Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
874/15.0GCFAR.E1
Relator: MARIA ISABEL DUARTE
Descritores: NOTIFICAÇÃO DA ACUSAÇÃO
IRREGULARIDADE
SANAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 03/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PROVIDO
Sumário: A verificar-se a irregularidade decorrente da falta de notificação da acusação ao arguido, a mesma pode ser sanada pelo juiz de julgamento, que, todavia, para tal fim não pode devolver os autos ao Ministério Público (n.º 2 do artigo 123.º do CPP).
Decisão Texto Integral: Proc. N.º 874/15.0GCFAR.El


Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1ª Subsecção Criminal da Relação de Évora:

1. Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 874/15.0GCFAR, do Tribunal de Judicial da Comarca de Faro – Faro – Inst. Local – Secção Criminal – J1, que corre os seus trâmites, foi decidido, por despacho proferido a fls. 78 a 79, conhecer da irregularidade p. e p. pelo art. 123º, nº 1 e 2, do C.P.P., respeitante à falta de notificação da acusação ao arguido, por considerar que existem outras moradas conhecidas nos autos, a fls. 70, e que a informação de fls. 73 não se revestir de qualquer “valor probatório especial.”

2. O MºPº, junto do tribunal “a quo”, recorreu dessa decisão, concluindo:
“1- O Ministério Público, inconformado vem interpor recurso do despacho judicial de fls. 78/79 que decidiu conhecer da irregularidade p. e p. pelo art. 123º, nºs. 1 e 2, do C.P.P. respeitante à notificação da acusação ao arguido, ou melhor da falta dela, por considerar que existem outros moradas conhecidas nos autos a fls. 70 e que a informação de fls. 73 não se revestir de qualquer “valor probatório especial.”
2- Por isso, considerou ainda o Tribunal, que não se encontram esgotadas todas as tentativas com vista à notificação do arguido e é prematura a afirmação de que os procedimentos de notificação se revelaram ineficazes.
3- Em consequência do conhecimento da referida irregularidade prevista no art. 123º, nsº 1 e 2 foi ordenada a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para os fins convenientes.
4- O arguido não prestou TIR nos presentes autos, contudo indicou ao militar da GNR que elaborou o auto de notícia fls. 9/10 que residia na Inglaterra, na morada para a qual foi remetida carta registada com vista à sua notificação do despacho acusatório. Tal carta veio devolvida com a menção de endereço insuficiente.(vide fls. 59)
5- No documento de fls. 15, assinado pelo arguido, indicou a mesma morada.
6- O arguido não reside em Portugal, tal como consta da informação de fls. 73, da certidão de registo Predial a fls.70/71, tendo vendido o prédio que possuía em Portugal, em data anterior ao do cometimento dos factos.
7- Inexistem outras diligencias a realizar com vista a sua notificação e o Ministério Público remeteu o processo à distribuição, nos termos do art. 283º, n.º 5, do C.P.P., sendo certo que não pode manter o processo cativo, efectuando diligências que à partida se sabe não lograrem sucesso, correndo o risco de ocorrer a prescrição do procedimento criminal.
8- O Ministério Público não tem competência para cumprir o disposto no artigo 335º e 336º do C.P.P. o que olvidará a prescrição do procedimento criminal alargando os prazos de prescrição.
9- A informação lavrada pelo funcionário de justiça, a fls. 73, tem valor probatório reconhecido ao auto de notícia.
10- Inexistem elementos nos autos que contrariem a informação de fls. 73, pelo contrário foi o arguido que declarou residir na morada identificada a fls. 59, 15, 9.
11- Não se verifica a aludida irregularidade prevista no art. 123º, n.ºs.1 e 2 do Cód. Proc. Penal.
12- O tribunal violou o disposto nos artigos 283º, nº5, 169º, 123º n s 1 e 2, e 311º todos do Código de Processo Penal.
13- Ao actuar da forma descrita o Tribunal interpretou erradamente o art. 283º, nº5 do Código Penal e os elementos de facto conhecidos nos autos, pelo que a decisão proferida e objecto do presente recurso deve ser revogada e substituída por outra que determine o recebimento da acusação pública, nos termos do art. 311º, do C.P.P..
Contudo, V.Exas. farão como sempre Justiça! ”.

