Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
15-09.3GTABF.E1
Relator: FELISBERTO PROENÇA DA COSTA
Descritores: PERÍCIAS
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data do Acordão: 02/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Legislação Nacional: ART. 152 C.P.P.
Sumário: 1 - Empresas privadas de realização de “perícias” em acidentes de viação e a GNR não são peritos para os efeitos do disposto no art. 152º do C.P.P..
2 – Os relatórios elaborados por tais entidades não são perícias processuais penais e devem ser apreciados livremente pelo tribunal.
Decisão Texto Integral:





TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA











1

Recurso n.º 15/09.3GTABF

Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
Nos autos de Processo Comum Singular, com o n.º 15/09.3GTABF, a correrem termos pelo 2.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de F, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido:
BHL, casado, aposentado, nascido em 11 de Maio de 1951, natural da Holanda, filho de (…);
Imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos arts. 15.º, alínea b) e 137.º, n.º 1 e 2, ambos do Cód. Pen.

O arguido BHL, devidamente notificado, apresentou contestação e arrolou testemunhas, admitindo o momento espácio-temporal do acidente, recusando que tenha desrespeitado o sinal de stop existente no cruzamento. Bem pelo contrário, garantindo que parou e imobilizou o seu veículo junto ao referido sinal vertical e só após se ter certificado que podia entrar no cruzamento com segurança, o fez, pelo que o acidente só ocorreu porquanto o motociclo circulava a velocidade superior a 50 Km/hora, sendo certo que, quando menos, a esta velocidade nunca o acidente teria tido as consequências que teve para o malogrado HO.

(…), constituíram-se assistentes e deduziram pedido de indemnização civil contra L Seguros, S.A., tendo logrado demandantes e demandada alcançar transacção nos autos, devidamente homologada, julgando-se extinta a instância cível enxertada

Procedeu-se à realização de julgamento, com observância das formalidades legais, vindo-se, no seu seguimento, a prolatar pertinente Sentença, onde se Decidiu:
Absolver o arguido BHL, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.º 137.º, n.º 2, do Código Penal.

