Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
54/16.8T9GDL.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: PRAZO DO RECURSO
ERRO DA SECRETARIA
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE
Data do Acordão: 07/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Se a secretaria (erradamente ou não) comunicou ao arguido um determinado prazo para recorrer (rectius, um termo inicial ad hoc de tal prazo) da sentença, não pode aquele ser prejudicado com a contagem de um prazo inferior (ainda que possa ser este o legalmente previsto para o caso).
II - Se a “fundamentação” da matéria de facto é uma mera súmula descritiva do teor dos depoimentos prestados, sem qualquer juízo crítico ou analítico e sem qualquer ligação ao sentido da prova dos factos, está o tribunal ad quem impedido de confrontar a base da convicção do julgador com o vício de erro notório na apreciação da prova invocado pelo recorrente.

III - O cumprimento do dever de fundamentação da matéria de fato poderá revestir-se de acentuada complexidade, até porque no processo de formação da convicção do julgador intervêm diversas realidades de difícil ou mesmo impossível exteriorização, mas a transparência e a confiança que deve emanar de toda e qualquer decisão judicial impõe a realização integral de tal labor.

IV - as nulidades da sentença são de conhecimento oficioso, nos termos do n.º 2 do art.º 379.º do CPP.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.

No Juízo Local Criminal de Grândola do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, corre termos o processo comum singular n.º 54/16.8T9GDL, tendo sido os arguidos CJF, filho de ACF e de MJNJ, natural da freguesia e concelho de …, nascido a …, solteiro, e residente em …, e outro acusados, em co-autoria material, na forma consumada em concurso efectivo, da prática de um de crime de falsificação ou contrafacção de documento p. e p. p. artigo 256.º, n.º 1 alíneas a), d) e e) do Código Penal e de um crime de burla simples p. e p. p. artigo 217.º, n.º 1 alínea a), d) e e) do Código Penal.

Após julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

“Em face de todas as considerações tecidas decide-se:

A. ABSOLVER os arguidos (...) pela prática em co-autoria material, na forma consumada em concurso efectivo de 1 (um) crime de burla simples previsto e punido no artigo 217º, n.º 1 alínea a), d) e e) do Código Penal.

B. ABSOLVER o arguido WAVT pela prática de 1 (um) de crime de falsificação ou contrafacção de documento previsto e punido no artigo 256.º, n.º 1 alínea a), d) e e) do Código Penal.

C. CONDENAR o arguido CJF pela prática de 1 (um) de crime de falsificação ou contrafacção de documento previsto e punido no artigo 256.º, n.º 1 alínea a), d) e e) do Código Penal na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros) o que perfaz o montante global de € 1.080,00 (mil e oitenta euros).

Inconformado, este arguido interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1 ª – Resultou da matéria provada que na sequência do concurso efetuado pelo ICNF, foi adjudicada em 30/11/2015, em hasta pública de alienação de pinha de pinheiro manso na árvore, n.º …, ao arguido WT, dois lotes, o lote 1, na Mata Nacional de …, e o lote 2, na Mata Nacional de …, área Florestal de … e Reserva Natural …, e que o W concorreu a pedido do ora Recorrente.

2.ª - Resultou provado que pela adjudicação dos dois lotes, o ICNF, recebeu no dia 15.12.2015, o pagamento acordado no valor de € 37.312,00, quantia correspondente ao pagamento do valor das pinhas dos dois lotes, ficando apenas em falta o pagamento correspondente às respectivas cauções, no valor total de € 1.760,00.

3.ª - Resultou ainda provado que no dia 16/12/2015, foi remetido, pelo CJ, para o ICNF um documento que iludia ser verdadeiro, que aparentava tratar-se de cópia do comprovativo do pagamento da prestação das cauções devidas pelos lotes adjudicados, documento esse que alterou em data e por forma não concretamente apurada.

4.ª – Resultou da matéria provada que logo após o envio do referido documento, o ICNF foi informado que o pagamento da caução não se tinha concretizado e quais os motivos, sendo que, os elementos ali constantes, eram falsos, designadamente, o n.º da nota de lançamento, o IBAN e as quantias, e que a Instituição não havia procedido a nenhuma transferência, nos moldes descritos no documento, ou seja face à prova produzida e dada como provada, o ICNF, terá sido informado, certamente depois de 16/12/2015.

5.ª – O crime de falsificação é, um crime intencional, o agente tem de actuar com intenção de causar prejuízo ou de obter um benefício ilegítimo.

6.ª – Resultou provado que os trabalhos de apanha das pinhas decorreram normalmente, sem que se tenham registado danos nos pinhais em causa, tendo sido regularmente acompanhados por funcionários do ICNF, IP /DRCNF-ALT, e ficaram concluídos em 31/03/2016.

7.ª - Resultou provado que o contrato de venda daquelas pinhas foi integralmente cumprido, na medida em que foram apanhadas todas as pinhas que integravam os dois lotes acima mencionados.

