Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
253/15.0T8ABF-A.E1
Relator: ACÁCIO NEVES
Descritores: MASSA FALIDA
APREENSÃO
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 11/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Aquele que se sentir lesado ou ameaçado na sua posse, jurídica ou material, de bens apreendidos para a massa insolvente, tem que socorrer-se do mecanismo especialmente previsto nos artigos 141º e seguintes do CIRE.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Procº. Nº. 253/15.0T8ABF-A.E1 (2ª Secção Cível)
Acordam nesta Secção Cível os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

(…) House, S.A. intentou, na Comarca de Faro, Instância Local de Albufeira, procedimento cautelar comum contra Massa Insolvente da (…), (…) Hotel, S.A., (…) e Banco (…), S.A., pedindo que seja ordenado aos requeridos que dêem pleno cumprimento ao disposto nos arts. 109º e 150º do CIRE e 756º do CPC, pelo que requerendo à apreensão dos bens da primeira requerida o faça nos exactos termos previstos nas referidas normas legais, ou seja, que dos bens apreendidos seja constituída a requerente como fiel depositária como expressamente determina o art. 756º do CPC. Alegou para o efeito que, por contrato de cessão de exploração celebrado com a sociedade insolvente, que terminou em 31.12.2013, mas que veio a ser renovado automaticamente por mais cinco anos, a sociedade insolvente lhe cedeu a exploração da unidade hoteleira denominada Hotel (…), mediante o pagamento de determinada prestação, que tem vindo a cumprir, isto com o conhecimento do terceiro requerido.

Mais alegou que, por comunicação de 12.03.2015, o 2º requerido, administrador da insolvência, a notificou para desocupar a referida unidade hoteleira no prazo de 30 dias e que a legalidade de tal actuação se baseava na decisão tomada em assembleia de credores de 18.12.2014 na qual foi decidido o encerramento da actividade da insolvente e início da liquidação dos bens apreendidos, onde consta o referido hotel, informando ainda que a maioria dos credores, onde se inclui o credor hipotecário Banco, 3º requerido, entendem que o contrato de cessão de exploração terminou em 31.12.2014, não considerando válido o aditamento ao contrato inicial assinado e 1.01.2010.

Mais alegou que, sendo aplicável ao caso o regime da locação, o art. 150º do CIRE, invocado pelo administrador da insolvência no seu nº 1 deste remete para o art. 839º do CPC, a que corresponde actualmente o art. 756º do NCPC, em cuja al. b) do seu nº 1 se estabelece que no caso de o bem estar arrendado é constituído depositário o arrendatário.

Mais alegou que a pretendida desocupação lhe acarretará graves danos.

O Banco deduziu oposição, na qual, para além do mais, defendeu que constituindo a apreensão de bens pelo administrador de insolvência a execução de uma decisão judicial, a pretensão da requerente terá que ser apreciada pelo tribunal onde correm os autos de insolvência (Secção de Comércio de Olhão), que não no tribunal (distinto) onde foi intentado o presente procedimento cautelar. Por sua vez, os dois primeiros requeridos invocaram, para além do mais, a incompetência absoluta do tribunal, defendendo ser competente o Tribunal de Comércio de Olhão.

A requerente tomou posição no sentido de se não verificarem as excepções invocadas.

Seguidamente, e pelo facto de o tribunal “a quo” considerar que os autos já continham todos os elementos necessários para que fosse proferida decisão sobre uma das excepções invocadas, foi proferido despacho, nos termos do qual foi declarada a incompetência do tribunal por violação das regras de competência material, sendo os requeridos absolvidos da instância cautelar.

Inconformada, interpôs a requerente o presente recurso de apelação, em cujas alegações, pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que declare o procedimento cautelar não especificado o meio adequada para defesa da posse da ora recorrente, que declare a Instância Local de Albufeira, respectiva secção Cível, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro o foro competente para apreciação da providência cautelar e que ordene as recorridas a cumprirem a lei, nomeadamente o que resulta do disposto contido nos artigos 109º, 150º do CIRE e 756º do CPC, constituindo a recorrente como fiel depositária da unidade hoteleira, apresentou as seguintes conclusões:

a) A decisão a quo consubstancia uma intolerável limitação à tutela judicial efectiva quando refere que o procedimento legal adequado para quem se sinta ameaçado na sua posse, numa situação de insolvência, é o regime previsto no artigo 141.º do CIRE.

b) E, por isso, a referida decisão é inconstitucional na interpretação segundo a qual “o procedimento legalmente previsto a quem se sinta lesado (e por maioria de razão, ameaçado) na sua posse, jurídico ou material, de bens apreendidos para a massa insolvente é o especialmente previsto nos artigos 141º e seguintes do CIRE, onde se prevê um regime próprio da restituição e, portanto, também da manutenção, da propriedade ou posse sobre bens indevidamente apreendidos” por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4 e 13º da CRP.

