Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1734/20.9T9LSB.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA
ENUMERAÇÃO DOS FACTOS
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A fundamentação da sentença inclui necessariamente a enumeração dos factos descritos na acusação (ou na pronúncia, havendo-a) que o Tribunal considerou provados e não provados, juntamente com os que constam do pedido de indemnização civil (se tiver sido enxertado na ação penal) e da contestação (caso tenha sido oferecida pelo arguido e/ou demandado) e aqueles que resultaram da discussão da causa, bem como a exposição dos motivos de facto e de direito que justificam a decisão (o julgamento de cada facto como «provado» ou «não provado»), indicando-se e fazendo-se o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
II. Naquele primeiro momento elencam-se os factos julgados provados e não provados. Enumerar os factos consiste em especificá-los, ali não devendo indicar-se as provas que sustenta o juízo respetivo.

III. Noutro passo – noutro momento logicamente sequente - expõem-se as razões pelas quais se consideraram tais factos como provados ou como não provados. Ali se indicando as provas que os revelam e o modo como se valoraram, explicitando o modo de formação do juízo que daquelas se extraiu.

IV. Ao integrar no acervo dos «factos provados» juízos alheios (constantes de relatórios periciais ou de relatórios sociais) o Tribunal pretere a realização de tarefa essencial que só a si lhe compete realizar.

V. A confusão na sentença entre factos e provas e a ausência de exame crítico destas constitui nulidade insanável, em conformidade com o disposto no § 2.º do artigo 374.º CPP e al. a) do § 1.º do artigo 379.º do mesmo diploma legal.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – RELATÓRIO

a) No 4.º Juízo (1) Central Cível e Criminal de …, do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum e competência do tribunal coletivo de:

AA, nascido a …, com os demais sinais dos autos, aos quais se imputava, a autoria de:

- 1 crime de pornografia de menores agravado, previsto nos artigos 176.º, § 1.º, al. c) e 177.º, § 6.º e 69.º-B, § 2.º do Código Penal (CP);

- 6 crimes de pornografia de menores agravados, previstos nos artigos 176.º, § 1.º, al. c) e 177.º, § 6.º e 7.º e 69.º-B, § 2.º CP;

- 9 crimes de pornografia de menores, previstos nos artigos 176.º, § 1.º, als. b) e c) e 69.º-B, § 2.º CP;

- 12 232 crimes de pornografia de menores, previstos nos artigos 176.º, § 5.º e 69.º-B, § 2.º CP;

- e 6 crimes de abuso sexual de crianças, previstos no artigo 171.º, § 3.º, als. b) e c) e 69.º-B, § 2.º CP.

O arguido apresentou contestação escrita, pugnando pelo enquadramento da sua atuação na figura do crime continuado e requereu a realização de perícia psiquiátrica, que se veio a realizar.

A final, o tribunal coletivo proferiu acórdão, no qual, veio a condenar o arguido pela prática dos seguintes crimes e nas respetivas penas:

- um crime de abuso sexual de criança, previsto no artigo 171.º § 3.º, al. b) e c) CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

- um crime de pornografia de menores agravado, previsto nos artigos 176.º, § 1.º, al. b) e 177.º, § 7.º CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;

- dois crimes de pornografia de menores, previstos nos artigos 176.º, § 1.º, al. b) CP, cada um deles na pena de 2 anos de prisão;

- um crime de pornografia de menores, previsto no artigo 176.º, § 1.º CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

- um crime de pornografia de menores agravado, previsto no artigo 176.º, § 1.º, al. c) e 177.º, § 7.º CP, na pena de 4 anos de prisão;

- e um crime de pornografia de menores, previsto no artigo 176.º, § 5.º CP, na pena de 1 ano de prisão.

Operando o cúmulo jurídico das penas relativas aos crimes em concurso, condenou-o na pena única de 9 ano de prisão.

Mais se condenou na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 15 anos (artigo 69.º-B § 2.º CP).

Absolvendo o arguido do demais de que fora acusado.

b) Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido, finalizando a motivação do seu recurso com as seguintes (prolixas (2) e desordenadas) conclusões (transcrição):

«(…)

7- O crime predominante, entre os vários em que o Recorrente foi condenado é a pornografia de menores.

8- Numa perspetiva legal, podemos afirmar que a pornografia de menores consiste no material que, independentemente do seu suporte, representa menores, sejam estes reais, aparentes ou até virtualmente criados, em comportamentos sexualmente explícitos.

9- Como elementos típicos deste crime, temos que, em primeiro lugar, o agente do mesmo pode ser qualquer pessoa, desde que tenha 16 anos (art.19.º, CP), idade a partir da qual passa a ser passível de ser imputado a prática de qualquer crime.

10- A vítima do crime terá que ser menor de 18 anos.

11- Há uma distinção entre utilização direta e utilização indireta de menores, sendo a primeira criminalizada nas alíneas a) e b) do n.º 1, do art.176.º do CP, e a segunda pelas condutas das alíneas c) e d) do mesmo preceito.

12- Esta é uma diferenciação de relevo e importante, uma vez que na chamada ‘’utilização direta’’ é a atividade do agente que coloca o bem jurídico em perigo, ou seja, em que há uma relação direta entre o agente e a vítima do crime; enquanto na ‘’utilização indireta’’, as condutas criminalizadas têm o propósito primário de parar a disseminação de materiais de cariz pornográfico.

13- Quanto às condutas, a sua incriminação é orientada por um bem jurídico supra - individual, a infância e a juventude, porque ao desincentivar o crescimento deste mercado há uma finalidade ulterior de proteger a menoridade.

14- O art.º 38.º, do CP, no que diz respeito ao consentimento, refere que este é irrelevante se em causa estiverem menores de 14 anos. O que nos diz que a partir dos 14 anos já faz toda a diferença sabermos se existe ou não consentimento.

15- No caso em concreto, a situação não se coloca porque não se conseguiu determinar quem estava do outro lado do computador a interagir com o Recorrente.

16- Quanto aos vários modos de ação e às formas de conduta, começando pela alínea a), do n.º 1 do art.176.º, esta pune quem ‘’utilizar menor em espetáculo pornográfico’’, não bastando aqui que o menor seja um mero espetador, ele deve efetivamente ser participante no espetáculo, de modo a esta alínea ser preenchida.

17- Na alínea b), o legislador decidiu punir quem ‘’utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte’’, sendo que nos parece ser irrelevante a que título o menor é utilizado.

18- Aqui a utilização efetiva é equiparada ao aliciamento, o que é cada vez mais relevante nesta era digital, visto que muitos menores são aliciados via redes sociais.

19- Na alínea c) do suprarreferido artigo, estabelece-se que, quem ‘’produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio,’’ materiais pornográficos, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.

20- Neste contexto, esta alínea pune todas as formas de divulgação e instrumentos de divulgação utilizados. Mas,

21- Temos que ressalvar a posição adotada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em que concluiu que a ‘’detenção já inclui o download’’ (Ac. TRL, de 15-12-2015 (Relator: Ana Sebastião), Proc. n.º 3147/08.JFLSB.L1-5, Disponível em: www.dgsi.pt), posição com a qual concordamos.

22- No caso concreto, no que concerne ao crime de pornografia de menores, temos que, não só em quantidade, mas também ao nível qualitativo houve uma alteração entre a acusação e a decisão condenatória quanto aos crimes por este praticados.

23- O Recorrente vinha acusado de uma forma mais gravosa do aquela a que veio a ser punido, como já o dissemos, contudo, mesmo assim, foi condenado por excesso em relação à prova produzida e constante nos autos.

24- O elemento probatório fundamental e, talvez, o mais credível, tenha sido os depoimentos do Recorrente, quer em sede de primeiro em interrogatório, quer em sede de audiência de discussão e julgamento.

25- Para além das declarações do arguido só existiram três testemunhas, uma que participou nas buscas e apreensões na casa daquele, outra que levou a cabo a peritagem ao material informático apreendido e a última a perita médica que levou a cabo a Perícia Médico Legal do Recorrente.

26- As testemunhas, ouvidas em julgamento, da Polícia Judiciária, as duas primeiras, apenas foram relevantes para o cabal esclarecimento que muito do material apreendido ao Recorrente eram fotografias e imagens repetidas, caindo por terra a “quantidade” de crimes indicada na acusação. Contudo,

27- Do que nos é dado ouvir nas declarações gravadas, o Senhor Procurador da República, nas palavras do Meritíssimo Juiz Presidente, não pretendia ouvir a segunda testemunha, a que havia levado a cabo a peritagem informática ao material apreendido. Mas,

28- O Meritíssimo Juiz Presidente fez questão do ouvir a testemunha para tirar duvidas que ele tinha, quanto ao apurado na peritagem (quanto à quantidade, à repetição e à sequenciação das imagens apreendidas).

29- Foi esta testemunha quem revelou que o numero total das imagens apreendidas não correspondia ao numero das mesmas, já que estas estavam repetidas em vários dos equipamentos informáticos, para além de outras de não tinham nada a ver com ilícitos criminais.

30- Mas tal só foi possível porque a testemunha, prestou declarações!

31- Desta forma, os crimes pelos quais o Recorrente vinha acusado, deixaram de ser uns e passaram a ser outros, menos e de qualificações ligeiramente diferentes.

32- Houve então uma alteração dos fatos contantes da acusação e da sua qualificação! E,

33- Nada foi dito no Acórdão como não consta nas atas dos dias de julgamento ou de leitura do referido Acórdão.

