a Portalegre lançar um fax com factos negativos e torpes contra si que colocaria em causa a sua posição de estagiária e, por isso, precária na CM de Portel. Uma verdadeira cabala rebuscada de auto prejuízo da ofendida à qual não se dá a mínima credibilidade”.
Assim fazendo apelo às regras da lógica e da experiência comum não temos qualquer dúvida que foi o arguido quem elaborou o fax de fls. 73 e o enviou a CM de Portel, sabendo que não correspondiam à verdade os factos que imputou à ofendida, pelo que não há que fazer apelo ao princípio do in dúbio pro reo, como pretende o recorrente.
O facto constante do § 4 resulta do teor do fax de fls. 73 e foi subscrito pelo arguido com o nome de “RJF”, bem sabendo que tal pessoa não existia na Câmara, conclusão a que o Srº Presidente daquela instituição só chegou depois de fazer as averiguações necessárias.
Por fim, alega o arguido que os factos constantes dos 2º, 5º e 7º parágrafos devem ser dados como não provados porque respectivamente, não se provou o do 1º§, os dos 1º a 4º parágrafos.
Provou-se o facto constante do 1º § logo cai por terra o argumento invocado pelo arguido, no sentido de que o facto do 2º § não está provado por aquele não estar provado. É demonstrativo do facto do § 2 o envio do fax, a que se alude no parágrafo 3, por parte do arguido ao Sr. Presidente da Câmara de Portel.
Os factos constantes dos parágrafos 5º a 7º dizem respeito ao elemento subjectivo da infracção, isto é, se o arguido estava ciente que as condutas que imputava à ofendida, de que vendia droga nas instalações da Câmara eram falsas e se agiu com intenção de instaurar procedimento criminal contra CIB.
Os factos relativos aos elementos subjectivos do tipo de crime, ou seja a intenção do agente resultam dos factos objectivos que resultarem provados.
É que como é consabido, os factos que integram o elemento subjectivo são actos interiores ou factos internos, que respeitam à vida psíquica que não são provados, por regra, por prova directa. Na ausência de confissão, o tribunal adquire esta prova dos factos materiais e objectivos, por inferência tendo em atenção as regras da experiência comum, segundo um processo racional e lógico.
Assim, a intenção do agente, retira-se com facilidade dos elementos objectivos apurados, respeitantes aos actos praticados.
O modo de actuação do agente demonstra o carácter desejado da conduta. Só quem quer praticar o ilícito em questão, age como o arguido agiu, comunicando factos que integram um crime a uma autoridade pública com intenção de que contra ela se instaure o respectivo procedimento criminal