c) O procedimento cautelar não especificado instaurado pela Recorrente é o mecanismo processual idóneo para exigir às Recorridas o cumprimento dos artigos 109º e 150º do CIRE perante uma ameaça à sua posse e como decorrência lógica a constituição da recorrente como fiel depositária nos termos do artigo 756.º do CPC.

d) A norma constante da alínea a) do nº 1 do artigo 141º do CIRE é desenhada para proteger aquele que sendo dono ou proprietário vê, por acto ilícito praticado pela massa insolvente, prejudicada a sua posse ou direito de propriedade.

e) Assim, a referida norma apenas permite a separação e restituição aos seus donos dos bens apreendidos para a massa insolvente, mas de que o insolvente seja mero possuidor em nome alheio.

f) Não se discute nem põe em causa a titularidade dos bens, pois os mesmos são inequivocamente da massa insolvente, nem o insolvente é mero possuidor dos bens em nome alheio.

g) E, por isso, não se trata de restituição de bens aos seus donos mas sim o cumprimento das disposições decorrentes dos artigos 109º, 150º do CIRE e 7569 do CPC.

h) De acordo com a lei apenas seria da competência do tribunal de comércio o conhecimento desta acção, caso os ora recorridos tivessem requerido a sua apensação, pois a acção já havia sido intentada antes da declaração de insolvência.

i) Não tendo os recorridos requerido a apensação nos termos do artigo 85º do CIRE não pode o tribunal de comércio conhecer a referida providência cautelar.

Contra-alegou a requerida Massa Insolvente de LTI – (…) Hotel, S.A., pugnando pela improcedência do recurso,

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

Em face do conteúdo das conclusões das alegações da apelante, enquanto delimitadoras do objecto do recurso, a questão de que cumpre conhecer consiste em saber se se verifica ou não a incompetência absoluta do tribunal onde foi instaurado o procedimento cautelar.

Apreciando:

Conforme se alcança do despacho recorrido, o tribunal “a quo” considerou que a competência para a tramitação dos autos está atribuída às Secções de Comércio, nos termos do artigo 128.°, 1, a) e 3 da LOSJ aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto.

E isto porque, segundo a decisão recorrida “o procedimento legalmente previsto a quem se sinta lesado (e por maioria de razão, ameaçado) na sua posse, jurídica ou material, de bens apreendidos para a massa insolvente é o especialmente previsto nos artigos 141º e seguintes do CIRE, onde se prevê um regime próprio da restituição e, portanto, também de manutenção, da propriedade ou posse sobre bens indevidamente apreendidos”.

É contra tal entendimento que se manifesta a requerente, ora apelante, que começa por dizer que tal interpretação é inconstitucional, por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4 e 13º da Constituição da República Portuguesa e que o procedimento cautelar não especificado instaurado pela Recorrente é o mecanismo processual idóneo para exigir às recorridas o cumprimento dos artigos 109º e 150º do CIRE perante uma ameaça à sua posse e como decorrência lógica a constituição da recorrente como fiel depositária nos termos do artigo 756º do CPC.

A requerente, com o presente procedimento cautelar, pretende manter a posse da unidade hoteleira cuja exploração lhe havia sido cedida pela sociedade insolvente, mediante contrato de cessão de exploração e para o efeito defende, com base no disposto nos arts. 109º e 150º do CIRE e 756º do CPC, que, mantendo-se a validade de tal contrato (o que não é aceite pelos requeridos, mas que não está neste momento em questão), no âmbito da apreensão da unidade decorrente da declaração de insolvência, deve manter-se na posse da unidade hoteleira, na qualidade de fiel depositária.

Nos termos do disposto no nº1 do art. 150º do CIRE “o poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador de insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 2 do art. 839º do CPC (artigo este a que corresponde o art. 756º do NCPN), no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique fiel depositário…”, estabelecendo por sua vez o nº 1, al. b) do art. 756º do NCPC que em caso de arrendamento é nomeado depositário o arrendatário.

Todavia o certo é que o nº 1, al. c) do art. 141º do CIRE estabelece que “as disposições relativas à reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis… c) À reclamação destinada a separar da massa os bens de terceiro indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens, dos quais o insolvente não tenha a plena e exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à insolvência ou insusceptíveis de apreensão para a massa”. Isto, no prazo destinado à reclamação de créditos, mas sem prejuízo da possibilidade de a separação ou restituição de bens ser pedida em acção adequada, nos termos e condições do disposto no art. 146º do mesmo diploma.