Inconformada com o assim decidido traz a Magistrada do Ministério Público o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
1. Em sede de sentença, o arguido foi absolvido pela prática de crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal;
2. Entendemos que o único ponto (1) da matéria de facto dada como não provada deveria ter sido considerado provado, que o facto dado como provado sob os ponto 4 e 5 deveriam, pelo menos em parte, ter sido incluído entre os factos não provados e alterados em conformidade e ainda que deveriam ter sido dados como provados outros factos;
3. As concretas provas que, em nosso entender, impõem decisão diversa da recorrida são as seguintes: relatório de peritagem elaborado pela empresa CC, mais concretamente fls. 371, 372, 387 e 388; Croquis de fls. 30 e 47; relatório fotográfico de fls. 90 e seguintes; relatório pericial de acidente de viação de fls. 48 a 57 e o depoimento da testemunha GC;
4. Com efeito, não obstante o arguido dizer que “conduziu o veículo até ter visibilidade, e embora tivesse olhado para o lado esquerdo e direito da via, estava mais preocupado em ver o espelho convexo ali existente e que permite uma melhor visibilidade da estrada, ainda que também não perfeita” e “que só avançou quando ficou com a certeza que o podia fazer em segurança, isto é, só quando se certificou que não vinha ninguém”, certo é que tal versão não é apta nem capaz de explicar e esclarecer as razões pela quais o arguido não viu o motociclo conduzido pela vítima que circulava no sentido SB/B;
5. Ora, resulta do relatório de peritagem elaborado pela empresa CC que quando as rodas da frente se encontram sobre a referida linha delimitadora da via o condutor tem uma visibilidade de 76 metros e quando o banco do condutor se encontra sobre a referida linha delimitadora da via, o condutor tem uma visibilidade de 84 metros;
6. Para além do mais, do lado oposto ao entroncamento encontra-se um espelho para ajudar na visibilidade aos veículos que provenham do CM que permitia uma visibilidade de 84 metros para o local onde circulava o motociclo antes da colisão;
7. Da análise do croqui e relatório fotográfico apurou-se que o veículo conduzido pelo ora arguido se encontrava com a sua parte traseira na faixa de rodagem do sentido de marcha em que a vítima HO circulava e a frente do veículo na faixa de rodagem onde o Arguido pretendia entrar, isto é, o sentido contrário ao sentido de marcha do falecido;
8. Verificou-se ainda que o arguido já tinha ultrapassado a linha (imaginária) delimitadora que separa o CM e a EM , isto é, já tinha deixado o Caminho Municipal e encontrava-se em plena Estrada Municipal, ocupando-a;
9. Será ainda de atentar que o condutor do motociclo deixou no pavimento marcas de travagem com 19,45 metros de comprimento o que significa, segundo o relatório pericial de acidente de viação de fls. 48 a 57, que a vítima terá avistado o veículo automóvel conduzido pelo arguido a cerca de 35,70 a 37,80 metros a contar do local do embate;
10. Deste facto objectivo pode-se inferir que o veículo automóvel mudou a direcção para esquerda entrando na Estrada Municipal quando o condutor do motociclo já se encontrava, pelo menos, a meio desse percurso;
11. Salvo melhor interpretação, a velocidade de impacto com as massas do condutor e do pendura situava-se entre 64-66 Km/hora e não uma velocidade de impacto compreendida entre 64 a 70 Km/hora, uma vez que esta última margem abrange a situação em que o motociclo seguia sem qualquer ocupante, o que não aconteceu;
12. Entendemos, assim, a ser dado como provada a velocidade inicial do condutor, que a vítima HO circulava com uma velocidade inicial compreendida entre os 75 km/hora e os 84 km/hora;
13. Ora, da concreta posição do veículo na via e da descrição da testemunha GC permite concluir, objectivamente, que se o arguido tivesse efectivamente tomado as devidas cautelas, nomeadamente ter visionado o lado esquerdo da estrada, quer espreitando quer através do espelho auxiliar, teria avistado o motociclo a surgir da curva existente a cerca de 78 metros a contar do entroncamento e também a meio do percurso entre a curva e o entroncamento e teria imobilizado o seu veículo atempadamente, ainda que, no máximo, com a parte da frente do veículo em cima da faixa de rodagem relativa ao sentido de marcha em que circulava o motociclo.
14. No entanto, como se verificou, tal situação não ocorreu;
15.Na verdade, o arguido já tinha deixado o CMe encontrava-se, no momento no embate, a ocupar a ambas as faixas de rodagem da EM;
16. E se realmente o arguido tivesse tomado todas as cautelas antes de iniciar a manobra de mudança de direcção à esquerda tivesse observado para o lado esquerdo da via teria imobilizado, no máximo, o seu veículo com parte traseira do seu veículo no CM e a parte frontal na EM;
17. A ser assim teria sido permitido à vítima HO efectuar, pelo menos, uma manobra de recurso ou salvamento contornando o obstáculo que se encontrava na sua via;
18. Porém, tal manobra de recurso não foi possível porquanto o arguido ao volante do seu veículo ocupava ambas faixas de rodagem da Estrada Municipal.
19. Aqui chegados, pelas razões supra explanadas, parece-nos, em nosso modesto entender, que da conjugação do croqui, relatório fotográfico, relatório pericial de acidente de viação e depoimento da testemunha GC, no que respeita à dinâmica do entroncamento e as cautelas por si tomadas quando efectua uma manobra de mudança de direcção à esquerda, com a demais facticidade provada, dúvidas não podem existir de que o arguido não tomou as devidas cautelas antes de empreender a manobra de mudança de direcção à esquerda;
20. A falta de cuidado do arguido foi causa determinante do acidente;
21. Com efeito, o sinal de STOP é – tal como expresso pelo artigo 21º B2 do Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1 de Outubro – um sinal de paragem obrigatória na intersecção e que se destina a dar a indicação de que o condutor é obrigado a parar antes de entrar na intersecção junto da qual o sinal se encontra colocado e ceder a passagem a todos os veículos que transitem na via em que vai entrar;
22. Há pois a obrigação do condutor proveniente da estrada onde se acha colocado o referido sinal, de interromper a marcha, concedendo a prioridade de passagem àqueles que circulam na estrada onde pretende circular;
23. Mas para além disso e uma vez que o arguido pretendia efectuar uma manobra de mudança de direcção sobre si impendia também a especial obrigação de só iniciar a manobra depois de se assegurar que da mesma não resultava perigo ou embaraço para o trânsito (artigo 35.º do Código da Estrada);
24. E a provar que o arguido não respeitou tais imposições legais está o facto de ter sido embatido após ter avançado para a faixa de rodagem onde circulava o motociclo que tinha prioridade de passagem;
25. Não era pois o condutor do motociclo, que circulava numa via com prioridade, que estava obrigado a prever a falta de prudência ou inconsideração do arguido que, não obstante ter um sinal de stop, fosse capaz de não conceder a prioridade de passagem àqueles que circulam na estrada onde pretende circular;
26. E mais, também não estava obrigado a prever que o arguido fosse capaz de avançar para a via onde circulava o motociclo e sobre a qual tinha uma visibilidade reduzida, sem tomar as todas as devidas precauções já que era previsível que desse lado pudesse surgir uma viatura;
27. Resulta do que ficou exposto, e como referimos anteriormente que tais cautelas não foram tomadas em conta pelo arguido, maxime quando este até conhecia bem o local;
28. Daí que em nosso modesto entender, só o facto de ter entrado sem atentar se efectivamente alguém circulava na via por onde circulava a vítima possa justificar que esta não tenha tido qualquer hipótese de evitar o embate porquanto o condutor do motociclo foi surpreendido pela manobra do arguido que ocupou na totalidade a via, em ambos sentidos.
29. Para além do mais, a realização de uma qualquer manobra de salvamento ou recurso pelo condutor do motociclo conduziria sempre ao embate nos muros das casas aí existentes, quer do lado direito quer do lado esquerdo, o que também levaria à sua morte;
30. Por isso se entende que o embate se ficou a dever primacialmente por culpa do Arguido;
31. Atenta a velocidade em que o condutor do motociclo seguia, naquelas condições era exigível à vítima igualmente prudência pois devia ter adequado a velocidade de acordo com os limites de velocidade impostos no local;
32. Assim, face ao exposto entendemos que existe uma concorrência de culpas com a vítima na produção do acidente, sendo que a do arguido, porque determinante no acidente, terá de considerar-se substancialmente superior;
33. Do que fica dito, sustentamos, em nosso modesto entender, que a matéria de facto deverá ser modificada, no sentido de considerar provada a seguinte matéria de facto:
“ - Nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço, o arguido pretendendo entrar na E.M., parou e imobilizou o seu veículo junto ao sinal hexagonal de STOP existente a 6,75 metros da intersecção do entroncamento e antes de decidir empreender a manobra de mudança de direcção à esquerda não se certificou do trânsito que se fazia neste sentido, por onde circulava o motociclo;
- O arguido não imobilizou o seu veículo de modo a dar passagem ao motociclo conduzido pela vítima Henrique Caldeira que se aproximava do entroncamento;
- Nestas circunstâncias de tempo e lugar, o motociclo, que circulava a uma velocidade compreendida entre os 75 km/hora e os 84 km/hora, embateu com a sua frente na lateral dianteira esquerda do veículo automóvel, junto à porta do condutor e embaladeira, com prolongamento pelo pilar que divide a frente do veículo da sua traseira;
- O arguido não respeitou o sinal de STOP e, sem tomar as adequadas precauções, avançou pela EM, virando à esquerda, em direcção a S, Brás de Alportel, obstruindo, desta forma, a via por onde circulava o motociclo conduzido por HO;
- O condutor deste veículo, que nesse exacto momento passava pela intersecção daquelas duas artérias, não teve qualquer hipótese de imobilizar o seu veículo, acabando por embater com a parte dianteira do mesmo na parte lateral esquerda do veículo conduzido pelo arguido;
- O arguido bem sabia que deveria imobilizar o seu veículo e ceder passagem aos veículos que transitavam pela EM e que só poderia avançar depois se certificar que naquela via não circulava qualquer veículo, comportamento que não observou, violando desta forma o sinal de STOP,
- O arguido, ao actuar como descrito, violou um dever de cuidado a que, atentas as circunstâncias concretas, estava obrigado e de que era capaz de observar, não tendo, contudo, chegado a representar a possibilidade de realização dos factos imputados;
- O condutor do motociclo viu a faixa de rodagem em que circulava, com prioridade, subitamente obstruída sem que por sua parte houvesse qualquer possibilidade de evitar o acidente.
- O arguido teria uma visibilidade para a recta até à curva que se situava a cerca de 78 metros da qual provinha o motociclo se avançasse com o seu veículo até a um ponto em que o banco do condutor se encontrasse sobre a linha delimitadora do CM e da EM.”
34. Deste modo, face à matéria de facto que consideramos provada, resulta que com a sua conduta incorreu o arguido na prática do crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º1 e 2, do Código Penal;
35. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou os artigos 15.º e 137.º do Código Penal e o artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Termos em que, dando provimento ao presente recurso, entendemos, consequentemente, que deverá o Venerando Tribunal da Relação de Évora revogar a sentença recorrida e substituir por outra, nos termos pugnados, condenando o Arguido BLL pela prática de crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1 e 2, do Código Penal.

