Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
222/16.2T8EVR.E1
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
ELEMENTO SUBJECTIVO
NEGLIGÊNCIA
Data do Acordão: 06/09/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Nos termos do art. 50º nº4 da Lei nº 107/2009, de 14/9, o recurso interposto para o tribunal da relação da decisão judicial que conheceu de uma impugnação judicial de decisão administrativa, referente a uma contraordenação laboral, segue a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as especialidades que resultam da referida lei.
II. Uma das especialidades a considerar é a que resulta do art. 35º da citada lei, ou seja a impugnação judicial, incluindo o recurso para a segunda instância, tem efeito meramente devolutivo, salvo se o recorrente depositar o valor da coima e das custas do processo, ou prestar garantia bancária, na modalidade à primeira solicitação, no prazo de vinte dias, em instituição bancária aderente, a favor da autoridade administrativa competente que proferiu a decisão de aplicação da coima.
III. A imputação subjectiva do facto ao seu agente, na forma de dolo ou negligência, tem de ser encontrada perlo julgador no conjunto da factualidade consumada, com recurso às regras da experiência comum.
IV. A negligência, nas contraordenações, reside na conduta do agente ao omitir um dever de cuidado a que estava obrigado por lei.
V. Se constar da matéria de facto dada como provada que o condutor de um veículo de mercadorias, trabalhador por conta de outrem, não se fazia acompanhar do mapa de horário de trabalho, acordo de isenção de horário de trabalho ou livrete individual de controlo, é suficiente para imputar, a título de negligência, uma contraordenação à sua entidade patronal, pois a negligência está materializada nesses factos e resulta da inobservância pela entidade patronal do procedimento imposto pela lei de providenciar no sentido de que o seu trabalhador, no ato da condução, se faça acompanhar dos referidos documentos.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº222/16.2T8EVR.E1 (RCO)


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório
BB, Ldª., impugnou judicialmente a decisão da Autoridade para as Condições do Trabalho, que lhe aplicou a coima única de € 7.854,00, pela prática de três contraordenações.
As infrações consistiram no facto de o motorista CC, trabalhador da arguida/recorrente, no dia 27 de junho de 2015, pelas 3 horas e 25minutos, na estrada nacional nº 4, Vendas Novas, conduzir o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula … sem se fazer acompanhar do mapa de horário de trabalho, acordo de isenção de horário de trabalho ou livrete individual de controlo (alínea a. do nº3 do art. 14º do DL nº237/2007, de 19/6 e nº5 do art. 216 do Código do Trabalho).
A secção do trabalho da instância central da Comarca de Évora apreciou a impugnação, tendo proferido sentença negando provimento ao recurso, mantendo consequentemente a decisão recorrida.
Novamente inconformado com a decisão do tribunal de 1ª instância, a arguida interpôs recurso para este Tribunal da Relação de Évora, tendo apresentado as seguintes conclusões:
A) Em primeiro lugar, importa fazer notar que da decisão ora impugnada não constam nem resultam os elementos essenciais referentes à imputação à arguida da infração de que esta vem acusada, o que determina - como se verá - a sua invalidade e consequente inadmissibilidade.
B) Analisando a decisão condenatória que ora se impugna - a qual, repete-se, apresenta o valor de acusação logo que recebida em juízo -, facilmente se constata que a descrição dos factos imputados e a respetiva forma de imputação à arguida se revela por demais insuficiente, conforme resulta da análise e esclarecimento que na presente impugnação é feita relativamente a cada um desses factos e às circunstâncias em que os mesmos ocorreram, deficientemente apreciados pela ACT ao longo do processo.
C) Desde logo, e por outro lado, porquanto a infração contraordenacional, para ser punida, pressupõe a imputação do facto ao agente a título de dolo ou negligência.
O) Com efeito, "só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência" (cfr. art. 8º nº1 do RGCOC), ou seja, a imputação e punição dos factos contraordenacionais exigem um nexo de imputação subjetiva numa destas duas modalidades.