8.ª – O Recorrente esclareceu que começaram a apanhar as pinhas a 3 de Dezembro. O pagamento da caução é feito no prazo de 20 dias, após o início dos trabalhos. Nunca pensou em não ter dinheiro para a caução. O contrato foi mantido até ao final. O ICNF não resolveu o contrato. Em 3 dias procedeu à apanha das 3 primeiras toneladas que se destinavam ao ICNF .(Motivações do Tribunal).

9.ª – A testemunha, IJFC, funcionária do ICNF, esclareceu, designadamente que o ICNF não teve prejuízo, que o contrato foi cumprido até ao final. (Motivações do Tribunal).

10.ª – A testemunha PS, Eng.º Ambiente, que à data dos factos exercia funções como Presidente do Conselho Directivo do ICNF, esclareceu designadamente que, teve conhecimento dos factos porque a questão foi levada a reunião, que a caução destinava-se a salvaguardar o cumprimento dos trabalhos e algum dano que fosse causado e que o contrato foi cumprido. (Motivações do Tribunal).

11.ª - Ora, como se disse supra o ICNF, foi informado do não pagamento da caução e dos motivos, sendo que nunca antes de 16/12/2015 e sempre acompanhou os trabalhos, o contrato foi cumprido até ao fim, os trabalhos foram concluídos em 31/03/2016, de tal modo que só se pode concluir que o ICNF aceitou a execução do contrato sem a prestação da caução e que esta caução não era essencial no caso em concreto, caso contrário teria resolvido o contrato em causa e os trabalhos não teriam prosseguido, era esta a conclusão a que deveria ter chegado o Tribunal.

12.ª - Estabelece o artigo 256.º, n.º 1 do Código Penal “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou preparar. . .”, sendo que as modalidades de acção encontram-se estabelecidas nas suas diversas alíneas.

13.ª – Dos factos provados não resulta que o arguido tivesse intenção de prejudicar, quem quer que fosse, neste caso o ICNF, nem que tivesse intenção de retirar qualquer benefício para si ou para terceiro.

14.ª – Até, admitindo que o preenchimento do ilícito não depende de juízos póstumos de prejuízo ou do benefício ilegítimo, sendo este aferido no momento da prática dos factos, sempre se dirá que, a utilização do documento ocorreu sempre depois de 16/12/2015.

15.ª - Resulta dos factos provados, que quanto à data e forma como foi efetuado a “falsificação” nada se apurou, assim, sempre será de concluir que o momento da prática será sempre posterior a qualquer beneficio que o recorrente pudesse eventualmente retirar de tal acto, uma vez que a adjudicação já tinha ocorrido, os trabalhos já se tinham iniciado e o pagamento das pinhas também tinha ocorrido e os trabalhos foram sempre acompanhados pelo ICNF, tanto antes da “prestação da caução” como depois.

16.ª - Desta forma não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em apreço, relativamente ao arguido CJ.

18.ª - Por tudo o exposto, não nos parece assistir razão ao Tribunal na aplicação que faz do direito aos factos.

19.ª - O Tribunal violou os artigos 127.º do Código de Processo Penal, os artigos, 40.º, n.º 2, e 256.º, n.º 1 alínea a), d) e e) do Código Penal.

20.ª - Por todo o Exposto é nosso entendimento que o Recorrente deveria ser absolvido.

IV – DA MEDIDA DA PENA:

Como supra exposto, é nosso entendimento que o ora Recorrente deveria ser absolvido, no entanto, por mera cautela de patrocínio, caso V. Excelências assim não entendam, sempre se dirá que:

21.ª - Afigura-se-nos, face ao exposto, salvo o devido respeito por melhor opinião, que por parte do Tribunal a quo, houve errónea apreciação da prova e violação do princípio da livre apreciação da mesma, previsto no art.º 127.º do Código de Processo Penal.

22.ª - O ora recorrente foi condenado pela prática de um crime de crime de falsificação ou contrafacção de documento previsto e punido no artigo 256.º, n.º 1 alínea a), d) e e) do Código Penal.

23.ª - O crime em causa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa

24.ª - Foi aplicada ao recorrente, pela prática deste crime referido, uma pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros) o que perfaz o montante global de € 1.080,00 (mil e oitenta euros).

25.ª - Estabelece o n.º 1 do artigo 47.º do Código Penal, que o limite mínimo da pena de multa é de 10 dias e o limite máximo é de 360 dias.

26.ª - É nosso entendimento que Tribunal a quo violou o plasmado no art.º 40.º do C.P.. Dispõe este preceito normativo, no seu n.º 2 que “ Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Não podendo em caso algum haver pena sem culpa.

