Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1776/15.6T8STB-C.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
RESPONSABILIDADE
LIMITES DA EXECUÇÃO
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Nos termos do artigo 351.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o incidente de habilitação destina-se a habilitar os “sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda”.
II – Deste modo, porque o incidente de habilitação apenas certifica quais os indivíduos que são investidos na qualidade de sucessores da parte falecida, não pode apreciar, por se tratar de matéria completamente alheia à causa de pedir e ao pedido deste incidente, os limites da responsabilidade dos habilitados.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1776/15.6T8STB-C.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
Em incidente de habilitação dos sucessores, por apenso à execução movida pela exequente “Comissão de Administração Conjunta da Augi da Quinta da (…)” contra o executado (…), veio a exequente prestar informação do falecimento do executado, requerendo a habilitação de (…) e de (…), na qualidade, respetivamente, de viúva e filha do falecido.
Para o efeito, alegou em síntese que o executado faleceu em 02-02-2017, tendo deixado como únicos e universais herdeiros o cônjuge e a filha.
Juntou documento de habilitação de herdeiros.
Por despacho judicial de 11-11-2019, foi determinado que o presente incidente corresse nos próprios autos da causa principal.
Notificada e citada, as requeridas (…) e (…) apresentaram contestação, na qual, em síntese, confirmaram ser únicas e universais herdeiras do falecido, porém, por à data do óbito apenas existirem dois bens herdados, dos quais, metade, por força do regime geral do casamento, pertence à primeira requerida, apenas metade do valor desses dois bens foi herdado, tendo recebido cada uma das requeridas o valor de € 3.407,01, pelo que deverão as requeridas ser habilitadas, mas tão só até ao limite de € 3.407,01 para cada uma, em sede da respetiva responsabilidade pelos respetivos encargos.
Em 26-11-2020, foi proferida sentença, com o seguinte teor decisório:
Assim, nos termos do artigo 354.º, n.º 1, do CPC, reconheço (…) e (…), como sucessores da parte falecida, julgando-as habilitados para, nessa qualidade, prosseguirem os termos da execução.
Custas a cargo da requerente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC (artigos 539.º, n.º 1, do CPC e 7.º, n.º 4, do RCP).
Notifique e dê-se conhecimento à Sra. Agente de Execução.
Inconformada com a sentença proferida, veio a requerida (…) recorrer, apresentando as seguintes conclusões:
A. Encontram-se verificados os pressupostos de interposição do presente recurso, visto que se trata de uma decisão proferida em 1ª instância, que pôs termo ao incidente de habilitação de herdeiros, por ser tempestivo e por a Requerida ter legitimidade para o efeito, tudo nos termos dos artigos 627.º, n.º 2, 629.º, n.º 1 e 644.º, n.º 1, al. a), 638.º, n.º 1 e 644.º, n.º 1, al. a), todos do CPC.
B. Em concreto, a Requerida tem legitimidade, pois, são parte principal no incidente de habilitação de herdeiros e o objecto da douta sentença foi-lhe desfavorável, pois não limitou o âmbito da sua responsabilidade aquando da substituição, nos termos do artigo 631.º, n.º 1, CPC.
C. Considerando que, na herança aberta por óbito do executado (…), existiam apenas dois bens, um veículo automóvel, de marca Mercedes-Benz, com a matrícula (…), no valor de 13.000,00 EUR, e o valor de 628,06 EUR depositados numa conta bancária, de tal acervo de bens, a herança apenas corresponde metade dos valores dos bens supra mencionados, visto que a outra metade já pertencia por direito próprio à Requerida (…).
D. Assim, o valor de 6.500,00 EUR pelo bem móvel, e o valor de 312,03 EUR pelo valor depositado, num total de 6.814,03 EUR, sendo este o valor global do acervo de bens da herança por óbito do executado (…).
E. Desta forma, coube a cada uma das Requeridas o valor de 3.407,01 EUR, devendo ser esse o valor do limite da sua responsabilidade pelos encargos da herança, nomeadamente para efeitos da presente execução.
F. A sentença recorrida, tem por base um erro de direito, na medida em que, o Tribunal a quo, não se pronunciou sobre a “questão” suscitada pelas Requeridas, no âmbito da contestação, de limitação da sua responsabilidade ao valor dos bens que receberam da herança do de cujus substituído no âmbito daquele processo executivo, o que constitui omissão de pronúncia.