E) Ora, os factos vertidos na decisão/acusação e atrás descritos, não levam, de per si, ª integrar a conduta da arguida na previsão das contraordenações em causa, em termos que determinem a punibilidade da mesma, conforme resulta aliás da conduta da arguida descrita na presente impugnação.
F) Na realidade, na decisão/acusação ora impugnada são alegados tão-somente - e ainda que de forma insuficiente e deficiente - factos materiais, factos objetivos e de puro resultado, sem que sejam alegados quaisquer factos concretos tendentes a demonstrar a forma de imputação - que, aliás e conforme infra se procurará também demonstrar, não existe nem objetiva nem subjetivamente - dolosa ou negligente à arguida.
G) Factos esses que se encontram omitidos na decisão ora impugnada.
H) Com efeito, apesar do seu carácter meramente social, a censura ou advertência visada pelas normas com base nas quais aquela Inspeção pretende sustentar a prática das infrações em causa supõe sempre e também uma imputação subjetiva.
I) Ora, para que a arguida pudesse ser submetida a julgamento - e neste viesse a ser condenada ou absolvida, assim se fazendo justiça - seria necessária a prova, para além dos factos referidos na decisão/acusação, que a arguida tivesse pretendido ou representado como possível a realização do facto integrador das contraordenações e, não obstante, tivesse atuado sem o cuidado e diligência a que está obrigada, o que, sempre se dirá, não sucedeu no caso.
J) Esta seria, pois, a situação que, em termos fácticos, teria de ser alegada e provada por forma a configurar - pelo menos - a negligência.
K) A qual foi, todavia, omitida na decisão/acusação
L) Ao invés, a decisão ora impugnada apenas faz referência ao resultado, fazendo assentar a imputação da arguida no que ao nexo de subjetividade respeita em meros conceitos de direito, vagos e não consubstanciados em factos - que a decisão/acusação não descreve nem prova.
M) O direito contraordenacional não se basta, porém, com a mera responsabilidade objetiva - a qual, conforme infra se procurará demonstrar, é inexistente no caso em apreço, antes assentando no primado da culpa do arguido.
N) Na decisão/acusação faltam assim elementos essenciais - o dolo ou a negligência para a verificação da contraordenações imputadas à arguida.
O) Pelo que, não resulta das mesmas - do modo como estão deduzidas - a imputação à arguida de todos os elementos constitutivos do tipo legal das contraordenações por que está acusada, e necessários para, em sede de julgamento, vir a ser aplicada à mesma uma coima.
P) Acresce ainda que - diversamente do que acontece em sede de Processo Civil - em Processo Penal não há lugar a qualquer despacho de convite ao aperfeiçoamento da acusação.
Q) Nestes termos, e pelos fundamentos supra expostos, a acusação/decisão ora impugnada deverá ser rejeitada por V. Exa., Meritíssimo Juiz, e, em consequência, ser determinado o oportuno arquivamento dos autos."
R) Para fundamentar a atuação da arguida, designadamente, no preenchimento do elemento subjetivo, consta singelamente da sentença o seguinte:
S) Ora, a arguida, ora recorrente, fez de tudo ao seu alcance para que tal infração não tivesse sido cometida pelo seu motorista.
T) Pois, deu-lhe formação antes de o mesmo entrar ao seu serviço, como dá a todos os seus trabalhadores motoristas - facto que não foi apreendido pelo tribunal - razão pela qual o certificado de formação tem a data anterior ao contrato de trabalho.
U) É falso que a recorrente não tenha justificado a omissão do mapa de horário de trabalho, acordo de isenção de horário de trabalho ou livrete individual de controlo.
V) Assim como é falso que a ora recorrente solicitou a autenticação do livrete individual de controlo do trabalhador em 10 de julho de 2015.
W) Por outro lado, ficou provado que a ora recorrente deu formação ao seu motorista Albano José de Almeida Silva, aliás conforme ficou provado na sentença.