34- Nas gravações da primeira sessão de julgamento, ouve-se uma conversação entre o meritíssimo Juiz Presidente com o Procurador Geral. Onde é abordado este assunto, da repetição dos documentos apreendidos e que tal implicou, a quem fez a acusação, acusar o Arguido por tantos crimes como as fotos encontradas, sem ter em atenção se havia repetição ou mesmo se algumas fotos tinham sequência, traduzindo-se num único crime.

35- O art.º 358º nº 1 do CPP diz que “(…) Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos fatos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. (…)”

36- No caso concreto a acusação continha em si a pratica pelo Recorrente de 12.054 (doze mil e cinquenta e quatro) crimes, enquanto o acórdão condena-o pela prática de 7 (sete) crimes!

37- Uma diferença abismal em termos numéricos!

38- Isto só pode dever-se ao fato de que quem acusou, não se ter preocupado em ver a prova e analisá-la, neste caso as fotos e imagens, para determinar a sua importância, a sua repetição e a sua sequenciação.

39- Para completar este erro, em julgamento, ao ter sido percetível, como o demonstra as conversas tidas entre meritíssimo juiz presidente e senhor procurador geral e, entre estes e os inspetores da PJ, não houve comunicação, por parte do meritíssimo juiz a quo, da alteração não substancial dos fatos, dado ao Recorrente, se este quisesse, prazo para a sua defesa.

40- Existe aqui uma violação do disposto no art.º 358º nº 1 do C.P.P., violação esta que pode enfermar pela nulidade do atual acórdão em recurso.

41- Quanto à matéria dada como provada, começa logo o Acórdão a dizer, no seu ponto 1 da matéria provada, que “(…) com menores, alguns com idade inferiores a 16 e 14 anos (…).

42- Não se logrou provar a identidade dos menores que surgem nas fotos e consequentemente muito menos as idades que os mesmos têm, mesmo que tenham aspeto mais jovem. Aliás,

43- Esses utilizadores, tal como o Recorrente, podem ter-se feito passar por alguém mais jovem do que efetivamente eram.

44- Contudo como não foi possível identificar os utilizadores, não se pode dizer qual a sua idade real destes.

45- Não identificando quem estava no outro lado a enviar as fotos não podemos determinar se estas eram do próprio ou se também essa pessoa era um adulto a enviar fotos de menores como sendo fotos dele próprio.

46- Quem explica toda esta situação é o próprio arguido. As três conversas on line, que manteve no “…”, pertencente à rede Social “…”, foram sempre iniciadas pela pessoa que estava no outro lado, pelo que não foi o Recorrente quem teve a iniciativa.

47- O perito da P.J. que analisou o material apreendido não conseguiu dizer se foi o Recorrente ou não quem iniciou as três conversas que este guardava no seu equipamento informático e como tal não é possível dar tais fatos da acusação como provados, porque até através do princípio da livre convicção do julgador, este tem que assentar a sua convicção em algo sólido e não basta dizer que o Recorrido tinha em arquivo informático tais conversações guardadas (20220214151222_1065001_3993049 14/02/2022 15:47). E,

48- Tal como também é mencionado por esta testemunha, não visualizou todos os ficheiros, mas mesmo assim apercebeu-se que existiam muitos que eram repetidos.

49- O mesmo nos diz o Senhor Procurador em conversa com o Juiz Presidente, na gravação que antecedeu as declarações da testemunha, em que alega não ter visto todos os ficheiros, já que como sabemos o encarregado do Inquérito não é o mesmo procurador que realiza o julgamento, mas mesmo assim, com a plena noção que quem acusa deveria ter visto todos os ficheiros e ter feito referencia, na acusação, dos que entendesse mais importantes; assim como, no que concerne às conversas com os alegados três menores, também deveria tê-las transcrito para a acusação se entendeu que deveria acusar o Requerente pelas mesmas, como sendo três crimes de abuso sexual de menores.

50- Nada destes pormenores consta da acusação e consequentemente não poderá o douto Acórdão pronunciar-se sobre estes fatos e muito menos condenar o Recorrente pela prática destes crimes, já que os elementos que se referem a eles não são precisos e concisos.

51- Foi também dado como provado que o Recorrente partilhou ficheiros com terceiros, mas não se conseguiu precisar em tribunal com quem este os partilhou e que ficheiros partilhou ou quantos e em que datas em concreto.

52- Só sabemos aquilo que o próprio Recorrente contou e explicou.

53- O Recorrente afirma ter descarregado ficheiros para os seus equipamentos informáticos e terá enviado um ou outro quando quem falava com ele me pedia que enviasse um ficheiro dele próprio, mas como ele se fazia passar por um menor, enviava daqueles que tinha no seu arquivo.

54- A nossa jurisprudência considera que o ato de descarregar este material pornográfico de menores e depois limitar-se a detê-lo, como o Recorrente fazia na sua grande parte das vezes, deverá ser subsumida ao n.º 5 do art.176.º do Código Penal e não nas alíneas b) e c) do mesmo artigo, o que consequentemente se traduz numa redução da pena máxima de cinco para dois anos.

55- Contudo o Recorrente foi condenado por um crime de pornografia de menores agravado, previsto pelos art.º 176 nº 1 c) e 177 nº 7 do Código Penal.

56- Esta agravação do crime resulta do fato de os mesmos serem praticados na presença ou contra vítima menor de 14 anos, mas como tal pode ser possível se não se logrou identificar as pessoas com que o Recorrente interagiu e consequentemente as suas idades?

57- Não resultou provado que as pessoas com que o Recorrente falava e as poucas com quem trocou imagens, fossem menores, muito menos de 14 anos.

58- Existe aqui uma incongruência entre a matéria dada como provada e a efetivamente provada em julgamento, o que vicia, de novo, o Acórdão ora em recurso.

59- As várias fotos, muitas vezes repetidas guardadas nas várias formas de armazenamento informático que o Recorrente possuía, tal como já o dissemos atrás, e como é entendimento da nossa Jurisprudência, o armazenamento não é crime, o que pode configurar um crime é a utilização e divulgação dessas imagens.

60- O Recorrente, que confessou praticamente tudo, declarou ao longo de todo o processo que nunca enviou ficheiros a outras pessoas, salvo um ou dois para pessoas concretas, mas não para o publico em geral e, a verdade, é que em lado algum se fez prova dessas partilhas.

61- Se o Recorrente não divulgou as fotos e imagens, se não fez uploads com estas, não pode ser condenado por dois crime de pornografia de menores agravado, p.p. pelos artigos 176 nº 1 b) e c) e 177 nº 7, numa pena de dois anos e meio cada um, num total de cinco anos de prisão.

62- Aqui, foi dado como provado que o Recorrente partilhou com terceiros as fotos e imagens, quando na verdade tal não resulta de nenhum documento, relatório ou testemunho.

63- Mais uma vez temos uma contradição entre a matéria dada como provada e que levou a duas condenações e a matéria de fato provada em sede de julgamento.

64- A defesa do ora Recorrente solicitou uma peritagem médico legal a este e, apontou os quesitos que queria que fossem respondidos.

65- O relatório junto aos autos sugere-nos um trabalho muito elaborado por um técnico na matéria, feito ao longo de várias horas a privar com o mesmo Recorrente.

66- Por espanto nosso, o Relatório da Perícia Médico-Legal deveria resultar de um estudo aprofundado do individuo e não o resultado de 20 ou 30 minutos de conversa com este.

67- No depoimento prestado pela autora do Relatório, que compareceu na segunda sessão do julgamento, por solicitação da defensora oficiosa do Recorrente, para esclarecer algumas dúvidas, cuja gravação pode ser ouvida em 20220223094832_10650001_3993049 de dia 23/2/2022 pelas 10.11h, ouve-se a mesma dizer que fez o referido relatório tendo por base uma única sessão com o Recorrente de cerca de 20 a 30 minutos e os seus conhecimentos empíricos!!!!!!!

68- Quanto aos conhecimentos empíricos não podemos, nem queremos colocar a Senhora Perita em causa.

69- Contudo, as condições em que tal entrevista foi levada a cabo deixam muito a desejar para a elaboração de um relatório fidedigno.

70- Logo na gravação, a seguir às declarações da Senhora Perita, temos uma conversa da defensora oficiosa do recorrente com o Juiz Presidente e na outra a seguir fala o Recorrente sobre a forma como a sua entrevista decorreu e como tal podemos verificar que não o foi nas melhores condições.

71- A entrevista foi realizada numa sala, com a porta aberta, com pessoas na sala de espera contigua, as quais conseguiam ouvir tudo o que estava a ser falado na outra sala.

72- Tal fato deixou o Recorrente mais contido e sem conseguir falar muito sobre tudo o que se passou na sua vida ao longo dos anos, em particular dos assuntos mais íntimos da sua vida e do seu problema com a pornografia com menores.

73- Mas, esta postura do Recorrente foi mal-entendida pela Senhora Perita a qual, melhor que ninguém, deveria saber que para que possa obter as melhores e mais verdadeiras respostas da parte do seu entrevistado, deve garantir a privacidade do que este tem a dizer e não é com uma porta aberta ou entre aberta para uma sala de espera, cheia de outros doentes, que tal se consegue.

74- Também não é assim que se consegue tirar conclusões da análise de uma pessoa numa única sessão de cerca de meia hora.

75- Todos temos dias bons e dias maus, dias em que falamos mais e outros em que falamos menos, pelo que é de levar a cabo este tipo de peritagens em vários dias, com alguns intervalos de tempo de modo a poder ver as alterações do analisado, quer sejam flutuações de humores, de estados de espírito, de reações à mesma coisa em alturas diversas, etc.

76- Quando a Senhora Perita foi inquirida sobre o fato de só ter feito uma sessão a sua resposta foi simplesmente, que não era psicóloga e não fazia testes às pessoas que via.

