Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
8083/15.2TDLSB.E1
Relator: JOSÉ MARTINS SIMÃO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA AGRAVADO
INVERSÃO DO TÍTULO DE POSSE
ELEMENTO SUBJECTIVO
Data do Acordão: 02/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Sumário:
i) a apropriação, que implica a inversão do título de posse, extrai-se de actos concludentes de que resulte a intenção do agente fazer sua a coisa, sendo exemplo de tal apropriação a recusa de restituição ou a omissão da recusa depois de interpelação para o efeito, ou ainda a mera omissão de devolução decorrido um tempo razoável e, tratando-se de coisa fungível como o dinheiro, ocorre quando o agente não a restitui a tempo e sob a forma combinada com o seu proprietário, ou dispõe dele de forma injustificada.
ii) os factos que integram o elemento subjetivo «acontecimentos do foro interno» não são provados, por via de regra, por prova direta.
iii) o bem jurídico tutelado pelo crime de abuso de confiança é a propriedade e do tipo legal decorre que são elementos objetivos do mesmo: a) a apropriação ilegítima; b) de coisa alheia móvel; c) entregue por título não translativo da propriedade.
iv) ao nível subjetivo, o dolo consiste na vontade do agente inverter o título de posse, por se querer transformar de possuidor alieno domine em possuidor ut domin, com a consciência de agir contra o direito, quer não restituindo a coisa, quer não lhe dando o destino devido.
v) tendo a assistente entregue dinheiro aos arguidos que o dissiparem em proveito da sociedade que geriam, apropriaram-se do mesmo de forma injustificada, cometeram o crime de abuso de confiança, previsto no art.º 205.º n.º 1 e 4 al. a) do CP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I- Relatório
Nos presentes autos de processo Comum Singular, com o número acima mencionado, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre (Juízo Local Criminal de Portalegre) a acusação foi julgada improcedente, por não provada e em consequência, por decisão de 2 de Maio de 2018, os arguidos CC..., e TJ..., foram absolvidos do crime de abuso de confiança, p. e p. no artº 205º, nº 1 e nº 4 al. a) do C. Penal, bem como do pedido cível formulado pela demandante.

Inconformada a assistente recorreu, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:
« UM: Houve manifesto erro da Mma. Juiz “a quo” na interpretação e aplicação do direito à matéria de facto dada como provada, porquanto resulta, inequivocamente, da matéria de facto dada como pro-vada nos autos o elemento objectivo “apropriação” por parte dos arguidos, os quais actuaram com animo domini sobre o bem em causa, isto é, sobre as quantias monetárias entregues pela Assistente e que tinham como fim, único, o pagamento do 2º e 3º pagamento por conta de 2012. Da análise da prova produzida, não resulta qualquer dúvida que houve uma efectiva inversão do título da posse por parte dos Arguidos: estes, ao não terem efectuado, nas datas limite dos respectivos prazos, os referidos pagamentos por conta (fim para o qual tinha sido entregue) passaram a usar a coisa entregue – a quantia de €7.860,00 – como sua, destinando a mesma ao proveito próprio da sociedade que ambos geriam. Verificado o elemento objectivo do tipo: “apropriação”, deverão os arguidos CC..., e TJ ser condenados, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança qualificado, com as respectivas e legais consequências, tendo em conta o grau de ilicitude do seu comportamento, a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo e as exigências de prevenção geral e especial deste tipo de infracção.
DOIS: A sentença proferida enferma de manifesta e insanável contradição da respectiva fundamentação, designadamente nas decisões relativas à matéria de facto dada como Provada e a matéria de facto dada como Não Provada, concluindo-se, simultaneamente, por uma decisão e pelo seu contrário! Concretamente existe manifesta contradição entre as alíneas b) e c) dos Factos Não Provados e entre o Facto n.º 9 “in fine” e o Facto n.º 12 dos Factos Provados, assim como, entre as alíneas a) e d) dos Factos Não Provados e entre o Facto n.º 9 “in fine” e o Facto n.º 11 dos Factos Provados. Assim, padece a sentença do vício previsto na al. b) do n.º 2 do art. 410º do Código de Processo Penal, com todas as legais consequências, muito concretamente o disposto no n.º 1 do art. 426º do Código de Processo Penal.