X) Razão pela qual, não se entende a imputação que é feita à ora recorrente.
Y) Além de que não existe qualquer declaração não verdadeira junto aos autos, no que toca à admissão do trabalhador em questão e também à formação que lhe foi ministrada, já que os documentos juntos aos autos demonstram a realidade de tais factos e foram observados por este órgão jurisdicional.
Z) A ora recorrente elaborou o mapa de horário de trabalho, como aliás faz sempre, assim como sempre deu e dá formação aos seus trabalhadores nesse sentido, respeitando todas as normas legais.
AA) Tendo feito de tudo para evitar que a infração fosse cometida pelo seu motorista.
BB) Primeiro, qual foi o facto concreto que permitiu ao tribunal considerar que a arguida não agiu com o cuidado que lhe era exigido? Não se sabe!
CC) Tal omissão de pronúncia, nos termos das combinadas disposições dos arts. 374° nº 2 e 379° al. c) e 410° nº2 al. c), com a consequência expressamente prevista no nº 1 do art° 122° do C.P.P., nos termos do art. 428 e 438 do C.P., obriga ao reenvio do processo para realização de novo julgamento.
DD) O acórdão enferma de erro notório grosseiro na apreciação da prova, art. 410° nº 2 al. a) e c) do CPP.
EE) O acórdão enferma da nulidade prevista no art. 379°-1-a) e c) do CPP por omissão de pronúncia e ausência quanto a pontos essenciais de exame crítico das provas que serviam para formar a convicção do tribunal art. 374°-2 do C.P.P.
Considerando que do processo constam todos os elementos de prova e que deverá ser dada como provada nova matéria de facto, deverá a decisão da 1ª Instância ser modificada como acima explicitado, o que se requer, nos termos do art. 431.° do Código de Processo Penal.

Por despacho de 04/04/2016, o recurso foi admitido na 1.ª instância, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
No que diz respeito ao efeito do recurso, prescreve o artigo 50.º, n.º 4, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, que o mesmo segue a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as especialidades que resultam da lei.
O art. 35.º, da referida Lei, com a epígrafe “Efeitos da impugnação judicial”, dispõe nos seus nº1 e 2:
1 - A impugnação judicial tem efeito meramente devolutivo.
2 - A impugnação judicial tem efeito suspensivo se o recorrente depositar o valor da coima e das custas do processo, no prazo referido no n.º 2 do artigo 33.º, em instituição bancária aderente, a favor da autoridade administrativa competente que proferiu a decisão de aplicação da coima.
Uma vez que a recorrente não prestou caução para obter o efeito suspensivo do recurso, nos termos do nº2 da disposição legal citada, o mesmo tem efeito meramente devolutivo, como já se deixou consignado no exame preliminar.

O Magistrado do Ministério Público na 1ª instância apresentou a sua resposta, tendo sintetizado a sua posição nos seguintes pontos:
a) Subscreve-se na íntegra o teor da douta decisão recorrida;
b) Muitas das conclusões da recorrente mostram-se repetidas ou “desdobradas”, sendo as questões que verdadeiramente relevam para a decisão, bem mais simples do que se faz parecer;
c) Os factos provados, essenciais ou de relevo, pelos quais a recorrente foi condenada mostram-se evidentes e resumem-se no seguinte: no dia 27 de junho de 2015, na EN 4, em Vendas Novas, pelas 03h e 25m, permitiu que o seu motorista CC conduzisse a viatura ligeira de passageiros 45-BZ-83 sem se fazer acompanhar do livrete individual de condutor, sem se fazer acompanhar do mapa de horário de trabalho ou do acordo de isenção de horário de trabalho….