Respondeu ao recurso o arguido BHL, Dizendo:
1 - Não deve ser alterada a matéria dada como provada nos pontos 4 e 5 visto que não existem nos autos elementos de prova que imponham decisão contrária.
2 - O arguido não tinha visibilidade de 78 ou 84 metros, para o seu lado esquerdo quando o seu veículo se encontrava com as rodas da frente na faixa delimitadora da EM, não sendo essa a conclusão do relatório de fls, 359 a 475, ao contrário do invocado pelo M.P.
3 - Ficou provado, e bem, que o arguido tem uma visibilidade reduzida e limitada imediatamente junto à intersecção das vias, em virtude da existência da uma casa e da vedação que acompanha o muro exterior da mesma.
4 - A visibilidade máxima de 78 metros, conforme resulta claro a páginas 11 de sentença (motivação) foi apurada pelo eixo da via, não sendo essa a posição do condutor (no momento da decisão de avançar, como é óbvio).
5 - Nada existe nos autos que possa determinar que o arguido não tomou as devidas precauções no momento em que decidiu avançar e entrar na EM.
6 - O arguido parou uma vez, à entrada do cruzamento, avançou um pouco mais e voltou a parar, antes de decidir iniciar a manobra de voltar à esquerda, tendo pois respeitado o determinado para o cumprimento do sinal de STOP.
7 - A conclusão invocada no ponto 11 das conclusões das Alegações do M.P. não está correcta visto que as massas de impacto previstas para 2 ocupantes do motociclo implicam menor velocidade (para a deformação do outro veículo) do que as massas constituídas apenas pelo motociclo com o condutor, ou seja, para maior massa menor velocidade, para causar as mesmas deformações, Esta diferença não determina a velocidade inicial do motociclo nem influência o respectivo cálculo.
8 - O embate deu-se quando o veículo conduzido pelo arguido já se encontrava, na sua maior parte, na faixa ascendente da EM.
9 - O arguido não contou, nem podia prever a elevada velocidade a que circulava o condutor do motociclo e nas circunstâncias e local do acidente, qualquer condutor teria sofrido o acidente.
10 - O arguido poderá ter demorado um ou dois seguindo (a mais) para descrever a curva para entrar na faixa ascendente, em relação ao tempo perfeito para o fazer, mas isso não significa que lhe possa ser imputada a culpa pelo acidente.
11 - A sentença recorrida encontra-se bem fundamentada e foi proferida com integral respeito pela Lei, de acordo com a convicção do Tribunal, razão pela qual deverá ser mantida, na íntegra.
Assim, Venerandos Desembargadores, se fará a competente JUSTIÇA