TRÊS: A conduta dos arguidos preenche todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de confiança qualificado de que vinham acusados. A factualidade provada, nomeadamente no que respeita à apropriação por parte dos Arguidos, é suficiente para responsabilizar os mesmos em sede de responsabilidade extracontratual porquanto resultou provado que os arguidos ficaram “com o dinheiro e utilizado em proveito próprio da sociedade que ambos geriam” (Facto Provado n.º 9 “in fine”). Assim, o pedido de indemnização civil deve ser julgado procedente, por provado, pelo montante de €9.505,54, acrescido de juros de mora a contar da notificação do pedido aos Arguidos.
Termos em que deve ser proferido douto Acordão que, apreciando a matéria de facto e interpretando e aplicando correctamente a lei, proceda à revogação da sentença recorrida com a consequente condenação dos Arguidos pelo crime de abuso de confiança qualificado de que vinham acusados e no pagamento do pedido de indemnização cível, com todas as consequências legais daí advenientes.
ASSIM VOSSAS EXCELÊNCIAS FARÃO JUSTIÇA!

O Ministério Público respondeu ao recurso dizendo:
«1.Os arguidos foram absolvidos do crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.º do Código Penal;
2. Não conformado com a absolvição, recorreu a Assistente, pugnado pela condenação, alegando erro notório na apreciação da prova;
3. Nos termos do artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que o recurso pode ter como fundamento, desde que o vicio resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o erro notório na apreciação da prova;
4. Para que haja erro notório na apreciação da prova é necessário que a decisão do julgador, que foi fundamentada na sua livre convicção, seja uma decisão, de entre as possíveis, aquela que é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum;
5. Para que existisse erro notório na apreciação da prova necessário era que fossem dado como provados factos incompatíveis entre si, ou que fossem dados como provados factos contrários à prova produzida;
6. Nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador;
7. Assim, na valoração da prova, o julgador é livre de formar a sua convicção desde que, para tanto, a mesma não seja contra as regras da experiência, da lógica e da razão;
8. Da leitura da sentença, não resulta nenhum erro notório na apreciação da prova;
9. Sendo que face à fundamentação da douta sentença recorrida, assente na prova produzida e nas regras da experiência comum e da lógica, é evidente que a decisão do Tribunal a quo era a única que podia ser tomada, sendo inatacável precisamente porque foi proferida em obediência à lei;
10. O que a Recorrente pretende é substituir a sua convicção à convicção do Tribunal;
11. Quanto à contradição insanável na fundamentação, entendemos que não existe qualquer contradição, como resulta claro das passagens da sentença que ora foram transcritas.
Termos em que, em nosso entender, deverá ser negado provimento ao recurso e confirmado a douta sentença recorrido nos seus precisos termos».
Nesta Relação o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente e que se deve manter a decisão recorrida.
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPPenal, os arguidos e a assistente não responderam.