77- Daqui deduz-se que a Senhora Perita seja Psiquiatra, mas a verdade é que o estudo do Recorrente deveria ter sido feito por quem soubesse e devesse responder com coerência ao problema psíquico do mesmo, quer fosse ao escrever o Relatório e a responder aos quesitos que lhe foram colocados, como também, em sede de audiência, às questões que lhe foram colocadas.

78- Quem ler o Relatório, sem ouvir as declarações da Senhora Perita em julgamento, poderá julgar que aquele foi feito com varias horas de estudo do Recorrente e uma metodologia adequada a tal (que desde logo se diga, a existir, não consta do Relatório).

79- Em sede de julgamento, a Senhora Perita vacilou nas suas afirmações em matérias em que no seu Relatório afirmava perentoriamente.

80- É patente a resposta da Senhora Perita no Relatório, quando diz que o Recorrente, apesar de ainda não ter praticado atos de cariz sexual com menores sem serem virtuais, vai praticá-los de certeza.

81- Em declarações, no dia do julgamento, a Senhora Perita hesita e já diz que pode acontecer ou não.

82- Não estamos em face de uma ciência exata como a matemática, mas também não podemos afirmar que algo vai acontecer de certeza e ao mesmo tempo que pode acontecer ou não.

83- Há ainda que ter em conta que, a Senhora Perita diz que lhe foram enviadas várias peças processuais para ela poder fazer o exame, contudo ela acaba por apenas referir a acusação do Ministério Público e a contestação apresentada pela defesa.

84- No nosso entender, a Senhora Perita deveria partir do zero para analisar a pessoa que tem à sua frente, sem ter que saber, como era o caso pelo qual o Recorrente estava acusado, se estava acusado destes ou de outros crimes, pois isso condiciona o modo como esta o ela vê e não consegue afastar-se da ideia do tipo de crime praticado, isto é, ela começa o exame já com uma ideia preconcebida. Contudo, é verdade que a lei manda instruir as peritagens com informações já existente no processo.

85- Não nos parece que a Acusação tenha sido o melhor documento para tal, haveriam documentos que teriam mais interesse em terem sido enviados, talvez como o Relatório da Peritagem Informática, que desmonta o mito da quantidade de crimes em contraposição ao número de fotos ou imagens encontradas.

86- Assim sendo, concluímos pela falta de isenção da Senhora Perita, a qual foi tendenciosa no que escreveu e tentou-o ser no seu depoimento, o que já lhe foi mais difícil.

87- Esta falta de isenção é grave!

88- Mas mais grave do que isso, é ter que ser o próprio Recorrente que, em sede de Primeiro Interrogatório e em sede de Julgamento, quem refere que tem uma doença e que precisa de tratamento, o qual este, por iniciativa própria, não o havia procurado, mas que o Tribunal já o poderia ter feito.

89- E acima de tudo, a pessoa mais entendida nesta matéria, como é o caso da Senhora Perita, deveria ter diagnosticado qual a doença que o Recorrente padece e que metodologia seria recomendada para iniciar o tratamento.

90- Mas não o fez!

91- A peritagem junto aos autos, devido às suas falhas, inexatidões e preconceitos, todos eles bem patentes, não deveria ter sido valorado em termos de prova, o mesmo acontecendo ao depoimento da Senhora Perita.

92- Tendo por base tudo o que até agora foi dito, o douto Acórdão em recurso deu relevo a fatos que não eram relevantes, deu como provados fatos que não o foram, como atrás mencionamos, e valorizou o depoimento da Senhora Perita Médico Legal, não tendo valorado muito o depoimento do Perito Informático da Polícia Judiciária.

93- Só assim se pode compreender a escolha da medida das penas que o coletivo de juízes, que julgou o Recorrente e o condenou por cada um dos crimes, dando depois em cúmulo jurídico a pena única de nove anos de prisão.

94- O Recorrente era primário, nunca tinha sido sinalizado ou suspeito de qualquer prática de crime, muito menos envolvendo crianças e é certo que este sempre trabalhou com estas, desde que foi baby-sitter, em jovem.

95- Em … onde exercia a atividade de…, nem em …a, local onde vivia e trabalhava atualmente e nem na zona de … onde morou o resto da sua vida, nunca houve algo que lhe apontassem que se prendesse com a sua propensão para a visualização e acumulação de material pornográfico de menores, para não falar que este nunca interagiu com uma criança ou um jovem em contexto não virtual.

96- Mas estes aspetos não foram valorizados no douto Acórdão!

97- Em abstrato, as penas dos crimes pelos quais o Recorrente foi condenado poderiam ter sido menos gravosas e permitido que este pudesse ter sido condenado a uma pena inferior, nomeadamente, cinco anos de prisão, a qual poderia ser suspensa na sua execução, sujeita a certas injunções tais como tratamento e acompanhamento psicológico e psiquiatra, bem como não exercer atividades profissionais, desportivas ou de lazer, com crianças e jovens e mantendo-se afastados dos locais frequentados por estes.

98- Esta seria uma forma de punir o infrator na proporção no dano que causou à sociedade, reabilitando-o para viver em sociedade e integrado em termos familiares e profissionais.

99- Como é referido no art.º 40º nº 2 do Código Penal, a pena aplicável em sede de condenação não pode ser superior à culpa do agente.

100- No caso concreto a pena foi superior ao dano causado!

101- A medida da pena deve ser aferida do grau de culpabilidade do Agente.

102- Não nos parece que a atuação do Recorrente nos presentes autos tenha sido merecedora de ser punido com uma pena privativa da sua liberdade, para além do período de reclusão por este já gozado em sede de prisão preventiva.

103- O douto Acórdão ora em recurso sofre de três vícios, nos termos do art.º 410º nº 2 a) e c) e nº 3 do CPP:

- Uma insuficiência para a decisão da matéria de fato provada;

- Um erro notário na apreciação da prova; e

- Nulidade do Acórdão.

104- Os dois primeiros pontos prendem-se com tudo o temos vindo a arguir, de que não foi feita prova cabal de que o Recorrido tenha praticado estes crimes, nos termos e condições que foram rudimentarmente descritas na acusação, nem em sede de audiência de discussão e julgamento, nem pelos documentos juntos aos autos, quer quanto ao número de crimes, quer quanto ao tipo dos mesmos.

105- Não havendo prova cabal e tendo o Acórdão condenado o Recorrente por um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo art.º 171º nº 3 b) e c); de um crime de pornografia de menores agravado, previsto e punido pelo art.º 176º nº 1 alínea b) e 177º nº 7; dois crimes de pornografia de menores, previsto e punido pelo art.º 176º nº 1 b); um crime de pornografia de menores, previsto e punido pelo art.º 176º nº 1 c); um crime de pornografia de menores agravado, previsto e punido pelo art.º 176º nº 1 c) e 177 nº 7; e um crime de pornografia de menores, previsto e punido pelo art.º 176º nº 5, todos do Código Penal, só podemos concluir que houve um erro na apreciação da prova, erro esse notório à vista de todos.

106- Em face da jurisprudência recente dos tribunais superiores portugueses, podemos dizer que no caso em apreço, existe um erro notório na apreciação da prova, pois, não se tendo provado sem dúvida provável que o Recorrente tenha praticou atos que se pudessem enquadrar na qualificação dos crimes pelos quais foi condenado.

107- O Acórdão, na sua grande parte, assenta exclusivamente na apreciação que é feita pelo meritíssimo juiz a quo, quantos aos fatos ocorridos, contudo o princípio da livre convicção do juiz como meio de descoberta da verdade não pode ser usada sem que exista uma forte fundamentação, o que não foi o presente caso.

108- O Prof. Cavaleiro Ferreira, nas suas lições de Direito Processual Penal, refere que “(…) a convicção por livre não deixa de ser fundamentada (…)” porque de outra forma estamos perante “(…) o grave perigo dum puro subjetivismo na apreciação das provas (…)”.(in Lições de Direito Processual Penal, de 1969).

109- O Prof, Figueiredo Dias, nas suas Lições de Direito Processual Penal, vem ensinar que a “(…) livre apreciação significa ausência de critérios legais prefixados e, simultaneamente, “liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e suscetíveis de motivação e controlo (…)”.

110- A livre convicção do juiz não pode ser subsumida à sua convicção, no seu sentido subjetivo ou emocional. Esta convicção, sendo pessoal, deve ser sempre objetivável e motivável, no entendimento do Prof. Figueiredo Dias.

111- Segundo este Prof., a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, resultado de um convencimento do juiz sobre a verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.

112- Nada disto consta na sentença recorrida. A livre convicção do meritíssimo juiz a quo é subjetiva e emocional e não objetiva e motivável e por isso mesmo não é suficiente para fundamentar a decisão tomada quanto aos fatos em apreço.

113- No que concerne a Nulidade do Acórdão, esta prende-se com a alteração dos fatos e da qualificação jurídica dos crimes que foi feita neste, sem, contudo, ser precedida de comunicação da mesma ao Arguido.

114- Nos termos da alínea b) do nº 1 do art.º 379º do Código de Processo Penal, é nula a sentença que condenar por fatos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos previstos nos artigos 358º e 359º do CPP (isto é, nas situações em que houve alteração substancial ou não substancial dos fatos e foram cumpridos todos os requisitos legais.).

115- O Acórdão ora em recurso violou os mais básicos princípios do nosso direito, em particular o princípio da defesa do arguido e do direito ao contraditório e como tal sofre de nulidade.

116- Deste modo, a douta sentença em recurso, violou as normas atinente à livre apreciação da prova por parte do juiz a quo, art.º 127º do CPP., bem como os artigos 358º e 359º do mesmo corpo de leis.