G. O que foi suscitado pelas Requeridas, é qualificável como uma “questão” e não como “razões ou argumentos”, pois constitui matéria decisória, porque relacionada com a matéria de facto e de direito relevante no quadro do litígio e, portanto, é matéria relacionada com o pedido e causa de pedir no âmbito do incidente da habilitação de herdeiros.
H. Assim, constitui uma “questão”, o facto das Requeridas, terem peticionado, no âmbito da sua contestação, que o Tribunal a quo ao declarar a habilitação das mesmas, limite o âmbito da sua responsabilidade ao valor dos bens que efectivamente receberam do de cujus.
I. Foi relativamente a essa “questão” que o Tribunal omitiu a pronúncia e não quanto aos “argumentos ou razões” aduzidos pelas Requeridas para fundamentar essa mesma questão.
J. Mais, considerando que o valor da execução é de 34.774,82 EUR, e que esse valor é superior ao limite de responsabilidade de cada uma das Requeridas, tal facto constitui uma razão adicional para que o Tribunal a quo se tivesse pronunciado sobre a limitação da responsabilidade no âmbito da sentença do incidente de habilitação.
K. Por fim, razões de economia processual, apontam igualmente, no sentido de que, a limitação de responsabilidade das Requeridas deveria ter sido declarada, ab initio, na sentença de incidente de habilitação, pois, é um corolário lógico da modificação subjectiva da instância que aquele incidente faz operar.
L. Por uma razão de lógica e congruência, deveria ficar expressamente delimitado na sentença que decide esse incidente, o âmbito da responsabilidade dos substitutos, pois eles têm legitimidade até ao valor correspondente a esse limite, i.e, até ao valor dos bens da herança, que corresponde a 3.407,01 EUR.
M. Assim, esta situação ficaria logo resolvida no âmbito do incidente que confere legitimidade às Requeridas, pois o acto que lhes dá legitimidade, também deve especificar em que termos aquela legitimidade opera.
N. Não se trata de um caso em que a decisão esteja prejudicada pela decisão de outra/s, pelo que, não tinha o Tribunal a quo, fundamento para não se pronunciar sobre a questão peticionada pelas Requeridas.
O. Por conseguinte, e por todas as razões supra aduzidas, a omissão de pronúncia, no caso concreto, verifica-se porque o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a questão levantada pelas Requeridas, i.e, quanto à limitação da sua responsabilidade aos bens recebidos da herança i.e, ao valor de 3.407,01 EUR a cada, pelo que, a sentença daquele incidente enferma de nulidade nos termos dos artigos 608.º, n.º 2 e 615.º, n.º 1, alínea d), ambos do CPC.
P. Deverá, assim, a decisão recorrida ser revogada, e substituída por uma outra que a declare nula e estabeleça os limites da responsabilidade das Requeridas, no âmbito da presente habilitação, aos valores de € 3.407,01, para cada uma delas.
Pelo exposto, deve em consequência, ser reparado o agravo e revogar-se a Decisão Recorrida, nos termos supra.
Decidindo nesta conformidade será feita JUSTIÇA !
A requerente “Comissão de Administração Conjunta da Augi da Quinta da (…)” não apresentou contra-alegações.
O tribunal de 1.ª instância pronunciou-se quanto à nulidade invocada, concluindo pela sua inexistência. De seguida, admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Após ter sido recebido o recurso neste tribunal nos seus exatos termos e dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim, no caso em apreço, as questões que importa apreciar são:
1) Nulidade da sentença por omissão de pronúncia; e
2) Limitação da responsabilidade em sede de sentença de habilitação.
III – Matéria de Facto
O tribunal da 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
- (…) faleceu no dia 02.02.2017 no estado de casado com (…).
- Deixou uma filha, (…).
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia; e (ii) deveria ter sido limitada a responsabilidade da recorrente em sede de sentença de habilitação.
1 – Nulidade da sentença por omissão de pronúncia
Entende a Apelante que a sentença recorrida é nula, nos termos dos artigos 608.º, n.º 2 e 615.º, n.º 1, alínea d), ambos do Código de Processo Civil, uma vez que na contestação apresentada pelas requeridas foi invocada a questão da necessidade de limitar a responsabilidade das habilitadas ao montante recebido de herança e o juiz do tribunal a quo não se pronunciou sobre tal questão.
O juiz do tribunal a quo, em resposta, argumentou que tal questão foi efetivamente apreciada em sede de sentença de habilitação, pelo que inexiste qualquer nulidade por omissão de pronúncia.
Apreciemos.
Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, que:
1 - É nula a sentença quando:
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