Vejamos:

a) Quanto aos antecedentes Criminais:

27.ª - “i. Foi condenado por sentença transitada em julgado em 27-04-2014, no processo n.º 167/12.5GBSTC, pela prática em 24-09-2012 de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, um crime de furto simples e um crime de falsificação ou contrafacção de documento, na pena única de 280 dias de multa, á taxa diária de € 7,00, no total de € 1.960,00, encontrando-se tal pena extinta.

ii. Foi condenado por sentença transitada em julgado em 24-04-2017, no processo n.º 319/14.3IDSTB, pela prática em 15-11-2013,de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, no valor global de € 1.600,00.

iii. Foi condenado por sentença transitada em julgado em 08-11-2019, proferida no processo n.º 2927/17.1T9STB, pela prática em 07-11-2016, de um crime de detenção de arma proibida em 150 dias de multa, à taxa diária de € 5,50.”

b) Das condições pessoais do arguido:

28.ª – Resultou provado no ponto P.”O arguido CG tem uma empresa de prestação de serviços agrícolas e comercialização de pinhas e cortiças. Reside com a companheira e filhas de 4, 8 e 19 anos. A companheira não trabalha. Encontra-se com medida de coação de OPH desde 7 de Agosto. Tem tido o apoio da família. A casa integra uma herança. Tem o 12º ano de escolaridade.”

29.ª - O Tribunal optou por uma pena de multa como supra se disse, no entanto, fixou os dias de multa no seu limite médio, com tal não se concorda, e não se concorda porque excede em muito a medida da culpa, violando o art.º 40, n.º 2 do Código Penal, afigurando-se-nos que o grau de ilicitude deveria ser considerado abaixo do limite médio.

30.ª - Considera-se, que a Douta Decisão não deu cabal cumprimento ao art.º 71.º do Código Penal.

31.ª - A ilicitude do facto e a culpa do agente, in casu situa-se a um nível abaixo da média, o recorrente não prejudicou quem quer que fosse com a sua conduta.

32.ª - À data dos factos o recorrente apenas contava com um antecedente criminal da mesma natureza praticado em 2012.

33.ª - Assim, considerando os limites abstractos acima enunciados, as circunstâncias descritas, considerando as necessidades de prevenção geral e especial, os factos e a personalidade do arguido, consideramos que deveria ser de aplicar ao ora recorrente uma pena não superior a 100 dias de multa.

34.ª - Quanto à determinação do quantum da pena de multa, conforme estabelece o artigo 47º, n.º 2, do Código Penal, a pena de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e € 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

35.ª - Resultou provado quanto aos rendimentos, é que o recorrente vive com a companheira e 3 filhas, que esta não trabalha, que ele se encontra com medida de coação de OPH desde 7 de Agosto, e tem tido o apoio da família.

36.ª - O Tribunal não pode presumir que haja qualquer rendimento, e não tendo apurado se este existe só poderia optar por fixar o quantitativo diário pelo mínimo, ou seja € 5,00 (cinco euros), como previsto no artigo 47º, n.º 2, do Código Penal.

37.ª - Assim, pelas razões apresentadas, a pena em que o recorrente foi condenado, configura uma errada aplicação do Direito, vertida na Douta sentença.

38.ª - Atendendo às razões expostas, deverá a pena de multa aplicada ao arguido ser reduzida para uma pena de multa não superior a 100 dias.

39.ª - Nesta conformidade, a douta sentença violou o disposto no artº.18º da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), e 40.º do Código Penal (C.P.).

40.ª - Em suma foram violados os art.ºs 18º da C.R.P., os art.º 127º e 410º, n.º 1 e n.º 2 c) do C.P.P. e o art.º 40º do C.P.

Foram violadas todas as disposições legais indicadas ao logo de toda a motivação de recurso.

Defendendo, em síntese, que:

“Nestes termos deve conceder-se provimento ao presente recurso, devendo a Douta Sentença ser revogada e substituída por outra que, de acordo com o entendimento ora explanado:

Absolva o recorrente do crime de falsificação ou contrafacção de documento previsto e punido no artigo 256.º, n.º 1 alínea a), d) e e) do Código Penal,

Caso assim se não entenda, deve a Douta Sentença ser revogada e substituída por outra que, de acordo com o entendimento ora exposto condene o arguido a pena não superior a 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros).”

O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo:

“Dado o exposto (...) deve o recurso ser rejeitado por extemporâneo; e, caso assim e não entenda; deve ser negado provimento ao recurso e confirmada na íntegra a douta decisão recorrida.”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação deu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado improcedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1).

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“2.1. Matéria de Facto Provada

A. Na sequência do concurso efectuado pelo ICNF, em 30.11.2015, foi adjudicada, em hasta pública de alienação de pinha de pinheiro manso na árvore, n.º …, ao arguido WT, dois lotes, o lote 1, na Mata Nacional de … e o lote 2, na Mata Nacional de …, área Florestal de … e Reserva Natural …..

B. Pela adjudicação dos dois lotes era devido o pagamento da pinha e ainda um valor acrescido, de 5% do valor pago, a título de caução.