A arguida apenas solicitou a aprovação do livrete individual de trabalho em 10 de julho de 2015 ao que acresce a discrepância de datas que apresenta o motorista (na SS) como admitido apenas no início de Julho de 2015…
Também se refere expressamente na decisão inicial e tal é mantido na sentença recorrida que a punição decorreu de negligência, óbvia, porque para tanto basta «que o agente omita ou se demita do exercício dos seus deveres/prorrogativas». O elemento subjetivo da infração está plasmada dos factos provados onde fica o sentido necessário/forçoso/básico, da negligência, que é sempre punida – art.º 550.º do CT.
d) E sendo, entre outros, alguns dos factos e circunstâncias que interessam para a decisão da causa, e que constam ou estiveram presentes na decisão recorrida, o seu significado e importância ganha luz e maior claridade se se atentar, em que o recorrente continua a não atacar diretamente esta realidade, antes a contorna com considerações e divagações teóricas ou puramente especulativas, sem nada de palpável lhes contrapor.
e) Não se mostra que a recorrente tenha sido condenada a título de dolo pelo que não lhe assiste razão quanto à conclusão L).
f) Porque extensas e repetitivas, apenas se acentua a discordância quanto ao teor das conclusões S) e W), por contrariarem os factos provados e o seu sentido/significado.

Neste Tribunal, a Exma. Procurador-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de se determinar a anulação da decisão e a repetição do julgamento, para apuramento do elemento subjetivo da infração em causa, para que após repetição da prova, da matéria de facto provada passe a constar expressamente se a arguida agiu dolosamente ou de modo negligente.
O processo, acompanhado do projeto de acórdão, foi aos vistos dos Ex.mos Desembargador Presidente da Secção e Desembargador Adjunto, pelo que cumpre apreciar e decidir:

II. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões que a recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo de deverem ser apreciadas as questões que sejam de conhecimento oficioso:
As questões suscitadas são as seguintes:
1. Saber se a sentença recorrida enferma das nulidades previstas no art. 379º nº1 alíneas a) e c) do Código de Processo Penal;
2. Saber se a sentença recorrida padece dos vícios previstos no art. 410º nº2 alíneas a) e c) do Código de Processo Penal.

III. O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1 - A arguida dedica-se à atividade de transportes rodoviários de mercadorias.
2 - A arguida apresentou um volume de negócios de € 7.688.331,00 no ano de 2014.
3 - No decurso de ação de fiscalização no dia 27 de junho de 2015, pelas 3 horas e 25 minutos, na estrada nacional nº 4, Vendas Novas, foi verificado que CC conduzia o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula … sem se fazer acompanhar do mapa de horário de trabalho, acordo de isenção de horário de trabalho ou livrete individual de controlo.
4 - CC era trabalhador da arguida e iniciou funções na arguida em 15 de junho de 2015.
5 - A arguida solicitou a autenticação do livrete individual de controlo do trabalhador em 10 de julho de 2015.
6 - A arguida foi condenada pela prática da infração à alínea b) do nº 1 do art°. 25° da Lei nº 27/2010 de 30 de Agosto, em 25. 7. 2014, processo 161400363.
7 - A arguida entregou o manual de formação de motoristas ao trabalhador e deu-lhe formação.
8 - A formação aos motoristas é ministrada por DD.
9 - O motorista CC frequentou em 13 de maio de 2015 uma ação de formação sobre tempos de condução/repouso; tacógrafos e livrete individual de controlo; e cargas, descargas e respetivos pesos tendo obtido a classificação final de BOM, ministrada pela DD.
Não se provaram para além dos factos descritos quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente que à data da ação de fiscalização a arguida tivesse entregado ao motorista o livrete individual de controlo.

IV- Fundamentação
1. As alegadas nulidades da sentença.
A recorrente defende que a sentença recorrida enferma das nulidades previstas no art. 379º nº1 alíneas a) e c) do Código de Processo Penal.
A referida disposição legal refere:
1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
A recorrente para fundamentar a nulidade da sentença ataca a mesma em duas vertentes, sustentando existência de omissão de pronúncia e ausência de exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Quanto à omissão de pronúncia a recorrente, na sequência da sua estratégia de defesa, argumenta que o tribunal não indicou qual foi o facto concreto que lhe permitiu considerar que a arguida não agiu com o cuidado que lhe era exigido.