Colhidos os vistos legais. Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação
Factos provados
Discutida a causa provaram-se os seguintes factos:
1.Os arguidos eram os sócios gerentes da sociedade denominada “C..., Lda”, sendo que a arguida TJ..., apenas foi gerente até 20 de Maio de 2013, data em que renunciou à gerência;
2.A sociedade “..., Lda” era gerida por ambos os arguidos e a conta bancária da mesma podia ser movimentada por ambos os arguidos;
3.A actividade da sociedade “..., Lda” era a prestação de serviços nas áreas de contabilidade e fiscalidade;
4. No âmbito dessa actividade, os arguidos, através da sociedade de ambos, prestaram serviços de contabilidade à Assistente R..., Lda.;
5. Assim, ao abrigo da avença mensal que a Assistente tinha com a sociedade dos arguidos, a Assistente entregou a 20 de Setembro de 2012, através de transferência bancária efectuada da conta da progenitora do gerente da Assistente, HL..., a quantia de € 3.930,00 à sociedade gerida pelos arguidos, para pagamento do 2.º pagamento por conta do IRC do ano de 2012;
6. Na transferência bancária supra referida foram igualmente entregues a quantia devida pela avença mensal (€110.70) e o pagamento da Segurança Social dos trabalhadores (€206,44), sendo que o valor global da transferência bancária foi de € 4.247,14;
7. E entregou, a 7 de Dezembro de 2012, através de transferência bancária efectuada da conta da progenitora do gerente da Assistente, HL..., a Assistente a quantia de € 3.930,00 à sociedade gerida pelos arguidos, para pagamento do 3.º pagamento por conta do IRC do ano de 2012;
8. Na transferência bancária supra referida foram igualmente entregue a quantia devida pela avença mensal e o pagamento da Segurança Social dos trabalhadores, sendo que o valor global da transferência bancária foi de € 4.246,76;
9. Contudo os arguidos não procederam à entrega do 2.º e 3.º pagamento por conta de IRC da Assistente aos cofres do Estado, que deviam ter sido efectuados até 30 de Setembro de 2012 (o 2.º pagamento por conta) e 15 de Dezembro de 2012 (o 3.º pagamento por conta), tendo ficado com o dinheiro e utilizado o mesmo em proveito próprio da sociedade que ambos geriam;
10. O valor de € 7.860,00 era da Assistente e destinava-se a ser entregue aos cofres do Estado para pagamento por conta do imposto de IRC de 2012, o que os arguidos bem sabiam;
11. Os arguidos bem sabiam que a Assistente apenas lhe havia entregue a quantia de € 7.860,00 para que estes procedessem à estrega da mesma quantia aos cofres do Estado para pagamento por conta do imposto de IRC de 2012;
12. Os arguidos ao não entregarem a referida quantia aos cofres do Estado sabiam que estavam a actuar contra a vontade e sem o conhecimento da Assistente;
13. O arguido CC..., regista uma condenação pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105.º n.ºs 1 e 5 do RGIT, por factos praticados em 2009, tendo sido condenado na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período;
14. A arguida TJ..., não tem antecedentes criminais registados.
*
Com interesse para a discussão da causa, não se provou que:
a) Apropriaram-se, assim, os arguidos da quantia de € 7.860,00 que a Assistente lhes entregou para pagamento por conta do imposto do IRC de 2012;
b) Agiram os arguidos com intenção de fazer seu o montante de € 7.860,00, integrando tal quantia no património da sociedade que geriam, bem sabendo que tal não lhes pertencia e que actuam contra a vontade e em prejuízo da Assistente;
c) Os arguidos actuaram com o objectivo concretizado de se apropriar do dinheiro, integrando-o no património da sociedade que geriam;
d) Agiram os arguidos de forma livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e mesmo assim não se coibiram de as praticar.
*
III . Apreciação do recurso

Oobjeto dos recurso é definido pelas conclusões formuladas pela recorrente na motivação, arts. 403º, nº 1 e 412ºnº 1 do CPP.
As conclusões dos recursos destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância da recorrente em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).
Perante as conclusões do recurso, as questões a decidir são as seguintes:
1º Dos vícios do erro notório na apreciação da prova e da contradição insanável da fundamentação.
2ª-Do enquadramento jurídico-penal dos factos.
3ª Da medida da pena.
4ª Do pedido de indemnização civil.

III- 1ª- Do erro notório na apreciação da prova.
A assistente alega que, resulta da matéria provada o elemento objetivo “apropriação” por parte dos arguidos, uma vez que a assistente entregou, por duas ocasiões distintas, o montante total de € 7.860,00 aos arguidos para um determinado fim, a entrega ao Estado para pagamento do 2º e 3º pagamento de conta do IRC do ano de 2012, o que os arguidos não cumpriram, “tendo ficado com o dinheiro e utilizado o mesmo em proveito próprio da sociedade que ambos geriam (facto nº9 da matéria provada).
Vejamos.