C. Nessa conformidade, no dia 15.12.2015, foi remetido ao ICNF, de …, via fax, directamente, da instituição bancaria, …, de … o comprovativo da transferência, no valor de € 37.312,00, quantia correspondente ao pagamento do valor das pinhas dos dois lotes, ficando apenas em falta o pagamento correspondente às respectivas cauções, no valor total de € 1.760,00.

D. No dia 16.12.2015, em hora não concretamente apurada, mas que ocorreu durante o período da manhã, o arguido ClF, dirigiu-se às instalações do ICNF, em …, e entregou a MH, funcionário desse serviço local, um documento elaborado por si, que aparentava tratar se de cópia do comprovativo do pagamento da prestação das cauções devidas pelos lotes adjudicados ao arguido WT, no valor de € 1.760,00 através de transferência bancária da conta n.º …, da instituição bancária …, para o IBAN PT… em nome do INST CONSERVAÇÃO DA NATUREZA FLORESTAS, conforme instruções de CJF.

E. Nessa conformidade foi entregue pelo arguido CF, um documento que iludia ser emitido pela instituição bancária, …, de comprovativo da transferência bancaria onde, em momento e de forma não concretamente apurada, fez, constar no campo Nota de Lançamento n.º …, bem como, no texto descritivo do movimento, alteraram o IBAN, fazendo constar PT… e, ainda, no montante transferido colocou o valor 1.760,00, e na importância total 1.765,41.

F. Após a entrega do aludido documento pelo arguido C, o funcionário do ICNF, crente que se tratava de um documento verdadeiro, aceitou-o como comprovativo do pagamento das cauções, que eram devidas pelo arguido WT, e nesse contexto, digitalizou-o e enviou-o, via email, para os serviços do ICNF, em …, a fim de ser verificada a entrada do respectivo montante na conta bancaria do ICNF.

G. Nessa sequencia, veio o ICNF a ser informado pela instituição bancária …, de …, que não havia sido creditada, na conta do ICNF, a quantia de € 1.760,00 e, ainda, que o documento entregue pelo arguido CF, não havia sido emitido pela instituição bancária, sendo que, os elementos ali constantes, eram falsos, designadamente, o n.º da nota de lançamento, o IBAN e as quantias, e que a Instituição não havia procedido a nenhuma transferência, nos moldes descritos no documento que havia sido entregue pelo arguido C, no ICNF de ….

H. O arguido alterou o aludido documento, em data e por forma não concretamente apurada, a fim de fazer crer ao ICNF que o pagamento das cauções tinha sido efectuado, apresentando o documento como se tratasse de um documento legítimo emitido pela …, sem conhecimento ou autorização da respectiva instituição bancária, bem sabendo que tal documento não era verdadeiro.

I. O arguido CF quis actuar da forma descrita, designadamente, preenchendo e entregando para pagamento das cauções um documento que não era verdadeiro.

J. O arguido agiu com o propósito concretizado de levar o ICNF a crer que o pagamento das cauções havia sido efectuado, de forma a apresentarem uma situação regular na adjudicação dos lotes e beneficiarem da alienação das pinhas de pinheiro manso nos lotes melhor identificados.

K. O arguido conhecia o carácter proibido e punível da sua conduta pela lei penal, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.

Mais de provou:

L. O arguido CG por deter dívidas junto da administração tributária, pediu ao arguido WT que desse o seu nome no concurso.

M. Os pagamentos foram todos garantidos por CG, assim como a execução do trabalho da apanha da pinha.

N. Os trabalhos de apanha das pinhas decorreram normalmente, sem que se tenham registado danos nos povoamentos (pinhais) em causa, tendo sido regularmente acompanhados por funcionários do ICNF, IP / DRCNF-ALT, e ficaram concluídos em 31/03/2016.

O. O contrato de venda daquelas pinhas foi integralmente cumprido, na medida em que foram apanhadas todas as pinhas que integravam os dois lotes acima mencionados.

P. O arguido CG tem uma empresa de prestação de serviços agrícolas e comercialização de pinhas e cortiças. Reside com a companheira e filhas de 4, 8 e 19 anos. A companheira não trabalha. Encontra-se com medida de coação de OPH desde 7 de Agosto. Tem tido o apoio da família. A casa integra uma herança. Tem o 12º ano de escolaridade.

Q. O arguido WT não tem antecedentes criminais.

R. Vive com a namorada e a filha (1 ano e meio). Casa própria. A companheira encontra-se a requentar curso de formação. Tem o 12º ano de escolaridade.

