Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
53/10.3GDFTR.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 07/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: A «pedra de toque» da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida.
Decisão Texto Integral:
Processo nº 53/10.3GBFTR.E1

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
No Processo Comum nº 53/10.3GBFTR, por sentença da Exmª Juiz do Tribunal Judicial de Fronteira, proferida em 26/1/12, foi decidido:
a) condenar o arguido A pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
b) suspender na sua execução a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão aplicada ao arguido A pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, com a condição de pagar, à assistente B, a quantia de 2.000€ - respeitante ao pedido cível -, pagamento a efectuar em 4 (quatro) prestações de 500€ (quinhentos euros), de 3 em 3 meses, a contar do trânsito em julgado da presente sentença, devendo, ainda, o arguido comprovar, nos autos, no prazo de 10 dias a contar do termo dos supras indicados prazos, o pagamento à assistente dos referidos montantes, e com a condição de frequentar sessões de reflexão sobre a problemática da violência doméstica e da igualdade de género, realizadas na DGRS;
c) julgar parcialmente procedente o pedido civil deduzido pela assistente B e, em consequência, condenar o arguido A no pagamento da quantia de 2.000€ a título de danos não patrimoniais, absolvendo-se do restante peticionado;
Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:
1. O arguido e a assistente B viveram em união de facto a partir de 1988.
2. A 18.08.1995 casaram-se, tendo ambos duas filhas, C, nascida a 16.03.1994, e D, nascida a 30.03.2000.
3. Em data não concretamente apurada mas anterior a Setembro de 2009, na sequência de uma discussão entre o casal, o arguido desferiu uma bofetada na assistente, causando-lhe dor.
4. Em data não concretamente apurada de Setembro de 2009, após mais uma discussão, o arguido apertou o pescoço da assistente, o que lhe causou “nódoas negras”.
5. A partir de Janeiro de 2010, o arguido passou a dirigir à assistente, as seguintes expressões: “puta”, “bêbeda” e “porca”.
6. Cerca das 11h30m do dia 13.07.2010, no interior da residência de ambos, sita na Rua Entre Muros, em Alter do Chão, e na presença da filha mais nova, então com 10 anos de idade, após outra discussão, o arguido desferiu uma bofetada na face direita da assistente, depois empurrou-a contra uma máquina de costura e disse-lhe “vou limpar-te o sebo, pois não me importo de voltar para a prisão”, chamando-a, ainda mais uma vez, de “puta”, “bêbeda” e “porca”.
7. Com resultado do descrito em 6., a assistente ficou com dores e edema na face e equimose de cerca de 15 mm na face posterior do cotovelo esquerdo.
8. Tais lesões determinaram para a assistente, de forma directa e necessária, 4 dias de doença, com 1 dia de afectação da capacidade de trabalho geral e 2 dias de afectação para o trabalho profissional.
9. O descrito em 4, 5 e 6 ocorreu na presença da filha mais nova do casal.
10. O arguido e a assistente encontram-se divorciados desde 07.12.2010 e vivem separados desde Março de 2010.
11. Ao agir da forma relatada, quis o arguido, de forma reiterada e permanente, infligir agressões físicas e psíquicas à assistente, visando atingir a sua integridade física e psíquica e, bem assim, a sua dignidade e consideração enquanto ser humano, o que logrou.
12. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que, ao agir de tal forma, insultava a assistente e lhe provocava dores e lesões, ofendendo assim o seu corpo e a sua saúde e que tal conduta o faria incorrer em responsabilidade criminal.
13. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
14. Em consequência da conduta do arguido, a assistente sentiu-se sozinha, humilhada, triste, ansiosa, nervosa e com medo da actuação do arguido.
15. Tendo sido medicada com anti-depressivos.
16. O arguido explora um café, de cuja actividade não aufere salário, retirando, dessa exploração, 260€ para pagar a renda do referido café, bem como quantias não determinadas para proceder ao pagamento das despesas da filha mais velha.
17. Vive com a companheira, que trabalha na Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial, e aufere pelo menos o salário mínimo nacional, em casa arrendada, sendo esta quem paga a renda da casa no valor de 100€.
18. Tem dois filhos maiores e duas filhas, de 17 e 13 anos, estando a de 17 anos a seu cargo, embora durma em casa da avó paterna.
19. O arguido foi condenado, no processo comum colectivo n.º 97/96 do Tribunal de Círculo de Portalegre (51/99 do Tribunal Judicial de Fronteira), por decisão de 20.11.1997, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática do crime de abuso sexual e maus tratos ou sobrecarga a menores, praticado em 1994/1995.
20. O arguido foi condenado, no processo comum colectivo n.º 128/01.0TAFTR do Tribunal Judicial de Fronteira, por decisão de 29.01.2004, transitada em julgado em 13.02.2004, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 3€, pela prática do crime de receptação, praticado em 30.11.2001.
21. O arguido é considerado, pela comunidade onde reside, como uma pessoa responsável, trabalhadora e cumpridora das suas obrigações.
A mesma sentença julgou o seguinte facto não provado:
I. Em meados do mês de Junho ou Julho de 2010, o arguido declarou, na presença de vários clientes do café explorado pelo casal e conhecidos da assistente, denominado a “Toca do Coelho”, sito na Av. do Outeiro, n.º 8, em Alter do Chão, que se a assistente não fizesse “um tratamento à bebida, peço o divórcio”, o que, por não corresponder à verdade, causou à assistente profunda tristeza, grande perda de peso e sintomas de depressão que a levaram a ter de ser medicada com anti-depressivos.
Da sentença proferida o arguido e demandado interpôs recurso devidamente motivado, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. O arguido impugna a matéria de facto considerada provada pelo douto Tribunal a quo.