Trata-se de uma argumentação que questiona a existência do elemento subjetivo, ou seja a negligência da arguida.
Esta questão da imputação subjetiva, em sede de direito contraordenacional, tem suscitado algumas dúvidas apesar do tratamento doutrinal de que tem sido alvo.
No preâmbulo do DL nº433/82, de 27/10, começa logo por se afirmar que o aparecimento do direito das contraordenações ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua ação conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc.
Afirma-se que a necessidade de dar consistência prática às injunções normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as em regras efetivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de sanções.
Reconhece-se que o caminho a seguir não pode passar pelo alargamento da intervenção do direito criminal, sob pena de se assistir à sua degradação e à perda irreparável da sua força de persuasão e prevenção, no que toca à criminalidade mais grave.
Faz-se eco do consenso que existe de que o direito criminal deve apenas ser utilizado como a última ratio da política criminal, destinada a punir as ofensas intoleráveis aos valores ou interesses fundamentais à convivência humana, não sendo lícito recorrer a ele para sancionar infrações de não comprovada dignidade penal.
Por fim, quanto à distinção entre crime e contraordenação frisa-se que aquelas duas categorias de ilícito tendem a extremar-se, quer pela natureza dos respetivos bens jurídicos quer pela desigual ressonância ética, sendo certo que em última instância a distinção terá de ser jurídico-pragmática e, por isso, também necessariamente formal.
O professor Eduardo Correia escreveu “a contraordenação é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico”.
O professor Jorge Figueiredo Dias assinala como critério para distinção entre crimes e contraordenações a neutralidade ética da conduta que integra o ilícito de mera ordenação social, por contraposição ao desvalor da conduta que integra o ilícito penal, indiferença ética que se situa necessariamente ao nível da conduta e não ao nível do ilícito.
O Código do Trabalho, no seu art. 548º, na senda do Decreto-Lei nº 433/82, de 27/10, acolhe um critério formal para distinguir crime de contraordenação, ao definir contraordenação laboral como o facto típico, ilícito e censurável que consubstancie a violação de uma norma que consagre direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito de relação laboral e que seja punível com coima.
Por seu turno, o art. 550º, do mesmo diploma legal, estatui que a negligência nas contraordenações laborais é sempre punível.
Em sede de direito criminal qualquer condenação tem de fundamentar-se num prévio juízo de censura ético-penal que deriva de uma conduta culposa do agente seja ela dolosa ou negligente, esta última só nos casos expressamente previstos na lei.
No ilícito contraordenacional a culpa funda-se na violação de certo procedimento que uma norma determinada impõe ao agente, decorrendo a negligência da imputação dessa conduta.
Esta diferença tem repercussões a nível processual, não se justificando que sejam aplicáveis ao processo contraordenacional todos os princípios que orientam o direito processual penal.
O processo contraordenacional tem uma natureza mista sendo constituído por uma fase administrativa e uma fase judicial.
Nos termos do art. 37º da Lei 107/2009, de 14 de setembro, a remessa pelo Ministério Público dos autos de contraordenação a juízo equivale à acusação, daí que qualquer omissão no auto de notícia ou até na decisão administrativa seja irrelevante, se os elementos visados constarem dos autos.
O elemento subjetivo nas contraordenações, fora os casos de dolo, materializa-se na factualidade imputada ao agente a quem incumbia observar determinado procedimento.
No caso concreto dos autos ficou provado que no dia 27 de Junho de 2015, pelas 3 horas e 25 minutos, na Estrada Nacional nº 4, Vendas Novas, foi verificado pela ACT que CC, trabalhador da arguida desde 15/06/2015, conduzia o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula …, sem se fazer acompanhar do mapa de horário de trabalho, acordo de isenção de horário de trabalho ou livrete individual de controlo.