3. Não foram apresentadas respostas ao recurso

4. O M.º P.º, neste Tribunal da Relação, emitiu parecer, concluindo:
“Analisados os fundamentos do recurso, nada nos resta acrescentar à correcta e bem fundamentada argumentação oferecida pela digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de 1ª instância.
Sem necessidade de outros considerandos, por despiciendos, emitimos parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado procedente.”.

5. Foi cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP.

6. Foram colhidos os vistos legais.

7. Cumpre decidir


II - Fundamentação
2.1 - O teor do despacho recorrido, na parte que importa, é o seguinte:
“(…)
O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido BB, cidadão inglês.
Deduzida a acusação, foi expedida carta registada para a notificação da mesma ao arguido numa das moradas inglesas daquele conhecidas nos autos (fls. 10).
Sucede, porém, que não consta dos autos que tenha sido tentada a notificação pessoal da acusação ao arguido na morada do mesmo em Portugal (fls. 70), nem na outra morada inglesa que se conhece àquele (fls. 70).
Face ao que antecede, a notificação da acusação ao arguido afigura-se-nos irregular.
Vejamos.
Nas situações, como a dos autos, em que o arguido não indicou morada em território nacional e não é possível notificá-lo por via postal simples, a notificação da acusação pode efectuar-se por duas vias: mediante contacto pessoal ou por via postal registada (art.º 283.º, n.º 6 do CPP).
No caso vertente, não se tentou a notificação pessoal do arguido na morada portuguesa conhecida e, salvo melhor opinião, a informação de fls. 73 não torna despicienda tal notificação por não se revestir de qualquer valor probatório especial.
Por outro lado, não se tentou a notificação do arguido por via postal registada na morada alternativa que é conhecida ao mesmo em Inglaterra (fls. 70).
Se é certo que os autos poderiam prosseguir ainda que o arguido não se encontrasse regularmente notificado, menos certo não é que essa possibilidade se encontra reservada para as situações em que os procedimentos de notificação se revelaram ineficazes (art.º 283.º, n.º 5 do CPP).
Como nestes autos não se esgotaram todas as tentativas com vista a levar ao efectivo conhecimento pessoal do arguido a acusação que contra ele foi deduzida, é prematura a afirmação de que os procedimentos de notificação se revelaram ineficazes.
Por conseguinte, e decorrendo do art.º 113.º, n.º 9 do CPP que as notificações respeitantes à acusação devem ser feitas ao advogado ou defensor bem como ao próprio arguido, não podemos considerar que o arguido tenha sido validamente notificado da acusação deduzida na pessoa da sua defensora.
De acordo com o art.º 123.º, n.º 1 e 2 do CPP, oficiosamente e no momento em que delas tomar conhecimento, o juiz pode ordenar a reparação das irregularidades processuais cometidas, quando as mesmas puderem afectar o valor do acto praticado.
A omissão da notificação da acusação constitui uma irregularidade susceptível de afectar o valor dos actos praticados em momento subsequente, na medida em poderá, designadamente, privar a sociedade arguida de requerer a abertura da instrução, se for esse o seu propósito.
Conforme vem sendo entendimento dominante da jurisprudência dos tribunais superiores, de que se cita exemplificativamente o recente acórdão do TRE de 05/05/2015 (), uma vez que a autoridade judiciária competente para notificar a acusação é o Ministério Público, o juiz pode ordenar-lhe a devolução dos autos para que a efectue, se detectar essa irregularidade no momento de saneamento do processo (art.º 311.º do CPP).
Pelo exposto, decide-se conhecer da apontada irregularidade e, em consequência, determina-se a remessa do processo aos Serviços do Ministério Público para os fins tidos por convenientes.
(…).”