Diz a requerente que este não é o mecanismo adequado, pelo facto de a norma constante da alínea a) do nº 1 do artigo 141º do CIRE ser desenhada para proteger aquele que sendo dono ou proprietário vê, por acto ilícito praticado pela massa insolvente, prejudicada a sua posse ou direito de propriedade e que tal norma apenas permite a separação e restituição aos seus donos dos bens apreendidos para a massa insolvente, mas de que o insolvente seja mero possuidor em nome alheio. Todavia sem razão na medida em que ao caso é de aplicável não a al. a) mas sim a al. c) – que supra reproduzimos, do art. 141º do CIRE, o qual se refere às situações relativas a quaisquer bens que sejam insusceptíveis de apreensão para a massa, nas quais, conforme vimos, se enquadra a situação invocada pela requerente.

O mecanismo de defesa a que aludem os arts. 141º e 146º do CIRE constitui assim o procedimento adequado para todos aqueles que pela apreensão, resultante da declaração de insolvência, se sintam lesados na sua propriedade ou na sua posse (vide neste sentido os acórdãos da Relação de Coimbra de 18.03.2104, em que é relator Fonte Ramos, e de 08.04.2014, em que é relatora Regina Rosa, ambos in www.dgsi.pt).

No mesmo sentido, veja-se Luís Menezes Leitão (in Direito da Insolvência, 3ª edição), segundo o qual, a propósito da aplicação do art. 141º do CIRE, “naturalmente, todos os titulares de outros direitos reais de gozo que atribuam a posse poderão ser aqui abrangidos”.

Assim, conforme bem se salienta na decisão recorrida “o procedimento legalmente previsto a quem se sinta lesado (e por maioria de razão, ameaçado) na sua posse, jurídica ou material, de bens apreendidos para a massa insolvente é o especialmente previsto nos artigos 141º e seguintes do CIRE, onde se prevê um regime próprio da restituição e, portanto, também de manutenção, da propriedade ou posse sobre bens indevidamente apreendidos”.De resto, conforme bem salienta ainda na decisão recorrida, “nunca competiria ao presente tribunal – que não se encontra numa posição hierárquica superior àquele onde foi declarada insolvência e a consequente apreensão dos bens para a massa – sindicar tal decisão de apreensão, passando agora a determinar em que termos pode e deve ser feita a apreensão dos bens ali determinada, e ainda por cima à revelia do universo de credores da insolvência (universo esse que aqui, naturalmente, se desconhece). Razão, aliás, do teor da norma levada ao artigo 148° do CIRE, que determina a apensação ao processo de insolvência das acções previstas no artigo 141° do CIRE, que seguem tramitação processual totalmente incompatível com a presente (veja-se o disposto no artigo 141°,2, b) do CIRE)”.

Assim, devendo a requerente socorrer-se do mecanismo previsto no art. 141º do CIRE, por meio de acção que corre por apenso ao processo de insolvência, a incompetência em razão da matéria é efectivamente atribuída às Secções de Comércio, atento o disposto no art. 128°, nºs 1, al. a) e 3 da LOSJ aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, que não à Instância Local de Albufeira, onde foi instaurado o presente processo – verificando-se assim a incompetência absoluta do tribunal.

Desta forma bem esteve o tribunal “a quo” ao decidir como decidiu, no sentido de julgar verificada a invocada excepção relativa à incompetência absoluta (em razão da matéria), com a consequente absolvição dos requeridos da instância cautelar.

E não se diga, como o faz a apelante, que tal interpretação é inconstitucional, por violação do disposto nos arts. 20º, nºs 1 e 4 (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e 13º (princípio da igualdade) da CRP. Com efeito, a interpretação do tribunal “a quo” que, conforme acabámos de expor, subscrevemos, não coloca em causa o princípio da igualdade, da mesma forma que não põe em causa o direito da apelante à tutela jurisdicional. De tal interpretação resulta claramente que, para defender o seu invocado direito, atentos os termos e a circunstâncias invocadas invocados, a apelante tem meios ao seu dispor: não aquele de que se socorreu, mas sim um outro, previsto nas disposições próprias do processo de insolvência.

Improcedem assim as conclusões do recurso – impondo-se julgar o mesmo improcedente.

Em síntese: Aquele que se sentir lesado ou ameaçado na sua posse, jurídica ou material, de bens apreendidos para a massa insolvente, tem que socorrer-se do mecanismo especialmente previsto nos artigos 141º e seguintes do CIRE. Assim, a fim de evitar a desocupação de uma unidade hoteleira que explora mediante invocado contrato de cessão de exploração, celebrado com a sociedade insolvente, por parte do administrador de insolvência, a requerente tem que socorrer-se daquele mecanismo, a correr por apenso ao processo de insolvência (cuja competência está atribuída às Secções de Comércio) e não, conforme fez, do procedimento cautelar comum instaurado na Instância Local.

Assim verifica-se a incompetência absoluta, em razão da matéria, deste tribunal.

Termos em que se acorda em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Évora, 05 de Novembro de 2015

Acácio Luís Jesus das Neves

José Manuel Bernardo Domingos

João Miguel Ferreira da Silva Rato