Este vício está previsto no art. 410º, nº 2 al. c) do CPPenal, que dispõe: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal ao recurso da matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) (…); b) (…); c) erro notório na apreciação da prova”
O erro notório tem de “resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum”, cingindo-se ao que essa decisão contenha, sem apelo a elementos que não sejam intrínsecos e à luz das máximas da experiência que o homem de formação média conhece.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques em “Recursos em processo Penal”, 7ª Edição, 2008, Editora Reis dos Livros, pág 77, existe erro notório da apreciação da prova “ (…), quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em critérios ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis”.
O erro notório caracteriza-se como um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
Ocorre quando a matéria de facto sofre de uma irrazoabilidade passível de ser patente a qualquer observador comum por se opor à normalidade dos comportamentos e às regras da experiência comum, ou melhor, ele tem-se por verificado, quando o conteúdo da decisão, por si só ou conjugado com aquelas regras, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que o tribunal chegou.
O tribunal a quo considerou que, no caso em apreço, se provou que a sociedade ..., Ld recebeu determinadas quantias da assistente para o pagamento de impostos, e que o destino do dinheiro não foi cumprido. “Contudo, nenhum facto foi provado que possa integrar o conceito de apropriação, já que para tal não basta não dar o destino para o qual a coisa foi entregue. É necessário provar factos concretos, como sejam a recusa a devolver, a venda, a dissipação, a ocultação pois é nisso que se traduz o animus domini”.
De acordo com a matéria de facto provada, a assistente entregou a quantia de € 7,860,00 à sociedade gerida pelos arguidos, para que estes procedessem à entrega da mesma quantia aos cofres do Estado, por conta do IRC do ano de 2012. Contudo, os arguidos não procederam a tal pagamento tendo ficado com o dinheiro e utilizado o mesmo, em proveito próprio da sociedade, que ambos geriam.
Ter-se-ão os arguidos apropriado da quantia referida? A decisão recorrida entendeu que não, com o argumento de que não se provou qualquer facto que possa integrar tal conceito e que não basta não dar o destino à coisa, para a qual foi entregue.
É certo que, a simples negativa de restituição ou omissão de emprego para o fim determinado, não significa necessariamente apropriação ilegítima. Mas, no caso em apreço, há que ter em conta que, também se provou que os arguidos ficaram com o dinheiro e utilizaram o mesmo em proveito próprio da sociedade que geriam. Deste modo, os arguidos dissiparam o dinheiro, que lhes foi entregue para determinados fins em proveito da sociedade que geriam. Os arguidos agiram, assim, como se o dinheiro fosse deles, usando-o como se fossem os respetivos donos, apropriando-se do mesmo. É este o momento da inversão do título de posse, enquanto que até à data do pagamento do imposto do IRC, os arguidos possuíam o dinheiro em nome de outrem, eram meros detentores, uma vez que receberam o dinheiro por título não translativo da propriedade, mas a partir do momento em que dissiparam o dinheiro agiram como donos do mesmo.
A apropriação, que implica a inversão do título de posse, extrai-se de actos concludentes de que resulte a intenção do agente fazer sua a coisa, sendo exemplo de tal apropriação « a recusa de restituição ou a omissão da recusa depois de interpelação para o efeito», ou ainda a «mera omissão de devolução decorrido um tempo razoável» e, tratando-se de coisa fungível como o dinheiro, «ocorre quando o agente não a restitui a tempo e sob a forma combinada com o seu proprietário, ou dispõe dele de forma injustificada» - Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pág. 568.
Conclui-se, assim, que os arguidos ao dissiparem o dinheiro em proveito da sociedade que geriam, se apropriaram do mesmo de forma injustificada, bem sabendo que não lhes pertencia e que a sua conduta era proibida por lei.
Ao ter seguido outro caminho, o tribunal incorreu no alegado erro notório.
Impõe-se, por isso, ao abrigo do disposto no art. 431º do C.PPenal que se considere provado que, os arguidos se apropriaram da quantia de € 7.860,00, que a assistente lhes entregou para pagamento por conta do IRC de 2012, ficando este facto constante da alínea a) da matéria não provada eliminado, e passando a constar da matéria provada com o nº 7 A). Por causa da falta de pagamento do imposto referido, a assistente teve de suportar a coima de €1.645,54, (como resulta dos documentos de fls. 30 a 32), o que passará também a constar do facto 7ºA.
