Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
51/20.9T8VRS.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: EMBARGO DE OBRA NOVA
INÍCIO
PRAZO DE CADUCIDADE
CONTAGEM DO PRAZO
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- A providência cautelar de embargo de obra nova não pode ser requerida se a obra, o trabalho ou o serviço ainda não se iniciaram, designadamente se apenas existe um mero projeto de construção;

II- Pelo que, ainda que os Requerentes tenham tido conhecimento do projecto antes do início da obra, o prazo de 30 dias a que alude o nº1 do art.º 397º do CPC só se computa a partir da data daquele início (e isto no pressuposto de que sabiam que a mesma seria lesiva do seu direito de propriedade;

III- É o que decorre do art.º 329º do Código Civil que determina em relação a todos os prazos de caducidade que a contagem desses prazos não principia enquanto o direito sujeito a caducidade não puder, por força da lei, ser exercido (sumário da relatora).

Decisão Texto Integral:
I – RELATÓRIO

1. J… e M… intentaram procedimento cautelar de embargo de obra nova contra a sociedade T…, LDA.” pedindo que seja ordenado o embargo da obra referente uma parcela de terreno para construção com a área 106,51 m2, sito na Rua João de Lisboa, confrontando do norte e poente com a Rua João de Lisboa, do sul com a Rua dos Pescadores e do nascente com J…, na dita vila e freguesia de Monte Gordo, inscrito na respetiva matriz sob o art. … e descrito sob a ficha numero 2…, freguesia de Monte Gordo, na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António e que consiste na demolição do referido edifício térreo que aí se encontrava e na construção de um edifício destinado a habitação, com quatro pisos acima da cota de soleira e tem a licença de construção numero 83/2019, tendo sido autorizada por despacho de 25/11/2019 da referida Câmara Municipal de Vila Real de Santo António proferido no processo de obras nº85/2019, informação que alega apenas ter sido colocada no local da obra no dia 15 de janeiro de 2020.

A requerida deduziu oposição alegando, além do mais, que os requerentes, desde abril de 2019, mostraram ter conhecimento do que ia ser construído no local. No mais, sustentou a legalidade das obras executadas, peticionando a condenação dos requerentes como litigantes de má fé, por virem embargar uma obra com a qual haviam acordado anteriormente, causando-lhe prejuízos patrimoniais inerentes à presente ação (taxa de justiça de € 612,00 e certidão camarária no valor de € 363,26), acrescidos de honorários de advogado (€ 850,00).

Realizada audiência final, foi subsequentemente proferida sentença que julgou a providência “extemporaneamente instaurada” e condenou os requerentes, a título de litigância de má fé, no pagamento de uma multa que fixou em 2 Uc´s e € 1 000,00 (mil euros), a título de indemnização à parte contrária.

2. É desta sentença que os requerentes recorrem, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:

“1ªA sentença recorrida decidiu mal ao considerar que a presente providência de embargo de obra nova foi extemporaneamente instaurada;
2ªDe facto e dada a matéria provada, o início da contagem do prazo de trinta dia constante do 397º, nº 1, al. d) do CPC é o dia 24 de Janeiro de 2020 e não as datas que vêm enunciadas na sentença.
3ªE nesta data - 24 de janeiro de 2020 - que a obra, levada acabo pela requerida é geradora da violação do direito dos requerentes.
4ªE mesmo que assim não se entenda, os requerentes certamente não tomaram conhecimento da obra antes dos primeiros dias de janeiro de 2020, pois foi só nessa data que a obra, na parte que é geradora da violação do direito dos requerentes teve início.
5ª Tendo a providência sido instaurada a 30 de Janeiro de 2020, foi o direito dos requerentes, ora recorrentes exercido dentro do prazo legal referido.
6ª Nas datas referidas na sentença ( 22 de abril e 12 de agosto de 2019 ) nunca poderiam ser entendidas como data de início de contagem do prazo de trinta dias a partir do qual os requerente tiveram conhecimento do início da facto, pois nestas datas a obra não tinha ainda começado.
7ª A data da demolição do imóvel existente no terreno da requerida não tem qualquer relevância para decisão da providência, porquanto ele não é por si só gerador de violação de qualquer direito dos requerentes, como ainda seriam atos preparatórios da obra e, quanto a estes toda a doutrina e jurisprudência têm entendido que estes atos preparatórios não constituem o início da obra.
8ªÉ assim forçoso concluir que a presente providencia foi requerida dentro de trinta dias a contar do conhecimento do facto.
9ª Não é aqui de todo relevante quer a data da demolição do antigo imóvel, quer a data em que deu entrada o requerimento dos ora recorrentes na Câmara Municipal, quer ainda a reunião tida na mesma câmara em 12 de agosto de 2019, porquanto e quando ás ultimas data, a obra ainda não tinha sequer começado e quanto ao primeiro facto (demolição do antigo edifício), ele não é por si só gerador de violação de qualquer direito dos requerentes, como ainda seriam atos preparatórios da obra e, quanto a estes toda a doutrina e jurisprudência têm entendido que estes atos preparatórios não constituem o início da obra.
10ª O edifício da requerida, a ser construído tal como se encontra aprovado, não só viola a servidão de vistas ( a partir das referidas varandas ) a favor do prédio dos requerentes, já constituída, pelo menos por usucapião, como também será objeto de indiscrição de estranhos que estejam nas varandas do prédio da requerida que olham de uma cota superior para o interior das ditas varandas e, além disso, devassando as mesmas com o arremesso de objetos e outros corpos estranhos e, não menos importante, retirando parte da luz natural de que gozam as janelas e varandas referidas.
11ª O corpo do edifício em construção, quer as varadas que se encontram previstas, estão a uma distancia inferior a um metro e meio das referidas janelas do edifício dos requerentes, com a consequente diminuição do arejamento, iluminação natural e exposição prolongada á ação direta dos raios solares, com perda de salubridade e valor do mesmo.
12ª E as referidas varandas deitam na sua parte poente diretamente para o prédio que lhe fica a poente que é da requerida e está a menos de 1,5 metros das ditas varandas
13ª E que a partir dessas janelas e varandas, foi constituída uma servidão de vistas a favor do prédio dos ora recorrentes e que onera o prédio da embargada.
14ª Constituída essa servidão de vistas, o proprietário do prédio vizinho não pode levantar edifício ou outra construção no seu prédio sem deixar o espaço mínimo de um metro e meio entre a construção existente e o novo edifício.
15ª A construção do edifício que a Requerida está a levar efeito no seu prédio, é ofensivo do direito de propriedade dos requerentes da providência e de direitos reais de gozo, geradora de um dano jurídico, que se traduz na ilicitude do facto, porque contrário à ordem jurídica, sendo certo que, a nada fazer, se tornará ainda mais grave e dificilmente reversível tal violação, uma vez que a obra em questão, embora esteja atualmente apenas no primeiro piso, está projetada para ter quatro pisos.
16ªAfastada que está o argumento de que a presente providencia cautelar de embargo de obra nova por não ter sido respeitado o prazo constante da aliena d) do nº 1 do artigo 397º do CPC, é face a todos os elementos de prova que se encontram nos autos que estão preenchidos os restantes pressupostos o Embargo de Obra Nova, a saber:
- que o requerente seja titular de um direito de propriedade ou qualquer outro direito de gozo ou posse;

- que o requerente seja ofendido no seu direito em virtude de obra, trabalho ou serviço novo;

- que o dito trabalho ou serviço novo lhe cause ou ameace causar prejuízo.

17ª A condenação dos Requerentes como litigantes de má fé no pagamento de uma multa fixada em 2 Uc”s e € 1 000,00 ( mil euros), a titulo de indemnização á parte contrária e ainda em custas, constitui uma violação dos artigos 542 e 543 do CPC.
18ª Tomado em consideração a matéria provada e feito o seu enquadramento jurídico, jamais se poderá concluir que os requerentes agiram de má fé
19ªNa verdade, o único propósito que motivou os requerentes, ora recorrentes, foi a firme convicção de que exerciam um direito legitimo e que a sua pretensão era bem fundada.
20ª Não se pode entender e face ao que dispõe ao artigo 542º e 543º do CPC que os requerentes tenham ou negligência grave.
21ªE mesmo que se entenda que a presente providência foi extemporânea (o que só por mera hipótese se admite) também não se pode aceitar que os requerentes tivessem agido com dolo ou negligência grosseira, quando muito negligência ligeira.
22ª Pelo que também, nesta parte a sentença recorrida decidiu mal.
23ª A sentença recorrida violou ou fez interpretação menos correta não só dos artigos 397, 542 e 543 do CPC e ainda dos artigos 1360 e 1362 do Código Civil.
Termos em que deve o presente recurso merecer provimentos e em consequência ser a presente sentença revogada e substituída por decisão que julgue a providência cautelar de obra nova procedente e provada e determinar o embargo da obra dos autos.
Assim se fazendo Justiça”.