Nesta Instância, a Sra. Procuradora Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Em sede de decisão recorrida foram considerados os seguintes Factos:
Com interesse para a decisão da causa, provaram-se os seguintes factos:
1. No dia 10 de Janeiro de 2009, por volta das 10:00 horas, com tempo e pavimento secos, o arguido, acompanhado da sua mulher, GL , conduzia o veículo automóvel, marca BMW, modelo 525D, com a matrícula 72-CL-OS, na hemi-faixa de rodagem direita do CM, junto ao entroncamento dessa estrada com a EM .
2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, circulava na hemi-faixa de rodagem direita da EM , no sentido SB/B, o motociclo, marca Yamaha, modelo 600, com a matrícula 59-39-FC, conduzido por HO, transportando como pendura, MMS.
3. ( ... ) Sendo a velocidade máxima permitida no local de 50 km/hora, atenta a sinalização vertical existente à data no local.
4. O arguido pretendendo entrar na EM , parou e imobilizou o seu veículo junto ao sinal vertical hexagonal de STOP existente a 6,75 metros da intersecção do entroncamento e, olhando para as vias esquerda e direita da fixa de rodagem e com o auxílio do espelho convexo situado frontalmente ao cruzamento, avançou lenta e parcialmente e de forma perpendicular para o interior da hemi-faixa de rodagem direita, por onde circulava o motociclo.
5. ( ... ) Acto contínuo, o motociclo, que circulava a uma velocidade compreendida entre os 75 Km/hora e os 90 Km/hora, embateu com a sua frente na lateral dianteira esquerda do veículo automóvel, junto à porta do condutor e embaladeira, com prolongamento pelo pilar que divide a frente do veículo da sua traseira.
6. ( ... ) A colisão ocorreu próximo do eixo da via, com ambas as rodas dianteiras e frente do veículo automóvel colocadas já na hemi-faixa contrária e a parte restante do veículo atrás do eixo da via.
7. ( ... ) E após o accionamento do travão de serviço por parte do condutor do motociclo, produzindo um rasto de travagem de 19,45 metros.
8. Em consequência do embate, o HO sofreu laceração encefálica múltipla com edema difuso hemorrágico, em resultado de traumatismo muito violento de natureza contundente, e que foi causa directa da sua morte.
9. (...) Com óbito declarado no dia 10.01.2009, pelas 10:50 horas.
10.Em consequência do embate, a passageira do motociclo ficou aproximadamente um mês em estado clínico de coma.
11. (...) Está paraplégica e o braço esquerdo não mexe.
Mais se provou que:
12. A EM é composta por duas hemi-faixas de rodagem, de sentidos de trânsito opostos, com delimitação visível no pavimento, tendo uma largura total de 4,95 metros.
13. (…) Apresentando uma ligeira inclinação descendente no sentido SB/B, por onde seguia o motociclo.
14. O arguido tinha uma visibilidade limitada e reduzida imediatamente junto à intersecção do CM com a EM , em virtude da existência de uma casa e de vedação que acompanha o muro exterior da mesma.
15. (…) Alcançando uma visibilidade máxima para a via esquerda da EM de 78 metros, atendendo a que a partir dessa altura a faixa de rodagem descreve uma curva ligeira à esquerda.
16. O veículo conduzido pelo arguido tinha aproximadamente 4,80 metros de comprimento.
17. O arguido possui 1,96 metros de altura, o que o obriga a sentar-se numa posição mais recuada no banco do condutor.
18. O arguido era portador da carta de condução n.º FA - 209113 7, para as categorias B1, BeBE, emitida pela DGV de F, em 26.04.2007, tendo carta de condução, emitida pela Holanda, desde 19.01.1987.
19. O HO não era portador de licença de condução.
20. O arguido e o HO conduziam sem a influência de álcool.
21. Em 14.01.2009, os moradores da zona onde ocorreu o acidente elaboraram um abaixo-assinado dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de F, solicitando a colocação de lombas na aproximação ao entroncamento da EM com o CM, porquanto a descida existente no local, bem como a difícil visibilidade de quem se encontra no entroncamento do CM com a EM , tornam aquele local perigoso.
22. O arguido está reformado há cerca de seis anos, auferindo 800,00 euros mensais.
23. Vive com a mulher, GL , pagando cerca de 1.500,00 euros mensais de amortização de mútuo contraído para aquisição de habitação.
24. Tem algumas poupanças na Holanda, de montante não apurado.
25. O arguido não tem registo de antecedentes no respectivo certificado de registo criminal.

Não se provaram todos os factos que não se compaginam com a factualidade supra descrita, designadamente que:
1. O arguido não cuidou de se certificar se podia avançar e se naquela artéria não circulava qualquer veículo, a fim de poder realizar a manobra com a segurança que se lhe exigia.

