Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
73/21.2GARMR-A.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - A aplicação do critério do interesse preponderante previsto no artigo 135º, nº 3 do CPP impõe que se avaliem as circunstâncias da situação concreta e que, face às mesmas, se sopesem os deveres em conflito, quais sejam o dever de respeito pelo sigilo profissional e o dever de cooperação com a justiça, sendo certo que a prevalência de um ou de outro dependerá do balanceamento a realizar entre os valores subjacentes a cada um deles, com vista à determinação do interesse dominante.

II - A interpretação global e integrada do nosso ordenamento jurídico, máxime criminal e laboral, aponta no sentido de se encontrar claramente justificada a quebra do sigilo invocado pela seguradora – relativamente à entrega da documentação que ateste a existência de acidente de trabalho e da documentação clínica relativa aos cuidados de saúde prestados ao sinistrado – no âmbito do inquérito no qual se investiga a prática do crime de violação de regras de segurança, previsto no artigo 152º-B do Código Penal, na sequência da ocorrência de um acidente de trabalho.
(SUMÁRIO ELABORADO PELA RELATORA)
Decisão Texto Integral:


Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.
Nos autos de inquérito com o n.º 73/21.2GARMR, que correm termos na Secção do DIAP de Rio Maior, da Procuradoria da comarca de Santarém, investiga-se a prática por parte da sociedade (...) de um crime de violação de regras de segurança, previsto no artigo 152º-B do Código Penal, na sequência da ocorrência de um alegado acidente de trabalho sofrido pelo trabalhador sinistrado (...).
No âmbito de tal inquérito, por determinação do respetivo titular, foi solicitada à companhia de seguros (…) o envio da documentação relativa ao contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre tal seguradora e a sociedade (...) relativamente ao trabalhador desta última e sinistrado no acidente de trabalho investigado, (...).
Escudando-se no sigilo profissional, não prestou a seguradora as solicitadas informações.
Apresentados os autos ao Exmº. Juiz de Instrução, concluiu este pela legitimidade da recusa e, por isso, remeteu os autos, devidamente instruídos, a este Tribunal, nos termos do artigo 135º, nº 3 do C. P. Penal.
O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação, tendo tido vista do processo, emitiu parecer no sentido da quebra do sigilo, por entender que a informação solicitada se mostra justificada.
Foi determinada a audição da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) – entidade responsável pela regulação e supervisão da atividade seguradora – para dar parecer, querendo, no prazo de 10 dias, decorrido o qual, nada foi apresentado.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Fundamentação.
II.I Delimitação do objeto do recurso.
No presente recurso é apenas uma a questão a apreciar e a decidir, qual seja a de determinar se, por aplicação do princípio do interesse preponderante, se encontra justificada a quebra do sigilo profissional invocado pela seguradora (…) para se escusar a fornecer a documentação que lhe foi solicitada nos autos de inquérito que constituem o processo principal.

II.II - Apreciação do mérito do recurso.
Dispõe o artigo 119º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008 de 16 de abril, na redação que lhe foi conferida pela Lei nº 147/2015 de 09.09, que:
“Artigo 119.º
Dever de sigilo
1 - O segurador deve guardar segredo de todas as informações de que tenha tomado conhecimento no âmbito da celebração ou da execução de um contrato de seguro, ainda que o contrato não se tenha celebrado, seja inválido ou tenha cessado.
2 - O dever de sigilo impende também sobre os administradores, trabalhadores, agentes e demais auxiliares do segurador, não cessando com o termo das respetivas funções.”
Este dever de sigilo não é, porém, absoluto.
A respeito das limitações que poderão ser impostas ao dever de segredo profissional, estatui o artigo 135º do CPP:
“Artigo 135.º
Segredo profissional
1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.”
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Por seu turno, relativamente à entrega de documentação pelas pessoas abrangidas pelo segredo profissional, dispõe o artigo 182º do CP:
“Artigo 182.º
Segredo profissional ou de funcionário e segredo de Estado
1 - As pessoas indicadas nos artigos 135.º a 137.º apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objetos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de funcionário ou segredo de Estado.
2 - Se a recusa se fundar em segredo profissional ou de funcionário, é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 135.º e no n.º 2 do artigo 136.º
3 - Se a recusa se fundar em segredo de Estado, é correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 137.º.”