2. Considera o arguido não ter resultado provado que a menor sua filha tivesse assistido aos factos que lhe são imputados, sendo bastante conclusiva a referência feita à presença da menor, sem se esclarecer outros pormenores relevantes para o agravamento da conduta, nomeadamente a que distância se encontrava a mesma do arguido e assistente, e se efectivamente viu qualquer acto de agressão.
3. A matéria provada nos pontos 1 a 10 da douta sentença condenatória é insuficiente para condenar o arguido pelo mencionado crime.
4. Os pontos 3, 4 e 5 da douta sentença condenatória são vagos e indefinidos incapazes de sustentarem a decisão alcançada.
5. Não resultou provado o dolo específico do arguido, ou que o mesmo tenha actuado com vontade de praticar a conduta que lhe é imputada e o seu resultado na integridade física da assistente.
6. A prova foi valorada de modo incorrecto.
7. Sem prescindir do que se adiantou, não ocorreu qualquer lesão grave da integridade física da vítima.
8 A assistente não estava particularmente exposta à actuação do arguido uma vez que este à data dos factos explorava um café na localidade onde residiam, apenas regressando a casa de noite.
9. Face ao que se disse supra, condenando o arguido na prática do crime de violência doméstica agravada incorreu o douto Tribunal a quo em ilegalidade, violando os artigos 152º do Código Penal, por erro notório na apreciação da prova, erro consagrado no nº 2 al. c) do artigo 412º CPP.
10. Estribando-se o douto Tribunal a quo, de modo quase exclusivo, nos depoimentos da assistente e da filha menor, os quais são manifestamente parciais e interessados na condenação do arguido, violou o respeitoso Tribunal o direito ao contraditório e defesa do arguido.
11. Salvo o devido respeito, o respeitoso Tribunal a quo fez uma apreciação pouco exigente dos depoimentos da assistente e da filha menor.
12. Não foi valorado o depoimento da filha mais velha do casal, o qual foi objectivo, directo e sincero, mostrando uma realidade distinta.
13. Admitindo provada a matéria de facto constante do ponto nº 6, o douto Tribunal a quo deveria ter alterado a qualificação jurídica dos factos, para um crime de ofensas à integridade física simples, pelo qual seria eventualmente condenado o arguido, absolvendo-o do crime de violência doméstica por ausência dos seus elementos típicos.
14. Quanto à medida da indemnização, salvo o devido respeito o Tribunal apenas indica valorar os danos das assistente em 2.000,00€ com recurso à equidade, sem deixar claro o critério que presidiu à sua orientação, sabendo que o arguido não aufere salário mensal e reside com uma companheira que aufere o salário mínimo nacional do qual paga renda da casa e as restantes despesas domésticas.
15. Considera, em síntese, o arguido que o respeitoso Tribunal de 1ª instancia violou, com a decisão alcançada os artigos 152º nº 1 al. a) e nº 2 do Código Penal e 124º do Código de Processo penal, porquanto a matéria de facto consolidada não é suficiente para a condenação imaculada.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser o arguido absolvido do crime de violência doméstica de que vem acusado e do pedido de indemnização civil que lhe está acoplado.
O MP respondeu à motivação do recorrente, formulando, por seu turno, as seguintes conclusões:
1 - O arguido A veio recorrer da sentença proferida no âmbito dos presentes autos, pela qual foi condenado, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal, invocando matéria de facto e de direito, por considerar a matéria de facto provada como insuficiente para sustentar a douta sentença condenatória.
2 - A factualidade descrita nos pontos n.º s 1 a 10 da matéria de facto provada, não teve somente como base os depoimentos da assistente e da menor D, mas fundou-se ainda noutros depoimentos, como o de E, no depoimento de F e no teor do relatório de perícia médico-legal e na documentação clínica junta aos autos.
3 - A existência de lesões decorrentes de agressão encontram-se comprovadas pela documentação clínica e exame pericial já referidos, pelo depoimento da testemunha F, que viu lesões na assistente e de D, que assistiu ao episódio que deu origem às mesmas.
4- Estas lesões, embora sem sequelas permanentes, não deixam de em si mesmas ser graves por implicarem maus tratos físicos, que tiveram lugar no domicílio da vítima e na presença da filha menor e foi perpetrada pelo marido ora arguido.
5- Ficou igualmente comprovado que a menor D, à data dos factos com 10 anos de idade, assistiu aos factos porquanto residia na mesma casa que os progenitores e assistiu a várias discussões entre ambos, tendo relatado que presenciou conflitos entre os progenitores e explicado que até chegou mesmo a interpor-se entre ambos na tentativa de pôr termo às discussões, o que se coaduna com o teor do depoimento de outro membro da família, E, que transmitiu também o ambiente conflituoso em que a assistente vivia em casa e aquilo de que tomou conhecimento através da mãe de ambas, entretanto falecida, que lhe tinha relatado outros episódios igualmente problemáticos.
6 – A douta sentença recorrida considerou o depoimento da filha menor, D, "simples e objectivo e com conhecimento directo dos factos, por tê-los presenciado." e considerou que "a testemunha C, filha do arguido e da assistente, que se encontra de relações cortadas com a mãe, e manteve um depoimento claramente parcial em defesa do arguido, negou ter assistido a qualquer dos factos descritos na acusação, reforçando, mesmo quando a pergunta não incidia em tal matéria, que os problemas familiares se deviam ao facto de a assistente ter um problema de alcoolismo", o que se considera correcto, uma vez que a filha maior de idade da assistente, se encontra de relações cortadas com a progenitora e tem mais contacto com o pai, e foi o único elemento da família que, embora admitindo ter havido discussões e ter confirmado as expressões insultuosas que o arguido dirigia com frequência à assistente, veio defender nunca ter presenciado agressões e ainda que os conflitos se deviam a problemas de alcoolismo da mãe, o que de todo não é consentâneo com a restante prova testemunhal produzida.