Em sede de fundamentação da decisão de facto consignou-se o seguinte:
De acordo com o disposto no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, deve constar da fundamentação, uma exposição concisa, mas completa, dos motivos de facto, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Espera-se, pois, "que a decisão convença. Convença o juiz, no seu íntimo, mas contenha em si igualmente a virtualidade de convencer o arguido e, nele, a inteira comunidade jurídica. Esta aspira a reconhecer na sentença a marca do socialmente considerado (sem manipulações) justo; mas já não crê que essa solução brote - à maneira setecentista - de uma radical sinceridade do julgador (ou do encontro de subjectividades, quando de um júri se tratar). Confia agora na razoabilidade mesma da decisão, na limpeza da argumentação, que conduz ao veredicto final." _ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1 de Julho de 2004, in www.dgsi.pt. com o processo n.º 04P2791, citando Cristina Líbano Monteiro, o critério de valoração da prova é o da livre apreciação, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com o que dispõe o artigo 127.2, do Código de Processo Penal, exceptuando o caso dos documentos autênticos, valorados de acordo com o preceituado no artigo 169.2, do mesmo diploma legal.
Tendo em conta as considerações que se acaba de tecer, e reportando-nos ao caso em apreço, a convicção do Tribunal para a determinação da factualidade havida como provada, baseou-se sobretudo na inspecção realizada pelo tribunal ao local, nas declarações do arguido e análise da documentação constante dos autos, merecendo realce o auto de participação do acidente de viação de folhas 28 a 31, permitindo aferir da posição final dos veículos e das medições efectuadas no local; fotografias de folhas 90 a 105 e de 341 a 346, permitindo constatar não tanto o local, porquanto se realizou prova por inspecção, e mais o enquadramento do acidente e danos provocados; relatório de autópsia de folhas 116 a 119; relatórios de exames toxicológicos de folhas 157 e 161; documento correspondente a abaixo-assinado constante de folhas 347 a 357; certificado da carta de condução holandesa do arguido constante de folhas 478 a 485; documento correspondente às dimensões do veículo conduzido pelo arguido constante de folhas 775 a 777.
Além de toda a matéria documental que atrás se fez referência e que mereceu relevo para a decisão, importa destacar, como especialmente relevantes, o relatório pericial elaborado pela Guarda Nacional Republicana de folhas 46 a 56, e o relatório de peritagem elaborado pela empresa CC (www.CC.p'), a pedido da Companhia de Seguros L, aqui demandada, a propósito do acidente dos autos, e constante de folhas 359 a 475.
Cumpre ainda relevar o depoimento das testemunhas, merecendo evidente realce o depoimento de GL , que acompanhava o arguido como passageira do veículo e dos soldados da Guarda Nacional Republicana, Cabo Carlos Ferreira, que se dirigiu ao local, e cuja relevância assentou nas medições efectuadas no local e o devido enquadramento do espaço concomitante com os factos, e 1.º Sargento JC, que elaborou o relatório pericial.
Quanto às restantes testemunhas, limitaram-se a aduzir elementos circunstanciais, sem que possuíssem conhecimento directo do acidente, pelo que a sua relevância se mostrou diminuta. Todas elas revelaram um discurso espontâneo e credível.
Claro está que a testemunha MS, interveniente no próprio acidente, é testemunha directa do mesmo, contudo de nada se lembra, por motivo das lesões provocadas pela colisão, pelo que o seu depoimento não trouxe ou aduziu qualquer elemento relativo à dinâmica dos factos, no entanto, pôde considerar-se as sequelas físicas resultantes do acidente, sendo as mesmas relevantes em sede de melhor compreensão do embate.
No que concerne às condições pessoais, profissionais e económicas do arguido sustentaram-se nas suas próprias declarações, que resultaram verosímeis.
Os antecedentes criminais resultam do certificado de registo criminal do arguido, junto aos autos.
Prosseguindo.
O arguido mostrou-se colaborante, narrando e explicando os factos tal como os entende e os percepcionou, apresentando de forma clarividente a sua versão dos factos.
Disse, então, que chegado ao cruzamento e estando o sinal de stop localizado antes da intercepção com a estrada que pretendia seguir, parou o seu carro junto ao sinal e depois foi andando devagarinho até se encontrar junto ao cruzamento. Aí voltou a parar, e como já por várias vezes realizou manobras naquele entroncamento e sabe o quanto é perigoso, conduziu o veículo devagar até ter visibilidade, e embora tivesse olhado para o lado esquerdo e direito da via, estava mais preocupado e focado em ver o espelho convexo ali existente e que permite uma melhor visibilidade da estrada, ainda que também não perfeita, seja por reflexo do Sol que provoca encandeamento, seja porque por efeito do vento o sinal não se mantém fixo, abanando ligeiramente.
Este último aspecto foi igualmente salientado pelas testemunhas ouvidas, como sejam (…).
Além destas, também as testemunhas (…), garantiram que o arguido é uma pessoa calma e tranquila a conduzir, demonstrando responsabilidade e cuidado, induzindo segurança aos passageiros.
Mais garantiu o arguido que só avançou quando ficou com a certeza que o podia fazer em segurança, isto é, só quando se certificou que não vinha ninguém.
Esta asserção é corroborada pela passageira do veículo, a testemunha GL , que, embora sendo mulher do arguido, depôs de forma segura e convicta, não oferecendo ao tribunal quaisquer razões que fizessem duvidar da idoneidade e credibilidade do seu depoimento. Esta testemunha garantiu que o marido tomou as devidas cautelas antes de entrar no cruzamento.
Especialmente impressivo no depoimento desta testemunha foi a expressão usada para transmitir a ideia do embate, dizendo "parecia um atentado à minha vida!", permitindo aferir da violência associada ao embate.
Deste modo, e tanto bastaria para concluir pela não verificação do facto imputado na acusação, não foi feita qualquer prova que induza um juízo diferente e em sentido contrário ao produzido pelo arguido e corroborado pela testemunha presencial, a sua mulher, GL : o arguido parou e imobilizou o veículo no sinal de stop.
Não obstante, a questão que carece de discussão, e cujas respostas se buscarão e procurarão fundamentar adiante, reside em saber por que motivo então, e se assim é, a colisão terá ocorrido.
Poder-se-ia, pois, sustentar - como o faz a acusação - que se o arguido não viu o motociclo deveria ter visto, porquanto o motociclo estava no seu ângulo de visão?
Cremos bem que não.
