Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
310/12.4GTABF
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: CONDUÇÃO AUTOMÓVEL
TÍTULO
CADUCIDADE
CONTRA-ORDENAÇÃO
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A conduta do arguido que nos autos resultou provada, condução no dia 18-04-2012 de veículo automóvel com o seu título de condução caducado desde 18-06-2010, constitui uma mera contra-ordenação.
Decisão Texto Integral:



ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÂO DE ÉVORA:



I. RELATÓRIO


A –
Nos presentes autos de Processo Comum Singular, com o nº 310/12.4GTABF, da Comarca de A – A, Instância Local – Secção Criminal, Juiz 2, o Ministério Público requereu o julgamento do arguido RFPM, empregado de mesa, solteiro, nascido em 16-05-1989, natural da freguesia de (…), imputando-lhe a prática, em autoria material, concurso real e, na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo disposto nos artigos 292º, nº 1 e, 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal e, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro.
Realizado o julgamento, veio a ser proferida pertinente sentença, na qual se decidiu absolver o arguido RFPM, da prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro e, condenar o mesmo arguido, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 500,00 (quinhentos euros) e, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses e, 15 (quinze) dias, nos termos do disposto no artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal.

Inconformado com esta sentença absolutória, o Ministério Público da mesma interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1 O arguido RFPM, por sentença de 08-03-2013, RFPM, foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292, nº 1 do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a pena global de €500,00 (quinhentos euros) e absolvido da prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art, 3°, nº2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03-01, de que vinha acusado.

2 Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos à margem referenciados, visando sindicar apenas a parte respeitante ao decidido pelo Tribunal no sentido de absolver o arguido RFPM, da prática de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3°, nº 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98 de 03-01, que vinha acusado.

3 Da leitura do artigo 130° na versão do Código da Estrada (com as alterações do DL nº 82/2011, de 20/06), concluímos que a condução de veículo com a carta caducada há mais de 2 (dois) anos, considera-se para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido (artigo 130°, nº 6); se estivesse caducada há menos de 2 (dois) anos estaríamos perante uma contra-ordenação (artigo 130°, nº 7).

4 Ora, conforme consta da matéria de facto dada como provada, no dia 18/04/2012, pelas 05H21m, o arguido RFPM, conduzia um veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula 74-G0-40, na Estrada de Vale de Pedras, neste concelho de A

De igual modo, o arguido RFPM sabia que, pese embora tivesse já sido titular da carta de condução nº FA-214062, a mesma tinha já caducado e perdido a sua validade em 18 de Junho de 2010, nos termos do disposto no artigo 130º, nº 1, al. a) do Código da Estrada,

5 Portanto, o arguido conduzia no dia 18 de Abril de 2012, com a carta de condução caducada (actualmente designada de cancelada) desde o dia 18 de Junho de 2010, portanto 2 anos e 2 meses após a caducidade.

6 O recente Decreto-Lei nº 138/2012, de 5 de Julho, introduziu diversas alterações ao Código da Estrada e aprovou o novo Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (RHLC), transpondo parcialmente para a ordem jurídica interna a Directiva nº 2006/126/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Dezembro, relativa à carta de condução. Porém, da leitura do artigo 130,° do Código da Estrada, com as alterações do DL nº 138/2012, de 05/07, verificamos que o mesmo não descriminalizou a conduta nos autos.

7 Uma das alterações foi a distinção entre os títulos caducados dos títulos cancelados; a situação descrita nos presentes autos, ou seja, os títulos de condução que se encontrarem em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial ou decisão administrativa transitadas em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contra-ordenação muito grave ou de segunda contra-ordenação grave, passaram actualmente a denominar-se condução com um título cancelados, ao invés de caducados,

8 Outra alteração foi passar a punir-se com crime e não contra-ordenação, a condução com título de condução cancelado, deixando de fazer a distinção dos 2 anos após caducidade.

9 Tais alterações não têm qualquer relevância nos presentes autos uma vez que o arguido conduzia o veículo decorridos mais de 2 anos após o cancelamento da sua carta de condução, sendo a sua conduta punível como crime em ambas as versões do Código da Estrada aqui referidas.

10 Não poderá, por isso, o arguido RFPM deixar de ser condenado pela prática do crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3°, nº 1 e, 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 03-01.

Termos em que se requer a revogação parcial da douta sentença que absolveu o arguido RFPM, da prática de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3°, nº 1 e, 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 03-01, que vinha acusado e a sua substituição por outra que o condene pela prática do sobredito crime.