7 – No caso concreto, foram considerados provados episódios de agressões (factos provados n.º s 3, 4, 6 a 8), insultos (factos provados n.º s 5, 6), discussões (factos provados n.º s 3, 4), tendo-se a assistente, em consequência, e para além das lesões físicas sofridas, sentido "sozinha, humilhada, triste, ansiosa, nervosa e com medo da actuação do arguido" (facto provado n.º 14) e ainda "tendo sido medicada com anti-depressivos" (facto provado n.º 15), pelo que, tendo em consideração tais factos, e que a degradação da vida conjugal se iniciou, pelo menos, em meados de 2009, até Julho de 2010, consubstanciando assim uma conduta reiterada, não restam dúvidas acerca do preenchimento do elemento objectivo.
8- A prova dos elementos subjectivos do crime resultou das regras de experiência comum e mediante presunções naturais decorrentes dos factos objectivos dados como provados, visto que, o arguido, ao actuar da forma como ficou provado que actuou relativamente à assistente, sabia que a molestava física e psiquicamente, não ignorando que as suas acções consubstanciavam maus tratos, e sabia ainda que estava na presença da filha menor e no domicílio da vítima, pelo que também do ponto de vista do elemento subjectivo o tipo se mostra preenchido.
9- Por conseguinte, a douta sentença recorrida, ao valorar a prova produzida da forma como valorou e ao condenar o arguido com base na factualidade considerada provada, não violou qualquer normativo legal, tendo aplicado correctamente o direito aos factos, tal qual estes ocorreram.
Assim, deverá ser julgado improcedente o recurso interposto e mantida a decisão recorrida.
O recurso interposto foi admitido pela Exmª Juiz «a quo», com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito suspensivo.
Pela Digna Procuradora-Geral Adjunta junto desta Relação foi emitido parecer sobre o mérito do recurso, pugnando pela respectiva improcedência.
O parecer emitido foi notificado ao recorrente e à assistente, para sobre ele se pronunciarem, nada tendo um ou outro respondido.
Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.
A sindicância da sentença recorrida, que transparece das conclusões do recorrente, desdobra-se nas seguintes questões:
a) Arguição do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no art. 410º nº 2 al. c) do CPP (por manifesto lapso, o recorrente, nas suas conclusões, invoca a este propósito o art. 410º nº 2 al. c) do CPP);
b) Impugnação da matéria de facto;
c) Discordância do enquadramento jurídico-criminal dos factos;
d) Impugnação da determinação do montante da indemnização arbitrada à assistente e demandante:
O nº 2 do art. 410º do CPP dispõe, na parte que pode interessar ao ajuizamento da arguição de vício feita pelo recorrente:
Mesmo nos casos em que a lei restringir a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) …;
b) …;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Para os efeitos previstos no normativo transcrito, o erro notório na apreciação da prova é aquele que é perceptível aos olhos de toda e qualquer pessoa, mesmo não dotada de conhecimentos específicos e que ocorre quando se torna evidente que a conclusão a extrair pelo julgador de determinado meio de prova ou conjunto de meios de prova não podia ser aquela que ele efectivamente extraiu.
Nesta conformidade, o vício a que nos referimos configura-se como uma verdadeira oposição lógica entre a prova e a decisão, não podendo ser confundido com a mera discordância do exame crítico da prova feito pelo julgador, no processo de formação da sua livre convicção.
Qualquer dos vícios tipificados no nº 2 do art. 410º do CPP terá de ser inferido do próprio texto da sentença, por si ou conjugado com as regras de experiência comum, não podendo ser tomados em consideração elementos exteriores, nomeadamente, meios de prova cujo conteúdo não esteja de alguma forma reflectido no texto da decisão.
Na motivação do recurso e respectivas conclusões, o recorrente não aponta à decisão recorrida qualquer deficiência que configure uma oposição lógica entre algum facto dado como provado ou não provado e o meio de prova que tenha servido de base ao juízo probatório sobre o mesmo formulado.
Na verdade, o que o recorrente censura ao Tribunal «a quo» é ter formado uma convicção probatória afirmativa, relativamente ao essencial dos factos constitutivos da sua responsabilidade criminal, com base nas declarações da assistente e no depoimento testemunhal da filha mais nova de ambos, que entende estarem contaminados de parcialidade e de interesse na sua condenação, em detrimento de outros meios de prova, nomeadamente, o testemunho, que reputa de objectivo, directo e sincero, da filha mais velha do ex-casal, formado pelo arguido e pela assistente.
Como pode facilmente verificar-se, a discordância manifestada pelo recorrente em relação ao juízo probatório emitido na sentença sob recurso situa-se ao nível do exame crítico da prova, em particular, a de natureza pessoal, o que exclui, à partida, a ocorrência de uma oposição lógica entre factualidade provada e não provada, por um lado, e os meios de prova, por outro.
Por essa razão, a crítica dirigida pelo recorrente ao juízo de prova formulado pelo Tribunal «a quo» releva da impugnação alargada da decisão sobre a matéria de facto prevista no art. 412º do CPP, que o arguido não deixou de deduzir e que será apreciada de seguida, e não do vício referido na al. c) do nº 2 do art. 410º do CPP.
Como tal, improcede a arguição do mencionado vício da decisão.
A propósito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, convirá recordar que tem vindo a constituir jurisprudência constante dos Tribunais da Relação a asserção segundo a qual o recurso sobre esta matéria não envolve para o Tribunal «ad quem» a realização de um novo julgamento, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos, mas antes tem por finalidade o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham afectado a decisão recorrida e que o recorrente tenha indicado, e, bem assim, das provas que, no entender deste, impusessem, e não apenas sugerissem ou possibilitassem, uma decisão de conteúdo diferente.
