Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
32/18.2YREVR
Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
IMPEDIMENTO
JUIZ SUBSTITUTO
Data do Acordão: 03/14/2018
Votação: DECISÃO DO RELATOR
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DEFERIDA A ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA
Sumário:
I - Na fase de julgamento compete ao juiz a quem o processo tiver sido distribuído proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, no prazo a que alude o artigo 213.º do CPP, sem que a decisão que venha a ser proferida nesse âmbito – seja ela de manutenção, revogação ou de substituição por qualquer outra medida de coação, incluindo a prevista no artigo 200.º - tenha como consequência o impedimento a que alude a al. a) do artigo 40.º do CPP.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

O senhor Juiz do Juízo Central Cível e Criminal de Évora veio, nos termos do artigo 35.º, n.º1 do CPP, denunciar a existência de conflito de competência e suscitar a sua resolução, porquanto, no âmbito dos autos de processo comum coletivo n.º1055/16,1PBEVR, na qualidade de juiz substituto (despacho de fls. 57 a 60) declarou-se incompetente para os termos subsequentes do processo) por entender que competente, por não se verificar motivo de impedimento, é a senhora Juiz 3 do Juízo Central Cível e Criminal de Évora, a qual se havia declarado impedida para presidir à audiência de julgamento, face ao disposto no art. 40.º, al. a), do CPP.

Cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º1 do CPP, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto é de parecer que inexiste fundamento para a declaração de impedimento da senhora juíza e, por isso, deverá ser declarada a sua competência para a realização do julgamento e ulteriores termos do processo.

II. FUNDAMENTAÇÃO:

Nos presentes autos foi aplicada ao arguido J, em fase anterior ao julgamento, por despacho de 22-10-2016, a medida de coação de prisão preventiva, a qual, em sede de decisão instrutória, proferida em 19-06-2017, foi substituída por internamento preventivo, a cumprir no EP de Caxias (ou outro com valência psiquiátrica), ao abrigo do disposto nos artigos 193.º, n.ºs 2 e 3, e 202.º, nºs 1 e 2 do CPP.

Remetidos os autos para julgamento, foram designadas datas para a sua realização, tendo sido agendados os dias 31-10-2017 e 6, 7 e 13-11-2017, posteriormente alteradas para os dias 5, 6, 12 e 19 de Fevereiro de 2018 (entretanto dadas sem efeito).

Por seu despacho de 17-01-2018, na sequência de promoção do Ministério Público, a senhora juíza, considerando que o internamento compulsivo decretado não constitui medida de coação autónoma e diversa da prisão preventiva, julgou-a extinta, por decurso do prazo máximo, atento o disposto na al. c) do n.º1 do artigo 215.º do CPP, determinando a imediata restituição do arguido à liberdade. E porque considerou subsistir o perigo de perigo de continuação da atividade criminosa por parte do arguido J, em consonância com a promoção do Ministério Público, determinou que aquele aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito a TIR (já prestado), proibição de se ausentar da freguesia da área da sua residência e ainda sujeito à obrigação de apresentação diária na esquadra policial da área da sua residência, nos termos do disposto nos artigos 191.º a 194.º, 198,º, n.º1 e 200.º, n.º1, al. c) do CPP. E a final a senhora juíza declarou-se impedida para efetuar a audiência de julgamento, deu sem efeito as datas de julgamento designadas e ordenou que os autos fossem conclusos para reagendamento ao Mº juiz substituto legal.

O senhor juiz substituto recebeu o processo e, por seu despacho de 24-01-2018, declarou-se incompetente para a tramitação do processo, por considerar inexistir fundamento legal para a declaração de impedimento que foi prolatada.

Na sequência foi suscitado o presente conflito.

III. O direito

A questão é, saber se há fundamento de impedimento da Sr.ª juíza titular do processo e os trâmites processuais devem ser prosseguidos pelo Sr. juiz substituto ou, não se verifica esse fundamento de impedimento e, respeitando o princípio constitucional do juiz natural, deve ser a Sr.ª juíza titular a prosseguir com o processo.