Primeiro, os aspectos circunstanciais. O arguido conduz numa posição recuada no banco, devido à sua estatura o que o obriga e obrigou, in casu, a conduzir a frente do seu veículo até sensivelmente 2 ou 3 metros para além da intersecção do entroncamento, de forma a ter uma razoável visibilidade, nunca sendo óptima atentas as condições físicas do cruzamento e que se lograram comprovar na inspecção ao local.
Aliás, a este propósito, cumpre salientar que para a convicção do tribunal mostrou-se extremamente útil a visita ao local, permitindo, in locu, aferir das condições e limitações que influíram naturalmente na produção do acidente e que perpassando para o auto, mostra-se este, todavia, inexoravelmente incapaz de traduzir a riqueza e complexidade transmitidas por uma imagem, seja no plano da compreensão física do espaço, seja no plano do contexto da acção humana.
Segundo, os aspectos relacionados com o momento de avançar. Neste ponto, resulta das regras da experiência comum que, sendo exigível que o condutor tome todas as cautelas e providências necessárias em virtude do entroncamento que se lhe depara, perspectivando pois e acima de tudo a possibilidade de realizar a manobra de forma desembaraçada e em segurança para o tráfego automóvel, a verdade é que esta é uma actividade humana, sujeita pois às genéticas e naturais insuficiências, debilidades e incapacidades do ser humano.
Há um momento de decisão de iniciar a marcha que é tomado numa fracção de segundos, importando pois aferir se, quando tomou a decisão, a mesma estava assente em todos os deveres de cuidado que lhe eram exigíveis.
Neste concreto, prova alguma foi feita de que o arguido tenha olvidado algum comportamento ou dever de cuidado que lhe estivesse adstrito. Bem pelo contrário, constatou-se e provou-se que o arguido se rodeou dos cuidados possíveis tendentes à realização da manobra.
É lícito exigir ao agente que tudo faça para evitar o acidente, mas se o mesmo ainda assim ocorre, não é lícito concluir, sem mais, que o mesmo aconteceu porque alguma coisa ele não fez!
Terceiro, a velocidade do motociclo.
Ora, neste ponto, a tarefa do tribunal mostra-se auxiliada pela existência de dois relatórios, correspondendo um deles a perícia oficial elaborado pela Guarda Nacional Republicana e portanto com valor probatório acrescido, e o outro um relatório de peritagem feito por entidade privada, a solicitação da L, Companhia de Seguros, demandada nos presentes autos.
Não obstante, resultou admitido pelo próprio subscritor do relatório pericial apresentado pela GNR, a testemunha JC, que o mesmo sofre de uma limitação, qual seja, a de não calcular a força dos impactos provocados no veículo e motociclo, sendo incapaz também de responder a um cálculo da velocidade tomando em consideração as deformações ocorridas nos veículos e consequências, ao nível das lesões corporais causadas pelas forças do impacto.
Por outro lado, o tribunal não viu quaisquer razões que o levassem a afastar a idoneidade do relatório de peritagem solicitado pela demandada e junto pelo arguido, revestindo este um auxiliar na caracterização e compreensão do acidente.
Sendo certo que a velocidade no local estava fixada nos 50 Km/hora, como resulta quer de fotografia junta, quer do depoimento de testemunhas, quer ainda do próprio guarda da GNR, JC, que admite tal erro no relatório, tanto o relatório de peritagem como o pericial concordam em que o arguido seguia em velocidade excessiva, porquanto acima de 50 km/hora.
Contudo, refere o relatório de peritagem que, atento o rasto de travagem constatado no local, de 19,45 metros, se o motociclo circulasse no limite da velocidade permitida (50 km/hora) o embate ter-se-ia dado a uma velocidade de 23,4 km/hora, o que é incompatível, conclui o relatório, e concluímos outrossim pelas regras da experiência comum, com os danos causados ao condutor do motociclo, e bem assim com os danos causados no veículo do arguido.
Conclui, assim, o referido relatório de peritagem que o motociclo embateu no veículo automóvel a uma velocidade situada entre 64 e 70 Km/hora, porquanto é essa a única força de impacto possível de concatenar com as lesões causadas no motociclista e com os danos produzidos no veículo conduzido pelo arguido.
Por conseguinte, e tendo em conta esta evidência, a velocidade de que o motociclo vinha animado teria de ser superior a esta, de forma a descontar a redução provocada pela travagem, daí que o tribunal tenha dado como provado que a velocidade do motociclo nunca poderia ser inferior a 75 km/hora, devendo situar-se num limite de 90 km/hora.
Na verdade, independentemente da valoração do referido relatório de peritagem resulta inequivocamente das regras da experiência comum que as consequências provocadas quer no condutor, quer no passageiro do motociclo são de molde a considerar uma violência considerável no embate, só compatível com uma velocidade elevada e bem superior à estipulada para aquele local.
Daqui duas inferências se retiram.
Primeiro, não é exigível ao condutor contar com a imprevidência dos outros condutores.
Segundo, só a consideração deste factor permite compreender o acidente.
Se não, vejamos, e fazendo apelo a uma regra matemática de três simples, considerando a distância de 78 metros, como linha máxima de visibilidade do arguido (atendendo a que esta é aferida pelo eixo da via, não sendo essa a posição do condutor), temos o seguinte hiato temporal no percurso do motociclo:
70 km/hora 4,01 segundos
80 km/hora 3,51 segundos
90 km/hora 3,12 segundos
Ora, cremos ficar bem patente que só esta linha de raciocínio permite explicar o acidente, porquanto se compatibiliza inteiramente com a versão narrada pelo arguido. Na verdade, o tempo normal do momento de decisão associado à manobra a empreender pelo arguido e a concretização desta - relembre-se que o arguido estava já com ambas as rodas dianteiras na hemi-faixa contrária - é perfeitamente coincidente com o tempo que o motociclo demorou a percorrer a distância de máxima visibilidade do condutor, seguramente entre três e quatro segundos.
Resulta, pois, evidente que só o motociclo poderia ter evitado o embate.
Mais, se é certo, como sustenta a acusação que o arguido teria necessariamente de ver o motociclo, então também resulta certo que, por maioria de razão, também o motociclo teria de ver o veículo, cabendo pois perguntar por que razão não evitou a colisão e por que razão o rasto de travagem é tão curto, atendendo aos 78 metros em questão.
Assim, e por todas as sobreditas razões o tribunal não considerou provado que o arguido tivesse omitido qualquer dever de cuidado que lhe estivesse adstrito, não surgindo pois no espírito do julgador qualquer dúvida razoável.
Mais considerando que, e apesar do entendimento que fez do acidente dos autos, sempre as regras do in dubio pro reo imporiam as mesmas respostas e a mesma conclusão final.

Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso e bem assim os poderes de conhecimento do Tribunal ad quem.
Da leitura das conclusões formuladas pela aqui impetrante- a Magistrada do Ministério Público - resulta pretender quer o reexame da matéria de facto, quer o reexame da matéria de direito.
Conhecendo, como conhece, o Tribunal da Relação de facto e de direito, cfr. art.º 428.º, do Cód. Proc. Pen., nenhum obstáculo existe em se vir conhecer do recurso com a amplitude cognitiva pretendida.
Ao nivel do almejado reexame da matéria de facto, pretende a aqui recorrente ver modificada parte da matéria de facto, que explicita.
Como consabido, por duas vias se pode vir questionar a matéria de facto acolhida pelo tribunal recorrido, a saber:
-uma, pelo deitar mão dos vícios compaginados no art.º 410.º, n.º2, do Cód. Proc. Pen., a que se convencionou chamar de revista alargada;
-outra, através da impugnação ampla da matéria de facto, de harmonia com o que se dispõe no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo diploma adjectivo.
Na primeira situação, estamos perante a arguição dos vícios previstos nas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, que, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. Ver, Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, págs. 729 e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, págs. 72.
Na segunda situação, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do C.P. Penal.
Analisaremos o pretendido pela recorrente com recurso à impugnação ampla da matéria de facto, art.º 412.º, ns.º 3 e 4, do Cód. Proc. Pen., já que se mostram cumpridas as exigências legais em tal matéria.
Nesta situação, como consabido, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do Cód. Proc. Pen.
Sendo que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Não se pressupondo, pois, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa Ver, Acs. S.T.J., de 14.03.2007, no Processo n.º21/07 e de 23.05.2007, no processo n.º1498/07..
Não se estando perante um novo julgamento do objecto do processo, mas antes perante um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo.
E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
Como é sabido, vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova - cfr, art.127.º, do Cód. Proc. Pen. -; Livre convicção a processar-se segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente.
O que nos conduz á conclusão de que a convicção do julgador só tem de ser objectivável e motivável, aliás como decorre dos requisitos da sentença, atentar no teor do art.374.º, n.º 2, do Cód. Proc. Pen.
Sendo que a livre convicção não se confunde com a convicção íntima do julgador.
A liberdade do julgador circunscreve-se á livre apreciação dentro dos parâmetros legais, não podendo ela estender-se ao livre arbítrio, impondo-se-lhe, por isso, que proceda com bom senso e sentido da responsabilidade, extraindo das provas um convencimento lógico e motivado.
Ora, se é evidente que o tribunal de recurso pode sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância, ou seja, o processo lógico que levou a considerar-se que era uma e não outra a prova que se produziu, já o mais não lhe é possível sindicar. Porquanto impedido está de controlar tal processo no segmento lógico em que a prova produzida naquela instância escapa, foge, ao seu controle, porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.
Não sendo, por isso sindicável por este tribunal de recurso o segmento da prova conducente ao maior ou menor convencimento do julgador na análise dos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento.
Entende a aqui recorrente que o tribunal recorrido deveria ter considerado provado o único ponto (1) da matéria de facto dada como não provada, que os factos dados como provados sob os ponto 4 e 5 deveriam, pelo menos em parte, ter sido incluído entre os factos não provados e alterados em conformidade e ainda que deveriam ter sido dados como provados outros factos.
E, dessa via, concluir-se que o arguido, com a sua conduta, incorreu na prática de um crime de Homicídio por negligência, p. e p. pelo art.º 137.º, n.º 1, do Cód. Pen.
Antes do mais, importa reter que quando o recorrente funde o seu recurso na circunstância de se estar perante uma deficiente percepção dos depoimentos, importa saber se a gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência permite o controlo, pelo tribunal superior, da conformidade da decisão com as afirmações produzidas em audiência; mas não substitui a plenitude da comunicação que se estabelece na audiência pública com a discussão cruzada dos meios de prova, a oralidade e imediação, no confronto dialéctico dos depoentes por parte dos vários sujeitos processuais, no exercício do contraditório, na discussão cruzada levada a cabo na plenitude da audiência, pública, de discussão e julgamento.
Daí que, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, só os princípios da oralidade e da imediação permitem avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Só eles permitem, por último, uma plena audiência desses mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso Cfr. Direito Processual Penal, I, págs.233-234..
Pelo que, o tribunal de recurso, em tal situação, só pode afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da primeira instância, naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja, quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e a experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 374º, n.º2 do CPP Ver, Ac. Rel. Coimbra, de 14.07.2010, no Processo n.º 108/09..
A Magistrada do Ministério Público recorrente aponta, entre outras, como provas a imporem decisão diversa da recorrida, o “Relatório de peritagem elaborado pela empresa CC de fls. 359 a 475 e bem assim o “Relatório de acidente de viação de fls. 48 a 57”.
O que se cura saber é se se estará, ou não, perante prova pericial, como o afirma a Magistrada recorrente.
Como decorre do art.º 151.º, do Cód. Proc. Pen., a perícia tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.
O mesmo é dizer que quando a apreciação e a apreensão dos factos probandos reclamarem determinados conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos estaremos perante prova pericial.
Dizendo a lei quem realiza a perícia, art.º 152.º, bem como quais as funções a desempenhar pelo perito, art.º 153.º, para lá de se regular no art.º 154.º quem ordena a perícia e quais as formalidades inerentes a tal nomeação.
Sem olvidar que os peritos prestam compromisso, como decorre do que se diz no art.º 156.º, do Cód. Proc. Pen.