No caso em presença, pretende o recorrente, em síntese:
a) Se julguem não provados os factos objectivos, descritos nos pontos 3, 4, 5 e 6, por efeito da desvalorização probatória das declarações da assistente e do depoimento testemunhal da filha mais nova do ex-casal e da concomitante atribuição de poder de convicção ao depoimento testemunhal da filha mais velha;
b) Em face da prova produzida, não se encontra demonstrado o «dolo específico» do arguido, nem ele tivesse querido praticar a conduta que lhe é imputada ou o resultado da mesma na integridade física da assistente.
Ao nível da matéria de facto, sustenta ainda o recorrente que a referência feita no ponto 9 da factualidade assente que os factos descritos nos pontos 4 a 6 foram praticados «na presença» da filha mais nova do ex-casal é conclusiva e não esclarece a que distância a menor se encontrava do arguido e da assistente ou se presenciou algum acto de agressão.
Ora, expende-se na sentença recorrida, para motivação do juízo probatório (transcrição com diferente tipo de letra):
O Tribunal formou a sua convicção quanto à matéria de facto considerada provada e não provada com base na ponderação e apreciação crítica da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
Particularizando, a factualidade descrita em 1. a 10. alicerçou-se, essencialmente, no depoimento da assistente B que, não obstante ter revelado alguma emoção no relato que produziu sobre os factos em apreço, depôs de forma consistente e precisa, merecendo a credibilidade do Tribunal, tendo a sua versão quanto aos factos descritos em 4, 5 e 6 sido coincidente com o depoimento da testemunha D, filha do arguido e da assistente.
Com efeito, a assistente relatou as vicissitudes da vida conjugal e as relações entre ambos desde a data do casamento e, principalmente, após Janeiro de 2010. Explicou detalhadamente a periodicidade e o teor dos nomes com que o arguido a apodava, as ameaças que proferia, a forma como utilizou a força física para atingir o seu corpo e, ainda, as consequências que de todos este comportamentos decorreram para a sua saúde e estabilidade emocional (factos 14. e 15.).
Não obstante o arguido ter negado a prática dos factos por que vinha acusado, as suas declarações foram desconsideradas, atento o seu discurso inverosímil, declarando que a assistente sofria de alcoolismo e que a mesma inventou estes factos para se vingar da sua iniciativa de pedir o divórcio. Com efeito, prevalecendo-se da circunstância de tais desentendimentos não serem presenciados por terceiros, para além da filha menor de ambos, o arguido admitiu apenas ter tido, com a assistente, três discussões, na sequência do que, na última vez a terá empurrado, desconhecendo as consequências de tal empurrão, e admitiu ter proferido as expressões constantes da acusação, embora não se recorde de o ter feito, afirmando que “nunca bateu” à assistente nem proferiu qualquer expressão susceptível de fazê-la temer pela vida ou integridade física, designadamente as constantes da acusação.
Ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, que estabelece o princípio da livre apreciação da prova, e renovando os fundamentos expendidos, o Tribunal aceitou como válidas as declarações da assistente, corroboradas, pelo depoimento da testemunha D, que, não obstante ser filha da assistente e do arguido, prestou depoimento simples e objectivo e com conhecimento directo dos factos, por tê-los presenciado.
Esta testemunha tem conhecimento directo dos factos, porquanto residia na mesma casa onde o casal residiu em conjunto, tendo assistido a diversos desentendimentos, enunciando as expressões que o arguido proferia, dirigidas à assistente, descrevendo a reacção comportamental deste e daquela após os desentendimentos com o arguido e assegurando que a mesma se mostrava muitas vezes perturbada, nervosa, com medo, chegando mesmo a chorar.
Também a testemunha, E, irmã da assistente, que depôs de forma muito segura e sem qualquer hesitação, embora não tenha assistido a nenhum dos factos constantes da acusação, relatou o estado emocional em que a assistente se encontrava, designadamente o estado de extrema ansiedade e nervosismo, começando, de imediato, a chorar se lhe era perguntado se estava bem, assim como afirmou ter visto diversos hematomas no corpo da assistente, nomeadamente nos braços. Mais relatou que a sua mãe, também mãe da assistente lhe terá contado ter presenciado a situação descrita em 5 e 6, o que fez de forma consentânea com o descrito pela assistente, bem como outras situações de prolação, por parte do arguido, de expressões ofensivas da honra da assistente, bem como comportamentos que configuram agressões físicas. Este depoimento, embora indirecto, é valorado pelo Tribunal, uma vez que a testemunha presencial faleceu, o que impossibilita o Tribunal de inquiri-la, como permitido pelo artigo 129.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
A testemunha G, militar da GNR relatou ao Tribunal a intervenção que teve na investigação dos presentes autos, designadamente o recebimento da queixa apresentada pela assistente e as diligências que levou a cabo nessa sequência. Descreveu, também, o estado emocional em que se encontrava e as dores de que se queixava.
Por outro lado, a testemunha C, filha do arguido e da assistente, que se encontra de relações cortadas com a mãe, e manteve um depoimento claramente parcial em defesa do arguido, negou ter assistido a qualquer dos factos descritos na acusação, reforçando, mesmo quando a pergunta não incidia em tal matéria, que os problemas familiares se deviam ao facto de a assistente ter um problema de alcoolismo.
As testemunhas H e I, vizinhos do arguido e da assistente quando estes viviam juntos, e depuseram de forma simples e espontânea, a nada assistiram, limitando-se a relatar a ocasião em que a assistente se lhes dirigiu afirmando ter sido agredida pelo arguido e o estado emocional em que a mesma se encontrava na ocasião.
Por último, a testemunha F, que acompanhou a assistente ao hospital após os factos descritos em 6. descreveu as lesões que a assistente apresentava, bem como o estado emocional em que a mesma se encontrava.