S. O arguido CG já sofreu as seguintes condenações:

i. Foi condenado por sentença transitada em julgado em 27-04-2014, no processo n.º 167/12.5GBSTC, pela prática em 24-09-2012 de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, um crime de furto simples e um crime de falsificação ou contrafacção de documento, na pena única de 280 dias de multa, á taxa diária de € 7,00, no total de € 1.960,00, encontrando-se tal pena extinta.

ii. Foi condenado por sentença transitada em julgado em 24-04-2017, no processo n.º 319/14.3IDSTB, pela prática em 15-11-2013, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, no valor global de € 1.600,00.

iii. Foi condenado por sentença transitada em julgado em 08-11-2019, proferida no processo n.º 2927/17.1T9STB, pela prática em 07-11-2016, de um crime de detenção de arma proibida em 150 dias de multa, à taxa diária de € 5,50.

2.2. Matéria de Facto Não Provada

Não ficaram por provar quaisquer factos que contrariem os supra elencados, designadamente, não se provou que:

1. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 30.11.2015, data do concurso por hasta pública, a realizar pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, doravante designado ICNF, os arguidos WT e CF, gizaram um plano, a fim de, em conjugação de esforços e de forma concertada, através da adjudicação em hasta pública de lotes de alienação de pinha de pinheiro manso na árvore, obterem a exploração dos lotes, sem procederem ao pagamento devido da caução a que ficavam adstritos, de acordo com o respectivo caderno de encargos referente ao procedimento.

2. Os arguidos, em conjugação e comunhão de esforços alteraram o aludido documento, em data e por forma não concretamente apurada, a fim de fazer crer ao ICNF que o pagamento das cauções tinha sido efectuado, apresentando o documento como se tratasse de um documento legítimo emitido pela …, sem conhecimento ou autorização da respectiva instituição bancária, bem sabendo que tal documento não era verdadeiro.

3. Fizeram-no com o propósito alcançado de, com o documento alterado e assim preenchido, obter uma vantagem económica, a que sabiam não ter direito, pelo menos em valor igual à do montante de € 1.760,00, o que conseguiram, através da entrega do comprovativo de transferência que não era verdadeiro, apresentando-o como sendo legitimo e regularmente emitido pela instituição bancaria, bem sabendo os arguidos que não tinham efectuado qualquer pagamento por transferência bancária e que, dessa forma, faltando à verdade, lesavam a segurança e confiança no tráfico jurídico, em concreto, a fidelidade e idoneidade da instituição bancária, in casu, …, mas tal não os coibiu de o fazer, o que efectivamente fizeram e quiseram.

4. Os arguidos, em conjugação de esforços e comunhão de vontades, quiseram actuar da forma descrita, designadamente, preenchendo e entregando para pagamento das cauções um documento que não era verdadeiro.

5. Os arguidos agiram, de forma concertada, com o propósito concretizado de levar o ICNF a crer que o pagamento das cauções havia sido efectuado, de forma a apresentarem uma situação regular na adjudicação dos lotes e beneficiarem da alienação das pinhas de pinheiro manso nos lotes melhor identificados em 2.º.

6. Os arguidos sabiam e quiseram actuar da forma descrita, sabendo, designadamente, que o ICNF, responsável pela adjudicação dos lotes por hasta pública, se conhecedora das circunstâncias que envolviam o não pagamento das cauções devidas, nunca lhes adjudicaria os aludidos lotes, por incumprimento das normas concursais relativo à hasta pública n.º 7/2015.

7. Os arguidos agiram de forma deliberada e consciente com o propósito de, fazendo laborar em erro sobre o efectivo pagamento das cauções, obterem enriquecimento ilegítimo e determinar outrem à prática de actos causadores de prejuízo patrimonial, o que quiseram e efectivamente conseguiram.

8. Os arguidos conheciam o carácter proibido e punível das suas condutas pela lei penal, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

1.ª questão – É (ou não) o recurso extemporâneo;

2.ª questão – Deve (ou não) o arguido ser absolvido;

3.ª questão – Deve (ou não) ser alterada a medida da pena.

*

B. Decidindo.

1.ª questão – É (ou não) o recurso extemporâneo.

Na resposta do MP em 1.ª instância é invocada a extemporaneidade do recurso.

Segundo o seu entendimento, o prazo para recorrer deve, nos termos do art.º 411.º, n.º 1, alínea b), contar-se a partir do depósito da sentença, uma vez que o arguido e a sua defensora estiveram presentes na 1.ª sessão da audiência de julgamento. (art.º 373.º, n.º 3)

Considerando tal prazo legal, em concreto o mesmo terminou no dia 03.02.2021 (ou, considerando o acréscimo de três dias com multa, 08.02.2021, pelo que, quando o recurso foi interposto (em 15.02.2021), “há muito que o seu direito se tinha precludido”.

Independentemente da validade do alegado, entendemos ser de valorar o seguinte:

Consta dos autos que o arguido (ora recorrente) foi notificado (através da GNR – Posto Territorial de …) da sentença no dia 14.01.2021 (ref. 5544358), “conforme solicitado no V/ ofício n.º 91577955, datado de 05.01.2021”.