2.2 - Importa referir, com interesse para a resolução do presente recurso, o seguinte:
O Ministério Público deduziu acusação pública contra o arguido BB, natural da Inglaterra, nacional do Reino Unido, (…), imputando-lhe a prática de crime de condução em estado de embriaguez previsto e punido pelos artigos 292º, 1, e 69º, nº1, al. a), do Cód. Penal, por factos cometidos no dia 30.09.2015.
O arguido, no decurso do processo, não foi sujeito a termo de identidade e residência.
O arguido foi notificado, por carta registada, remetida para a morada constante do auto de notícia, sendo que a mesma foi devolvida, com a indicação de “address incomplete”. (vide fls. 59).
Com vista a lograr a notificação da acusação ao arguido foi efectuada pesquisa, na base de dados, e apurada uma morada em Portugal (vide fls. 62 a 72).
Nessa sequência, o funcionário, técnico de justiça auxiliar, lavrou a quota de fls. 73, dando conta que contactou para o nº de telefone identificado no auto de notícia e fornecido pelo arguido ao OPC, sem sucesso.
Contactou telefonicamente com a testemunha …, proprietário do veículo conduzido pelo arguido no dia 30.09.2015, data da prática dos factos, que o informou que o arguido regressou à terra natal, não reside em Portugal, vendeu a casa de que era proprietário em Portugal após o falecimento da sua esposa.
A fls.70/71, consta certidão do registo predial que confirma a venda do prédio de que o arguido era proprietário, em Portugal, no dia 02.03.2015.
Por despacho datado de 16.05.2016 foi ordenada a remessa do processo à distribuição, nos termos do artigo 283º, nº5, do C.P.P..
Remetido à distribuição e concluído para os efeitos previstos no artigo 311º, do C.P.P. veio o Tribunal a proferir o despacho de fls. 78/79, por considerou, ainda, que não se encontram esgotadas todas as tentativas com vista à notificação do arguido e é prematura a afirmação de que os procedimentos de notificação se revelaram ineficazes.
Em consequência do conhecimento da referida irregularidade prevista no art. 123º, n.ºs 1 e 2 foi ordenada a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para os fins convenientes.
É este o despacho judicial, de fls. 78/79 colocado em crise pelo presente recurso.

2.3 - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na respectiva motivação, nos termos preceituados nos arts. 403º, n.º 1 e 412º n.º 1, ambos do C.P.P., sem embargo do conhecimento doutras questões que deva ser conhecida oficiosamente. São as conclusões que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito.
Ora, as conclusões destinam-se a resumir essas razões que servem de fundamento ao pedido, não podendo confundir-se com o próprio pedido pois destinam-se a permitir que o tribunal conhecer, de forma imediata e resumida, qual o âmbito do recurso e os seus fundamentos.
E, sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recurso não basta que na motivação se indique, de forma genérica, a pretensão do recorrente pois a lei impõe a indicação especificada de fundamentos do recurso, nas conclusões, para que o tribunal conheça, com precisão, as razões da discordância em relação à decisão recorrida.
Não pode o tribunal seleccionar as questões segundo o seu livre arbítrio nem procurar encontrar no meio das alegações, por vezes extensas e pouco inteligíveis, o que lhe pareça ser uma conclusão.
As conclusões constituem, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão.

2.4 - Atentas as conclusões da motivação do recurso que, como já mencionado no ponto anterior, delimitam o seu objecto, as questões básicas respeitam:
- À interpretação do artigo 283º, nº 5, do C.P.P.;
- ao valor probatório de uma informação lavrada por técnico de justiça auxiliar.