Os factos provados em 11. a 13., que consubstanciam o elemento subjectivo, resultam dos factos objectivos dados como provados, uma vez que são os mesmos insusceptíveis de prova directa, os quais, atendendo às regras da experiência comum e mediante presunções naturais, permitem de forma segura inferir tais conclusões.
Para prova do factos descritos em 7. e 8., foi ponderado o teor do relatório de perícia médico legal de fls. 15-17 e a documentação clínica de fls. 18 e 55.
Quanto às condições económicas e sociais do arguido, relevaram-se as suas declarações, e o teor do relatório social elaborado pela DGRS.
No que diz respeito aos antecedentes criminais do arguido, teve-se em atenção o certificado de registo criminal junto aos autos.
O facto descrito em 21. mostrou-se provado de acordo com o depoimento das testemunhas J e K, amigos do arguido há cerca de 10 anos e que com este convivem, e atestaram o modo como este é visto na comunidade onde se insere.
A factualidade dada como não provada em I. resultou da ausência de prova bastante que permitisse ao Tribunal concluir pela veracidade da mesma, designadamente do depoimento da testemunha F, amigo do arguido, a quem o arguido dirigiu tais expressões e explicou que as mesmas foram proferidas, pelo arguido, embora no café, em conversa privada consigo e não na presença de todos os clientes, tratando-se de um desabafo.
Conforme é habitual suceder quando estão em causa condutas lesivas de bens jurídicos pessoais, levadas a efeito entre pessoas ligadas uma á outra por um laço conjugal, actual ou já dissolvido, ou por outra relação, equiparada para tanto ao casamento, em que se incluem as realidades integradoras do tipo criminal da violência doméstica, a convicção probatória do Tribunal de julgamento, relativamente aos factos objectivos geradores da responsabilidade criminal do arguido, assentou, em primeira linha, mas não exclusivamente, nas declarações prestadas pela ofendida, no caso constituída assistente e demandante civil, pois as referidas condutas ocorrerem, quase invariavelmente, no interior do lar familiar e fora da presença de estranhos.
Embora a assistente e demandante civil, ao invés do arguido, esteja vinculada ao dever de verdade e possa incorrerem responsabilidade criminal, se a ele faltar, as declarações por ela prestadas, devido ao seu posicionamento em relação ao objecto do processo, nunca poderão beneficiar da aura da isenção, do desinteresse ou da imparcialidade.
Daí não se segue, porém, que tais meios devam ser necessariamente preteridos no processo de formação da convicção do Tribunal, já que umas declarações prestadas por um sujeito processual, com interesse no desfecho do processo, não têm inevitavelmente que deixar de ser sinceras e verídicas.
Os referidos meios de prova terão de ser sujeitos ao crivo da crítica do julgador, à luz dos critérios que devem presidir à valoração probatória, designadamente, os dados da experiência comum, as regras da lógica e a normalidade das coisas.
Nesse procedimento, terá o julgador, por um lado, de avaliar o mérito das declarações em causa, por si mesmas, em ordem a ajuizar da sua coerência, consistência e verosimilhança, e, por outro, de confrontar esse meio de prova com os restantes submetidos à sua apreciação, de forma a verificar se o seu conteúdo é por eles corroborado em algum aspecto, por pontual que seja.
Procedemos à audição do registo sonoro dos meios de prova pessoal que foram determinantes da formação da convicção do Tribunal «a quo», a saber as declarações da assistente e o depoimento da testemunha D, filha mais nova daquela e do arguido, e daquele ao qual o recorrente pretende que seja atribuído poder de convicção, isto é o depoimento testemunhal de C..
As declarações prestadas pela assistente consubstanciam um relato dotado de coerência e plausibilidade, abstraindo de alguma tergiversação na localização temporal dos factos, sobretudo do episódio descrito no ponto 3 da factualidade assente, que, ainda assim, não é de molde a comprometer a credibilidade essencial do meio de prova, pois a experiência demonstra que a maioria das pessoas, pelo menos em Portugal, mantém uma relação com o tempo marcada pela falta de rigor e exactidão.
Quanto ao depoimento da menor D, que contava 11 anos de idade ao tempo em que o prestou, o mesmo concretizou-se em respostas breves que a depoente foi dando às perguntas que lhe iam sendo colocadas.
Tal característica, porém, não deve ser levada à conta, como pretende o depoente, da falta de espontaneidade ou de sinceridade do depoimento, mas antes visivelmente radica na limitada capacidade de expressão da testemunha, decorrente da sua pouca idade, e na natural relutância sentida pela menor em abordar um tema, que é, para ela, necessariamente doloroso.
De resto, inexistem razões válidas para acreditar que a menor D tenha decidido, por sua própria iniciativa, prestar respostas inverídicas às perguntas que lhe foram colocadas em audiência, em termos de poder prejudicar o seu pai, ou tenha sido instruída por outrem, mormente a mãe, a fazê-lo.
Pelo contrário, o depoimento da filha mais velha do arguido e da assistente, C, com 17 anos de idade quando o prestou, apresenta-se claramente estereotipado e orientado pela preocupação de livrar o pai de responsabilidades, o que, até certo ponto, se compreende.
O depoimento em referência coloca a tónica nos supostos hábitos de consumo excessivo de álcool por parte da assistente, que a depoente considera o factor determinante da degradação da relação conjugal entre os seus pais, como se esse fosse o aspecto mais relevante, mas mostra-se, singularmente, pouco convicto quanto à questão fundamental de saber se o arguido praticou na pessoa da assistente os actos de agressão física e lhe dirigiu as expressões ofensivas, que constam da matéria de facto assente (com excepção de «bêbada»), a testemunha usou de formulações dúbias como «acho que não» ou «não vi».
Para além do depoimento da menor D, o relato factual feito pela assistente é confirmado, em diversos aspectos pontuais, conforme se verificou no segmento da sentença recorrida supra transcrito, por outros meios de prova, cuja credibilidade o recorrente não põe em causa.