Vossas Excelências, Senhores Desembargadores, farão, como sempre, Justiça.

Notificado o arguido RFPM, nos termos do disposto no artigo 411º, nº 6, do Código de Processo Penal, para os efeitos previstos no artigo 413º, do mesmo diploma legal, o arguido não apresentou qualquer resposta ao recurso interposto.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto, conforme resulta de fls. 145 e 146, dos autos.
Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo o arguido apresentado qualquer resposta.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -

Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
Da discussão da causa, e com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 18-04-2012, pelas 05:21 horas, o arguido conduzia um veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula 74-GO-40, na Estrada de Vale de Pedras, concelho de A, com uma taxa de álcool no sangue igual a 1,81 g/l;
2. O arguido sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas e ainda assim quis conduzir o referido veículo, não obstante saber que tal facto era proibido e punidos por lei;
3. De igual modo, o arguido sabia que, pese embora tivesse já sido titular da carta de condução nº FA-214062, a mesma já tinha caducado e perdido a sua validade em 18-06-2010;
4. Sabia o arguido que não podia conduzir na via pública sem possuir habilitação legal para o efeito;
5. O arguido sabia que o seu comportamento era proibido e punido por lei;
6. Agiu de forma livre, deliberada e consciente;
Apurou-se, ainda, que:
7. O arguido exerce a profissão de empregado de mesa e aufere o salário mensal de €485,00;
8. Vive com a sua companheira;
9. Pagam €300,00 de renda de casa;
10. Despende a quantia mensal de €477,00 para liquidação de empréstimo automóvel;
11. O arguido foi anteriormente condenado, no âmbito do processo nº 42/11.0GESLV, que correu termos no 2° Juízo do Tribunal Judicial de Silves, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 17-01-2011, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de €5,00, no montante de €500,00, por decisão datada de 03-02-201.


O Tribunal considerou que não ficaram provados os seguintes factos, com relevância para este processo:
Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.


Na motivação da decisão do tribunal sobre a matéria de facto, consta o seguinte (transcrição):
A convicção do tribunal no que respeita aos factos provados estribou-se na análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º do C.P.P.), como se passa a expor.
O arguido admitiu, espontaneamente, a prática dos factos descritos na acusação, referindo que conduzia o veículo em causa após ter ingerido bebidas alcoólicas e sem possuir carta de condução válida para o efeito, demonstrando ter consciência de que não podia conduzir sem estar habilitado para tal.
Após as declarações do arguido convenceu-se o Tribunal de que o mesmo praticou todos os factos constantes da acusação, julgando-se, em consequência, os mesmos provados.
Aliás, as suas declarações foram corroboradas, na íntegra, peja testemunha FM, militar da GNR que chefiou a acção de fiscalização a que o arguido foi sujeito e confirmou todos os factos constantes da acusação.
A convicção formada quanto à situação de vida do arguido resultou da análise das declarações prestadas pelo mesmo que, de forma credível, esclareceu as suas condições económicas e familiares.
Considerou-se, ainda, o teor do auto de notícia de fls. 3 e 4; e o teor do CRC de fls. 78 a 80 e o teor do documento de fls. 21 (informação do IMTT referente à carta de condução do arguido).