Ficou ainda provado que a arguida solicitou a autenticação do livrete individual de controlo do trabalhador em 10 de Julho de 2015.
Esta factualidade tem a consistência suficiente para imputar à arguida as referidas contraordenações a título de negligência, pois versam sobre violação de disposições legais que a arguida, na qualidade de entidade patronal, deveria ter observado e que são sancionadas.
No plano dos princípios refira-se o disposto no art. 13º da Lei nº27/2010, de 30 de agosto, que refere que a empresa é responsável por qualquer infração cometida pelo condutor, ainda que fora do território nacional, responsabilidade que só é excluída se demonstrar que organizou o tempo de trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o regulamento (CEE) nº 3821/85, do Conselho, de 20 de dezembro, e no capítulo II do regulamento (CE) nº 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março.
Também o art. 551º nº1 do Código do Trabalho estabelece o principio geral de que o empregador é o responsável pelas contraordenações laborais, ainda que praticadas pelos seus trabalhadores no exercício das respetivas funções, sem prejuízo da responsabilidade cometida por lei a outros sujeitos.
No que diz respeito à alegada ausência de exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal importa referir que o tribunal recorrido fundamentou a decisão proferida sobre a matéria de facto de forma sucinta, mas não deixando de dar conta dos aspetos cruciais da apreciação que fez da prova, justificando as opções tomadas.
Vejamos a fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto:
A convicção do tribunal baseou-se no auto de notícia, no depoimento da autuante e no depoimento da testemunha da arguida ouvida em audiência de julgamento que confirmou a formação dada aos motoristas. No mais o depoimento do EE não pode ser valorado positivamente pois a testemunha disse que entregou o livrete de controlo ao motorista e este deve-se ter esquecido dele em casa, mas como se àquela data ainda não tinha sido solicitada a autenticação do livrete o que só ocorreu em 10 de Julho.
Acresce que existe discrepância de datas quanto à comunicação de admissão do trabalhador feita à Segurança Social em 2. 7. 215 e a data em que supostamente o motorista teve formação, 13 de Maio de 2015, do confronto destes documentos resulta que existe uma declaração não verdadeira ou a da data da admissão do trabalhador ou a da formação que lhe foi ministrada e que têm consequências negativas para o trabalhador, designadamente não só na contagem da sua antiguidade e tempo de serviço, como inviabilizadora de se apurar qual a data concreta em que começou a trabalhar para a arguida com a inerente falta de descontos para a Segurança Social.
O tribunal teve ainda em consideração os documentos dos autos.
Perante esta fundamentação é difícil sustentar, como faz a recorrente, que existe uma ausência, quanto a pontos essenciais, de exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A recorrente pode discordar da decisão proferida sobre a matéria de facto, por ter outro entendimento, mas quanto a isso temos de ter sempre presente, como já se referiu que no nosso sistema processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova.
Pelo exposto, conclui-se que a sentença recorrida não enferma das invocadas nulidades de omissão de pronúncia e falta de exame crítico das provas.

2. Os alegados vícios da decisão recorrida.
Nos termos do art. 51º nº1 da Lei nº 107/2009, de 14 de setembro a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
Assim, teremos de ter em conta a matéria de facto dada como provada na 1ª instância, sem prejuízo de se apreciar os invocados vícios previstos no art. 410º nº2 alíneas a) e c) do Código de Processo Penal (CPP), por ser matéria de conhecimento oficioso.
Começando pelo vício previsto no art. 410º nº2 alíneas a) do CPP, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, importa referir que este vício consiste na insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, tornando-se necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. É necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Como se refere no Acórdão do STJ, de 13/2/91, AJ, nºs 15/16, pág. 7, este vício traduz-se na insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, que não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, coisa bem diferente.