3. Contra-alegou a recorrida defendendo a manutenção do decidido.

4. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se à apreciação das seguintes questões:

4.1. Da (in) observância do prazo fixado no nº1 do art.º 397º do CPC para instauração do procedimento;

4.2. Da (in) justeza da condenação dos requerentes/recorrentes como litigantes de má-fé.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1. Releva, para apreciação do recurso, a decisão da matéria de facto inserta na sentença que os recorrentes não impugnam:

“1- Factos Provados

Em face da prova produzida, considero indiciariamente provados os seguintes factos, com pertinência para a decisão da exceção alegada:

1. O prédio urbano, composto por edifício de rés do chão, primeiro, segundo e terceiros andares, sito na Rua dos Pescadores, nºs …, na vila e freguesia de Monte Gordo, concelho de Vila Real de Santo António, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo … e descrito sob o nº … - freguesia de Monta Gordo, na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António pertence aos requerentes.

2. No primeiro, segundo e terceiro andares do prédio dos requerentes e na parte mais a poente da sua fachada sul, a que deita para a Rua dos Pescadores, existe (em cada um pisos) uma janela.

3. Em cada um desses pisos (primeiro, segundo e terceiros andares) e na frente da janela identificada em 3º existe uma varanda balançada com a largura de dois metros, por cinco de comprimentos.

4. O prédio dos requerentes tem uma confrontação a poente com o prédio da requerida, que se encontra em construção, sendo que antes do início da referida construção, existia aí uma casa térrea com logradouro a sul, e para a qual deitava, no lado poente, as varandas e floreiras referidas.

5. O prédio propriedade da requerida é composto, atualmente por uma parcela de terreno para construção com a área 106,51 m2, sito na Rua João de Lisboa, confrontando do norte e poente com a Rua …, do sul com a Rua dos Pescadores e do nascente com …, na dita vila e freguesia de Monte Gordo, inscrito na respetiva matriz sob o art. … e descrito sob a ficha numero …, freguesia de Monte Gordo, na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António.

6. Em setembro de 2019, a requerida elaborou projeto para construção de edifício multifamiliar, no local em causa.

7. A obra que a requerida está a fazer no seu prédio consistiu na demolição do referido edifício térreo que aí se encontrava, encontrando-se agora na fase de construção de um edifício destinado a habitação, com quatro pisos acima da cota de soleira e tem a licença de construção n.º 83/2019, tendo sido autorizada por despacho de 25/11/2019 da referida Camara Municipal de Vila Real de Santo António proferido no processo de obras nº 85/2019.

8. A demolição do imóvel existente ocorreu entre 13 de março de 2019 e 24/7/2019.

9. No processo de demolição n.º 3/2019 deu entrada no dia 22 de abril de 2019 uma reclamação em nome do requerente, onde se pode ler:

“(…)

1. (…)

2. O mesmo teve conhecimento de que a construção contígua à sua, acima identificada, será objeto de demolição para subsequente construção de um prédio (…)

3. Após consulta do respetivo processo administrativo instrutor junto deste Município, o Requerente conheceu não só a decisão de demolição, como também, o projeto que titula a construção a erigir, já aprovado;

4. Sucede que, para sua surpresa, constatou que o prédio a erigir, que consta do projeto aprovado, ficará absolutamente colado à sua construção, em especial, às varandas que integram a fachada principal do seu prédio e, bem assim, ao beiral do mesmo.

5. (…)

6. (…)

7. (…)

8. Acresce que, como é consabido, as varandas vislumbradas no projeto aprovado não poderão ser construídas, posto que não respeitam o intervalo de um metro e meio que deve distar as construções, como determina o artigo 1360.º, nºs 1 e 2, do Código Civil.

(…)”

10. No dia 23 de abril de 2019 dera entrada na Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, em nome do requerente, do pedido de consulta do processo n.º 18/2019, em nome de J… e Outros, referente à Rua João de Lisboa, nº …, em Monte Gordo.

11. No dia 24 de abril de 2019, A… apresentou requerimento junto da mesma edilidade com vista à obtenção de fotocópias do processo n.º 18/2019 (14 páginas)

12. Em 12 de agosto de 2019, nas instalações da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, ocorreu uma reunião entre o representante legal da requerida, o representante dos requerentes A… e técnicos daquela edilidade, onde após tudo explicado e debatido, foi dado a conhecer o esboço de alteração das plantas iniciais, onde estava previsto o afastamento de meio metro da floreira da varanda dos requerentes, procedendo a um corte oblíquo da varanda e colocando um vidro fosco de 1,50 cm de altura.

