Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2611/18.9T8FAR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: MASSA INSOLVENTE
RECLAMAÇÃO
APREENSÃO
ACÇÃO POSSESSÓRIA
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
«I – Aquele que reivindica bens apreendidos para a massa insolvente, tem que socorrer-se do mecanismo especialmente previsto nos artigos 141º e seguintes do CIRE.
II – A reclamação destinada a separar da massa os bens de terceiro indevidamente apreendidos prevista nos referidos normativos corre por apenso ao processo de insolvência, cuja competência se encontra atribuída às Secções de Comércio.
III – A instauração de uma ação possessória com a finalidade referida em I na Instância Local, determina a incompetência absoluta, em razão da matéria, daquele Tribunal (sumário do relator).
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
E… instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Instância Central Cível, com distribuição ao Juiz 2, a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra V…, S.A., Massa Insolvente da C…, Lda. e A… pedindo que:
a) seja declarado que o autor é o único dono e legitimo possuidor do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º … da freguesia de Almancil, concelho de Loulé, e a posse dos Réus insubsistente, ilegal e de má-fé;
b) seja declarada nula e ineficaz a aquisição titulada pela escritura de compra e venda de 27.10.1999, celebrada pelo sócio-gerente da 1ª ré como representante do autor e daquela ré, lavrada de fls. 48 a fls. 49 do Livro 130- A no Cartório Notarial de São Brás de Alportel;
c) seja declarada nula e ineficaz a aquisição titulada pela escritura de compra e venda de 29.04.2002, celebrada entre a 1ª ré e a 2ª ré, lavrada de fls. 19 a fls. 20 vº do Livro 207- A no Cartório Notarial de São Brás de Alportel;
d) seja declarada nula e ineficaz a aquisição titulada pela escritura de compra e venda de 31.10.2003, celebrada entre a 2ª ré e o 3º réu, lavrada de fls. 129 a fls. 130 vº do Livro 216- A no Cartório Notarial de São Brás de Alportel referente a 1/7 indiviso do prédio em causa;
e) se ordene o cancelamento de quaisquer registos que do mesmo prédio se tenha feito a favor dos Réus e ainda condenar-se estes a reconhecer ao autor aquele direito de propriedade e a restituírem-lhe o prédio com todos os frutos que produziu ou poderia produzir;
f) se ordene a reposição do registo de aquisição a favor do autor e a inscrição G2 feita pela Ap.49/060899 e respetivo averbamento 01 da referida apresentação;
g) supletivamente, sem conceder, caso assim não se entenda, declarar o autor como único dono e legitimo possuidor do prédio por via da usucapião;
h) como pedido subsidiário, sejam os réus subsidariamente e solidariamente condenados na entrega ao autor dos 3 apartamentos T1 prometidos permutar ao autor ou, caso não seja possível, no pagamento a este da quantia indemnizatória correspondente ao valor dos 3 apartamentos T1, que liquida provisoriamente em quantia não inferior a € 450.000,00, a qual deverá ser atualizada à data da entrega efetiva da quantia indemnizatória ao autor.
Alegou, em síntese, que os negócios celebrados entre os réus são simulados, que existe uma falsificação na descrição do prédio, que o autor adquiriu por usucapião e que se verifica no caso uma situação enriquecimento sem causa.
Contestaram as 1ª e 2ª rés que, além do mais, impugnaram a factualidade alegada pelo autor, concluindo pela improcedência da ação.
Foi deduzido incidente de intervenção espontânea por J…, na qualidade de principal credor da 2ª ré, invocando a incompetência absoluta do Tribunal para conhecer da ação, bem como a ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário, uma vez que não foram demandados os credores nos termos do disposto no artigo 146º, nº 1, do CIRE, impugnando ainda a generalidade da factualidade alegada na petição inicial.
O imóvel reivindicado pelo autor encontra-se apreendido, ainda que sob protesto do mesmo, no âmbito do processo de insolvência da 2ª ré.
As partes foram notificadas de que o Tribunal ponderava conhecer da exceção da incompetência absoluta do Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo Central Cível de Faro, vindo o autor pronunciar-se no sentido da competência do Tribunal, entendendo que a questão da competência havia sido já decidida no âmbito do apenso E do processo de insolvência nº 27649/15.4T8SNT relativo à 2ª ré, por decisão transitada em julgado e que decidiu admitir o protesto do autor à apreensão do imóvel em causa, e defendendo que a presente ação não se enquadra na previsão do artigo 141º, nº 1, do CIRE.
Foi proferida decisão que, julgando procedente a exceção da incompetência absoluta do tribunal, absolveu os réus da instância.