É manifesto que não nos deparamos com um verdadeiro conflito negativo de competência, tendo em conta que este, de acordo com o disposto no art. 34.º, do CPP, só ocorre quando dois ou mais tribunais de diferente ou da mesma espécie se considerarem competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime imputado ao mesmo arguido.

No caso em apreço, a senhora juíza titular do processo alicerçou a sua incompetência em impedimento para o julgamento.

Sendo irrecorrível o despacho em que o juiz se considere impedido (cf. artigo 42.º, n.º 1, do CPP), sem a intervenção deste tribunal, a situação exposta redundaria, no domínio dos atos em causa, numa interrupção da relação processual penal, impasse a determinar que se considere verificar-se um conflito de competência atípico, definidor de uma situação que reclama solução urgente, decidindo se há real motivo de impedimento e, em tal situação, fazer funcionar o regime de substituição.

Vejamos.

Dispõe o artigo 40.º do CPP, sob a epígrafe de «Impedimento por participação em processo»

Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:

a) Aplicado medida de coação prevista nos artigos 200.º a 202.º;

b) Presidido a debate instrutório;

c) Participado em julgamento anterior;

d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior.

e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.

A senhora juíza titular do processo fundamenta o seu impedimento na alínea a) do transcrito preceito, por ter aplicado, em sede de reexame dos pressupostos da medida de coação em vigor, outra medida de coação prevista na al. c) do art. 200.º do CPP, em substituição da que vigorava e que declarou extinta.

Por sua vez, o senhor juiz substituto fundamenta o seu despacho onde se declara incompetente, dizendo que o invocado impedimento não se verifica, uma vez que os autos se encontram na fase de julgamento, não tendo tido a Mma. Juíza em questão qualquer intervenção nas fases de inquérito ou da instrução do presente processo.

Cita, em abono da sua posição, o acórdão do TRC de 25-06-2008, proferido no processo n.º 1522/02.4TACBR.C1, acessível em www.dgsi.pt, onde, historiando a evolução legislativa do preceito aqui em causa, se decidiu o seguinte: (…) O nosso processo penal, por exigência constitucional – art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa – tem estrutura acusatória. Essencial ao princípio do acusatório é a separação entre a entidade que investiga e acusa, e a entidade que julga o thema decidendum por aquela definido. Como doutrinam Gomes Canotilho e Vital Moreira “A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânica-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª Ed. Revista, 522).

Só desta forma se harmoniza o interesse público da punição com a necessária imparcialidade do julgador, assim se alcançando um processo justo e equitativo.

Mas um processo penal assente numa estrutura acusatória comporta ainda assim diversos graus, em função da maior ou menor intervenção relativa, atribuída à entidade que investiga e acusa e à entidade que julga. Nesta perspectiva, o nosso processo penal tem sido entendido como de base acusatória, flexibilizado ou moderado pelo princípio da investigação também na fase do julgamento.

(…) A imparcialidade do juiz é, como vimos, uma exigência do processo justo mas também, um direito dos cidadãos enquanto destinatários da justiça. Por isso a lei do processo, para garantir o princípio da imparcialidade, estabelece um regime de incompatibilidades, impedimentos, recusas e escusas do juiz. Aqui se prevêem situações objectivas – ligação do juiz com os intervenientes processuais, ou anterior intervenção do juiz no processo – que fazem legitimamente suspeitar da imparcialidade do juiz.

O art. 40º do C. Processo Penal, na redacção da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, dispõe:

“Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido.”.

Na redacção da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, o art. 40º do C. Processo Penal passou a dispor:

“Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:

a) Aplicado medida de coacção prevista nos artigos 200.º a 202.º;
b) Presidido a debate instrutório;
c) Participado em julgamento anterior;
d) Proferido ou participado em decisão de recurso ou pedido de revisão anteriores;
e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.”.