Como referem M. Simas Santos e M. Leal- Henriques, in Código de Processo Penal anotado, II Vol. pág. 737, ocorre este vício quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
O STJ, no seu acórdão de 2/6/99, proc. nº. 288/99, sintetiza a questão no sentido de que a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação; no cumprimento do dever de descoberta da verdade material, que lhe é imposto pelo normativo do art. 340º, do CPP, o tribunal podia e devia ter ido mais longe; não o tendo feito, ficaram por investigar factos essenciais, cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa. Os factos que ficaram por apurar têm, portanto, de ser factos que, num juízo de prognose, se admita virem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis e que, vindo a ser provados, determinarão ou a alteração da qualificação jurídica da matéria de facto ou da medida da pena ou de ambas.
A recorrente para defender a existência deste vício alegou que da matéria de facto dada como provada não resulta que a arguida, ora recorrente, tenha agido com dolo ou negligência.
Na sua perspetiva, para lhe poderem ser imputadas as contraordenações em causa seria necessário ficar demonstrado que tivesse pretendido ou representado como possível a realização do facto integrador das contraordenações e, não obstante, tivesse atuado sem o cuidado e diligência a que está obrigada, o que não sucedeu.
Esta questão já foi apreciada detalhadamente a propósito da alegada nulidade da omissão de pronúncia.
Como aí se referiu, o elemento subjetivo nas contraordenações, fora os casos de dolo, materializa-se na factualidade imputada ao agente a quem incumbia observar determinado procedimento, e a factualidade dada como provada tem a consistência suficiente para imputar à arguida as referidas contraordenações, a título de negligência, pois versam sobre violação de disposições legais que na qualidade de entidade patronal deveria ter observado.
Ao contrário do defendido pela recorrente não se verifica que a decisão recorrida esteja afetada pelo vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
No que diz respeito ao vício previsto no art. 410º nº2 alíneas c) do CPP permite-se que o recurso tenha por fundamento o erro notório na apreciação da prova, desde que o vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal /III/341, defende que erro na apreciação da prova é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques – Recursos em Processo Penal/ 4ª edição/74, defendem que o erro na apreciação da prova consiste na falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se deu como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.
Os mesmos autores agora no seu Código de Processo Penal anotado/ II/ 740, defendem que quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro.
É também esta a posição do STJ que no Acórdão de 9/12/98 / BMJ 482/68, defende que não padece desse vício a decisão que, examinada na sua globalidade, assenta em premissas que se harmonizam entre si, segundo um raciocínio lógico e coerente e de acordo com as regras da experiência comum.
O Supremo Tribunal de Justiça também perfilha a tese de que o erro notório tem lugar quando os julgadores deram como verificado algo que é patente não poder ser e cujo erro é logo detetável e percecionável por um observador comum (Ac. STJ de 27/4/94, CJ 1994/II/199.
No nosso sistema processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127º do CPP, que estatui “ salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Assim, e como referem Simas Santos e Leal- Henriques na primeira obra citada, jamais poderá incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efetuar à forma como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no art. 127º.
Entende também assim o Supremo Tribunal de Justiça que, no seu Acórdão de 19/9/90, BMJ /399/260, defendeu não se verificar erro notório na apreciação da prova se a discordância resulta da forma como o Tribunal teria apreciado a prova produzida.
As razões invocadas pela recorrente para sustentar a existência de erro notório na apreciação da prova, nomeadamente nas alíneas U), V), Y e Z, das suas conclusões, consubstanciam apenas uma mera discordância acerca da forma como o tribunal de primeira instância apreciou a prova produzida.
Pelo exposto facilmente se conclui que o alegado pela recorrente não integra o referido vício pois a sentença recorrida não padece de falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si.

V. Pelo exposto acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto, confirmando, em consequência, a sentença recorrida.

(Documento elaborado e integralmente revisto pelo relator, que assina e rubrica as restantes folhas -art. 94 nº2 do CPP).

Custas a cargo da recorrente, fixando-se a Taxa de Justiça em três UC.
Évora, 9/06/2016
Joaquim António Chambel Mourisco (Relator)
José António Santos Feteira