13. Na sequência de requerimento apresentado na Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, no dia 25 de novembro de 2019, foi emitido alvará de obras de construção n.º 01/2019/85, com vista à edificação de nova construção, para habitação, com 4 pisos acima da soleira e 8 fogos, destinados a habitação.

14. A requerida iniciou as obras de construção do seu prédio em finais de dezembro de 2019.

15. O placard de informação da obra foi colocado logo que as obras tiveram início.

16. Nos primeiros dias do mês de janeiro de 2020, foram colocados os moldes em madeira dos pilares do rés do chão e cheios de betão.

17. A face da parede sul do rés do chão do prédio da requerida fica alinhada com a face da parede sul do rés do chão do prédio dos requerentes.

18. No dia 24 de janeiro de 2020, a ora requerida encheu com betão a dita laje de cobertura do rés do chão e colocou os pilares em ferro armado para o primeiro andar.

19. A parede sul do edifício em construção não recua ao nível do primeiro andar, nem dos andares superiores, ficando no mesmo alinhamento da face da parede sul do rés do chão.

*

2. Factos não provados:

Não logrou provar-se que:

a) (Em 24 de janeiro de 2020) os requerentes pensavam que o primeiro andar do edifício que a requerida está a construir iria recuar um metro na parte sul, de forma a alinhar a parede sul do mesmo com a parede sul do primeiro andar do edifício dos requerentes;

b) E verificaram que tal não ia acontecer;

c) E só nessa ocasião, com a consulta do projeto de arquitetura licenciado, tiveram conhecimento da dimensão da obra da requerida.”.

*

Facto aditado ao abrigo do disposto no art.º 607º, nº4 do CPC – O presente procedimento cautelar foi instaurado em 30.1.2020 (cfr. consulta do requerimento inicial no citius).

2. Do mérito do recurso

2.1. Da (in) observância do prazo fixado no nº1 do art.º 397º do CPC para instauração do procedimento

A providência cautelar de embargo de obra nova visa obter a suspensão imediata de uma obra, trabalho ou serviço novo do qual resulte ou possa resultar a ofensa de um direito de propriedade, de um direito real ou pessoal de gozo ou da posse, resultando dessa ofensa um prejuízo ou uma ameaça de prejuízo (art.º 397º, nº1 do CPC).

O Requerente da providência cautelar deve instaurar o procedimento no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do facto (idem, nº1 ) ou seja do momento em que tenha conhecimento de que a obra é lesiva do seu direito ou do momento em que sabe que a mesma o irá prejudicar.[1]
Trata-se de um prazo de natureza substantiva mas que está sujeito ao regime de contagem resultante do art.º 138, nº1 a 3 do CPC, como resulta expressamente do nº4 da mesma norma.

Entendeu o Tribunal “a quo” terem os requerentes excedido tal prazo aduzindo a seguinte justificação: “(…) resultou da matéria de facto provada que os requerentes (através do seu filho e representante) tiveram conhecimento do projeto de demolição e construção a cargo da requerida, através da consulta do projeto de obras que havia dado entrada nos serviços camarários da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, logo em 22 de abril de 2019.

Por outro lado, resultou ainda da matéria de facto indiciariamente provada que, em agosto de 2019, o representante legal dos requerentes esteve presente numa reunião com vista à obtenção de um acordo entre ambas as partes, no âmbito da qual teve conhecimento das alterações previstas ao projeto inicial.

Assim sendo e ainda que não se considere que a partir do momento em que tiveram acesso ao projeto (abril de 2019) começou a contar o prazo de 30 dias para instaurar a presente providência, sempre haveria que considerar o início do mesmo prazo em agosto de 2019, pois que, nessa data, os requerentes tiveram conhecimento e puderam discutir com o legal representante da requerida não só as obras que iriam ser realizadas, como as alterações previstas para o projeto inicial.

Face aos factos provados e uma vez que a presente ação apenas veio a ser instaurada em 31 de janeiro de 2020 é manifesta a intempestividade da presente providência.”.

Cremos, porém, que o assim decidido não se poderá manter uma vez que se olvidou ter-se provado que “a requerida iniciou as obras de construção do seu prédio em finais de dezembro de 2019” – facto 14.