Inconformado com o assim decidido, interpôs o autor o presente recurso de apelação, tendo finalizado a respetiva alegação com as seguintes conclusões:
«I - A presente ação não se enquadra na previsão do art.º 141.º n.º 1 do CIRE, a que se reportam as ações previstas no art.º 146.º do mesmo CIRE;
II - Para conhecer da ação em que é pedida a anulação de uma venda efetuada em processo de execução, apensado ao processo de falência, é competente o tribunal comum, conforme jurisprudência em vigor e acórdão citado;
III - Incumbe aos Tribunais Judiciais o julgamento de ações de reivindicação fundadas no artigo do 1311.º do Código Civil, em que, para além do reconhecimento do direito de propriedade sobre um imóvel e da restituição do mesmo, se peça também, alternativamente, para o caso de esta restituição não ser possível, o pagamento de uma indemnização pela perda definitiva daquele imóvel, onde se enquadra a presente ação, conforme jurisprudência assente e a titulo de exemplo acórdãos citados;
IV- A sentença recorrida violou as disposições legais previstas no art.º 141.º, 146.º, 150.º n.º 5 todos do CIRE e art.º 863.º n.º 2 al. b) e art.º 97.º ambos do CPC».

Contra-alegou a 1ª ré, pugnando pela manutenção do julgado.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir consiste em saber se se verifica ou não a incompetência absoluta do tribunal a quo para julgar a presente ação.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos a considerar sãos que constam do relatório precedente, devendo acrescentar-se que:
- No âmbito do processo nº 22649/15.4SNT – E, a correr termos no Tribunal do Comércio de Sintra foi proferida, em 23.10.2018, a seguinte decisão:
«E…, apresentou por apenso ao processo de insolvência de C…, Lda., requerimento no qual, invocando a disposição do art.º 840.º, n.º 1 do CPC e alegando ter instaurado acção de reivindicação de imóvel, pediu a suspensão da desocupação do imóvel, que não identificou, no qual declarou estar implantada a sua casa de habitação.
Juntou cópia de petição inicial do mesmo dia, dirigida ao Tribunal Judicial de Faro, visando a instauração de acção comum contra V…, S.A., MASSA INSOLVENTE DA C…, LIMITADA e A….
Notificados, o A.I. nada disse e o credor J… pugnou pelo indeferimento, por não se mostrarem observados os pressupostos estabelecidos no art.º 146.º CIRE.
O requerente respondeu à resposta.
Vista a petição inicial junta ao requerimento, conclui-se que estará em causa acção cujo objecto incide sobre o imóvel apreendido sob a verba 2 do auto de apreensão, em que o autor pede o reconhecimento da propriedade do imóvel, a declaração de aquisição da propriedade por usucapião, e a condenação dos réus em prestações de diversa natureza.
A acção em causa, pela natureza e fundamentos, não se enquadra na previsão do ar.º 141.º , n.º 1 do CIRE, a que se reportam as acções previstas no art.º 146.º do CIRE, o que retira fundamento a oposição do credor Joaquim Tomé.
Decide-se assim admitir o protesto requerido, com os efeitos previstos no art.º 160.º do CIRE.
Custas pelo oponente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC (art.º 7.º n.º 4, do CIRE).
Notifique e lavre termo de protesto, no processo principal.»

O DIREITO
Conforme se alcança da decisão recorrida, a Mm.ª Juíza a quo considerou que a apreensão do imóvel em causa no âmbito do processo de insolvência da C…, Lda. é um ato jurídico previsto nos artigos 149º e 150º do CIRE, e os seus efeitos não dependem da entrega física dos bens, dado que o poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador desta diligenciar, sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 756º do CPC, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, pelo que o pedido de restituição do dito imóvel deveria ser feito nos termos prescritos no artigo 146º, nº 1, al. a), do CIRE, ou seja, em ação intentada por apenso ao processo de insolvência n.º 27649/15.4T8SNT.
É contra este entendimento que se manifesta o autor, ora recorrente, que defende, por um lado, «que é o Tribunal comum o competente para as ações de reivindicação ou anulação de uma venda efetuada em processo de execução apensada ao processo de falência», e, por outro lado, «que o Tribunal de Comércio já se declarou incompetente para julgar esta ação por a mesma não se enquadrar na previsão do art.º 141.º n.º 1 do CIRE, a que se reportam as ações previstas no art.º 146.º do mesmo CIRE», pelo que, na ótica do recorrente, a decisão recorrida inviabiliza de todo o exercício do direito de propriedade do autor sobre o dito imóvel, «o que viola os mais elementares direitos constitucionais, designadamente o direito de acesso à justiça».
Vejamos.
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores - art. 1º, nº 1, do CIRE[1].
Nos termos do disposto no nº 1 do art. 150º, «o poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador de insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 2 do art. 839º do CPC (artigo este a que corresponde o art. 756º do atual CPC), no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique fiel depositário…».
Por sua vez, o art. 141º regula o exercício do direito de fazer separar da massa os bens indevidamente apreendidos, o prazo de que o titular dispõe para o efeito, e o processo a seguir. Processa-se como a reclamação de créditos.