De tudo resultando, pois, que a lei regulou de forma exaustiva a prova pericial, conferindo-lhe natureza pública e atribuindo-lhe, dessa forma, a força probatória vertida no art.º 163.º, do Cód. Proc. Pen., ou seja, de o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presumir subtraído à livre apreciação do julgador.
O que nos leva a concluir, como o fez um aresto deste Tribunal num caso similar Ver, Acórdão da Relação de Évora, de 21-10-2010, no Processo n.º 281/04.0TALGS., que a empresa CC ou a G.N.R. – Destacamento de Trânsito de F -, não são entidades a quem o instituto da perícia processual penal reconheça competência para nomear peritos em substituição do Ministério Público ou do Tribunal. Que o (s) “perito” (s) nomeado (s) apenas desempenhou (aram) as suas funções para o inquérito levado a cabo por tal (tais) entidade (s) e a qualidade de perito que tinham nesses autos não se transmitiu ao processo penal sub judicio; esgotando-se naquela intervenção.
Que tal (tais) “perito” (s) não foi (foram) nomeado (s) nem pelo Ministério Público nem pelo Tribunal, entre o mais, pelo que não lhe pode ser reconhecida a especial qualidade que é inerente à figura do perito em processo penal.
Sem por em causa a competência técnica das pessoas que levaram a cabo tais relatórios em causa nos autos, importa concluir não poderem os mesmos ser tidos como perito (s) e, por tal, apto (s) a poder (em) emitir parecer numa área técnica, antes ser tido (s) como mera (s) testemunha (s) e nessa qualidade ser apreciado o seu contributo probatório nos autos.
Pelo que o (s) relatório (s) por si elaborado (s) deve (m) ser apreciado (s) livremente pelo tribunal, ao abrigo do que se dispõe no art.º 127.º, do Cód. Proc. Pen., e não adquirir a qualidade de juízo científico para os efeitos do disposto no art.º 163.º, do mesmo diploma adjectivo.
Importa, de seguida, tecer algum reparo ao relatório de acidente junto a fls. 48 a 57 dos autos, porquanto se desenvolve com base em considerações, quando seria de esperar que se ativesse a dados objectivos.
Atente-se, entre o mais, no que se escreveu a págs. 50:
“No caso concreto:
Considerando tratar-se de rastos de travagem rectilíneas, feitas por pneumáticos presumivelmente em bom estado e com pressão adequada, sobre um pavimento construido em Betuminoso em estado de conservação Razoável e piso Seco a uma velocidade de 50km/h a tabela atribui um coeficiente de atrito máximo de 0,55.”
Depois, indicam-se dados para se poder descortinar a velocidade a que seguiria o velocípede. Sendo que se não indica um dado, e de relevo, para que se possa entender a dinâmica do acidente; como seja o do ponto de percepção possível (PPP), entendido como o momento em que o condutor se apercebe do perigo ou das circunstâncias imprevistas. Ou seja, a distância que vai desde o local a seguir a ter concluído a curva e o local onde ocorreu o embate. Sendo que desde a curva até ao local do embate a visibilidade é boa.
No que respeita ao teor do ponto 4., da matéria de facto provada, não contesta a recorrente que a mesma se estriba nas declarações do arguido e bem assim no depoimento da testemunha GL , mulher do arguido, que seguia como passageira no veículo automóvel. Que, como o Tribunal refere, depôs de forma segura e convicta, não oferecendo ao tribunal quaisquer razões que fizessem duvidar da idoneidade e credibilidade do seu depoimento.
De outros meios de prova se serviu o Tribunal para firmar a sua convicção, como seja a inspecção que efectuou ao local e, cujos dados obtidos exarou a fls. 820 dos autos. O que não mereceu contestação por qualquer dos intervenientes processuais, estranhando-se que a recorrente, nesta sede, os venha contestar.
O depoimento da testemunha GC, na parte que se quer ver valorado, e segundo se transcreve, em nada contende com o que já se mencionou na fundamentação da decisão de facto.
No que tange à velocidade a que seguia o motociclo, foi dado como assente - ponto 5., da matéria de facto - que circulava a uma velocidade compreendida entre os 75 Km/hora e os 90 Km/hora.
Entende a recorrente que a velocidade se deve ter por compreendida ente os 75 km/hora e os 84 km/hora.
Do relatório invocado pela recorrente para ver alterada tal factualidade não decorre qualquer obstáculo a que se conclua como concluiu o Tribunal recorrido. Veja-se que a conclusão 6., desse relatório, a fls. 424 dos autos aponta no mesmo sentido do decidido pelo Tribunal quanto ao patamar mínimo da velocidade do motociclo.
Sendo que o caminho seguido pelo Tribunal para firmar a sua conclusão se mostra justificado e objectivado, sendo, por tal, insusceptível de reparo por parte deste Tribunal de recurso.
Chegados a esta conclusão, inevitável a manutenção do ponto 1., dos factos não provados tal qual se mostra contemplado na Sentença revidenda.
Como se não lobriga como aditar novos factos à Sentença recorrida, sendo certo que, em sede própria, a acusação não cuidou de os descrever, só o fazendo em sede de recurso e sem que se entenda a razão para tal aditamento factual.
O que nos leva, sem curar de outros considerandos ou delongas, a concluir que os elementos de prova que indica não impõem uma outra decisão, apenas permitem uma outra decisão, limitando-se, pois, a recorrente a por em causa a forma como o tribunal recorrido formou a sua convicção.
A qual poderia vir a ser objecto de modificação por parte do Tribunal de recurso, caso esta se fundasse em provas ilegais ou proibidas ou contra a força plena de certos meios de prova ou afrontasse de forma manifesta as chamadas regras da experiência comum.
Nada do acabado de tecer é posto em causa pela aqui recorrente.
Face ao que vem sendo tecido e mostrando-se a fundamentação de facto bem elaborada, já que de acordo com os ditames legais, e conduzindo a mesma à conclusão que dela retirou o tribunal recorrido, não vemos como seja possível vir-se a deferir o pretendido pela recorrente.
O mesmo é dizer que se torna, assim, imodificável por este Tribunal a matéria de facto considerada pela Sentença recorrida.
Face a tal, não se mostra possível concluir-se que o arguido, com a sua conduta, incorreu na prática de um crime de Homicídio por negligência, p. e p. pelo art.º 137.º, n.º 1, do Cód. Pen., e a sua condenação em conformidade, como pretendido pela Sr.ª Magistrada recorrente.
Sendo nestes termos que vem fundado o recurso, importa concluir pela sua total improcedência, devendo manter-se a Sentença revidenda.

Termos são em que Acordam em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a Sentença recorrida.

Sem custas, por não devidas.

(texto elaborado e revisto pelo relator).

Évora, 3 de Fevereiro de 2015
(José Proença da Costa)
(Gilberto Cunha)