Dispõe ainda o artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que:
2 - O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

Resulta, assim, das citadas disposições legais que a nulidade por omissão de pronúncia ocorre quando o juiz não se pronuncia sobre todas as questões que lhe tenham sido submetidas pelas partes, excluindo aquelas cuja decisão se mostre prejudicada pela solução já dada a outras, ou não se pronuncie sobre questões que a lei lhe imponha o conhecimento.
Porém, não se deve confundir questão com consideração, argumento ou razão, sendo que o tribunal apenas se encontra vinculado às questões invocadas pelas partes (tendo de proferir decisão relativamente a todas, com exceção daquelas que tenham ficado prejudicadas por decisões anteriormente tomadas e não podendo decidir de outras a não ser que sejam de conhecimento oficioso), já não aos fundamentos/argumentações invocados.
Conforme bem referiu Alberto dos Reis[2]:
São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.

E, a ser assim, a sentença não padece de nulidade quando não aborda todos os fundamentos invocados pela parte para justificar determinada opção jurídica, desde que aprecie a questão jurídica invocada, apresentando a sua própria fundamentação.
Cita-se, pela relevância na matéria, o acórdão do STJ, proferido em 15-12-2011, no âmbito do processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt:
IV - A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (artigo 660.°, n.º 2, do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
V - Como uniformemente tem sido entendido no STJ, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença.

Por outro lado, não se pode confundir omissão de pronúncia, que se terá de entender como ausência de apreciação, com deficiente ou obscura fundamentação.
Cita-se a este propósito, o acórdão do STJ, proferido em 22-01-2015, no âmbito do Proc. 24/09.2TBMDA.C2.S2, consultável em www.dgsi.pt:
(…) a nulidade por omissão de pronúncia apenas se verifica quando o tribunal deixa de apreciar questões que tinha de conhecer, mas já não quando, no entender do recorrente, as razões da decisão resultam pouco explicitadas ou não se conhecem de argumentos invocados.

Transcreve-se ainda o que consta da obra O Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, de António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[3]:
4. Acresce ainda uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso.

Atentemos, então, aos fundamentos da sentença recorrida, que se cita:
Estamos perante uma habilitação de herdeiros, prevista nos artigos 351.º e segs. do CPC e que teve origem na suspensão da instância por falecimento de parte, nos termos do artigo 269.º, n.º 1, alínea a), do CPC.
Com a habilitação de herdeiros pretende-se colocar no lugar do falecido, os habilitados que lhe sucedam segundo o direito substantivo, na relação jurídica em litígio, tudo com vista a que não ocorra um vazio processual, havendo de se averiguar quem são os sucessores do falecido relativamente ao direito ou obrigações que constituem objecto da acção.
Na habilitação deverão ser incluídas, fazendo parte da causa de pedir, os factos susceptíveis de revelar que os requeridos são os únicos sucessores do falecido e a demonstração que, segundo o direito substantivo, lhe sucedem.
Nesta acção, as requeridas apenas são citadas e notificadas para contestarem (apenas) a habilitação e não para a causa principal.
Determina o artigo 269.º, n.º 1, alínea a), do CPC que a instância se suspende quando falecer ou se extinguir alguma das partes, normativo este de carácter imperativo e cuja obrigatoriedade de imediato cumprimento impõe o artigo 270.º, n.º 1, do CPC, isto é, junta certidão de óbito ou conhecimento de falecimento aquando a citação, tem o juiz o dever de decretar imediatamente a suspensão da instância.
A instância suspensa apenas pode prosseguir depois de estarem habilitados os sucessores do falecido, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 276.º do CPC.
Como acima se afirmou já o objecto do incidente de habilitação é determinar quem tem a qualidade que o legitime para substituir a parte falecida e na habilitação deverão ser incluídas, fazendo parte da causa de pedir, os factos susceptíveis de revelar que os requeridos são os únicos sucessores do falecido e a demonstração que, segundo o direito substantivo, lhe sucedem.
Ora, analisando a petição inicial do incidente de habilitação, verificamos que foi pedida a habilitação das requeridas como sucessoras de (…) para, nessa qualidade, prosseguir a acção e invoca-se a qualidade de cônjuge e filha da pessoa falecida para o chamamento com a circunstância de serem os únicos sucessores do falecido.
Nos termos dos artigos 2133.º e 2157.º do C. Civil, não impugnada que esteja tal qualidade e antes mesmo aceite pelas partes, serão as requeridas, nos termos da lei substantiva, as habilitadas.
Assim, mostram-se preenchidos todos os requisitos para que a acção seja considerada apta.