III-2ª- Se estão preenchidos os elementos constitutivos do crime de denúncia caluniosa.
O arguido alega que não estão preenchidos os elementos do crime, uma vez que o conceito de “autoridade”, a que refere o art. 365º nº 1 do CPenal, exige que a denúncia seja feita ao Ministério Público e aos órgãos de polícia criminal (PJ, GNR e PSP); que o elemento intelectual do dolo pressupõe o conhecimento por parte do arguido de que se está perante qualquer daquelas entidades; que o fax foi enviado ao Presidente da Câmara que não tem competência para instaurar procedimento criminal, nem o dever jurídico de o comunicar ao Ministério Público; e que o crime só se consuma com a instauração do procedimento criminal contra a CIB, o que não aconteceu.
Estabelece o art. 365º (denuncia caluniosa) do C.Penal:
“1- Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com consciência da falsidade da imputação, denunciar, ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2- Se a conduta consistir na falsa imputação de contra-ordenação ou falta disciplinar, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Esta infracção está sistematicamente inserida no capítulo dedicado aos crimes contra a realização da justiça, mas a doutrina e a jurisprudência recentes vêm entendendo que apesar de se proteger directamente a realização da justiça, uma vez que o Estado visa garantir a credibilidade e seriedade do procedimento criminal, disciplinar ou contra-ordenacional, é também reflexamente tutelada a liberdade de determinação, a honra e consideração do visado.
Os elementos constitutivos do crime são:
a) O denunciar ou lançar suspeita por qualquer meio (conduta típica);
b) Sobre outra pessoa (determinada ou identificável);
c) A imputação de factos ainda que sob a forma de suspeita, idóneos a provocarem procedimento criminal, contra-ordenacional ou disciplinar (objecto da conduta);
d)A denúncia a uma autoridade ou suspeita feita publicamente (destinatário da acção)
e) o elemento subjectivo- dolo qualificado- que é formado por duas exigências: o agente terá de actuar “com consciência da falsidade da imputação” e “com intenção de que contra ela se instaure procedimento”
Como ensina o Professor Costa Andrade em Comentário Conimbricense, vol. III, pág.529/530, estamos perante “um crime de perigo concreto”, ficando o tipo preenchido em termos de consumação “quando em concreto se criar o perigo de a pessoa ofendida ver a sua liberdade posta em causa pela instauração de um procedimento persecutório”.
“O momento em que se utiliza aquele resultado de colocação em risco (…) dá-se quando, suposta a idoneidade da denúncia ou suspeita, estas chegam ao conhecimento do destinatário. É então que surge o perigo de a autoridade competente actualizar o “seu juízo de suspeita” e consequentemente instaurar o procedimento (…) a efectiva instauração do procedimento não pertence ao tipo, não sendo pressuposto da consumação”.
O crime consuma-se, assim, quando a comunicação chega ao conhecimento da autoridade ou do público, não sendo necessária a efectiva instauração do procedimento contra o visado.
O elemento subjectivo exige um dolo qualificado, que é formado por duas exigências: o agente terá de actuar “com consciência da falsidade da imputação” e “com intenção de que contra ela se instaure procedimento”. A consciência da falsidade significa que, no momento da acção o agente conhece ou tem como segura a falsidade dos factos objecto da denúncia ou suspeita. Para haver intenção será bastante que o agente represente a instauração do procedimento como consequência necessária, segura da sua conduta.
Tecidas estas considerações vejamos a argumentação do recorrente.
Começa por alegar que, o conceito de “autoridade”, a que refere o art. 365º nº 1 do CPenal, exige que a denúncia seja feita ao Ministério Público e aos órgãos de polícia criminal (PJ, GNR e PSP).
Cremos que não assiste razão ao recorrente.
O conceito de autoridade a que alude o art. 365º do C.Penal abrange não só os tribunais e demais instâncias formais (MP e Polícia Criminal), mas são também autoridades os agentes da administração pública, central regional e local., como o serão todas as entidades a que a lei comete a tarefa de investigar e sancionar contra-ordenações, e ainda todos os agentes da administração pública a quem compete aplicar as sanções disciplinares.
Autoridade pública é, pois, aquela pessoa que investida na função pública tem efectivamente o poder de decisão, mando, figurando como competente e responsável pelo acto administrativo.
O Presidente da Câmara é uma autoridade para efeitos do disposto no art. 365º do C.Penal, pois ele tem competência para decidir sobre todos os assuntos relacionados com a gestão e direcção dos recursos humanos afectos aos serviços municipais (cfr. art. 35º, nº 2 al. a) da Lei nº 75/2013, de 12 de Setembro), aí se incluindo, por conseguinte mandar instaurar processos disciplinares contra os funcionários da autarquia a que preside por violação dos deveres a que estão vinculados, no caso o dever de prossecução do interesse público, que consiste na sua defesa, no respeito pela Constituição, pelas leis e pelos direitos e interesses penalmente protegidos dos cidadãos – cfr. art. 73º, nº 1, 2 al. a) e nº 3 e antes o art. 3º, nº 1 e 2al. a) e 3 do Estatuto disciplinar dos Trabalhadores que exercem funções públicas,- Lei nº 58/5008 de 9 de Setembro – com base em participações ou queixas que lhe sejam dirigidas.
Ora, se alguém denuncia falsamente perante qualquer autoridade, a prática de acto criminal ou disciplinar para efeitos de instauração de procedimento criminal incorre na prática do crime de denúncia caluniosa, independentemente da entidade que recebeu a denúncia ser competente ou não para a investigação do crime .
O arguido denunciou factos susceptíveis de integrarem um crime de tráfico de estupefaciente, perante o Srº Presidente da Câmara, que é uma autoridade pública. O Srº Presidente não tem, como é óbvio, competência para investigar o crime denunciado, mas tomou conhecimento do mesmo no exercício das suas funções e por causa delas, por isso, estava obrigado a remeter a denúncia do crime ao Ministério Público, como o impõe o art. 242º nº 1, al. b) do CPPenal.
O recorrente também não tem razão ao alegar e que o crime só se consuma com a instauração do procedimento criminal contra o visado com a denúncia caluniosa, uma vez que como já acima referimos o crime se consuma quando a comunicação chega ao conhecimento da autoridade, dado que é então que surge o perigo de a autoridade competente actualizar o “seu juízo de suspeita” e consequentemente instaurar o procedimento, não sendo necessária a efectiva instauração do procedimento contra o visado.
Quanto ao elemento intelectual do dolo, relativo ao conhecimento de todas as circunstâncias de facto, de todos os elementos descritivos ou normativos do tipo, alega o arguido que pelo facto de ter enviado o fax ao Presidente da Câmara, que não tem competência para instaurar procedimento criminal, nem o dever jurídico de o comunicar ao MºPº, mostra que não visou a instauração de procedimento criminal contra CIB.
É certo que, o Srº Presidente da Câmara não tem competência para investigar o crime falsamente denunciado, mas tinha a obrigação de remeter a denúncia ao Ministério, pelo que se o arguido denunciou perante a autoridade, factos falsos susceptíveis de integrarem o crime de tráfico de estupefacientes, mais não pretendeu como consequência natural da sua conduta do que a instauração de procedimento criminal contra a visada.
Estão, assim, preenchidos todos os elementos constitutivos do crime de denúncia caluniosa.

III- 3ª- Se é inconstitucional a interpretação feita do art. 365º nº 1 do C.Penal.
O recorrente alega que é materialmente inconstitucional a interpretação do art. 365 nº 1 do C.Penal, no sentido de incluir no conceito de autoridade outras entidades para além do Ministério Público e dos órgãos de Polícia Criminal, por violação dos arts. 219º nº 1, 1º, 26º nº 1 e 18º da Constituição da República Portuguesa.
Com o crime de denúncia caluniosa visa-se proteger a credibilidade e seriedade do procedimento criminal, disciplinar ou contra-ordenacional em ordem à realização da justiça e por outro lado, a liberdade de determinação, a honra e consideração do visado.
O conceito de autoridade constante do art. 365º não abrange só o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal, como o recorrente pretende fazer crer, mas todas as autoridades públicas competentes para investigar os crimes e contra-ordenações, uma vez que só assim se protegem eficazmente os interesses visados com o preceito em apreço.
Deste modo, cremos que a interpretação que foi feita do art. 365º do C.Penal não viola qualquer dos preceitos indicados pelo recorrente.

IV – Decisão
Termos em que acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso mantendo o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça que fixamos em 3 UCS.
Notifique.

Évora, 14-07-2015

(texto elaborado e revisto pelo relator)

José Maria Martins Simão

Maria Onélia Vicente Neves Madaleno