Comparando as duas redacções podemos afirmar que mais uma vez – tendo em conta as alterações que o art. 40º do C. Processo Penal tem sofrido desde a sua versão original – o legislador assumiu como critério para definir as situações em que a imparcialidade do juiz que já participou em fase anterior do processo é objectivamente posta em causa, o do grau de intensidade da sua intervenção. (…)

Assim, podemos dizer que, em regra, o impedimento do art. 40º, a), do C. Processo Penal, na actual redacção, ocorre quando intervém como juiz do julgamento de um arguido, o juiz de instrução criminal que, na fase do inquérito ou da instrução, lhe aplicou medida de coacção prevista nos arts. 200º a 202º, do C. Processo Penal. (…)» (sublinhado nosso)

No mesmo sentido, considerou o STJ, no acórdão de 10-03-2010 (proc. n.º 36/09.6GAGMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, «(…)I - O art. 40.º do CPP tem em vista garantir a imparcialidade do juiz enquanto elemento fundamental à integração da função jurisdicional, face a intervenções processuais anteriores que, pelo seu conteúdo e âmbito, considera como razão impeditiva de futura intervenção. (…) III - Tendo em conta todas as causas de impedimento taxativamente previstas na lei (als. a) a e) do art. 40.º), certo é constituir elemento comum de todas elas a intervenção anterior do juiz do processo, ou seja, a intervenção em fase anterior do processo

E afigura-se-nos que a razão está do lado do senhor juiz substituto.

A questão dos impedimentos do julgador, em processo penal, está intimamente associada à necessidade de conferir ao arguido o direito a que a sua causa seja examinada por um tribunal imparcial, respeitando-se as garantias de defesa contempladas no artigo 32.º da nossa Lei Fundamental, designadamente a estrutura acusatória do processo penal. Ora, o princípio do acusatório impõe a separação da função de investigação e acusação da função de julgamento, como garantia de imparcialidade do julgador. Assim, as garantias de imparcialidade e objetividade, no decurso do julgamento, são necessárias para a boa administração da justiça e exigíveis pelas garantias de defesa dos arguidos constitucionalmente consagradas.

A imparcialidade dos tribunais é uma exigência não apenas contida no citado artigo 32.º, mas uma decorrência do Estado de direito democrático (artigo 2.º), na medida em que se inscreve na garantia universal de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, através de um órgão de soberania com competência para administrar a justiça (artigo 202.º n.º 1 da CRP). Ora, neste dever genérico de imparcialidade do tribunal inclui-se, compreensivelmente, uma exigência de não suspeição subjetiva do juiz; a atividade do juiz não pode apresentar-se contaminada por circunstâncias geradoras de desconfiança quanto à sua imparcialidade.

Como referem os Professores Figueiredo Dias e Nuno Brandão, em texto de apoio sobre o tema “Sujeitos Processuais Penais – O Tribunal”,[1] a fls.12 e ss, a propósito da tutela da imparcialidade – impedimentos e suspeições, «O princípio da imparcialidade do juiz repudia o exercício de funções judiciais no processo por quem tenha ou se possa objetivamente recear que tenha uma ideia pré-concebida sobre a responsabilidade penal do arguido; bem como por quem não esteja em condições ou se possa objetivamente temer que não esteja em condições de as desempenhar de forma totalmente desinteressada, neutral e isenta. (…)

Na experiência portuguesa, há um largo consenso doutrinal (…) e jurisprudencial (…) no sentido de uma compreensão da garantia de imparcialidade como dimensão essencial da estrutura acusatória do processo penal constitucionalmente imposta pelo art. 32.º,n.º5 da CRP e da independência dos tribunais reconhecida pelo art. 203.º da CRP. E é natural que assim seja, pois tanto em relação à ideia do acusatório e do princípio da acusação que lhe é imanente como em relação à independência judicial, essas distintas, mas incindíveis projeções do princípio do Estado de direito comungam de um mesmo desígnio de uma realização da justiça pautada pela máxima objetividade e isenção e capaz de se impor aos seus destinatários diretos e à comunidade em geral sem quaisquer sombras de desconfiança, emergindo aí a imparcialidade como uma exigência irredutível.