2.5 - Questões do recurso
2.5.1 - Questão prévia
Como questão prévia, equaciona-se se, no âmbito do estabelecido no art. 311º do CPP, o magistrado judicial, poderia, no momento do saneamento do processo, conhecer de vício, obstativo do conhecimento do mérito, ou não?
Não questionamos que o juiz de julgamento está impedido de se pronunciar, relativamente ao conteúdo da acusação, atendendo ao princípio do acusatório.
Todavia, no caso “sub judice”, questiona-se a falta de notificação da acusação ao arguido, numa morada devida.
Entendemos que a ausência de notificação, como questão prévia, obstativa do conhecimento do mérito, deve ser conhecida, pelo juiz, no momento do saneamento do processo, expresso no citado art. 311º do CPP.
O Ministério Público, como órgão do poder judiciário, é competente para dirigir o inquérito, nos termos dos arts. 219º, da Constituição da República Portuguesa e 262º e ss. do Cód. Proc.
A estrutura acusatória do nosso processo penal, declarada no art. 32º, nº 5, da CRP, tem ínsita a noção de que a acusação tem que ser deduzida por um órgão distinto do magistrado judicial julgador.
A independência e a separação desses dois poderes são corolários da democracia.
Ora, atendendo à previsão dos citados arts. 277º, nº 3 e 283º, nº 5 do CPP, o MºP, é o competente, nessa fase do processo, para ordenar a notificação da acusação ao arguido, ou de suprir qualquer irregularidade verificada com esse acto processual, da sua competência, pois é o titular dessa fase processual - o inquérito -.
O MP está, por inerência de funções e competências legais, vinculado a ordenar as diligências necessárias à notificação ao arguido da acusação contra ele deduzida.
Todavia, o juiz de julgamento, ao sanear o processo, nos termos expressos no citado art.º 311º, do aludido compêndio adjectivo, e considerar verificada notificação irregular da acusação, conforme preceituado no art. 123º, do mesmo diploma, ordena, oficiosamente, a reparação da irregularidade.
Contudo, quer o princípio do acusatório, quer o facto da direcção do Inquérito competir ao Ministério Público, não afastam a possibilidade de, transposta a fase de inquérito, o juiz não possa sindicalizar, tempestivamente, na fase de julgamento, qualquer irregularidade ou nulidade verificadas na fase anterior
A tramitação processual impõe que deduzida acusação e não sendo requerida instrução, o processo transita para a fase de julgamento. O juiz de julgamento é o competente para se pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, conforme impõe o citado art. 311º, nº 1, do Cód. Proc. Penal.
A jurisprudência tem maioritariamente entendido que, no despacho a que se refere aquele art. 311º, do CPP, não é admissível ao juiz reprovar a forma e a tramitação processual dirigida, pelo MºPº, no decurso do inquérito, nem devolver o processo ao Ministério Público, para prosseguir a investigação de forma a abranger outros factos e/ou outros agentes, ou, simplesmente, para reformular a acusação.
Todavia, existe divergência relativamente à possibilidade de o juiz determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para suprimento de uma nulidade de inquérito, ou para que seja sanada uma irregularidade, designadamente, a respeitante à falta de notificação da acusação ao arguido.
Alguma jurisprudência tem o entendimento de que o juiz pode devolver os autos ao Ministério Público, quando não foram efectuadas todas as diligências necessárias para a notificação da acusação ao arguido, argumentando que o processo penal deve assegurar todas as garantias de defesa e uma deficiente notificação é susceptível de afectar o direito de defesa do arguido – na medida em que deste faz parte o direito conferido ao arguido de, uma vez deduzida acusação contra si, requerer a abertura da instrução, com vista a evitar a sua submissão a julgamento, pelo que se imporia a possibilidade da sua reparação oficiosa, nos termos do disposto no nº 2 do art. 123º do C. Penal.
Contudo, existe outra opinião, que não afastamos, pois que, a falta de notificação da acusação ao arguido não afecta as suas garantias de defesa, porquanto, na fase de julgamento, caso o paradeiro do arguido seja conhecido, o mesmo será notificado da acusação, podendo, então, requerer a abertura da instrução, para o que disporá do prazo normal de 20 dias.
O Ac. deste Tribunal da Relação, de 14.04.2009, in CJ XXXIV, tomo II, p. 294), seguiu a posição de, nesses casos, estarmos perante uma irregularidade prevista no nº 1 do art. 123º do Cód. Proc. Penal, e não no nº 2. Desta forma, a falta de notificação da acusação do Ministério Público ao arguido constitui uma irregularidade que tem de ser arguida pelos interessados no prazo de 3 dias, não sendo de conhecimento oficioso.
Entendendo-se que o Juiz pode reparar, oficiosamente, a irregularidade, não quer dizer que possa ordenar ao Ministério Público essa sanação.
O acórdão do STJ, de 27.04.2006, in www.dgsi.pt, entre outros, segue a orientação de que quando o nº 2 do art. 123º do Cód. Proc. Penal, prevê a possibilidade de “ordenar-se oficiosamente a reparação” quer dizer que a autoridade judiciária pode tomar a iniciativa de reparar a irregularidade, determinando, em sede da fase processual que dirige, as diligências necessárias para esse fim. Não pode é ordenar o envio dos autos ao Ministério Público, pois que está direccionar-lhe uma ordem para que proceda à notificação da acusação ao arguido, que não tem fundamento legal, e atinge os princípios do acusatório e da independência das Magistraturas e a autonomia do Ministério Público relativamente ao Magistrado Judicial.
Neste mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2ª edição actualizada, pgs. 790/791), em anotação ao artigo 311º, adianta que “pelos motivos já expostos, atinentes ao princípio da acusação, o juiz de julgamento não pode censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público (…) para reparar nulidades ou irregularidades praticadas no inquérito e reformular a acusação, incluindo irregularidades da notificação da acusação”.
Portanto, a verificar-se a alegada irregularidade a mesma pode ser sanada, pelo juiz de julgamento, que não pode devolver os autos ao MºPº, para tal finalidade.