Na motivação da decisão do tribunal sobre a matéria de direito relativa ao crime de condução sem habilitação legal, consta o seguinte (transcrição):
Vem também o arguido acusado da prática de determinados factos que o terão feito incorrer num crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 30, nº 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03 de Janeiro.
Dispões este normativo que “1. Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2. Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel, a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias”.
Trata-se de um tipo de crime de perigo abstracto, não se exigindo a produção de um concreto resultado, um dano concreto, apresentando-se o perigo, tão-só, como a motivação do legislador para punir tal conduta.
O tipo de ilícito em apreciação consuma-se com a conduta do agente que conduza um veículo na via pública ou equiparada, sem que esteja habilitado legalmente para o efeito, o que oferece uma maior perigosidade ante a possibilidade ou mesmo iminência de ocorrência de danos para outros bens jurídicos, maxime pessoais, no âmbito da circulação estradal.
Existe, pois, uma presunção por parte do legislador, as mais das vezes fundada numa observação empírica, de que a situação - de condução em estado de embriaguez - é perigosa em si mesma, do ponto de vista dos bens jurídicos penalmente tutelados (cfr. PAULA RIBEIRO DE FARIA, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 1999, pág. 1093, a propósito do crime de condução em estado de embriaguez), sendo celta que o bem jurídico protegido pela norma é a segurança da circulação rodoviária.
Com esta incriminação pretendeu-se evitar ou, pelo menos, manter dentro de certos limites, a sinistralidade rodoviária, que tem vindo a aumentar, drasticamente, no nosso país e punir aquelas condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a segurança da circulação rodoviária.
São elementos objectivos do tipo de crime em presença:
- a acção de condução;
- de automóvel ou motociclo;
- em via pública ou equiparada;
- sem habilitação legal (cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, Crimes Rodoviários, Universidade Católica Editora, r 996, pág.67,68).
Nos termos do art. 121º, do Código da Estrada, "só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito", sendo que, no caso dos automóveis ligeiros, é necessário ser titular de carta de condução de veículos de categoria B (cfr. art.s 122°, nº 1 e, 123º, nº 1, al. b), todos do Código da Estrada).
Para obter este título, além de outros requisitos, dispõe o art. 126°, nº 1, al. e), do Código da Estrada, que é necessária a aprovação "no respectivo exame de condução", sendo os documentos que titulam a habilitação para conduzir veículos motorizados emitidos pelas autoridades competentes e válidos para as categorias de veículos e períodos de tempo neles averbados (cfr. art. 122º, nº 3, do C. Estrada).
Revertendo ao caso decidendo, verificamos que o arguido, embora tivesse já sido titular da carta de condução nº FA-214062, a mesma já tinha caducado e perdido a sua validade em 18-06-2010, pelo que aquele se encontrava a circular com um título caducado.
Ora, se à data dos factos, a condução com título caducado era punível a título criminal, posteriormente, em 05/12/2012, entrou em vigor o Decreto-Lei nº 138/2012, que deu nova redacção ao Código da Estrada, mormente ao seu artigo 130°, que agora dispõe, sob a epígrafe, "Caducidade e cancelamento dos títulos de condução", que:
“1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respectivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos nºs 1 e 5, do artigo anterior.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos, com excepção da revalidação dos títulos das categorias AM, AI, A2, A, BI, E, BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) O título se encontre caducado há mais de um ano, nos termos da alínea b) do número anterior.
3 - O título de condução é cancelado quando:
a) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial ou decisão administrativa transitadas em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contra-ordenação muito grave ou de segunda contra-ordenação grave;
b) For cassado nos termos do artigo 148º, do presente Código ou do artigo 101º, do Código Penal;
c) O titular reprove, pela segunda vez, no exame especial de condução a que for submetido nos termos do nº 2;
d) Tenha caducado, há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no nº 2 os titulares de títulos de condução cancelados ao abrigo das alíneas a) e b) do número anterior que queiram obter novo título de condução.
5 - Os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido.
6 - Ao novo título de condução obtido após cancelamento de um anterior é aplicável o regime probatório previsto no artigo 122º.
7 - Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de € 120 a € 600,00.
Assim sendo, por força do disposto no nº 7 deste normativo, a conduta do arguido deixou de ser vista como crime e passou a ser punida a título de contra-ordenação sendo-lhe, patentemente, mais favorável, em concreto, o regime actualmente em vigor, razão pelo qual lhe deverá ser aplicável, nos termos do estatuído no nº 2 do artigo 2º do Código Penal.
Assim sendo cumpre, sem necessidade de maiores considerações, absolver o arguido da prática deste tipo de ilícito, por descriminalização da conduta por si praticada.



II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, as cominadas como nulidade da sentença, artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código e, as nulidades que não devam considerar-se sanadas, artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-1998, B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03-02-1999, B.M.J. nº 484, pág. 271 e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

No caso em apreço, atendendo às conclusões, a questão que se suscita é a seguinte:
- Impugnação da sentença proferida, por erro na matéria de direito, relativamente à subsunção da conduta do arguido, ao tipo legal de crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro.