Segundo o MP essa notificação pessoal da sentença ao recorrente posterior ao depósito da mesma, “não sendo proibida, também não é exigível por lei no caso presente”, concluindo pela sua irrelevância. Contudo, do mencionado ofício (ref. Citius) n.º 91577955 consta o seguinte: “Solicito a V. Exª, se digne providenciar pela notificação da pessoa abaixo indicada, na qualidade de Arguido, nos termos e para os efeitos a seguir mencionados:

De todo o conteúdo da sentença proferida, cuja cópia se junta para lhe ser entregue neste ato.

De que tem o prazo de 30 dias, a contar da presente notificação, para exercer o direito de recurso da referida sentença, devendo para o efeito contactar com o seu mandatário/defensor.”

Ora, independentemente da interpretação sobre o prazo legal de recurso da sentença nas situações em que o arguido comparece a uma sessão da audiência de julgamento e falta ao acto de leitura da sentença, o certo é que consta da nota que foi notificada ao arguido que tem o prazo de 30 dias, a contar da presente notificação, para exercer o direito de recurso da referida sentença. Ou seja, a secretaria (erradamente ou não) comunicou ao arguido um determinado prazo para recorrer. Nos termos do art.º 157.º, n.º 6 do CPC, ex vi do art.º 4.º do CPP, os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.

Assim, se a secretaria (erradamente ou não) comunicou ao arguido um determinado prazo para recorrer (rectius, um termo inicial ad hoc de tal prazo), não pode aquele ser prejudicado com a contagem de um prazo inferior (ainda que possa ser este o legalmente previsto para o caso). (2)

Consequentemente, tendo o arguido sido notificado da sentença nos aludidos termos em 14.01.2021 e tendo interposto recurso no dia 15.02.2021, fê-lo no último dia do prazo que (erradamente ou não) lhe foi assinalado pela secretaria na nota de notificação, pelo se considera estar em tempo.

Improcede, assim, esta questão.

2.ª questão – Deve (ou não) o arguido ser absolvido.

O ora recorrente vem, numa parte do recurso sob a epígrafe “Do Direito”, afirmar que “não nos parece assistir razão ao Tribunal na aplicação que faz do direito aos factos”, afirmando, imediatamente a seguir, que o tribunal violou o artigo 127.º do Código de Processo Penal e o artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal (3).

Estas referências normativas são incompreensíveis em sede de impugnação de Direito da subsunção da conduta a determinado crime.

Com efeito, o art.º 127.º determina a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do juiz. É, pois, um princípio de apreciação da prova que é operativo em fase anterior à subsunção, actividade subsequente à fixação do universo fáctico relevante.

Por seu turno, o art.º 40.º, n.º 2 do Código Penal diz respeito à pena e da sua relação com a “medida da culpa”, ou seja, poderá ser operativo em fase posterior à subsunção.

Também se afirma que foi violado o art.º 410.º, n.º 1 e n.º 2.

O recurso pode ter como fundamento (nos termos do art.º 410.º, n.º 2, alínea c)), desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum o erro notório na apreciação da prova.

Tal erro, dizem-nos Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques (4), é uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível para o cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se tirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis.”

Sob a epígrafe “Motivação”, consta da sentença recorrida (transcrição):

“O tribunal alicerçou a sua convicção para dar como provada e não provada a factualidade supra elencada na apreciação critica e conjugada dos meios de prova produzidos e examinados em julgamento, de acordo com o respetivo valor probatório, enquadrados ainda pelas regras da experiência e normalidade social.

O arguido WT, não prestou declarações, remetendo-se ao silêncio.

Por sua vez, CF prestou declarações. Esclareceu que por ter dividas não podia concorrer à hasta pública. Pediu ao amigo para dar o nome no leilão. Julga que a transferência inicial foi da sua conta para a conta do ICNF.

Começaram a apanhar a 3 de Dezembro. O pagamento da caução é feito no prazo de 20 dias, após o inicio dos trabalhos. O W andava a trabalhar para o C. Nunca pensou em não ter dinheiro para a caução. O contrato foi mantido até ao final. O ICNF não resolveu o contrato. Em 3 dias procedeu à apanha das 3 primeiras toneladas que se destinavam ao ICNF.

Prestaram depoimento ainda:

MJFH, funcionário do ICNF há quase 40 anos. Foi-lhe entregue o documento e seguiu os procedimentos normais.

IJFC, funcionário do ICNF há 38 anos. Técnica superior na área da contabilidade. A caução destinava-se a garantir a boa execução dos trabalhos. O ICNF prejuízo não teve. Tanto quanto sabe, o contrato não foi resolvido e foi cumprido até ao final. A caução destina-se a ser restituída no final, caso o contrato seja pontualmente cumprido.

PS, Eng.º Ambiente, saiu do ICNF em Junho de 2016, data em que exercia funções como Presidente do Conselho Directivo do ICNF. Teve conhecimento dos factos porque a questão foi levada a reunião. A caução destinava-se a salvaguardar o cumprimento dos trabalhos e algum dano que fosse causado. Tanto quanto se recorda o contrato foi cumprido.