2.5.2 - As demais questões do recurso
Veremos, de seguida, se tal irregularidade se verifica!
Desde logo, torna-se necessário, atender à previsão do art. 283º, n.º 5, com remissão para o art. 277º n.º 4, ambos do CPP.
O primeiro preceito legal, sobre a epígrafe “Acusação pelo Ministério Público”, preceitua: “5 - É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 277.º, prosseguindo o processo quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes.”
O segundo estabelece: “3 - O despacho de arquivamento é comunicado ao arguido, ao assistente, ao denunciante com faculdade de se constituir assistente e a quem tenha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil nos termos do artigo 75.º, bem como ao respectivo defensor ou advogado. 4 - As comunicações a que se refere o número anterior efectuam-se:
a) Por notificação mediante contacto pessoal ou via postal registada ao assistente e ao arguido, excepto se estes tiverem indicado um local determinado para efeitos de notificação por via postal simples, nos termos dos n.os 5 e 6 do artigo 145.º, do n.º 2 e da alínea c) do n.º 3 do artigo 196.º, e não tenham entretanto indicado uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrarem a correr nesse momento;
b) Por editais, se o arguido não tiver defensor nomeado ou advogado constituído e não for possível a sua notificação mediante contacto pessoal, via postal registada ou simples, nos termos previstos na alínea anterior;
c) Por notificação mediante via postal simples ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente e a quem tenha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil;
d) Por notificação mediante via postal simples sempre que o inquérito não correr contra pessoa determinada.”
E, sobre as regras gerais sobre notificações estabelece o Artigo 113.º, do mesmo compêndio adjectivo :
“1 - As notificações efectuam-se mediante:
a) Contacto pessoal com o notificando e no lugar em que este for encontrado;
b) Via postal registada, por meio de carta ou aviso registados;
c) Via postal simples, por meio de carta ou aviso, nos casos expressamente previstos; ou
d) Editais e anúncios, nos casos em que a lei expressamente o admitir.
2 - Quando efectuadas por via postal registada, as notificações presumem-se feitas no 3.º dia útil posterior ao do envio, devendo a cominação aplicável constar do acto de notificação.
3 - Quando efectuadas por via postal simples, o funcionário judicial lavra uma cota no processo com a indicação da data da expedição da carta e do domicílio para a qual foi enviada e o distribuidor do serviço postal deposita a carta na caixa de correio do notificando, lavra uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto do depósito, e envia-a de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente, considerando-se a notificação efectuada no 5.º dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal, cominação esta que deverá constar do acto de notificação.
4 - Se for impossível proceder ao depósito da carta na caixa de correio, o distribuidor do serviço postal lavra nota do incidente, apõe-lhe a data e envia-a de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente.
5 - Ressalva-se do disposto nos n.ºs 3 e 4 as notificações por via postal simples a que alude a alínea d) do n.º 4 do artigo 277.º, que são expedidas sem prova de depósito, devendo o funcionário lavrar uma cota no processo com a indicação da data de expedição e considerando-se a notificação efetuada no 5.º dia útil posterior à data de expedição.
6 - Quando a notificação for efectuada por via postal registada, o rosto do sobrescrito ou do aviso deve indicar, com precisão, a natureza da correspondência, a identificação do tribunal ou do serviço remetente e as normas de procedimento referidas no número seguinte.
7 - Se:
a) O destinatário se recusar a assinar, o agente dos serviços postais entrega a carta ou o aviso e lavra nota do incidente, valendo o acto como notificação;
b) O destinatário se recusar a receber a carta ou o aviso, o agente dos serviços postais lavra nota do incidente, valendo o acto como notificação;
c) O destinatário não for encontrado, a carta ou o aviso são entregues a pessoa que com ele habite ou a pessoa indicada pelo destinatário que com ele trabalhe, fazendo os serviços postais menção do facto com identificação da pessoa que recebeu a carta ou o aviso;
d) Não for possível, pela ausência de pessoa ou por outro qualquer motivo, proceder nos termos das alíneas anteriores, os serviços postais cumprem o disposto nos respectivos regulamentos, mas sempre que deixem aviso indicarão expressamente a natureza da correspondência e a identificação do tribunal ou do serviço remetente.
(…)
10 - As notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respectivo defensor ou advogado. Ressalvam-se as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil, as quais, porém, devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado; neste caso, o prazo para a prática de acto processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efectuada em último lugar.
(…)”
Por sua vez, o art. 196º, do referido CPP, sobre a epígrafe “Termo de identidade e residência”, prescreve: “1 - A autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal sujeitam a termo de identidade e residência lavrado no processo todo aquele que for constituído arguido, ainda que já tenha sido identificado nos termos do artigo 250.º. 2 - Para o efeito de ser notificado mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 113.º, o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.”.
Revertendo para o caso concreto, como já referido, no decurso do processo, não foi sujeito a termo de identidade e residência.
Nestes casos, a notificação do arguido deve efectuar-se por contacto pessoal, ou, tendo o mesmo comunicado (vidé domicílio identificado no auto de notícia) uma morada na Inglaterra, como ocorre no caso “sub judice”, por carta registada, conforme impõem as disposições combinadas dos citados arts. 283º, n.º 6 e 196º nº 2, e 113º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Processo Penal.
A fls. 59 consta o comprovativo de que foi remetida carta registada, para o notificar, na morada identificada no auto de notícia e por ele indicada (Cfr. fs. 15).
A referida carta veio a ser devolvida, segundo informação dos CTT, por endereço insuficiente.
No âmbito do inquérito, com vista à descoberta do domicílio do arguido, foram realizadas pesquisas, tendo-se apurado uma morada em Portugal, situada em São Brás de Alportel, e junta certidão predial do imóvel de que o arguido era proprietário.
O documento, junto a fls. 6, assinala uma morada em Portugal que coincide com a morada do domicílio fiscal, id. a fls. 72.
Todavia, no documento de fls. 61 consta, também, uma morada em Inglaterra que corresponde à morada indicada no auto de notícia.
Os factos correram no dia 30.09.2015, tal como consta do auto de notícia e despacho acusatório.
Da certidão do registo predial de São Brás de Alportel consta que o arguido foi proprietário de um prédio, juntamente com a sua esposa, e que em 2002, data da aquisição, declarou que residia em …, Inglaterra, prédio este que foi vendido pelo arguido e outros sujeitos herdeiros da esposa do arguido, em 02-03-2015.
Da referida certidão não consta outra morada além da referida, que data o ano de 2002, isto é, há quase 15 (quinze) anos.
No dia 12.05.2015, o funcionário, técnico auxiliar de justiça, melhor identificado nos autos, analisou a tramitação processual, nessa fase de inquérito, apreendeu as declarações da testemunha …, identificado a fls. 24, proprietário do veículo conduzido pelo arguido, à data dos factos, que conhecia o arguido, há pelo menos 12 anos, contactou-o e apurou que, tal como já resultava da certidão predial junta autos e do auto de notícia, o arguido vendeu a casa que possuía em Portugal, regressou ao país de origem.