É sabido que constitui princípio geral que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no artigo 428º, do Código de Processo Penal, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no artigo 412º, nº 3 e, nº 4, do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Os vícios do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal são de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, ou, são anomalias decisórias ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, apreensíveis pela simples leitura do respectivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito.
Tais vícios (ou, como também são designados, erros-vícios) não se confundem com errada apreciação e valoração das provas.
E, porque assim, a alteração da factualidade assente na 1ª instância só poderá ocorrer pela verificação de algum dos vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova, artigo 431º, do Código de Processo Penal, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe oficiosamente, já que o recorrente não questiona na sua peça recursiva a matéria de facto tida como provada pelo tribunal a quo.
Em comum aos três vícios, o vício que inquina a sentença em crise tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, supra mencionado.
Ora, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, a mesma apreciou os factos aportados na acusação e, bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento.
Do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê, por isso, que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, não se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final (que constitui o objecto do processo levado ao mesmo pela acusação ou pela defesa na contestação), como não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e de igual modo não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras de experiência, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.
De igual modo, repete-se, do texto de tal decisão não se detecta qualquer violação do favor rei, na medida em que se não verifica, que o Tribunal de julgamento tenha tido qualquer dúvida na apreciação da matéria de facto e, a existir haja resolvido essa ou essas dúvidas contra a arguida.
Por outro lado, conceda-se, a decisão recorrida, não deixa de expor, de forma clara e lógica, os motivos que fundamentaram a decisão sobre a matéria de facto, com exame criterioso, das provas que abonaram a decisão, tudo com respeito do disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
A decisão recorrida está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.
O Tribunal a quo decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a de forma objectiva e motivada e, portanto, capaz de se impor aos outros.
Assim, em conclusão, decorre de todo o exposto, necessariamente, que este tribunal ad quem não pode deixar de julgar consolidada, com a alteração supra referida, a matéria de facto resultante do julgamento realizado pelo tribunal a quo.

Relativamente à impugnação da sentença proferida, por erro na matéria de direito, relativamente à subsunção da conduta do arguido, ao tipo legal de crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro.

Pratica um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, nos termos do disposto no artigo 30º, nº 1 e, nº 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 03 de Janeiro:
“1. Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2. Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel, a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias”.
Dos factos provados resultou que “o arguido sabia que, pese embora tivesse já sido titular da carta de condução nº FA-214062, a mesma já tinha caducado e perdido a sua validade em 18-06-2010”.
Destes factos provados resulta que o arguido era titular de título de condução com o nº FA-214062, caducado desde 18 de Junho de 2010.
Decorre do disposto no artigo 130°, do Código da Estrada (versão vigente à data da prática dos factos), que a condução de veículo com o título de condução caducado há mais de 2 (dois) anos, considera-se para todos os efeitos legais, não habilitado a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido (nº 6) e, se o título de condução estivesse caducado há menos de 2 (dois) anos estaríamos perante uma contra-ordenação (nº 7), citado artigo 130º, nº 2, alínea a), nº 3, alínea b), nº 6 e, nº 7, do Código da Estrada.
Este regime apenas veio a ser alterado em 05-12-2012, quando entrou em vigor o Decreto-Lei nº 138/2012, que deu nova redacção ao Código da Estrada, mormente ao seu artigo 130°, que agora dispõe, sob a epígrafe, "Caducidade e cancelamento dos títulos de condução", que:
“1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respectivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
(…)
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos, com excepção da revalidação dos títulos das categorias AM, AI, A2, A, BI, E, BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
(…)
3 - O título de condução é cancelado quando:
(…)
d) Tenha caducado, há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido.
(…)
5 - Os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido.
(…)
7 - Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de € 120 a € 600,00.
Assim, constata-se que ao abrigo do regime legal, vigente à data da prática dos factos, a conduta do arguido por se encontrar a conduzir um veículo automóvel no dia 18-04-2012, com o título de condução caducado desde 18-06-2010, seria subsumível ao disposto no artigo 130º, nº 2, alínea a), nº 3, alínea b) e, nº 7, do Código do Código da Estrada, pois era possuidor de título de condução caducado há menos de 2 anos, ou seja acerca de 1 ano e 10 meses e, constituiria uma contra-ordenação.
De igual forma, com o regime em vigor, a mesma conduta do arguido, nos termos do disposto no artigo 130º, nº 1, alínea a), nº 3, alínea d) e, nº 7, do Código da Estrada, constitui uma contra-ordenação.
Assim, a conduta do arguido que nos autos resultou provada, condução no dia 18-04-2012, do veículo automóvel com a matrícula 74-GO-40, com o seu título de condução caducado desde 18-06-2010, constitui uma mera contra-ordenação, seja mesma subsumível ao regime legal em vigor à data da prática dos factos ou, ao regime legal actualmente em vigor, porque globalmente mais favorável ao arguido.
Por tudo o exposto, improcede o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se assim a sentença recorrida.



III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se na sua integralidade a sentença recorrida.

- Sem custas.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto.
Évora, 05-05-2015

(Fernando Paiva Gomes M. Pina)
(Renato Amorim Damas Barroso)