Resulta, assim, da leitura da fundamentação da sentença recorrida que, no entender da mesma, não competia ao tribunal da 1ª instância, em sede de incidente de habilitação, decidir qualquer outra questão para além de apurar quem seriam os únicos e universais sucessores do falecido. Tal resulta, de forma evidente, quando se refere “Nesta acção, as requeridas apenas são citadas e notificadas para contestarem (apenas) a habilitação e não para a causa principal”.
De igual modo, também nas seguintes partes da sentença o tribunal a quo fundamenta a sua impossibilidade em apreciar qualquer outra questão para além da questão de apurar quem sejam os únicos e universais sucessores do falecido:
- Na habilitação deverão ser incluídas, fazendo parte da causa de pedir, os factos susceptíveis de revelar que os requeridos são os únicos sucessores do falecido e a demonstração que, segundo o direito substantivo, lhe sucedem.
- Como acima se afirmou já o objecto do incidente de habilitação é determinar quem tem a qualidade que o legitime para substituir a parte falecida e na habilitação deverão ser incluídas, fazendo parte da causa de pedir, os factos susceptíveis de revelar que os requeridos são os únicos sucessores do falecido e a demonstração que, segundo o direito substantivo, lhe sucedem.

Assim, independentemente do acerto da fundamentação apresentada ou mesmo da sua insuficiência ou deficiência, não é possível considerar que o tribunal a quo não apreciou a questão suscitada pelas requeridas no incidente de habilitação.
Na realidade, apreciou-a, considerando que qualquer outra questão invocada em sede de incidente de habilitação, para além do apuramento de quem seriam as pessoas com qualidade para substituir a pessoa falecida, não poderia ser, nesse incidente, apreciada, podendo sê-lo apenas na ação principal.
Pelo exposto, improcede a invocada nulidade de sentença por omissão de pronúncia.
2 – Limitação da responsabilidade em sede de sentença de habilitação
Considera a Apelante que sendo o valor da execução superior ao valor dos montantes recebidos da herança do falecido pelas sucessoras deste, nos termos do artigo 2071.º, n.º 2, do Código Civil, por razões de lógica, congruência e de economia processual, a limitação da responsabilidade das habilitadas deveria ser declarado, ab initio, na sentença proferida no âmbito do incidente de habilitação, visto ser um corolário lógico da modificação subjetiva da instância que aquele incidente faz operar, pois o ato que lhes dá legitimidade também deve especificar em que termos aquela legitimidade opera.
Decidamos.
O incidente de habilitação encontra-se regulado nos artigos 351.º a 357.º do Código de Processo Civil.
Nos termos do artigo 351.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o incidente de habilitação destina-se a habilitar os “sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda”.
Conforme bem refere Alberto dos Reis no Código de Processo Civil Anotado[4]:
Em processo civil a habilitação propõe-se um objectivo: certificar que determinada pessoa sucedeu a outra na posição jurídica que esta ocupava.