Os factos constantes das alíneas b) a d) da matéria não provada dizem respeito ao elemento subjetivo da infração e mais não são do que consequência lógica da actuação dos arguidos.
Na verdade, os elementos subjetivos do crime, ou seja a intenção dos agentes (neste caso o dolo) estão demonstrados pelos factos objetivos que resultaram provados.
Como é consabido, os factos que integram o elemento subjetivo «acontecimentos do foro interno» não são provados, por via de regra, por prova direta.
Na normalidade das situações, o tribunal adquire esta prova dos factos materiais e objetivos, por inferência tendo em atenção as regras da experiência comum, segundo um processo lógico racional.
Assim, a intenção do agente, dolosa, retira-se com facilidade dos elementos objetivos apurados, respeitantes aos atos praticados.
O modo de atuação dos agentes demonstra o carácter desejado da conduta. Só quem quer praticar o facto ilícito em questão age como os arguidos agiram, receberam o dinheiro da assistente para procederem ao pagamento do imposto do IRC daquela, o que não fizeram, mas dissiparam tal quantia em proveito próprio da sociedade que geriam, em prejuízo da assistente, de modo livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas pela lei penal.
Os factos constantes das alíneas b) a d) passam assim a constar da matéria provada, respetivamente com os nºs 12 A, 12 B e 12 C) e são eliminados da não provada.
Está, assim prejudicado o conhecimento do vício da contradição insanável da fundamentação.

III- 2ª Da qualificação jurídica dos factos.
Dispõe o art. 205º do C.Penal:
“1. Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. O procedimento criminal depende de queixa.
4. Se a coisa referida no nº 1 for:
a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
5. (…)”
O bem jurídico tutelado pelo crime é a propriedade e do tipo legal decorre que são elementos objetivos do mesmo: a) a apropriação ilegítima; b) de coisa alheia móvel; c) entregue por título não translativo da propriedade ( Simas Santos/Leal Henriques, in Código Penal, Vol. III, 4ª edição, pág 791).
E ao nível subjetivo, o dolo consiste na vontade do agente inverter o título de posse, por se querer transformar de possuidor alieno domine em possuidor ut dominus, com a consciência de agir contra o direito, quer não restituindo a coisa, quer não lhe dando o destino devido.
Estão preenchidos os elementos constitutivos do crime imputado aos arguidos em que incorreram em co-autoria, pelo que se impõe a sua condenação.

3ª Da medida concreta da pena
Ao crime de abuso de confiança, p. e p. no art. 205º nº 1 e 4º do C.Penal corresponde a pena de prisão até cinco anos ou pena de multa até 600 dias..
Nos termos do art. 70º do C.Penal se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena de privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
São assim finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam e impõem a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação.
O arguido sofreu uma condenação por crime de abuso de confiança fiscal na pena de 1 ano de prisão, que foi suspensa na sua execução e a arguida é delinquente primária, mas inexistem outras circunstâncias que atenuem a responsabilidade criminal desta.
As exigências de prevenção geral neste tipo de crimes são prementes não só pela crescente frequência do tipo de actos similares aos praticados, mas também pelas consequências daí advenientes, pelo que se considera que a pena de multa não satisfaz, no caso concreto, as finalidades da punição.
Preceitua o artigo 40º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2).
O art. 71º, nº 2 do C. Penal estabelece que a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo ainda o tribunal, na determinação daquela atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, designadamente as referidas nas várias alíneas do seu nº 2.
Destes preceitos infere-se que, a função primordial de uma pena, sem embargo de outros aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos que incidam sobre os bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.
O limite mínimo da pena é dado pelo quantum da pena, que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.
Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.
O grau de ilicitude dos factos é mediano, atento o prejuízo causado à assistente.
A conduta dos arguidos é-lhes assacada a título de dolo na forma mais grave a directa, uma vez que agiram livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida.
As exigências de prevenção geral são prementes, face a frequência com que ocorre este tipo de crimes, a que importa por cobro face aos prejuízos que resultam para os ofendidos e as exigências de prevenção especial não são significativas.