NESTES TERMOS

E nos mais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando a nulidade da sentença que condenou ora Recorrente e por força disso ser ordenada a repetição da audiência de discussão e julgamento. Ou,

Caso se entenda, haver matéria suficiente para decidir, deverá ser alterado o Acórdão e ser o ora Recorrente condenado em sede de cúmulo jurídico a uma pena não superior a cinco anos, suspensa na sua execução, sujeita a certas injunções.»

c) Admitido o recursos o Ministério Público respondeu, pugnando pela sua improcedência, referindo no essencial que:

«A. Inconformado com o Acórdão que o condenou em cúmulo jurídico na pena de 9 anos de prisão, o arguido, interpôs o presente recurso para o Tribunal da Relação de Évora, arguindo vícios: como a insuficiência para a decisão de matéria de facto, o erro notório na apreciação da prova, ambos nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alíneas a) e c), e n.º 3, do CPP, a nulidade do Acórdão Recorrido por violação do artigo 358.º, n.º 1, do CPP; e que a pena deveria ter sido “suspensa na sua execução”; impugnando de igual forma a matéria de facto.

B. O Recorrente ainda que de forma imprecisa, genérica e em alguns casos algo confusa, impugna a matéria de facto, é o que se retira das Conclusões do Recurso com os n.ºs 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 51, 53, 56, 57, 59, 60 a 91.

C. O artigo 412.º, n.º 3, do CPP, impõe que quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devam ser renovadas, acontece que o Recorrente não especifica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, incluindo nas suas conclusões, requisitos que desde logo o Recorrente não cumpre.

D. O Recorrente limita-se a dizer que há contradições entre as declarações do arguido e o depoimento da testemunha ou declarações dos peritos, pelo que discorda da versão acolhida pelo Tribunal, esquecendo-se de apresentar a sua própria versão dos factos.

E. A motivação de Recurso não tem em conta os restantes elementos de prova que constam dos autos e que foram todos analisados em audiência de julgamento, limitando-se também nesta sede a fazer considerações genéricas.

F. O Recorrente ao pretender impugnar matéria de facto, teria que indicar as concretas passagens em que funda a impugnação, não sendo suficiente aflorar o depoimento do arguido, das testemunhas e das declarações dos peritos, e no final em artigos salteados limita-se a dar a sua versão dos factos, pelo que não cumpre os requisitos do artigo 412.º, n.º 4 do CPP, assim o Tribunal ad quem não consegue determinar o objeto do recurso.

G. Pelo exposto, consideramos que deverá ser rejeitada a impugnação da matéria de facto apresentada pelo Recorrente nas suas conclusões com os n.ºs 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 51, 53, 56, 57, 59, 60 a 91, por violação do artigo 412.º, n.º 3, alíneas a), b) e c), e n.º 4, do CPP.

H. Relativamente às conclusões com os n.ºs 103, 104, 106 e 107, em que o Recorrente argui a insuficiência da matéria de facto provada, vejamos, foram analisadas em audiência de julgamento a perícia informática (que integra os anexos), o relatório (fls. 5 a 18 e 24), a informação da NOWO (fls. 43 e 69), o CD (fls. 49), as informações prestadas pela Microsoft(fls.59a 62),o auto de busca e apreensão(fls.124 a126),a pesquisa de palavras passe guardadas na conta google(fls.131a137),o auto de diligência forense em ambiente digital (fls. 138 a 148), o suporte ótico contendo ficheiros e imagens extraídas através de equipamentos apreendidos ao arguido (no envelope agrafado da contra capa), fotograma (fls. 207 a 223), listagem (fls. 226), 2 DVDs contendo imagens e vídeo extraídos dos equipamentos informáticos apreendidos (fls. 97 e 98 do anexo referente à perícia forense …), a perícia médico-legal psiquiátrica, além das testemunhas e dos peritos ouvidos em audiência de julgamento, assim como o depoimento do próprio arguido em sede de primeiro interrogatório judicial, e com estes elementos probatórios conjugados entre si foi proferido pelo Coletivo de Juízes o Acórdão que condenou o Recorrente.

I. Pelo exposto deverá ser declarada totalmente improcedente a arguida insuficiência da matéria de facto dada como provada, uma vez que o Acórdão Recorrido não omitiu diligências probatórias, não omitiu a indicação das provas nos factos dados como provados e efetuou de forma correta um exame critico das provas.

J. Ainda assim, o Recorrente coloca em causa, nas suas conclusões n.ºs 65 a 86, 91 e 92, a matéria de facto provada no artigo 41.º do Acórdão Recorrido, vejamos, o arguido requereu a realização de uma prova pericial a 27.12.2021, indicando inclusivamente os quesitos que queria ver respondidos (referência citius 2126060):

K. o Tribunal deferiu o requerimento e o Recorrente foi sujeito a perícia médico legal de psiquiatria, tendo aquele exame respondido aos quesitos suscitados (referência citius n.º 2159999):

L. Em audiência de julgamento a Dra. BB confirmou na integra o teor do relatório da perícia médico legal (Cfr. Declarações da médica perita, Dra. BB, prestado na audiência de julgamento de 23.02.2022, gravado no sistema «H@bilus media studio» 00:00:01 a 00:22:53, tal como consta da ata que foi elaborada – trecho referido do minuto 06:00 ao 20:26).

M. Considerando que a prova pericial está subtraída à livre apreciação do julgador bem andou o Acórdão Recorrido ao considerar os factos constantes do artigo 41.º daquela decisão como provados, assim entendemos que devem ser declaradas totalmente improcedentes as conclusões apresentadas pelo Recorrente com os n.ºs 65 a 86, 91 e 92, e bem assim das conclusões 103, 105, 106 e 106, na medida em que não se verificou um erro notório da apreciação da prova.

N. Relativamente às conclusões apresentadas pelo Recorrente com os n.ºs 41, 42, 43, 44, 56, 57, o recorrente impugna a decisão relativa a matéria de facto contante no artigo 26.º dos factos provados no Acórdão Recorrido, nomeadamente à referência a três menores de idade, um deles com idade inferior a 14 anos.

O. Vejamos, o Especialista da Policia Judiciária, CC, confirmou na integra o teor do relatório da perícia informática forense relativamente aos vídeos e conversas mantidas pelo arguido “online” com três menores um deles com idade inferior a 14 anos aliciando-os a comportamentos e atos sexuais, mais explicou que as idades dos menores foram classificadas de acordo com a sua larga experiência de perito (Cfr. Declarações do perito da Polícia Judiciária, CC, prestado na audiência de julgamento de 14.02.2022, gravado no sistema «H@bilus media studio» 00:00:01 a 00:34:00, tal como consta da ata que foi elaborada – trecho referido do minuto 03:00 ao 08:00).

P. Pelo exposto entendemos que devem ser declaradas totalmente improcedentes as conclusões apresentadas pelo Recorrente com os n.ºs 41, 42, 43, 44, 56, 57, e bem assim das conclusões 103, 105, 106 e 106, na medida em que não se verificou um erro notório da apreciação da prova.

Q. Na conclusão n.º 40 do Recurso entende o Recorrente que houve uma violação do disposto no artigo 358.º, n.º 1, do CPP, violação esta que pode enfermar pela nulidade do Acórdão Recorrido, também aqui não assiste razão ao Recorrente.

R. Isto porque, salvo o devido e merecido respeito, no Acórdão Recorrido o arguido foi condenado na pena parcelar de um ano de prisão por um crime de pornografia de menores, previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º 5, e 69-B, n.º 2, do Código Penal, apesar de na acusação lhe terem sido imputados 12032 (doze mil e trinta e dois) crimes de pornografia de menores, p. p. pelos 176.º, n.º 5, e 69-B, n.º 2, do Código Penal, a nosso ver não houve nenhuma alteração não substancial dos factos constantes da acusação, até porque o tipo legal de crime a que foi condenado é o mesmo daquele pelo que lhe foi deduzida na acusação.

S. Assim entendemos que também as conclusões do Recorrente com os n.ºs 41, 42, 43, 44, 56 e 57, devem ser julgadas totalmente improcedentes, não se verificando a nulidade arguida.

T. Por último na conclusão n.º 97 do Recurso, o Recorrente sugere que a pena poderia ter sido suspensa na sua execução, o Acórdão Recorrido atendeu no seu conjunto aos factos e personalidade do Recorrente, dando relevo à ausência de antecedentes criminais e ao facto de o arguido sempre ter beneficiado de adequado enquadramento socioprofissional, fixou a pena única no patamar médio inferior dos limites do cúmulo jurídico, condenado o Recorrente numa pena concreta de nove anos de prisão, impedido deste modo que a pena de prisão possa ser suspensa na sua execução (Cfr. artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal).

U. Assim também a Conclusão n.º 97 do Recurso deverá ser julgada improcedente por impossibilidade legal.

Concluindo, sempre diremos que o tribunal a quo apreciou, e bem, a matéria de facto apurada, para além de não ter incorrido em qualquer vício de falta de fundamentação ou erro de julgamento.

Por tudo isto se conclui no sentido do presente recurso ser declarado totalmente improcedente e, consequentemente, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.»

d) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu parecer no sentido da improcedência dos fundamentos alegados pelo recorrente, secundando a posição já assumida na resposta produzida na 1.º instância.

e) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, nada se acrescentou.