***
Reconhecido o dever de sigilo imposto às seguradoras e aos profissionais de seguros relativamente às informações de que tenham tomado conhecimento no âmbito da celebração ou da execução de um contrato de seguro, encontramo-nos perante um conflito de deveres: de um lado o dever de colaborar na descoberta da verdade e realização da justiça (artigo 131.º, nº 1.º CPP), do outro lado o dever de sigilo, a que se reporta ao artigo 119º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro imposto pela natureza da atividade desenvolvida.
A escusa prevista nos artigos 182º, nºs 1 e 2 e 135.º nº1 do CPP constitui uma exceção à obrigação geral de colaborar com a justiça, prestando as informações e juntando a documentação solicitada, sendo que tal escusa pode, em certas circunstâncias, ser arredada através da quebra do dever de sigilo, nos termos previstos nos nºs 2 e 3 do citado artigo 135.º do CPP e por via do incidente processual aí regulado.
É precisamente perante tal incidente que nos encontramos, uma vez que, por opção do legislador, a instância competente para decidir sobre a quebra do segredo, pertence a um tribunal superior.
O nº 3.º do citado artigo 135.º CPP consagra o critério a ter em conta no juízo a realizar sobre a quebra do segredo profissional, de molde a justificar a prestação do depoimento ou da informação solicitada, fixando como critério ordenador o do princípio da prevalência do interesse preponderante. Segundo tal critério, deverão ter-se em conta no juízo a realizar para avaliar a justificação da quebra do sigilo, nomeadamente, os seguintes fatores:
- A imprescindibilidade do depoimento ou da informação para a descoberta da verdade;
- A gravidade do crime;
- A especial necessidade de proteção de bens jurídicos face às circunstâncias do caso concreto.
A aplicação de tal critério impõe, assim, que se avaliem as circunstâncias da situação concreta e que, face às mesmas, se sopesem os deveres em conflito, quais sejam o dever de respeito pelo sigilo profissional e o dever de cooperação com a justiça, sendo certo que a prevalência de um ou de outro dependerá do balanceamento a realizar entre os valores subjacentes a cada um deles, com vista à determinação do interesse dominante.
Rera geral, a informação solicitada revelar-se-á essencial para a descoberta da verdade se da sua ausência advier grave prejuízo para o esclarecimento da verdade ou se tornar impossível alcançá-la. Ou seja, a quebra do segredo profissional em favor do interesse da descoberta da verdade apenas excecionalmente deverá ser determinada[1], só devendo impor-se por razões ditadas por imperativos de justiça e face à ausência de meios alternativos para alcançar a verdade.
Analisemos então as circunstâncias do caso concreto sob investigação no DIAP de Rio Maior.
A legitimidade da recusa foi reconhecida pelo despacho do JIC, face ao dever de sigilo imposto pelo artigo 119º da Lei do Contrato de Seguro aos profissionais de seguros relativamente a todas as informações de que tenham tomado conhecimento no âmbito da celebração ou da execução de um contrato de seguro.
O crime que se investiga é de violação de regras de segurança, previsto no artigo 152º-B do Código Penal, punível com pena de 1 a 5 anos, em caso de dolo (nº 1), com prisão até 3 anos em caso de negligência (nº 2) e punido com penas mais graves fixadas para as situações de agravação pelo resultado, quer nas situações em que dos factos resulte para o ofendido ofensa à integridade física grave (nº 3, que fixa molduras de 2 a 8 anos de prisão em caso de dolo e de 1 a 5 anos em caso de negligência), quer naquelas em que dos factos venha a resulta a morte (nº4, que fixa de molduras de 3 a 10 anos de prisão em caso de dolo e de 2 a 8 anos em caso de negligência).
O conceito de crime grave poderá, em abstrato, ser aferido de acordo com o critério subjacente à previsão do artigo 187º, nº 1, alínea a) do CPP relativamente à admissibilidade das escutas telefónicas durante o inquérito, considerando-se crime grave o crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos. Porém, pese embora concordemos com a utilização de tal critério em termos gerais, entendemos que o mesmo deverá ser aplicado com maleabilidade, devendo sempre ter-se em especial consideração as circunstâncias do caso concreto.
De facto, a gravidade de determinado crime não resulta exclusivamente da consideração dos máximos das respetivas penas com as quais é punido. Outras circunstâncias deverão ser valoradas, tais como a sua frequência ou as características específicas do crime em concreto praticado que o tornem particularmente grave.