Confrontado o conjunto da prova produzida, com excepção do depoimento de C, e atentas as debilidades deste, acima evocadas, o Tribunal «a quo» não poderia deixar de julgar provados os factos objectivos descritos nos pontos 3 a 6 da factualidade assente.
Quanto à vertente subjectiva da mesma conduta, a que correspondem os pontos 11 a 13 da mesma enumeração de factos, diremos que não se compreende a referência feita pelo recorrente à falta da demonstração do «dolo específico» do arguido.
Com efeito, o arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º nºs 1 al. a) e 2 do CP, o qual, relativamente ao elemento subjectivo do tipo, se caracteriza como um crime doloso, bastando, contudo, para o respectivo preenchimento a verificação do chamado «dolo genérico», dirigido à produção de «maus tratos físicos ou psíquicos» na pessoa do agente passivo, os quais podem se concretizar na violação de uma multiplicidade de bens jurídicos pessoais (integridade física, liberdade, segurança, honra e consideração e outros) na esfera da vítima.
Não é exigida para a perfeição deste crime qualquer outro elemento intencional em acréscimo, como sucede, por exemplo, com o tipo criminal da burla, definido pelo nº 1 do art. 217º do CP, qual seja o propósito do agente em obter para si ou para terceiro um benefício económico ilegítimo.
No que se refere à factualidade de índole subjectiva, descrita nos pontos 11 a 13 da matéria provada, a sua prova foi efectuada, conforme se verificou na sentença recorrida, por via indirecta, extraindo-a por presunção judicial da conduta objectiva correspondente.
De acordo com a normalidade das coisas a determinada acção humana corresponde uma determinada intencionalidade que lhe é intrínseca.
Assim, ao gesto de desferir uma bofetada ou de apertar o pescoço de alguém está associado o propósito de lesar a integridade física desse alguém e ao acto de dirigir a determinada pessoa expressões como «puta», «porca» e «bêbada» a intenção de atingir a honra e consideração da visada.
É óbvio que podem existir situações da vida real em que a determinada acção objectiva não está ligada a normalmente esperada intencionalidade, por razões que podem ser as mais variadas.
Contudo, não deverá o julgador afastar a presunção de que a certa actuação objectiva corresponde a atitude subjectiva do agente, que, por via de regra, lhe está associada, senão na presença de um mínimo de indícios de que essa correspondência se não verifica.
Tais indícios inexistem de todo, no caso em apreço, pelo que o juízo probatório, que recaiu sobre os factos descritos nos pontos 11 a 13 da matéria assente, se apresenta inteiramente justificado.
Quanto à objecção levantada pelo recorrente ao carácter «conclusivo» da afirmação feita no ponto 9 da matéria provada, no sentido de os factos descritos nos pontos 4 a 6 terem ocorrido «na presença da filha mais nova do casal», importa referir que o nº 2 do art. 152º do CP comina a agravação da moldura penal abstractamente aplicável ao crime de violência doméstica quando praticado «na presença de menor».
Sendo essa a expressão usada no texto da referida norma legal, a mesma exprime, nessa medida, um conceito jurídico, a saber uma das circunstâncias agravantes qualificativas do crime por cuja prática o arguido foi condenado.
No entanto, a expressão «na presença» assume um significado empírico ou naturalístico inequívoco, dizendo-se que um facto ocorreu «na presença» de certa pessoa, quando aconteceu no lugar físico onde essa pessoa se encontra, em termos de ser normalmente apreendido pelos sentidos dela.
Em face do depoimento testemunhal da menor D, que o recorrente impugna, mas a que o Tribunal «a quo» e este Tribunal «ad quem» atribuíram crédito, não restam dúvidas que a mesma viu e ouviu tudo quanto se descreve nos pontos 4 a 6 da matéria provada.
Neste contexto, não merece censura o emprego, na descrição da matéria de facto provada, da expressão «na presença» da filha mais nova do casal (actualmente ex-casal), a propósito da ocorrência dos factos narrados nos referidos pontos 4 a 6.
Consequentemente, improcede por completo o recurso, na parte relativa à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Passemos agora a apreciar a questão suscitada pelo recorrente a propósito do enquadramento jurídico-criminal dos factos.
Defende o recorrente que, caso se julgue provada a factualidade descrita no ponto 6 da matéria assente, deverá ele ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo art. 143º nº 1 do CP e não do crime de violência doméstica, por cujo cometimento foi condenado pela sentença impugnada.
Se bem entendemos, a arguição feita pelo recorrente pressupõe que a conduta descrita no ponto 6 da matéria provada tenha sido julgada demonstrada como episódio isolado e que se tenham considerado não provados os factos relatados nos pontos 3 a 5 da mesma enumeração.
Ora, conforme acabámos de ajuizar, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelo recorrente não mereceu procedência, mantendo-se inalterada a factualidade julgada provada e não provada na sentença recorrida.
Como tal, qualquer juízo que possa ser emitido acerca do enquadramento jurídico-criminal da conduta do arguido terá de tomar por base a totalidade da matéria factual dado como provada pela sentença sob recurso, abrangendo, na sua vertente objectiva, o conjunto das condutas descritas nos pontos 3 a 6 dos factos provados.
Sob a epígrafe «Violência doméstica», o nº 1 do art. 152º do CP, na vigente redacção introduzida pela Lei nº 59/07 de 4/9, dispõe:
Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade ou ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1º grau;
d) A pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
O conceito de maus tratos físicos ou psíquicos, a que se refere a disposição incriminadora agora transcrita, é definido por Américo Taipa de Carvalho («Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial», tomo I, pág. 333), com referência ao tipo criminal anterior à Lei nº 59/07 de 4/9, nos termos seguintes: «As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (isto é, ofensas corporais simples), maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça, etc.)...».