Foi efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, tendo os autos ido à conferência. Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (3)

As questões colocadas pelo recurso do arguido são as seguintes: i) Nulidade do acórdão (por preterição do incidente previsto no artigo 358.º CPP); ii) Vícios da decisão recorrida (410.º, § 2.º, als. a) e c) CPP) iii. Erro de julgamento da questão de facto (412.º, § 3.º CPP); iv. Erros de julgamento da questão de direito: iv. a) Qualificação jurídica dos factos; iv. b) Medida das penas parcelares e única; iv. c) Suspensão da execução de pena de prisão.

2. No acórdão recorrido o tribunal a quo deu como provado e não provado o seguinte acervo factual, que motivou do modo seguinte:

«Com interesse para a causa resultaram provados os seguintes factos:

1. O arguido desde, pelo menos, o ano de 2018 que se dedica à detenção, compilação e divulgação de fotografias e vídeos de teor pornográfico com menores, alguns com idades inferiores a 16 e 14 anos.

2. Tais vídeos e fotografias exibem menores nus, alvos de condutas de natureza sexual, sobre si infligidas por adultos ou por outros menores, e que incluem sexo oral, anal e vaginal, para satisfação não só dos intervenientes, como do arguido e de outros indivíduos com quem este as partilhou através da internet.

3. No dia 25 de Abril de 2019, pelas 13:08:01 (UTC), o arguido, através do IP …, partilhou seis ficheiros na plataforma do “Messenger”, associada à rede social “Facebook”, contendo três deles imagens de menores nus ou parcialmente despidos, em posições eróticas ou lascivas e envolvidos em comportamentos sexualmente explícitos, nomeadamente a praticar coito e penetração anal.

4. No dia 26 de Abril de 2019, pelas 03:02:42 (UTC), o arguido, através do …, partilhou cinco ficheiros, sendo um deles repetido, na plataforma do “Messenger”, associada à rede social “Facebook”, contendo vídeos de menores com idades inferiores a 16 e 14 anos, envolvidos em comportamentos sexualmente explícitos entre si ou com adultos, designadamente a praticar sexo oral.

5. O arguido efectuou os “uploads” dos referidos ficheiros de imagem e vídeo utilizando o perfil do “Facebook” denominado “…”, com o ID …, associado ao endereço de correio electrónico ….

6. No dia 11 de Maio de 2021, na sequência do cumprimento de mandados de busca domiciliária, foram apreendidos no interior da residência do arguido, sita na Rua …, em …, os seguintes equipamentos:

i. Uma consola da marca “…”, modelo “…”, com o n.º de série …, com respectivos cabos e comando, que se encontrava na sala de estar;

ii. Um disco rígido interno, com a capacidade de 80GB, da marca “…”, modelo …, com n.º de série …, que se encontrava na sala de estar; iii. Um dispositivo de armazenamento móvel USB, sem marca, de cor azul e prata, com a indicação aposta “…”, que se encontrava no quarto do arguido junto ao PC aí instalado;

iv. Um disco rígido interno da marca “…”, modelo “…, com o n.º de série …, com capacidade de 120Gb, o qual se encontrava instalado numa torre de PC armazenada na divisão de arrumos;

v. Um disco rígido interno da marca “…”, modelo “…”, com o n.º de série …”, com a capacidade de 80Gb, o qual se encontrava instalado numa torre de PC armazenada na divisão de arrumos;

vi. Uma mini-torre de cor preta, de marca …, contendo um disco rígido interno … da marca “…”, modelo …, com n.º de série …, com 1 Terabyte de capacidade, leitor/gravador de DVD, encontrado no interior do quarto do arguido;

vii. Um disco rígido externo da marca “…”, modelo “…”, com o n.º de série …, que se encontrava conectado à mini-torre do computador existente no quarto do arguido, identificado no respetivo sistema operativo como letra “…” e respectiva cablagem;

viii. Um disco rígido externo da marca “…”, modelo “…”, com o n.º de série …, que se encontrava conectado à mini-torre do computador no quarto do arguido e respectiva cablagem;

ix. Um disco rígido externo da marca “…”, modelo …, com o número de série …, o qual se encontrava conectado à mini-torre do computador no quarto do arguido e respectiva cablagem;

x. Um telemóvel da marca …, modelo … (…), com os IMEI … e …;

xi. Um telemóvel da marca “…”, modelo “…”, com o n.º de série …, com os IMEI … e ….

7. No dispositivo de armazenamento “…”, com a inscrição “…” encontravam-se:

- Cinco (5) ficheiros de imagem, contendo menores com idades inferiores a 14 anos, em posições eróticas e/ou lascivas, exibindo os órgãos genitais ou apresentando nudez total ou parcial, envolvidos em comportamentos sexualmente explícitos com adultos ou entre menores, designadamente a praticar sexo oral ou anal;

- Quarenta e três (43) ficheiros contendo vídeos envolvendo menores, trinta e oito (38) dos quais envolvendo menores com idades inferiores a 14 anos, exibindo os órgãos genitais ou apresentando nudez total ou parcial, envolvidos em comportamentos sexualmente explícitos com adultos ou outros menores, designadamente, a praticar sexo oral e anal;

8. Num dos ficheiros de vídeo armazenado na “…”, denominado “…”, é possível visualizar um menor em poses eróticas e exibição lasciva dos genitais, bem como parte de uma conversa mantida na aplicação “Instagram”, em que um dos intervenientes se identifica por “__” e onde se verifica a existência da menção “E mandas me 50€”.

9. No disco rígido da marca “…”, instalado no PC (minitower), foram identificados e quantificados:

- Quatrocentos e sessenta e um (461) ficheiros de imagem com menores, cento e vinte e um (121) dos quais envolvendo menores com idades inferiores a 14 anos, em comportamentos sexualmente explícitos, designadamente a praticar sexo oral, anal ou cópula com adultos ou entre si, em posições eróticas e em exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial.

- Trezentos e trinta e cinco (335) ficheiros de vídeo com menores, cento e dez (110) dos quais envolvendo menores com idades inferiores a 14 anos, em comportamentos sexualmente explícitos, designadamente a praticar sexo oral, anal ou cópula com adultos ou entre si, em posições eróticas e exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial.

10. Após análise às bases de dados associadas aos navegadores de internet (browsers) constantes do disco rígido da marca “…l”, verificou-se a existência de informações respeitantes a duas contas de armazenamento “online”, concretamente, uma conta “…” e uma conta “…”.

11. Na conta “…” foi possível identificar o email associado à mesma, …, e o seu “user” se tratava de “…”.

12. Na subpasta de armazenamento “…” encontravam-se treze (13) ficheiros de imagem com “printscreens” de conversas mantidas pelo arguido com outros utilizadores.

13. Na subpasta de armazenamento denominada “…” encontrava-se armazenado:

- Um (1) ficheiro de imagem de um menor de 14 anos, em actos sexuais explícitos;

- Seiscentos e vinte e nove (629) ficheiros de vídeo com menores, duzentos e sessenta e sete (267) dos quais envolvendo menores com idades inferiores a 14 anos, em comportamentos sexualmente explícitos, designadamente a praticar sexo oral, anal ou cópula com adultos ou entre si, em posições eróticas e exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial.

14. A plataforma de armazenamento “…”, apresentava as credenciais de acesso user … e a password “…”.

15. Na sua pasta “…”, consta armazenado:

- quatro (4) ficheiros de vídeo com menores, três (3) dos quais envolvendo menores com idades inferiores a 14 anos, em comportamentos sexualmente explícitos, designadamente a praticar sexo oral, anal ou cópula com adultos ou entre si, em posições eróticas e exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial.

- oito (8) ficheiros de imagem com menores, cinco (5) dos quais envolvendo menores com idades inferiores a 14 anos, em actos sexuais, designadamente a praticar sexo oral, anal ou cópula com adultos ou entre si, em posições eróticas e exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial.

16. Na pasta denominada “…”, o arguido criou diversas subpastas, designadamente: a) Na subpasta “…” constavam armazenados noventa e oito (98) ficheiros de imagem do mesmo menor de 14 anos, e dentre estes ficheiros foram identificados treze (13) relacionados com material pornográfico, por conterem comportamentos sexualmente explícitos, designadamente a pratica de sexo oral ou cópula, exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial;

b) Na subpasta “…” constavam armazenados trinta (30) ficheiros de imagem, com fotografias referentes ao mesmo menor de 14 anos, em posições eróticas e exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial;

c) Na subpasta “…” constavam armazenados sessenta e três (63) ficheiros de imagem, com o mesmo menor de 14 anos, em comportamentos sexualmente explícitos, designadamente a praticar sexo oral, em posições eróticas e exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial.

d) Na subpasta “…” constavam armazenados cinco (5) ficheiros de vídeo com menores, dois (2) dos quais envolvendo menores com idades inferiores a 14 anos, em comportamentos sexualmente explícitos, designadamente a praticar sexo anal, em posições eróticas e exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial.

e) Na subpasta “…” constavam armazenados um (1) ficheiro vídeo contendo menor em actos sexuais e dezasseis (16) ficheiros de imagem de menores, quinze (15) dos quais envolvendo menores de 14 anos, em comportamentos sexualmente explícitos, em posições eróticas e/ou exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial.

f) Na subpasta “…” constavam armazenados onze (11) ficheiros de vídeo, representando a mesma criança, menor de 14 anos, envolvida em actos sexuais, em posições eróticas e exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial.

g) Na subpasta “…” constavam armazenados cinco (5) ficheiros de vídeo, envolvendo menores de 14 anos em comportamentos sexualmente explícitos, designadamente a praticar sexo oral e anal com adultos, em posições eróticas e exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial.