O estatuto constitucional reconhecido à garantia de imparcialidade tem sido entre nós objeto de sucessivas e acesas controvérsias, em especial em torno da possibilidade de participação num dado processo de um juiz que nele já teve intervenção numa fase processual anterior. A lei ordinária tem sido censurada doutrinal e jurisprudencialmente ora por ficar aquém, ora por ir além daquilo que é exigido constitucionalmente. O certo é que um entendimento maximalista em determinada época adotado pelo Tribunal Constitucional sobre a conformidade constitucional do regime legal, nomeadamente, do art. 40.º do CPP, induziu o legislador ordinário a alargar progressivamente o leque dos impedimentos por participação anterior no processo. Contanto que tal alargamento não vá acompanhado de uma pretensão de atribuição à garantia constitucional de imparcialidade de um conteúdo mais lato do que aquele que efetivamente possui, à partida não há razão para debater o problema no plano da constitucionalidade. Pois, como se sabe, o legislador é livre de estabelecer um regime legal mais garantista do que aquele que a Constituição impõe. Questão é, porém, saber se, em face do conteúdo que adquiriu e das dificuldades acrescidas que coloca à organização do funcionamento dos tribunais, um tal alargamento se mostra equilibrado e defensável de um ponto de vista político-criminal.

Para dar consistência efetiva à garantia de imparcialidade, além de estruturar o processo penal de acordo com o princípio da máxima acusatoriedade possível, o legislador ordinário estabeleceu um conjunto de impedimentos (arts. 39.º e 40.º) e suspeições (art. 43.º), fundados em razões de dúvida de diversa ordem sobre a imparcialidade da atuação do juiz e com regimes jurídicos distintos: umas vezes verifica-se a, pura e simples, impossibilidade de o juiz intervir em um certo processo penal, mediante previsão de circunstâncias que, sem mais e necessariamente, ditam o seu afastamento, as quais são portanto declaradas independentemente de qualquer objeção suscitada pelos participantes processuais à atuação do juiz no caso concreto; outras vezes é apenas concedida aos sujeitos processuais a possibilidade de afastarem a intervenção do juiz, nomeadamente, quando haja o risco de esta ser considerada suspeita, por existir motivo, grave e sério, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. No primeiro caso estamos perante impedimentos, no segundo perante suspeições do juiz.

(…) Os impedimentos encontram-se especificados nos arts. 39.º e 40.º com base em três ordens de razões: a relação pessoal do juiz com algum sujeito ou participante processual; a intervenção anterior no processo, como juiz ou noutra qualidade; e a necessidade de participar no processo como testemunha.»

Nos impedimentos do artigo 40.º do CPP releva a consideração de qual tenha sido a intervenção do juiz no processo, nas fases anteriores à do julgamento.

Os impedimentos, porque não envolvem qualquer juízo de desconfiança concreta sobre um juiz, relacionado com a causa que lhe foi atribuída ou com as respectivas partes, têm uma função preventiva, razão pela qual têm de ser apostos antes de o juiz se ver confrontado com a necessidade de decidir, devendo ser declarados pelo próprio juiz imediatamente, por despacho proferido nos autos, nos termos do art. 41.º do CPP, logo que ocorram. Já as suspeições arrancam de uma posição muito específica e pessoal, de uma particular posição do julgador ante a causa, que pode comprometer aquela incontornável postura de independência e imparcialidade, nos termos do art. 43.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, desde que se perfile o concreto risco de verificação de motivo sério e grave adequado a gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade, não podem ser declaradas voluntariamente, antes e, nos termos do n.º 4 daquele art. 43.º, ser requeridas pelo julgador ao tribunal competente que o recuse a intervir, se o não tiverem feito o MP, o arguido, assistente ou partes civis, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito.- cf. neste sentido o Ac. do STJ de 09-06-2010, relator Armindo Monteiro

Assim, podemos dizer que, em regra, o impedimento do art. 40.º, al. a), do C. Processo Penal, na atual redação, ocorre quando intervém como juiz do julgamento de um arguido, o juiz que, nas fases preliminares do processo, lhe aplicou medida de coação prevista nos arts. 200.º a 202.º, do C. Processo Penal.