Antes da reforma do Código Penal consagrada pela Lei nº 59/07 de 4/9, existia uma significativa corrente doutrinária e jurisprudencial, em que se integrava o Autor agora citado (vd. op. cit., pág. 334), que defendia que a pedra de toque para distinguir as condutas que relevavam do então chamado crime de maus tratos daquelas que se reconduziam a outros ilícitos criminais ofensores de bens jurídicos pessoais (ofensas corporais, injúria, ameaças e outros) residia no carácter reiterado das primeiras.
Tal orientação interpretativa deixou de ter viabilidade em face da tipificação do crime de violência doméstica, introduzida pela Reforma de 2007 do CP, por força da locução «de modo reiterado ou não», que passou a constar do proémio do nº 1 do art. 152º do CP e que não existia no texto legislativo anterior.
Assim, teremos de reconfigurar, à luz do texto da lei vigente, o critério distintivo entre o crime de violência doméstica e outros ilícitos criminais atentatórios da integridade física, da honra, da liberdade ou de outros valores atinentes à esfera de outrem.
Com interesse para a solução da questão que nos ocupa, convirá ter presente o que se expende a esse respeito num Acórdão desta Relação de Lisboa, datado de 2/3/11, proferido no processo nº 938/08.7PCCSS.L1 e relatado pela Exmª Desembargadora Dra. Conceição Gonçalves, com referência ao tipo de crime de violência doméstica (transcrição com diferente tipo de letra):
No essencial, o ilícito em causa continua a punir, em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, ainda que sem coabitação, esclarecendo-se agora expressamente que tal actuação pode ser "de modo reiterado ou não", incluindo-se nos maus tratos "castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais".
Conforme entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico, podemos dizer que nada se alterou, sendo os bens jurídicos protegidos a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade humana, podendo este bem jurídico ser lesado por qualquer comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge. Deste modo, e nas palavras de Plácido Conde Fernandes (In "Violência Doméstica", Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1° semestre de 2008, n° 8, p. 305). "O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratastes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos". Também Taipa de Carvalho, em anotação a este artigo (In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo 1, Coimbra Editora, pág.132). refere que a ratio do art° 152° do CP não está "na protecção da comunidade familiar, conjugal (...), mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana", acrescentando que "o bem jurídico protegido por este crime é a saúde -bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental".
Podemos assim dizer que preenche este crime a prática de qualquer acto de violência que afecte a saúde, física, psíquica ou emocional, do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade conjugal.
Este tem sido o sentido da jurisprudência dos nosso tribunais, considerando que o crime pode realizar-se através de uma pluralidade de actos, ou através de um único acto, que atinja a saúde física, psíquica ou moral do cônjuge e afecte a sua dignidade pessoal. No fundo, não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos, mas sim os actos, isolados ou reiterados, que apreciados á luz da vida em comum possam de modo relevante colocar em risco a saúde do cônjuge, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro daquele espaço de intimidade.
Afigura-se-nos que o trecho do citado aresto, que acabámos de transcrever, equaciona correctamente a questão da distinção entre o crime de violência doméstica e os outros tipos criminais, que visam reprimir atentados contra bens jurídicos pessoais (ofensa à integridade física, injúria, ameaças e outros), perante a lei penal em vigor,
Embora a lei actualmente vigente não exija, para a verificação do crime em questão, que a conduta típica assuma um carácter de reiteração, o certo é que, o mais das vezes, o preenchimento do tipo criminal tenderá a concretizar-se numa actuação minimamente repetida (ainda que não necessariamente de forma homogénea), pois, o mais das vezes, será dessa reiteração que resultará esse «algo mais» de vulneração da dignidade pessoal do agente passivo, que permite traçar a linha de separação entre o crime de violência doméstica e os tipos de crime centrados na protecção específica de um único bem jurídico pessoal.
No caso concreto em apreço, estamos confrontados com uma conduta global desdobrada em, pelo menos, quatro episódios, correspondentes aos pontos 3 a 6 da matéria assente, os quais consubstanciaram outras tantas violações de bens jurídicos pessoais na esfera da ofendida (integridade física, honra e consideração, segurança).
Com efeito, trata-se de uma conduta plural, quanto ao número de ocorrências em que se desdobra, e multiforme, nos bens jurídicos vulnerados.
Tirando o episódio descrito no ponto 3, que não foi possível localizar temporalmente com exactidão, as incriminadas condutas do arguido aparecem visivelmente conotadas com a degradação da relação matrimonial entre o arguido e a assistente, que viria a culminar na separação e no posterior divórcio do então casal.
Considerada no seu conjunto, a apurada conduta do arguido concretiza um atentado a dignidade pessoal da assistente, no quadro da relação conjugal que então a ligava àquele, suficientemente relevante (ainda que, neste domínio, possam ocorrer e ocorram efectivamente situações muito mais graves), que constituiu a «pedra de toque» da distinção entre o tipo criminal previsto no nº 1 do art. 152º do CP e os tipos de crime que tutelam especificamente certos bens jurídicos pessoais.
Nesta conformidade, a conduta do arguido em apreço mostra-se correctamente enquadrada no crime de violência doméstica, sendo, ainda, passível da agravação qualificativa cominada no nº 2 do art. 152º do CP, por ter sido levada a efeito, com excepção do episodio descrito no ponto 3, na presença da filha mais jovem do ex-casal, menor de idade.
Conheceremos, agora, da impugnação feita pelo recorrente da determinação do montante da indemnização em que foi condenado, em benefício da assistente e demandante.
Alega o recorrente que o referido valor indemnizatório foi fixado pelo Tribunal «a quo» com recurso à equidade, mas não se descortina, na sentença recorrida, qual o critério que presidiu a essa quantificação.