17. Na referida plataforma de armazenamento online, o arguido autorizou e marcou para partilha, em 24 de Abril de 2019, pelas 00h25, todo o conteúdo da pasta denominada “…”, contendo ficheiros armazenados num total de trezentos e cinquenta e quatro (354) megabytes.

18. No dia 24 de Abril de 2019, pelas 00h24, o arguido gerou um “link” para partilha online de todo o conteúdo da pasta “…”.

19. No dia 24 de Abril de 2019, pelas 00h50, o arguido gerou um “link” para partilha online de todo o conteúdo da pasta “…”.

20. No dia 26 de Abril de 2019, pelas 6h05, o arguido gerou um “link” para partilha online de todo o conteúdo da pasta “…”.

21. Ao longo do ano de 2020, o arguido, fazendo-se passar por um menor e identificando-se pelo nome de “…”, manteve várias conversações com menores através da rede social “Instagram”.

22. Com efeito, analisados os dados associados aos “web browsers”, verificou-se a existência de, pelo menos, dezassete (17) conversações mantidas pelo arguido sob o nome de utilizador “…”, cujo nome se encontra definido como “…”, encetando conversas com teor sexual.

23. No disco rígido da marca “…”, utilizado como armazenamento externo, o arguido armazenou:

- Nove mil cento e vinte e um (9121) ficheiros de imagem de menores, quatro mil quinhentos e setenta e três (4573) dos quais envolvendo menores com idades inferiores a 14 anos, em comportamentos sexualmente explícitos, em posições eróticas e exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial.

- Mil duzentos e cinquenta e três (1253) ficheiros de vídeo envolvendo menores em comportamentos sexualmente explícitos, em posições eróticas e exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial, dos quais seiscentos e trinta (630) envolvem menores com idades inferiores a 14 anos.

24. Ainda no suporte de armazenamento da marca “…”, o arguido guardou todos os ficheiros necessários para a execução de um software de navegação na internet denominado “…”, que permite a navegação anónima, bem como um ficheiro de texto contendo endereços diretamente relacionados com a utilização de redes anónimas – a rede … - para acesso a websites de localização restrita, identificáveis com endereços com o sufixo “…”.

25. Relativamente ao browser “…” foram identificados e extraídos diversos ficheiros relativos a “links” armazenados na biblioteca ou nos “favoritos” alusivos à pornografia de menores, concretamente:

- quatrocentos e sessenta e três (463) ficheiros de imagem, onde é possível visualizar representações de menores envolvidos em actos sexuais com adultos e apresentando nudez parcial ou total e três (3) ficheiros de animação também associados à pornografia de menores.

- um (1) ficheiro com características definidas como um documento de texto, mas que consiste num vídeo envolvendo menores em poses de índole sexual ou pornográfica, e onde é possível visualizar menores em atos sexuais com adultos ou entre menores, apresentando nudez total ou parcial.

- dois (2) ficheiros de imagem com uma menor em poses de índole sexual e exibição lasciva dos órgãos genitais, obtidos mediante “screenshots”, ou seja, capturas de ecrã, de um dispositivo de comunicações móvel e onde se pode verificar a existência do nome de utilizador “…” e que está associada a uma conversa mantida pelo arguido na rede social “Instagram” com um outro utilizador, o qual partilhou com o arguido as referidas imagens.

26. Foram, ainda, no browser “…” identificados e recolhidos quinze (15) ficheiros de vídeo referentes a conversas mantidas pelo arguido “online” com três menores nos anos de 2020 e 2021, um deles com idade inferior a 14 anos, aliciando-os a comportamentos e actos sexuais e à exibição dos seus órgãos genitais, dos quais:

- Cinco (5) ficheiros contêm aqueles menores em poses de índole sexual ou pornográfica, exibindo os órgãos genitais, imagens que foram captadas pelo arguido;

- Seis (6) ficheiros envolvendo dois daqueles menores, um deles com idade inferior a 14 anos, interagindo com o arguido em conversações de teor sexual, exibindo os órgãos genitais, masturbando-se, assistindo ao arguido a exibir o pénis, a tocar-se e a masturbar-se.

27. No smartphone da marca “…”, com o número …, o arguido tinha armazenados:

- Cento e sessenta e seis (166) ficheiros de imagem com menores, dentre os quais cento e vinte e dois (122) envolvendo menores com idades inferiores a 14 anos, em actos sexuais explícitos, em posições eróticas e exibição lasciva dos órgãos genitais, ou apresentado nudez total ou parcial;

- Quarenta e dois (42) ficheiros de vídeo com menores, dentre os quais trinta (30) envolvendo menores com idades inferiores a 14 anos, em actos sexuais com adultos ou com outros menores, a masturbarem-se ou apresentado nudez total ou parcial.

- Várias imagens e ficheiros de vídeo em pastas associadas às aplicações “…”, “…” e “…”, onde é possível identificar sete (7) ficheiros com gravações de videochamadas “online”, os mesmos a que se aludiu supra em 26.;

- Cinquenta e seis (56) ficheiros de imagem do mesmo jovem do sexo masculino, em que algumas das imagens exibem a legenda “…”, fotografia usada pelo arguido para encetar conversas online com outros menores, fazendo-se passar pelo jovem aí retratado.

28. Através deste smartphone, o arguido procedeu à partilha, através da aplicação de comunicação instantânea “…”, em 24/12/2019, de doze (12) ficheiros de imagem, enviados da conta de … com o utilizador …, para si próprio, sob o utilizador …, associado ao smartphone … que lhe foi apreendido, envolvendo imagens de menores nus, em poses de índole sexual ou pornográfica, em atos sexuais.

29. No mesmo aparelho e aplicação, em 01/07/2020 o arguido partilhou com o utilizador … uma imagem de um menor nu, em pose de índole pornográfica.

30. No smartphone da marca “…”, com o número …, o arguido tinha armazenado na pasta “…”:

- Seis (6) ficheiros de vídeo com menores, dentre os quais trinta (5) envolvendo menores com idades inferiores a 14 anos, em actos sexuais com adultos ou com outros menores, a masturbarem-se ou apresentado nudez total ou parcial.

31. As imagens e vídeos compilados pelo arguido não se encontram manipulados e representam crianças reais, muitas delas com idade inferior a 14 anos.

32. Muitas dessas imagens e vídeos, em número não concretamente apurado, são repetidas por se encontrarem armazenadas em diversos dispositivos ou pastas, outras são imagens/fotogramas sequenciais relativas aos mesmos menores.

33. O arguido exercia, fora do seu âmbito profissional, a carreira … do clube “…”, em ….

34. O arguido quis obter, deter, visionar, divulgar e partilhar com terceiros ficheiros de imagem e vídeo contendo menores, muitos dos quais com idades inferiores a 16 e 14 anos, com o intuito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos, ignorando e desprezando a liberdade e autodeterminação sexual das crianças retratadas naqueles ficheiros.

35. Tinha conhecimento que as referidas imagens e vídeos com conteúdo pornográfico propiciam a exploração efectiva de crianças, usadas, algures, para a realização das imagens em causa, não obstante, não se inibiu de obter, visionar, disponibilizar e ceder através da internet, e de as armazenar e deter em equipamentos informáticos que se encontravam na sua posse.

36. Sabia o arguido que não podia produzir, divulgar ou ceder imagens de menores a praticar actos sexualmente explícitos ou, por qualquer meio, partilhar com terceiros suportes pornográficos relativos a menores, no entanto, quis partilhar vários ficheiros de conteúdo pornográfico infantil, alguns dos quais envolvendo menores de 16 e 14 anos.

37. Mais actuou o arguido com o propósito de manter, como manteve, diversas conversações “online” com, pelo menos três menores, não podendo desconhecer que um deles tinha menos de 14 anos, conversas essas onde empregava termos íntimos, com conotação física/sexual, aliciando-os a exibirem-se de forma pornográfica perante a “webcam”, nomeadamente, pedindo-lhes para mostrar e tocarem nos órgãos genitais, exibindo a dois deles, sendo um menor de 14 anos, o seu próprio pénis e expondo-os a actividades sexuais.

38. Sabia o arguido que, enquanto menores, não tinham a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão, nem tão pouco capacidade para entenderem a gravidade e natureza das conversas, escritos, gravações e imagens que disponibilizavam ao arguido, por força das propostas que este lhes efectuava.

39. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Mais se provou que:

40. Após a produção da prova, o arguido admitiu genericamente os factos imputados.

41. Sujeito, a seu pedido, a perícia psiquiátrica, foram apresentadas as seguintes conclusões:

a) Se o arguido padece de algum transtorno sexual por diagnosticar?

Sim, pedofilia, embora a pornografia possa ter exercido inicialmente um efeito catártico relativamente a atos abusivos reais com crianças mas há risco de que o tenha feito ou venha a fazer.

b) Em caso afirmativo, qual o grau?

Não é possível saber em profundidade porque o examinando refere que tinha apenas desejo ocasional, mas parece-nos que está em negação e a julgar pela quantidade de ficheiros em sua posse, é uma situação grave.

c) E se tem o arguido capacidade de autodeterminação?

Sim.

d) Se é passível de tratamento médico?

Muito difícil, sobretudo se a pessoa, oculta e nega.

e) e se esse eventual tratamento o afastará de práticas futuras?

Muito pouco provável. Há perigo de repetição dos mesmos atos.

42. Do registo criminal nada consta.

43. Verbaliza vergonha e arrependimento.

44. Pela DGRSP foi elaborado relatório social do qual consta:

«AA encontra-se, desde o dia …, no Estabelecimento Prisional de …, sujeito à medida de coação de prisão preventiva, determinada nos presentes autos.