O tribunal “a quo” considera que informação de fls. 73 não se revestir de qualquer “valor probatório especial.”
Não iremos fazer qualquer considerando sobre esta afirmação!
É, óbvio, que “as “cotas” lavradas no processo são simples registos de ocorrências que interessam à tramitação processual desses autos. As “cotas” valem, apenas, como referenciais, sem serem providas de fé pública; o seu valor corresponde a um documento particular, não havido como autenticado, sujeito à livre apreciação do tribunal” (vidé Ac. do STJ, de 06-12-2011, proferido no Proc. n.º 3504/07.OTVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Nem questionamos, sequer, o conteúdo da informação constante da cota lavrada a fls. 73, dos autos.
Apenas se dirá que a veracidade dessa informação, de fls. 73, é reforçada pelo conteúdo resultante da análise da certidão predial junta a fls.70 a 72.
Assim, não carece de justificação o afirmado pelo recorrente que “tendo o arguido indicado como morada a consta da notificação de fls. 59, para a qual foi expedida a notificação, sendo esta a morada contemporânea com a data dos factos, muito posterior a morada que consta da certidão do registo predial, que remota o ano de 2002, não se vislumbra, salvo o devido respeito, qualquer efeito útil em notificar o arguido para uma morada que se sabe à partida que o mesmo ai não reside.
O mesmo se diga quanto à morada que o Tribunal invoca no despacho recorrido, em Portugal, quanto é notório que o arguido ai não reside, tanto mais que o próprio indicou uma morada na Inglaterra que não coincide com a morada de fls. 70 nem 72.
Salvo o devido respeito, pese embora a notificação da acusação constitua procedimento fundamental para o exercício do direito fundamental de defesa, não vislumbramos qualquer outra diligência útil tendente à sua notificação e, muito menos para as moradas constantes de fls. 70/72.
No domínio do Ministério Público encontra-se esgotadas todos as diligências possíveis para notificação da acusação, sendo certo que sob a sua égide o arguido não pode ser notificado por editais nem declarado contumaz nem ocorrerá nenhuma causa de interrupção ou suspensão da prescrição do procedimento criminal.”
Face ao processado, no decurso do inquérito, não se pode deixar de concluir que “os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes” (vidé o citado n.º 5, do art. 283º, do CPP).
Porém, o Exmo. Senhor Juiz Julgador, se considerar útil, na fase de julgamento, pode ordenar as diligências que considere legais e necessárias, com vista à notificação pessoal do arguido, no imóvel que o mesmo possuía em Portugal, situado em São Brás de Alportel, antes da sua venda, (anterior à data da prática dos factos criminosos) ou determinar o envio de carta registada, destinada á sua notificação, para morada (…, Inglaterra) que fruía (considerando o presente, há quase quinze anos), aquando da aquisição daquele imóvel, sito em S. Brás de Alportel, os termos constantes de fls. 70.
Concluindo, pelos motivos retro apontados, deve dar-se provimento ao recurso, ainda, que pelos fundamentos supra apontados.


III - Decisão
Assim, em face do que se deixa exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso, pelos fundamentos supra apontados, e, em consequência, revogam o despacho recorrido, substituindo-o por outro que receba a acusação e conheça das restantes questões a que se refere o art. 311º do Cód. Proc. Penal.
Sem custas.
(Este texto foi por mim, relatora, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)
Évora, 07/03/2017
Maria Isabel Duarte (relatora)
José Maria Martins Simão