Acerca da fundamentação jurídica da vertente civil da decisão, expende-se na sentença sob recurso (transcrição com diferente tipo de letra):
A assistente B deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de 5.000€, a título de indemnização por danos não patrimoniais por si sofridos em resultado da conduta do arguido.
Prescreve o artigo 71.º do Código de Processo Penal que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei, regulando-se tal pedido nos termos da lei civil (artigo 129.º do Código Penal) mais concretamente pelas normas respeitantes ao instituto da responsabilidade civil.
Dispõe o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Nesta conformidade, são os seguintes os pressupostos da obrigação de indemnizar com base em facto ilícito:
- facto humano dominável pela vontade;
- ilicitude do facto (violação de direitos subjectivos ou de disposições legais destinadas a tutelar interesses alheios);
- nexo de imputação do facto ao agente;
- verificação de dano;
- nexo causal entre o facto e o dano.
No que se refere à conduta do arguido, a verificação dos pressupostos referidos é, em face da factualidade provada, inquestionável porquanto a conduta deste constitui facto humano dominável pela vontade e ilícito, na medida em que atenta contra os bens jurídicos dignidade, honra, consideração e liberdade da assistente e emerge da violação da norma legal que incrimina a violência doméstica.
Dúvidas também não subsistem na qualificação da conduta deste como culposa, apreciada de acordo com o critério consagrado no n.º 2, do artigo 487.º do Código Civil, uma vez que, em sede de apreciação da responsabilidade criminal, e pelos motivos aí expendidos, concluímos que o arguido agiu com dolo directo e com plena capacidade de entender e de querer praticar os factos que efectivamente praticou.
No caso vertente, considerou-se provada a ocorrência de danos não patrimoniais emergentes da conduta do arguido, resultantes dos sentimentos de solidão, humilhação, tristeza, ansiedade, nervosismo e medo.
O nexo causal entre o facto e o dano, que deve ser atendido no âmbito da responsabilidade civil por facto ilícito, existe sempre que a conduta se considere idónea para a verificação do dano, não o tendo provocado por força de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas (teoria da causalidade adequada negativa) - 563.º do Código Civil.
No caso dos autos, afigura-se manifesto que foi a conduta do arguido que causou directa e necessariamente os danos que se vieram a verificar na pessoa da assistente.
Pelos motivos expostos, encontrando-se preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil relativamente ao pedido de indemnização formulado nestes autos pela assistente contra o arguido, constitui-se este na obrigação de indemnizar os danos emergentes da sua conduta.
Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, devam merecer a tutela do direito (artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil), que será fixada de acordo com critérios de equidade (artigo 496.º, n.º 3 do Código Civil).
No caso vertente, resultou provado que a assistente sentiu-se sozinha, humilhada, triste, ansiosa, nervosa e com medo da actuação do arguido, tendo sido medicada com anti-depressivos.
Atenta a sua gravidade, entendemos que este circunstancialismo tem relevância jurídica e, de harmonia com critérios de equidade, decidimos valorá-los no montante de 2.000€.
Nestes termos, deve o arguido A ser condenado a pagar à assistente B a quantia de 2.000€, a título de danos não patrimoniais.
O pedido de indemnização deduzido nos autos pela ofendida Elvira Amaral visou exclusivamente o ressarcimento de danos não patrimoniais.
Conforme dispõe o nº 3 do art. 496º do CC, a que faz alusão o trecho da sentença recorrida acabado de transcrever, o valor da compensação dos danos de natureza não patrimonial é determinado com base num juízo de equidade.
Tal operação intelectual concretiza-se num juízo de valor qualitativo, formulado com atenção a determinados parâmetros, por oposição do juízo económico-quantitativo, que preside à determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais.
Em acréscimo ao que foi expendido pelo Tribunal «a quo», diremos que o referido nº 3 do art. 496º do CC manda também que, na fixação do montante indemnizatório, para ressarcimento de danos não patrimoniais, sejam tidos em consideração os critérios previstos no art. 494º do mesmo Código.
Os parâmetros consignados no art. 494º do CC, para os quais remete o nº 3 do art. 496º do mesmo Código, são:
- o grau de culpabilidade do lesante;
- a situação económica deste;
- a situação económica do lesado;
- outras circunstâncias que se mostrem relevantes.
A actuação do arguido a que nos reportamos causou sofrimento visível à ofendida, o que é espelhado nas consequências que acarretou para esta e que mostram descritas nos pontos 14 e 15 da matéria de facto provada.
O grau de culpabilidade do lesante é elevado, desde logo por estar em causa uma conduta que lhe é imputável a título de dolo, na sua variante mais gravosa, dolo directo.
Com excepção do episódio descrito no ponto 3 da matéria assente, os factos praticados pelo arguido em detrimento da assistente foram-no na presença da filha mais nova de ambos, circunstância que é de molde a redobrar o efeito negativo dessa actuação na dignidade da ofendida, que assim se viu humilhada e vexada diante da própria filha.
É certo que a matéria de facto é omissa sobre a situação económica da lesada e não é totalmente esclarecedora sobre a do lesante.
No entanto, independentemente desses aspectos, a gravidade dos danos não patrimoniais sofridos pela demandante e da conduta que os causou permite desde já concluir que o Tribunal «a quo» usou de prudência e moderação ao fixar em 2.000 euros o valor do respectivo ressarcimento (de resto, muito aquém do montante de 5.000 euros peticionado), pelo que qualquer compressão ulterior do quantitativo indemnizatório seria incompatível com a adequada compensação dos danos verificados.
Assim, sem necessidade de mais considerações, teremos de concluir pelo insucesso do recurso e pela manutenção do decidido, também na vertente civil do processo.

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.
Notifique.
Évora 3/7/12 (processado e revisto pelo relator)
Sérgio Bruno Póvoas Corvacho
João Manuel Monteiro Amaro