Apresenta um percurso institucional adaptado, com cumprimento das regras e normas inerentes ao Sistema Prisional. Ainda que não seja visitado, mantém o contacto com a progenitora e a irmã, ambas com residência afastada de ….

À data da prisão AA residia em …, situação que decorria desde 2019, aquando da sua colocação como … junto do estabelecimento comercial …. Residia em casa arrendada, com a única filha, desde que esta obteve colocação no …, onde estudava. A filha presenciou a respetiva detenção e busca levada a efeito no âmbito dos presentes autos e desde então não estabeleceu qualquer contacto com o progenitor.

Natural de Lisboa, AA veio a estabelecer-se com o núcleo familiar, aos seis anos, em …. A família, de modesta condição económica, dependia dos vencimentos dos progenitores, o pai, empregado no setor … e a mãe, …. Tem uma irmã ….

Refere ter partilhado um ambiente familiar harmonioso e afetivo entre os diversos elementos.

O casamento dos pais entrou em rutura há cerca de 15 anos. A progenitora manteve posterior união afetiva, terminada pelo decesso do companheiro há pouco mais de um ano. O pai faleceu em ….

AA frequentou o ensino básico em … e, em …, completou o 11º ano, na área de …, na altura não existente na sua comunidade residencial. No Estabelecimento Prisional concluiu o ensino secundário.

Cumpriu Serviço Militar em … e no Centro de Recrutamento da Força Aérea em …, durante 12 meses.

Iniciou a respetiva atividade laboral em firma de comercialização e distribuição de artigos de … a que se seguiram outras ocupações indiferenciadas e de caráter temporário. Nos últimos 18 anos enquadrou-se na empresa …, como operador de loja. Acedeu em 2017 à posição de gerente de loja e foi colocado em 2019 no posto de abastecimento da empresa, em ….

Não lhe identifica núcleo de amigos em …, mantendo distanciamento de anteriores relações de amizade, em …, em face da ocupação laboral decorrer noutras localidades. Paralelamente, e desde há mais de duas décadas mantinha ocupação como …, atividade que o gratificava.

Aos 30 anos AA encetou união de facto, a qual entrou em rutura volvidos sete anos, mercê de desentendimentos relativos à gestão dos meios económicos do casal, decorrentes de cumprimento de empréstimos contraídos com a abertura de um estabelecimento de … e a compra de eletrodomésticos destinados à habitação do casal. Desta união nasceu a sua única filha. AA manteve outros relacionamentos afetivos, sem coabitação.

Segundo o próprio, o presente processo constitui-se o único. Na base de dados do OPC local, PSP de …, não existem quaisquer outros registos de natureza criminal a envolver o arguido.

Segundo afirma, a atual posição processual envergonha-o. Refere sentir tristeza pelo facto de não ter estado à altura das expetativas que tinham de si.»

Com relevância para a causa não se provou que:

- Desde os 18 anos que o arguido detém, compila e divulga fotografias e vídeos de teor pornográfico com menores, mas apenas o que resultou provado;

- Nos ficheiros referidos em 3. dos factos provados os menores que ali figuram têm idade inferior a 16 anos;

- O facto provado sob o nº.12 diz respeito a conversas mantidas entre o arguido e menores;

- No facto provado sob o nº. 25, foi o arguido que procedeu à captura de ecrã das imagens associadas à utilizadora “…”.

V - A convicção do Tribunal:

A fundamentação da matéria de facto, por parte do tribunal consiste na “exposição quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” exigida pelo art. 374º, n. 2, do CPP.

Importa ainda considerar que toda a prova produzida na audiência de julgamento se encontra gravada. Essa gravação, permitindo a ulterior reprodução de toda a referida prova e, assim, um rigoroso controlo do modo como o Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto, legitima uma mais sucinta fundamentação desta convicção e que nos concentremos nos aspectos mais importantes em matéria de prova, tornando desnecessário tudo o que vá além disso.

A convicção do Tribunal resultou assim da conjugação das declarações produzidas em audiência com a prova pericial/documental carreada para os autos, analisada de uma forma crítica e à luz das regras da experiência comum.

Concretamente, considerou-se desde logo o teor:

- Perícia informática forense que integra os Anexos; - Relatório de fls. 5 a 18 e 24;

- Informação da NOWO de fls. 43 e 69; - O teor do CD de fls. 49;

- Informações prestadas pela Microsoft de fls. 59 a 62; - Auto de busca e apreensão de fls. 124 a 126;

- Pesquisa de palavras-passe guardadas na conta Google de fls. 131 a 137; - Auto de diligência forense em ambiente digital de fls. 138 a 148;

- Suporte óptico contendo ficheiros e imagens extraídas através dos equipamentos apreendidos ao arguido, em envelope agrafado na contracapa;

- Fotogramas de fls. 207 a 223; - Listagem de fls. 226;

- 2 DVDs contendo os ficheiros de imagem e vídeo extraídos dos equipamentos informáticos apreendidos, juntos a páginas 97 e 98 do anexo da referente à perícia forense 48T21.

Conforme se deu como provado, o arguido só prestou declarações após toda a prova produzida, admitindo genericamente o inegável, ou seja, o que resulta da apreensão dos seus aparelhos informáticos e da perícia realizada. Quanto à referência na acusação de que desde os 18 anos de idade que o arguido se dedica à detenção, compilação e partilha daquele tipo de material pornográfico, o que teve por base as declarações por ele prestadas em sede de 1º interrogatório judicial, aceitou-se o declarado pelo arguido em audiência, dado que obviamente quando o mesmo tinha 18 anos não havia internet nem acesso fácil e generalizado a imagens/vídeos com tal conteúdo.

Quanto aos demais factos em que o tribunal sentiu necessidade de fazer alguns ajustes ou correcções em relação ao que vinha descrito na acusação, da análise do CD (a fls. 49) contendo as imagens que deram origem a este processo e dos esclarecimentos prestados pelo perito da PJ, CC, verificou-se que a acusação teve por base uma leitura “cega” do relatado nos autos, sem haver preocupação de analisar o conteúdo dos ficheiros apreendidos, sendo óbvio que os mesmos ficheiros estavam alojados em diferentes suportes ou destinos (repetidos), e existem várias imagens sequenciais dos mesmos menores, ou existem ficheiros absolutamente irrelevantes.

O Inspector da PJ DD nada de relevante acrescentou em relação aos autos de busca e apreensão.

Consideraram-se ainda os esclarecimentos prestados em audiência pela perita médico-legal em relação ao relatório apresentado a fls. 402 e sgs., cujo teor sustentou de forma cabal e assertiva.

Finalmente, teve-se em consideração o teor do CRC de fls. 377 e o relatório social de fls. 396.

Quanto aos factos não provados, e como já se referiu, a prova produzida em audiência e a perícia informática não os sustentam.»

3. Da nulidade do acórdão

3.1. Da alteração não substancial dos factos e sua qualificação jurídica

Com referência à enorme redução dos factos ilícitos considerados provados pelo Tribunal recorrido, face ao número dos que a acusação imputava ao arguido/recorrente, bem assim como a alteração da sua qualificação jurídica, sem que lhe tenha sido dada oportunidade de sobre as mesmas se pronunciar, vem este suscitar a nulidade do acórdão, invocando os artigos 358.º e 379.º CPP.

Importará começar por afirmar, perentoriamente, que a questão fundamental no âmbito da alteração dos factos é a afirmação da estrutura acusatória do processo, que tem o seu objeto balizado pela acusação (ou pela pronúncia quando a houver). Quer isto dizer que a acusação (ou a pronúncia se tiver havido instrução) define e delimita o objeto do processo, fixando o thema decidendum, sendo o elemento estruturante de definição desse objeto, não podendo o Tribunal promovê-lo para além dos limites daquela, nem condenar para além desses limites, o que constitui uma consequência daquela estrutura acusatória. A isso se chama o princípio da vinculação temática do Tribunal, consubstanciando os princípios da identidade (os factos devem manter-se os mesmos, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consunção do objeto do processo penal (mesmo quando o objeto não tenha sido conhecido na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não renascer outro processo) (4). Efetivamente, um processo penal de estrutura acusatória, integrado por um princípio de investigação, como é o português, exige, para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença, sem prejuízo de se admitir que nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime possam constar da acusação, antevendo que da discussão da causa surjam factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos. Por vezes emergem circunstâncias que exigem se amplie aquele objeto, nomeadamente em decorrência do dever de investigação da verdade, que se impõe ao tribunal (artigo 340.º CPP). E é justamente essa a matéria que encontra regulação nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal. Refere a propósito Germano Marques da Silva que «por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objeto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afetada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo.» (5) Nesses casos, por razões de equidade e de lealdade processual, impostas pelo princípio da acusação e das garantias de defesa do acusado, nomeadamente de contraditório e de audiência, tem de disso mesmo se lhe dar conta, para lhe assegurar um efetivo direito de defesa (6). O que está em causa é a plenitude das garantias de defesa do arguido, tal como prevenidas no artigo 32.º, § 1.º da Constituição, no sentido de lhe permitir que se pronuncie sobre todos os factos pelos quais poderá vir a ser condenado, evitando-se, desse modo, as decisões surpresa, que surgem apenas quendo lhe não seja dada oportunidade processual para se defender, ou que, de forma razoável, não pudesse contar.

Sucede que, como vem sendo considerado pela jurisprudência – e como o Ministério Público assinala na sua resposta -, não existe no caso presente uma alteração dos factos integradora dos pressupostos do artigo 358.º CPP. Assim, porquanto, a factualidade dada como provada no acórdão consiste numa mera redução da que fora indicada na acusação, por não se terem dado como assentes todos os factos ali descritos.