E é essa a linha interpretativa que também tem sido seguida pelo Tribunal Constitucional, que tem mantido, a propósito desta questão, uma linha orientadora no sentido de que o critério da admissibilidade da intervenção no julgamento de juiz que tenha tido intervenção anterior no processo passa pela distinção entre intervenções que pela sua frequência, intensidade ou relevância, sejam aptas a razoavelmente permitir que se formule uma dúvida séria sobre as condições de isenção e imparcialidade desse mesmo juiz ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência e intervenções pontuais ou isoladas. Só no primeiro caso a estrutura acusatória do processo veda a participação do juiz no julgamento. Já a prática de atos isolados durante o inquérito não constitui, em princípio, causa de quebra objetiva da imparcialidade do juiz, determinante do seu impedimento no julgamento.

Dessa jurisprudência se retira, como critério geral, que não deve considerar -se afetada a imparcialidade do juiz, o princípio do acusatório, ou a exigência de que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa — parâmetros constitucionais em função dos quais a imparcialidade do juiz em processo penal tem sido perspetivada — por virtude de toda e qualquer intervenção processual anterior ao julgamento, mas somente por aquela que consista na prática de atos que, pela sua frequência, intensidade ou relevância, sejam idóneos a considerar o juiz comprometido com «pré -juízos» sobre as questões que tenha de decidir, designadamente, sobre a matéria de facto ou sobre a culpabilidade do arguido (cf., entre outros, os ac. 129/2007 e 444/12 do TC).

Impõe-se ainda referir que a alteração legislativa decorrente da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, conexionou os institutos do impedimento e da suspeição, de forma inequívoca, ao introduzir o n.º 2 do artigo 43.º do CPP, onde se prevê que pode constituir fundamento de recusa (e também de escusa), nos termos do n.º1, a intervenção do juiz noutro processo, ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º.

Tal poderá compreender-se nos casos em que há um profundo grau de imersão do juiz de instrução no âmbito do objeto do processo quando intervém neste domínio, nomeadamente quando autoriza a interceção, gravação ou registo de conversações e comunicações, validando o material recolhido pela interceção, quando autorize buscas domiciliárias, buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico e estabelecimento bancário e quando ordene apreensão de correspondência, etc. [2]

Ora, não consta que a senhora juíza, a quem o processo foi distribuído para julgamento, tenha praticado ou autorizado a prática de atos de inquérito ou de instrução no decurso dessas fases processuais, isto é, tenha praticado atos ou autorizado diligências com vista à obtenção de provas que permitissem sustentar a culpabilidade dos visados, ou que teve intervenção em quaisquer atos relativos à investigação ou instrução do processo, decretando a aplicação de quaisquer medida de coação de prisão preventiva ou formado qualquer juízo indiciário no que respeita à eventual sujeição dos arguidos a julgamento.

No caso concreto, o que a senhora juíza fez, enquanto juíza do tribunal de julgamento, foi assegurar um reexame da situação de prisão preventiva a que o arguido estava sujeito, declarando-a extinta, por ter decorrido o prazo máximo da sua duração sem que tivesse havido condenação em primeira instância, e determinando a sua restituição à liberdade, sob condições, que constituem medidas de coação menos gravosas. Por isso, a intervenção da senhora juíza, neste caso, teve uma dimensão exclusiva, ou fundamentalmente, garantística – e não de valoração de indícios, pois esses indícios foram valorados em fase anterior do processo, nomeadamente em sede de instrução, pelo juiz que proferiu a decisão instrutória, assim validando a acusação do Ministério Público.