Ora, antes desse momento a providência não poderia ter sido sequer instaurada pois “esta providência cautelar não pode ser requerida se a obra, o trabalho ou o serviço ainda não se iniciaram. É o que sucede, por exemplo:

– se apenas existe um mero projeto de construção; ou

– se apenas foram levados a cabo trabalhos meramente preparatórios de natureza

administrativa, sem qualquer execução material”[2].

Por conseguinte, e ainda que os Requerentes tenham tido conhecimento do (novo) projecto em Agosto de 2019, esta data acaba por ser despicienda perante a constatação de que a obra nesse momento ainda não estava sequer iniciada, computando-se, por isso, o prazo de 30 dias a partir da data do seu início (e isto no pressuposto de que sabiam que a mesma seria lesiva do seu direito de propriedade).

É o que decorre do art.º 329º do Código Civil que determina em relação a todos os prazos de caducidade que a contagem desses prazos não principia enquanto o direito sujeito a caducar não puder , por força da lei, ser exercido.[3]

Só com o seu início se pode afirmar que a obra (potencialmente) atentatória dos direitos dos requerentes se vai executar e só a partir de então podia a mesma ser suspensa.

Porém, não se se sabe em que dia concreto de “finais de Dezembro de 2019” é que a obra se iniciou, sendo de admitir que poderá ter sido no dia 31…

É que não tendo a recorrida impugnado, por via do recurso previsto no nº2 do art.º 636º do CPC, a decisão da matéria de facto (v.g. este facto 14) e competindo-lhe o ónus de provar[4] que procedimento cautelar foi intentado decorridos mais de 30 dias sobre a data em que o embargante teve conhecimento da obra, trabalho ou serviço novo que lhe causa ou ameaça causar prejuízo, sobre si recai também a desvantajosa consequência da dúvida gerada acerca de um facto decisivo para o conhecimento de tal excepção (artigo 343º, nº 2 do Cód. Civil e 414º do CPC.).

Portanto, tendo a acção sido proposta em 30 de Janeiro de 2020 (e não 31, como é referido na sentença) nada mais resta do que julgar improcedente a excepção deduzida pela requerida, alcançando-se a conclusão de que a decisão recorrida não se poderá manter.

Sem embargo, não dispõe este Tribunal de elementos que lhe permitam apurar se a integralidade dos requisitos exigidos para a decretação da providência se mostram preenchidos porquanto na decisão da matéria de facto apenas se consideraram os factos necessários à apreciação da excepção, subsistindo por apurar outros alegados ( v.g. artigos 23, 24º, 25º e 26ºdo requerimento inicial).

Com efeito, para que esta providência cautelar possa ser decretada, torna-se necessário o preenchimento cumulativo de cinco requisitos:

1) deve estar em causa uma obra, um trabalho ou um serviço;

2) essa obra, trabalho ou serviço devem estar em curso;

3) essa obra, trabalho ou serviço devem ser novos;

4) da obra, trabalho ou serviço deve resultar a ofensa de um direito real ou pessoal

de gozo ou da posse;

5) deve existir um prejuízo ou uma ameaça de prejuízo;

Acresce que, para efeitos de possibilidade de continuação da obra, o art.º 401.º impõe ao julgador que realize um juízo de ponderação entre o prejuízo resultante para o requerido em consequência da paralisação da obra e o prejuízo que pode advir para o requerente com a sua continuação.

Entende-se, por isso, que a verificação desse prejuízo não pode bastar-se com a mera afirmação da violação de um direito ou da posse, devendo, antes, sustentar-se em factos concretos e objetivos que revelem a ameaça ou a existência de um prejuízo.[5].

E esses factos, como dissemos, subsistem por apurar.

2.2. Da (in) justeza da condenação dos requerentes como litigantes de má-fé.

Para justificar a condenação dos requerentes, exarou-se na sentença recorrida o seguinte:

“No caso concreto e independentemente do desfecho da ação principal que vier a ser instaurada, consideramos que a conduta processual adotada pelos requerentes se traduziu numa manobra de má fé instrumental, na medida em que, não obstante estivessem cientes da dimensão das obras e de que as mesmas atentavam contra os seus direitos logo em abril de 2019 e depois, em agosto de 2019, optaram por vir instaurar a ação, omitindo aquele conhecimento e a realização da reunião de agosto de 2019 e alegando só ter tido conhecimento das mesmas após o seu início em dezembro de 2019 e na sequência da certidão camarária datada de janeiro de 2020.”.

Depreende-se da decisão recorrida que os recorrentes terão cometido os ilícitos previstos no art.º 542 º, nº2, alíneas a ) e b) nas quais se sanciona a conduta do sujeito processual que : “ a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar“ b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa”.