O mesmo sucederia se se tratasse de uma simples alteração da descrição do contexto temporal e do ambiente físico em que a ação do arguido se desencadeou, quando o mesmo não é mais do que a reafirmação ou a ilação explícita de factos que sinteticamente já se encontravam narrados na acusação. (7)

Nesta mesma linha de pensamento afirma Paulo Pinto de Albuquerque, que «(…) só constitui alteração substancial dos factos a modificação que se reporte a factos constitutivos do crime e a factos que tenham o efeito de imputação de um crime punível com uma pena abstrata mais grave. A modificação dos restantes factos que constem da acusação ou da pronúncia constitui alteração não substancial dos factos, desde que sejam relevantes para a decisão da causa (…)» e que «(…) não há crime diverso em face da mera alteração das circunstâncias da execução do crime (incluindo o dia, hora, local, modo de execução e instrumento do crime), desde que essas circunstâncias não constituam elementos do tipo legal, nem constituam um outro facto histórico unitário (…)» (8)

Neste mesmo registo, também não será qualquer alteração da qualificação jurídica que importará a sua comunicação, só devendo ser comunicadas as alterações que sejam relevantes do ponto de vista da defesa do arguido, como já assinalado, no sentido de se lhe imputar ilícito substancialmente diverso, pois é este o espírito que preside a estes institutos processuais.

O que sucedeu no caso presente foi isto mesmo: uma redução (ainda que extensíssima) do número de atos criminosos que a acusação imputava ao arguido: de 12 254 crimes para, a final, apenas 7.

Também no que à qualificação jurídica dos factos respeita, as alterações efetuadas não redundam em condenação por ilícito substancialmente diverso ou em agravação dos que lhe estavam imputados, não havendo, pois, razão para lhe serem comunicadas essas alterações.

Em suma: não ocorreu circunstância que justificasse os reclamados incidentes processuais de alteração não substancial de factos ou de alteração da qualificação jurídica, uma vez que as alterações efetuadas em nada vulneram as garantias de defesa do arguido/recorrente.

E tanto é o bastante para julgar improcedente este fundamento do recurso.

3.1. Da nulidade da fundamentação do acórdão (374.º, § 2.º CPP)

Preceitua o § 2.º do artigo 374.º CPP que: «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.» Dispondo depois o artigo 379.º do mesmo código, que:

1 - É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; 2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º.»

De tais preceitos decorre que a sentença, que se compõe de três partes:

- relatório;

- fundamentação; e,

- dispositivo (ou decisão stricto sensu).

Na fundamentação (374.º, § 2.º CPP), procede-se à enumeração dos factos provados e não provados e à exposição dos motivos de facto e de direito que justificam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.

Isto é, na fundamentação, a sentença começará por uma descrição dos factos provados e não provados (a qual, para ser facilmente compreensível, deve obedecer à lógica de quem descreve um episódio da vida real – descrição do acontecido); seguida da exposição dos motivos de facto, com exame crítico das provas que conduziram à formação da convicção do julgador.

Dito de outro modo: produzida toda a prova na audiência de julgamento, na fase de deliberação, o Tribunal valorará os factos descritos na acusação (ou na pronúncia, havendo-a), juntamente com os que constam do pedido de indemnização civil (se tiver sido enxertado na ação penal) e da contestação (caso tenha sido oferecida pelo arguido e/ou demandado) e aqueles que resultaram da discussão da causa, tal como preceituado no artigo 368.º, § 2.º CPP.

Daqui decorrendo que a fundamentação fáctica da sentença conterá a «enumeração dos factos provados e não provados», os quais, em princípio, terão de compreender, a um ou outro título, todos os decorrentes daquela identificada origem.

Ora, enumerar os factos consiste em especificá-los (de entre os alegados pela acusação, pela defesa ou decorrentes da discussão em audiência). (9)

Distinguindo-se a enumeração dos factos provados (e não provados), como é óbvio, do exame crítico das provas.

Vem isto a propósito da constatação que o Tribunal recorrido não fez um completo exame crítico de todas as provas, limitando-se, pelo menos quanto a um seu importante segmento, a integrar estas no elenco dos «factos provados»! Como se provas e factos fossem ou pudessem ser (mais ou menos) a mesma coisa!

É o que concretamente sucede com os «factos» indicados nos pontos 40.º a 44.º.

No ponto 40.º o facto relevante seria que: «o arguido admitiu genericamente os factos de que foi acusado». Mas ao invés disso o Tribunal refere-se ao momento em que tal confissão foi efetuada! O que, a mais de irrelevante, constitui matéria do exame crítico da prova que é a «confissão».

No ponto 41.º o Tribunal descreve as perguntas e as respostas que sintetizam a prova pericial produzida. Mas não enumera os factos que essa prova demonstra, julgando-os provados ou não provados, fazendo depois, na fundamentação do decidido, o exame crítico dessa prova.

No ponto 42.º o facto provado relevante em referência («o arguido não tem antecedentes criminais») não consta! O que lá se fez constar foi o meio de prova – o registo criminal.

Também no ponto 43.º o Tribunal se escusou a avaliar a atitude do arguido. Ao invés de interpretar a atitude deste e julgar (afirmar ou não afirmar), no elenco dos factos provados, que o arguido expressou, de forma manifesta, vergonha pelos factos que praticou e mostrou arrependimento… Limitou-se a descrever o que viu e ouviu! Ficando-se sem saber qual foi o julgamento que fez disso a que assistiu!

E no ponto 44.º, onde deveria ter-se feito o elenco dos factos relativos às condições pessoais do arguido, obtidas com base no contributo dado pelo relatório social, em conjugação com o que o arguido manifestou na audiência e com as demais circunstâncias constantes dos autos, o Tribunal recorrido limitou-se a abrir aspas e transcrever o relatório social (!), relegando o juízo que lhe compete sobre esse importante segmento do julgamento para o técnico de reinserção social!

Importará recordar que o relatório social constitui uma mera «informação» (artigo 1.º, al. g) CPP), que visa habilitar o juiz na sua tarefa de escolha e graduação da medida da pena. Tal «informação» está sujeita ao escrutínio judicial, subordinado à livre apreciação do julgador.

É o Tribunal que compete fixar no acervo dos factos provados com relevância para determinação da sanção o que entender ajustado às circunstâncias do caso (10). Só ao Tribunal cabendo selecionar os factos e as circunstâncias descritas no relatório social, se e na medida em que os considerar relevantes, avaliando o que nele é dito, a fonte das informações prestadas, a credibilidade das afirmações feitas e a razoabilidade das suas conclusões.

Consideramos, pois, que o acórdão recorrido ao confundir factos com provas e ao não fazer o respetivo exame crítico, desrespeitou o disposto no § 2.º do artigo 374.º CPP, ocorrendo, assim, a nulidade prevenida na alínea a) do § 1.º do artigo 379.º do mesmo diploma legal. O suprimento dessa nulidade, com a reformulação da parte do acórdão que se considera viciada, deve ser levada a cabo pelo Tribunal que o elaborou. Os efeitos desta declaração de nulidade, de acordo com o disposto no artigo 122.º CPP, tornam inválido não apenas o ato anulado (o acórdão recorrido), mas também os que dele dependem e os que aquele possa afetar.

Restando referir que a decisão sobre a nulidade do acórdão afeta a apreciação das restantes questões suscitadas no recurso, razão pela qual se torna inútil prosseguir no seu conhecimento.

III - DISPOSITIVO Destarte e por todo o exposto decidimos declarar nulo o acórdão recorrido, por deficiente e insuficiente fundamentação, determinando que o Tribunal a quo profira novo aresto, expurgado do vício supra assinalado.

Sem tributação.

Évora, 13 de julho de 2022

J. F. Moreira das Neves (relator)

João Amaro (adjunto)

Fernanda Palma (presidente da Secção)

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 A lei preconiza que as «Conclusões» deverão ser: «Um resumo das questões discutidas na motivação» (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 1136, nota 14.); «Devem ser concisas, precisas e claras (…)» (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Do Procedimento - Marcha do Processo, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 335. Não podem constituir uma «reprodução mais ou menos fiel do corpo motivador, mas sim constituírem uma síntese essencial dos fundamentos do recurso» (Sérgio Gonçalves Poças, Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, revista Julgar n.º 10, 2010, pp. 23).

Neste exato sentido cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 1set2021, proc. 430/20.1GBSSB.E1, Des. Gomes de Sousa; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11jul2019, proc. 314/17.0GAPTL.G1, Des. Mário Silva; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5abr2019, proc. 349/17.3JDLSB.L1-9, Des. Filipa Costa Lourenço; e desse mesmo Tribunal, de 15/2/2013. Proc. 827/09.3PDAMD.L1-5, Des. Vieira Lamim.

3 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

4 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, Coimbra Editora, pp. 145.

5 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, III, 2000, pp. 273.

6 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, Lda. 1984, 1.º Vol., pp. 144 e ss.; Castanheira Neves; Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua relevância no processo penal português, pp. 240 e ss.

7 Cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 330/1997, e n.º 387/2005 in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos

8 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2011, 4.ª ed., Universidade Católica Portuguesa, pp. 44 a 47.

9 Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7jan1999, proc. n.º 1216/98; e Sérgio Poças, Da sentença penal – fundamentação de facto, revista JULGAR, n.º 3, 2007, pp. 24 ss.

10 Neste sentido cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pp. 915 (anotação ao artigo 370.º), Universidade Católica Portuguesa Editora, 2007. Na jurisprudência, por todos, cf. Ac. STJ de 14/4/1999, proc. 98P1409; e Ac. STJ de 20/10/2010, proc. 845/09.6JDLSB, www.dgsi.pt