JCCN, casado, eng.º civil, padrasto do arguido WT. Abonou a favor do seu enteado, descrevendo-o como um jovem responsável e sério nas várias vertentes da sua vida.

Por sua vez, ao nível da prova documental, há a considerar:

 comprovativo pagamento valor € 1.760,00 a fls. 6;

 informação bancária … a fls. 10 e 11;

 documentação junta da Hasta Pública n.º … de alienação de pinha de pinheiro manso na árvore, a fls.120 verso a121;

 acta n.º1 e 2 da hasta pública a fls. 121 verso a 123;

 documentos do ICNF a fls. 146 verso a 150, 156 a 158;

 cópia do Diário da República de 20.11.2015, n.º 228 a fls. 155;

 cópia anúncio hasta pública a fls. 158 a 161, anexo I, II, fls. 161 verso a 164;

 cópia da minuta do contrato de alienação 164 verso a 165 verso;

 cópia caderno de encargos a fls. 166 a 168, anexo I a fls. 169;

 cópia procedimento hasta pública decisão a fls. 170 a 171;

 cópia correspondia trocada ICNF e WT a fls. 172 a 175, 176 a 177, 178 a 181, 182 a 183;

 informações bancárias da instituição bancária … a fls. 195 a 207;

 Informação prestada pelo ICNF na ref.ª 5408213

Indicada a prova produzida, importa agora motivar, ou seja, explicar o percurso lógico e racional que o tribunal realizou na apreciação da prova produzida.

A factualidade provada de A) a E) foi expressamente admitida pelo arguido CF que exclui da sua participação WT, a quem admitiu apenas ter pedido um favor.”

Para se conhecer da (implicitamente) alegada “falha grosseira e ostensiva na análise da prova”, seria, pois, necessário que se analisasse o percurso lógico do julgador para a fixação dos factos provados.

O que se verifica, desde logo, é a impossibilidade de tal tarefa, por desconhecimento absoluto da base de convicção do julgador.

A fundamentação da matéria de facto é uma mera súmula descritiva do teor dos depoimentos prestados, sem qualquer juízo crítico ou analítico e sem qualquer ligação ao sentido da prova dos factos, o que impede este tribunal de confrontar a base da convicção do julgador com o vício invocado pelo recorrente. Aliás, é significativo que o Mm.º Juiz a quo, depois de tal súmula, tenha vertido na decisão que “importa agora motivar, ou seja, explicar o percurso lógico e racional que o tribunal realizou na apreciação da prova produzida”, fazendo, após, apenas uma referência à admissão de alguns factos pelo arguido ora recorrente (o que também não integra qualquer exame crítico das provas) e nada mais.

Sabemos que, para o cumprimento do dever de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto – imposto pelo art.º 374.º, n.º 2 (5) – não basta a mera indicação dos meios de prova que serviram de base à decisão e nem tão pouco se basta com a alusão aos depoimentos prestados, já que aquilo que se impõe é que o julgador concretize, na medida do possível, o iter lógico que levou à formação da sua convicção, especificando, não só os concretos meios de prova em que se baseou, mas também as razões que o levaram a considerar esses meios de prova como aptos ou adequados para formar a sua convicção relativamente à verificação (ou não verificação) dos factos, analisando criticamente as diversas provas produzidas, explicando as razões pelas quais lhe mereceram credibilidade, as provas que foram fundamentais para a formação da sua convicção e concretizando, na medida do possível, as razões que o levaram a atribuir maior credibilidade a determinados meios de prova em detrimento de outros que com eles eram incompatíveis (6).

O cumprimento desse dever de fundamentação poderá revestir-se de acentuada complexidade, até porque no processo de formação da convicção do julgador intervêm inúmeros factores de difícil ou mesmo impossível exteriorização, mas a transparência e a confiança que deve emanar de toda e qualquer decisão judicial (7) impõe a realização integral de tal labor.

Em consequência, entende-se que a sentença enferma de nulidade por falta de fundamentação integral da matéria de facto (art.º 379.º, n.º 1, alínea a) (8)), devendo ser substituída por outra que proceda ao exame crítico de todas as provas produzidas / examinadas na audiência de julgamento (9).

Fica prejudicado o conhecimento da última questão.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em declarar nula a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que sane essa nulidade, procedendo ao exame crítico das provas.

Sem custas.

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 13 de Julho de 2021

Edgar Gouveia Valente

Laura Maria Peixoto Goulart Maurício

Sumário

I – Se a secretaria (erradamente ou não) comunicou ao arguido um determinado prazo para recorrer (rectius, um termo inicial ad hoc de tal prazo) da sentença, não pode aquele ser prejudicado com a contagem de um prazo inferior (ainda que possa ser este o legalmente previsto para o caso).