Acresce que o incidente de habilitação previsto no artigo 351.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, possui natureza obrigatória, visto que, nos termos dos artigos 269.º, n.º 1, alínea a) e 270.º do Código de Processo Civil, implica a imediata suspensão da instância[5], a qual apenas voltará a reiniciar-se com a notificação da decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida (artigo 276.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil).
De igual modo, sendo o único objetivo na habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa certificar que determinada pessoa sucedeu à pessoa falecida na posição jurídica que esta ocupava, é totalmente irrelevante, no que em sede deste incidente releva, apurar da existência ou não de bens, “já que o que interessa apurar são os sucessíveis, sendo irrelevante o facto de o falecido ter ou não deixado bens”[6].
Conforme bem se refere no acórdão deste Tribunal[7], proferido em 06-10-2016, no âmbito do processo n.º 127/10.0TBRMZ-B.E1[8][9]:
Importa, no entanto, levar em linha de conta que não cabe aferir se os sucessores receberam bens por força dos quais deva ser satisfeita a obrigação objeto do litígio, pelo que o facto de o falecido não ter deixado bens, mas tão só dívidas, não constitui obstáculo à respetiva habilitação. A decisão de habilitação, em si mesma considerada, não dispõe sobre quais os bens que respondem pela dívida da parte falecida ou em que circunstâncias se efetuará a responsabilidade dos herdeiros habilitados por essa dívida. A habilitação apenas revela quais os indivíduos que são investidos na qualidade de herdeiros, não definindo a sua posição relativamente à herança.

Deste modo, e perante uma fundamentação tão cristalina, não se compreende como possa a Apelante ter invocado exatamente este acórdão para fundamentar a sua pretensão, pois dele flui à saciedade que no incidente de habilitação apenas se discute e apura da existência de sucessores para sucederem na posição jurídica do falecido, já não da existência de bens do falecido, ou de quais os bens que respondem pela dívida do falecido ou ainda de que modo se efetuará a responsabilidade dos habilitados pela dívida do falecido. E essa não apreciação de tudo o que não diga respeito à própria certificação de que determinada pessoa sucedeu a outra na posição jurídica que esta ocupava” ocorre independentemente de a dívida do falecido ser superior, inferior ou igual ao valor dos bens da herança recebidos pelos habilitados ou até mesmo quando inexistam quaisquer bens da herança.
Conforme igualmente se refere em tal acórdão, o disposto no Código Civil, concretamente nos artigos 2068.º, 2097.º e 2098.º, n.º 1, e especificamente no artigo 2071.º[10], “como resulta do que supra se deixou exposto, tais considerações não são relevantes em sede do incidente de habilitação de herdeiros”. Mais se esclareceu que tais dispositivos legais apenas relevarão em sede de processo principal[11], no caso de a dívida do falecido ser superior aos valores recebidos da herança pelos habilitados.
Deste modo, porque o incidente de habilitação apenas certifica quais os indivíduos que são investidos na qualidade de sucessores da parte falecida, não pode apreciar, por se tratar de matéria completamente alheia à causa de pedir e ao pedido deste incidente, os limites da responsabilidade dos habilitados, ou seja, não pode apreciar o mérito do pedido formulado pelas requeridas em sede de contestação.
Nesta conformidade, improcede, também nesta parte, a pretensão da Apelante.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custa pela Apelante (artigo 527.º do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 25 de março de 2021
Emília Ramos Costa (relatora)
Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura

__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Conceição Ferreira; 2.º Adjunto: Rui Machado e Moura.
[2] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 143.
[3] Almedina, 2018, pág. 737.
[4] Vol. I, 3.ª edição – reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, pág. 573.
[5] Excetuada a situação prevista no artigo 277.º, al. e), do Código de Processo Civil.
[6] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 407.
[7] E, aliás, citado pela Apelante.
[8] Consultável em www.dgsi.pt.
[9] Neste sentido, vejam-se ainda o acórdão do TRC, proferido em 24-05-2011, no âmbito do processo n.º 227/01.8TBOBR-E.C1; e o acórdão do TRP, proferido em 19-12-2012, no âmbito do processo n.º 9386/07.5TBMAI-C.P1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.
[10] Artigo 2071.º, n.º 2, do Código Civil: “Sendo a herança aceita pura e simplesmente, a responsabilidade pelos encargos também não excede o valor dos bens herdados, mas incumbe, neste caso, ao herdeiro provar que na herança não existem valores suficientes para cumprimento dos encargos.”
[11] Que, na situação em apreço, era um processo especial de prestação de contas.