Ao contrário do que sucede noutros ordenamentos jurídicos, o nosso legislador processual optou por proceder à tipificação das condutas integradoras do conceito de litigância de má-fé.

Para além disso, a verificação do elemento objectivo do tipo não é bastante para a condenação de um sujeito como litigante de má-fé, uma vez que o elemento subjectivo será também imprescindível para esse efeito.

De todo o modo, é de salientar que “não basta que ocorra uma mera desconformidade com a verdade objectiva para que se possa afirmar que a parte transgrediu o dever de verdade, actuando com má-fé processual. Fazê-lo, seria impor sobre os litigantes, um dever de indagação total e prévio da realidade dos factos que fundam as suas alegações, de modo que apenas quando apurada a verdade real dos mesmos, se pudesse exercer licitamente o direito de acção ou de defesa. Todavia, um tal entendimento acabaria por esvaziar o próprio sentido do processo, pois impediria que os cidadãos a ele pudessem recorrer solicitando ao tribunal que se pronunciasse sobre factos em relação aos quais apresentem determinada incerteza”[6].

Mas, como dissemos, exige-se também a ocorrência de um determinado elemento subjectivo para que se verifique o tipo de ilícito nela descrito, o que se justifica pelo facto de a litigância de má-fé se não limitar a impedir a conduta abusiva mas também sancioná-la mediante a aplicação de uma multa e a obrigação de ressarcimento dos danos causado.

Ter-se-á de concluir, pois, que apenas preencherá o ilícito típico da al. a), do art. 542º, nº 2, a parte que tenha consciência da falta de fundamento da sua pretensão, ou aquela que, embora não a tendo, devê-la-ia ter se houvesse cumprido os deveres de cuidado que lhe eram impostos.

De igual sorte não é suficiente para se mostrar preenchido o ilícito inserto na alínea b) do mesmo normativo terem-se provado factos diversos dos alegado pela parte para que se conclua que esta faltou à verdade.

A verdade alcançada é a verdade processual , obtida através de determinadas regras e princípios , dentre os quais o da “ livre apreciação da prova”.

Muitas vezes a verdade processual é apenas a verdade que foi possível obter.

Também não releva a afirmação de um facto que nenhum relevo assumiu para o desfecho da acção.

Retomando o caso subjudice, parece-nos evidente que a condenação dos requerentes não tem respaldo factual.

Ademais, os factos considerados pelo Tribunal “ a quo” acabaram por se revelar despiciendos.

Mas sobretudo não se pode afirmar terem os recorrentes, intencionalmente ou por falta da diligência exigível a qualquer litigante, violado dever de probidade.

Faltando tal elemento subjectivo, a sua conduta não poderá sequer ser considerada ilícita e o sujeito processual não poderá ser condenado como litigante de má-fé.

É, por isso, que a decisão recorrida, também neste segmento, não se poderá manter.

III- DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, revogando-se a decisão recorrida que julgou a providência “extemporaneamente instaurada” e condenou os requerentes, a título de litigância de má fé, no pagamento de uma multa que fixou em 2 Uc´s e € 1 000,00 (mil euros), a título de indemnização à parte contrária, determina-se que o processo prossiga os seus ulteriores termos.

Custas pela apelada.

Évora, 4 de Junho de 2020

Maria João Sousa e Faro (relatora)

Florbela Moreira Lança

Ana Margarida Leite

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[1] Neste sentido, Abrantes Geraldes in Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, ( set.2000) pag.231/232.
[2] In “ PROVIDÊNCIAS CAUTELARES CONSERVATÓRIAS :QUESTÕES PRÁTICAS ATUAIS” de Marco Carvalho Gonçalves, consultável em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/53693/1/Provid%C3%AAncias%20cautelares%20conservat%C3%B3rias-%20Quest%C3%B5es%20pr%C3%A1ticas%20atuais.pdf. e jurisprudência aí citada.
[3] Assim, Antunes Varela in RLJ , ano 120, nº3787, pag.299.
[4] José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto in “ Código de Processo Civil Anotado”, vol.II, 2001, pag.143.
[5] Neste sentido, Marco Carvalho Gonçalves in ob.cit.
[6] Assim, Marta Alexandra Frias Borges, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé Coimbra, 2014, pag. 49 consultável em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/28438/1/Algumas%20reflexoes%20em%20materia%20de%20litigancia%20de%20ma-fe.pdf