Perante este quadro, consideramos justa e adequada a pena de 18 meses de prisão a aplicar a cada um dos arguidos.
A pena de prisão efetiva não se mostra necessária, dando-se prevalência a medida substitutiva, no caso, a suspensão da sua execução, nos termos do artº 50º do C.Penal, desde que acompanhada pela imposição de um dever que eficazmente responda à culpa dos arguidos.
Assim, suspende a execução da pena aplicada a cada um dos arguidos, por igual período, sob a condição de, nesse período cada um dos arguidos pagar à assistente a quantia de três mil euros, a comprovar nos autos, correspondente a parte do pagamento adiante atribuído a título de indemnização civil.

III-4ª-Do pedido cível.
A demandante por causa dos factos destes autos formulou o pedido cível contra os demandados no montante de € 9.505,54, que engloba a quantia que entregou à firma de que aqueles eram sócios gerentes a título de IRC devido ao Estado, a que acresce a coima que a demandante teve de suportar em 23-07-2015, pelo não pagamento atempado do imposto em causa.
A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil (art. 129º do C.Penal.
Nesta matéria, rege a norma contida no art. 483º do Cód. Civil, que dispõe: “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Deste preceito resulta que, é necessário que se verifiquem cumulativamente cinco pressupostos para haver lugar a responsabilidade civil por factos ilícitos:
1º- A existência de um facto voluntário, consubstanciado numa acção ou omissão, objectivamente controlável ou dominável pela vontade;
2º- Que o facto seja ilícito, podendo tal ilicitude, nos termos do art. 483º nº 1 do Cód. Civil assumir duas variantes: a) violação do direito de outrém; b) violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesse alheios;
3- A verificação de um nexo de imputação do facto ao lesante (culpa): a violação tem que ser praticada com dolo ou mera culpa, no âmbito do que preceitua o art. 483º nº 1, para que seja susceptível de geral responsabilidade. “Agir com culpa, significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo”, (vide Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral” Volume I, 7ª edição revista e actualizada, Almedina Coimbra, 1993, pág 554);
4- A verificação do dano;
5-O nexo de causalidade entre o facto e o dano manifestado na teoria da causalidade adequada, expressamente acolhida no art. 563º do Código Civil segundo a qual, o autor do facto só será obrigado a reparar aqueles danos que não se teriam verificado se não fosse a sua atuação.
Ora, a conduta dos arguidos constitui um facto dominável pela vontade e um ilícito, na medida em que, se apropriaram de forma ilegítima da quantia de € 7.860,00, que lhe havia sido entregue por título não translativo de propriedade, pelo que violaram o bem jurídico penalmente protegido, da propriedade.
Por outro lado, os arguidos na qualidade de representantes legais da sociedade que geriam agiram com culpa, isto é, com plena capacidade de entender e querer praticar os factos, bem sabendo que não tinham direito à quantia que lhe fora entregue e com a sua conduta causaram à demandante um prejuízo equivalente a tal quantia, a que acresce a coima de € 1.645,54, que teve de suportar pelo não pagamento atempado de tal imposto.
Estão, assim preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos acima mencionados, pelo que se impõe a condenação dos demandados na quantia de € 9.505,54.

IV – Decisão.
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto pela assistente, e em consequência altera-se a matéria da facto nos termos referidos, revoga-se a decisão recorrida e condena-se cada um dos arguidos pela prática do crime de abuso de confiança, p. e p, no art. 205º nº 1 e 4 al. a) do C.Penal na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período sob condição de, nesse período, cada um dos arguidos pagar a quantia de 3.000,00 (três mil euros) à assistente, quantias que logo que liquidadas deverão ser abatidas no montante, a que se alude no parágrafo que se segue.
Quanto ao pedido cível condenam-se os demandados a pagar à demandante a quantia de € 9.505,54 (nove mil quinhentos e cinco euros e cinquenta e quatro cêntimos) e juros legais desde a data da notificação para contestar o pedido cível.
Custas cíveis pelos demandados.
Notifique.
Évora, 19.02.2019
Relator: José Martins Simão
Maria Onélia Vicente Neves Madaleno
(texto elaborado e revisto pelo relator).