II - Se a “fundamentação” da matéria de facto é uma mera súmula descritiva do teor dos depoimentos prestados, sem qualquer juízo crítico ou analítico e sem qualquer ligação ao sentido da prova dos factos, está o tribunal ad quem impedido de confrontar a base da convicção do julgador com o vício de erro notório na apreciação da prova invocado pelo recorrente.

III - O cumprimento do dever de fundamentação da matéria de fato poderá revestir-se de acentuada complexidade, até porque no processo de formação da convicção do julgador intervêm diversas realidades de difícil ou mesmo impossível exteriorização, mas a transparência e a confiança que deve emanar de toda e qualquer decisão judicial impõe a realização integral de tal labor.

IV - as nulidades da sentença são de conhecimento oficioso, nos termos do n.º 2 do art.º 379.º do CPP.

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1 Diploma a que pertencerão todas as referências normativas ulteriores sem indicação diversa.

2 Neste sentido, entre muitos outros, vide o Acórdão do TRP de 23.11.2016 proferido no processo 4065/14.0T9PRT-A.P1 (relator João Pedro Nunes Maldonado) disponível em www.dgsi.pt: “I – De acordo com o artº 157º nº6 do CPC, os erros dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes. II - Tal princípio é aplicável ao processo penal (artº 4º CPP). III – Um sujeito processual ou até interveniente pode valer-se dos prazos erroneamente declarados nas comunicações escritas efetuadas pelos funcionários de justiça no âmbito do cumprimento de ordens da autoridade judiciária que excedam os prazos legais de caducidade para a prática de actos processuais.”

Por seu turno, o Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 714/04, de 21.12, disponível no respectivo site institucional) também já se pronunciou sobre a questão, entendendo que “[n]o caso de existência de erro da secretaria não reparado por intervenção oficiosa ou motivada do autor, há que notar que a solução elegida pelo legislador encontra acolhimento desde logo, na garantia constitucional do acesso aos tribunais nas suas dimensões de direito a uma tutela efectiva e eficaz e de proibição de indefesa, consagrada no art.º 20º, e no princípio da tutela da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, a demandar que se deva confiar nos actos dos funcionários judiciais praticados no processo enquanto agentes que estes são dos Tribunais e enquanto os mesmos não forem revogados ou modificados, este decorrente do art.º 2º, ambos os preceitos da CRP.”

3 Para além, compreensivelmente, do art.º 256.º, alíneas a), d) e e) do Código Penal.

4 Recursos em Processo Penal de Acordo com o Código de Processo Penal Revisto, 7ª edição, Maio de 2008, página 77.

5 E também pelo art.º 205.º, n.º 1 da CRP. O dever de motivação pode analisar-se em dois planos distintos: “A doutrina distingue a função endoprocessual da função função extraprocessual da motivação. A primeira consiste na exigência de assegurar às partes a exatidão da decisão. Tem função de viabilizar um controle interno no processo sobre o fundamento da sentença e relaciona-se à possibilidade de impugnação. Em relação à função extraprocessual, nota-se que o processo é também um fato que se relaciona com a sociedade em geral. Assim, a motivação desenvolve uma função essencialmente democrática, pois viabiliza um controle externo sobre o fundamento da decisão. O juiz, na verdade, por meio da motivação de sua decisão, expõe o seu raciocínio e justifica o modo pelo qual exercitou o seu poder decisório (…).” Paolo Tonini, A Prova no Processo Penal Italiano, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002, página 104, nota 41.

6 “Na estrutura da motivação devem estar expostas as contradições em relação às provas e às hipóteses. Uma motivação que leve em consideração somente as provas e não também as provas contrárias, certamente, poderá constituir um raciocínio coerente e, portanto, não será manifestamente ilógica, mas perderá a estrutura dialética legalmente imposta.” Paolo Tonini, Ob. cit., página 106. No mesmo sentido, Sérgio Poças, Da Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Revista Julgar, n.º 3, 2007, página 37.

7 Citando Ferrajoli, Perfecto Andrés Ibáñez (Valoração da Prova e Sentença Penal, Lumen Juris Editora, Rio de Janeiro, 2006, página 115) diz-nos que “deve distinguir-se entre o juízo sobre o fato e o juízo sobre o juízo. E dentro deste, é claro que o juízo sobre a motivação forma um todo com o juízo de legalidade; e que o controle sobre a consistência (não das provas, senão) da argumentação probatória é de todo unido às garantias de legalidade que expressam os três clássicos brocardos nulla poena sine crimine, nullum crimen sine lege e nulla poena et nullum crimem sine judicio”.

8 E art.º 374.º, n.º 2.

9 Entendemos que as nulidades da sentença são de conhecimento oficioso, nos termos do n.º 2 do art.º 379.º. Neste sentido, vide Oliveira Mendes in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, Coimbra, 2016, 2.ª edição, página 1133. Vide uma descrição de decisões a favor e contra este entendimento em Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª edição, Quid Juris Editora, Lisboa 2020, páginas 850 a 852.