A tutela de terceiros que tenham visto bens seus indevidamente apreendidos para a massa vem contemplada na alínea c) do nº 1, segundo a qual «[à] reclamação destinada a separar da massa os bens de terceiro indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens, dos quais o insolvente não tenha a plena e exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à insolvência ou insusceptíveis de apreensão para a massa».
Isto, no prazo destinado à reclamação de créditos, mas sem prejuízo da possibilidade de a separação ou restituição de bens ser pedida em ação adequada, nos termos e condições estabelecidas no art. 146º.
Sobre a concreta questão que nos ocupa escreveu-se no acórdão desta Relação de 05.11.2015[2]:
«O mecanismo de defesa a que aludem os arts. 141º e 146º do CIRE constitui assim o procedimento adequado para todos aqueles que pela apreensão, resultante da declaração de insolvência, se sintam lesados na sua propriedade ou na sua posse (vide neste sentido os acórdãos da Relação de Coimbra de 18.03.2104, em que é relator Fonte Ramos, e de 08.04.2014, em que é relatora Regina Rosa, ambos in www.dgsi.pt).
No mesmo sentido, veja-se Luís Menezes Leitão (in Direito da Insolvência, 3ª edição), segundo o qual, a propósito da aplicação do art. 141º do CIRE, “naturalmente, todos os titulares de outros direitos reais de gozo que atribuam a posse poderão ser aqui abrangidos”.
Assim, (…) “o procedimento legalmente previsto a quem se sinta lesado (e por maioria de razão, ameaçado) na sua posse, jurídica ou material, de bens apreendidos para a massa insolvente é o especialmente previsto nos artigos 141º e seguintes do CIRE, onde se prevê um regime próprio da restituição e, portanto, também de manutenção, da propriedade ou posse sobre bens indevidamente apreendidos”».
Neste mesmo sentido se pronunciou o Acórdão desta Relação de 26.01.2017[3], em cujo sumário se exarou:
«I – Aquele que se sentir lesado ou ameaçado na sua posse, jurídica ou material, de bens apreendidos para a massa insolvente, tem que socorrer-se do mecanismo especialmente previsto nos artigos 141º e seguintes do CIRE.
II – A reclamação destinada a separar da massa os bens de terceiro indevidamente apreendidos prevista nos referidos normativos corre por apenso ao processo de insolvência, cuja competência se encontra atribuída às Secções de Comércio.
III – A instauração de uma ação possessória com a finalidade referida em I na Instância Local, além de consubstanciar erro na forma de processo, determina a incompetência absoluta, em razão da matéria, daquele Tribunal.»
Assim, devendo a requerente socorrer-se do mecanismo previsto no art. 141º do CIRE, por meio de ação que corre por apenso ao processo de insolvência, a incompetência em razão da matéria é efetivamente atribuída às Secções de Comércio, atento o disposto no art. 128º, nºs 1, al. a) e 3 da LOSJ aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, que não à Instância Central Cível de Faro, onde foi instaurado o presente processo – verificando-se assim a incompetência absoluta do tribunal.
Nem se diga, como o recorrente, que a questão da competência material do tribunal foi já decidida pelo Juízo de Comércio de Sintra onde corre termos o referido processo de insolvência.
O facto de aquele Tribunal ter aceite o protesto com os efeitos previstos no art. 160º, com base na notícia da interposição da presente ação, não equivale, como está bom de ver, a um julgamento de incompetência daquele tribunal para tratar a presente lide.
A única coisa que ali se decidiu foi que se aguardaria a decisão final desta ação antes de a liquidação prosseguir, não tendo o Tribunal decidido sobre a sua competência para tratar desta causa, até porque essa questão não lhe foi sequer colocada.
Nem se diga – embora a questão não tenha sido referida nas conclusões, mas apenas no corpo das alegações – que a decisão recorrida inviabiliza de todo o exercício do direito de propriedade do autor sobre o dito imóvel, violando os mais elementares direitos constitucionais, designadamente o direito de acesso à justiça.
Na verdade, da interpretação defendida na decisão recorrida e sufragada por esta Relação, resulta claramente que, para defender o seu invocado direito, atentos os termos e as circunstâncias invocadas, o recorrente tem meios ao seu dispor: não aquele de que se socorreu, mas sim um outro, previsto nas disposições próprias do processo de insolvência.
Improcedem, assim, todas as conclusões em sentido contrário do recorrente, não se mostrando violadas as normas invocadas ou quaisquer outras.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Évora, 4 de junho de 2020
(acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso
Tomé Ramião
____________________________________________
[1] São deste Código os preceitos adiante mencionados sem indicação de origem.
[2] Proc. 253/15.0T8ABF-A.E1, in www.dgsi.pt.
[3] Proc. 253/15.0T8ABF.E1, relatado pelo ora Relator e subscrito pelo 2º Adjunto (aresto citado pela recorrida 1ª ré nas contra-alegações)