Não está, pois, em causa a formulação de um juízo prévio sobre os factos que constituem o objeto do processo e a culpabilidade do arguido.

Como referem ainda os Professores Figueiredo Dias e Nuno Brandão, no texto supracitado, a fls.20, a propósito da redação e interpretação do artigo 40.º, al. a) do CPP, na sua redação atual «É ainda incompreensível a ausência de uma delimitação – como a introduzida pelo art. 134.º da Lei 3/99, mas inexplicavelmente eliminada na revisão de 2007 do CPP – de tal aplicação às fases do inquérito e da instrução, com o que, sem uma interpretação restritiva da norma, fica aberta a porta ao absurdo de considerar impedido o juiz de julgamento que, pela primeira vez, aplica ao arguido uma das medidas de coação previstas pelos arts. 200.º a 202.º (v. g., proibindo o arguido de manter qualquer contacto com as testemunhas da acusação arroladas para o julgamento, depois de conhecidas pressões e ameaças por ele exercidas sobre testemunhas do processo já na pendência da audiência de discussão e julgamento).» (sublinhado e negrito do relator).

Um entendimento literal do preceito implicaria necessariamente um bloqueio do sistema processual, o que não terá sido querido pelo legislador.

E, de facto, lendo os trabalhos preparatórios, a Proposta de Lei n.º 109/X, não vemos claramente que tenha sido intenção do legislador alargar o impedimento ao juiz de julgamento que apenas nesta fase do processo decreta uma das medidas elencadas na referida alínea a) do citado artigo 40.º do CPP.

Com efeito, a justificação apresentada na exposição de motivos para alteração do preceito, diz-nos tão-somente que: “O regime de impedimentos, previsto no artigo 40.º, é modificado. Estabelece-se que o juiz que tenha recusado aplicar o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória do processo ou o processo sumaríssimo por considerar insuficiente a sanção ou haja aplicado uma medida de coacção assente na existência de fortes indícios da prática do crime está impedido de participar nas fases ulteriores de julgamento e recurso. Não se estende o impedimento ao juiz que tenha mantido a medida de coacção, porque tal proibição não tem a seu favor justificação tão intensa e seria de difícil aplicação prática.”

Não estamos, no caso subjudice, perante situação em que o julgador haja tido intervenção em fase anterior do processo, sendo certo também não se vislumbrar motivo suscetível de colocar em causa a sua imparcialidade. Com efeito, a fase processual em que interveio é a do julgamento e inexiste razão objectiva geradora de desconfiança sobre a imparcialidade da juíza titular do processo.

Em conclusão, e concordando com as razões invocadas pelo senhor juiz substituto, na fase de julgamento compete ao juiz a quem o processo tiver sido distribuído proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, no prazo a que alude o artigo 213.º do CPP, sem que a decisão que venha a ser proferida nesse âmbito – seja ela de manutenção, revogação ou de substituição por qualquer outra medida de coação, incluindo a prevista no artigo 200.º - tenha como consequência o impedimento a que alude a al. a) do citado artigo 40.º do CPP.

Tal intervenção não constitui motivo legal de impedimento, isto é, não configura situação enquadrável na previsão do art. 40.º do CPP.

IV - DECISÃO:
Pelo exposto dirime-se o presente conflito atípico, julgando-se competente para a tramitação do processo a senhora juíza (J3) do Juízo Central Cível e Criminal de Évora, a quem o processo foi distribuído.

Sem tributação.

Cumpra-se o disposto no artº 36º nº 3 CPP e, dê-se conhecimento ao Ex.º Sr.º Juiz Presidente da Comarca de Évora.

Évora, 14 de Março de 2018

Fernando Ribeiro Cardoso (presidente da Secção Criminal)
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[1] - Texto de apoio ao estudo da unidade curricular de Direito e Processo Penal do Mestrado Forense da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2015/2016).

[2] - Cf., no sentido de identificação destas causas que podem afetar a imparcialidade do julgador, Mouraz Lopes, A tutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português, a fls.103 e ss.