Na situação dos autos, para além de para o crime investigado se encontrarem previstas penas de prisão de máximo superior a 3 anos, sempre que o mesmo se mostre praticado na sua forma dolosa ou nas situações de agravação pelo resultado, não temos qualquer dúvida – considerando a frequência com que se vêm registando acidentes de trabalho com consequências graves para a integridade física dos trabalhadores sinistrados decorrentes da violação de regras de segurança por parte das entidades empregadoras – de que nos encontrarmos perante um crime cuja gravidade, nos termos do artigo 135º, nº 3 do CPP, justifica a quebra do sigilo profissional.
No que diz respeito à imprescindibilidade da informação pretendida, a mesma verificar-se-á quando o esclarecimento da verdade não pode ser obtido de outro modo, isto é, quando se verifique não existirem meios alternativos à quebra do sigilo que permitam apurar a verdade.
No segredo imposto às seguradoras e aos profissionais de seguros visa-se proteger a posição do tomador do seguro e o interesse das referidas entidades na manutenção de uma relação de confiança com os seus clientes. Já no processo de inquérito, no qual decorre a investigação criminal, o que está em causa é a realização de diligências de prova que permitam investigar a prática do crime e os seus contornos, ou seja, a identificação do seu autor, a forma como foi praticado e as suas consequências, por forma a garantir a realização do interesse público do Estado em exercer o jus puniendi relativamente ao agente do crime, não podendo, pois, prescindir-se do apuramento da verdade material.
No caso dos autos, as características do crime investigado demonstram revelar-se imprescindível para aquilatar da subsunção da conduta da entidade empregadora à previsão legal do ilícito, apurar, entre o mais:
- Se existia contrato de seguros de acidente de trabalho relativamente ao sinistrado;
- Existindo, qual a atividade segurada – constituindo tal informação um indício relevante para apurar se o acidente ocorreu no âmbito da relação laboral;
- Quais as lesões e sequelas sofridas pelo sinistrado em consequência do acidente investigado – para o que se revela indispensável a análise da documentação clínica em posse da seguradora.
Ora, conforme resulta da consulta dos autos de inquérito, a documentação clínica do sinistrado foi solicitada ao hospital que lhe prestou os cuidados de saúde para tratamento das lesões e das sequelas decorrentes do acidente, concretamente ao Hospital da Luz, tendo tal organismo informado que, por se tratar de um doente da seguradora (…), toda a documentação clínica se encontra em poder de tal seguradora, o que demonstra a imprescindibilidade da informação pretendida.
Importante será ainda ter em conta a circunstância de estar em causa informação da seguradora respeitante a uma pessoa coletiva (a sociedade (...), que assume a qualidade de entidade empregadora e de tomadora do seguro de acidentes de trabalho). Ora, tal como vem sendo entendido pela nossa jurisprudência constitucional, relativamente às pessoas coletivas, não sendo livre o acesso à informação respetiva, não existe, todavia, por inadequação à essência da sua personalidade, esse círculo mais restrito de proteção normalmente referido à ideia de “intimidade da vida privada”, entendida esta como correspondente a um “domínio mais particular que seria o que normalmente se exclui de todo o conhecimento alheio”.[2]
Sublinha-se ainda, por se tratar de um aspeto relevante para a aferição da justificação da quebra do sigilo na presente situação, que o seguro de acidentes de trabalho assume a natureza de seguro obrigatório, cabendo às seguradoras a obrigação de participação ao Ministério Público todos os acidentes de trabalho dos quais decorra incapacidade permanente para o trabalho ou incapacidade temporária superior a 12 meses, conforme expressamente decorre dos artigos 79º e 90º da Lei nº 98/2009 de 04 de Setembro (Lei dos Acidentes de trabalho).
Acresce que, tal como bem sinaliza o Ministério Público titular do inquérito, a própria interpretação global e integrada do nosso ordenamento jurídico, máxime criminal e laboral, aponta no sentido de se encontrar claramente justificada a quebra do sigilo invocado pela seguradora, pois que, no âmbito dos processos para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho que correm termos nos Tribunas de Trabalho, sobre as seguradoras impende a obrigação legal, não só de participarem o sinistro ao Ministério Público, nos termos sobreditos, mas também de fazer acompanhar a participação do sinistro “(…) de toda a documentação clínica e nosológica disponível, de cópia da apólice e seus adicionais em vigor, bem como da declaração de remunerações do mês anterior ao do acidente, e nota discriminativa das incapacidades e internamentos e de cópia dos documentos comprovativos das indemnizações pagas desde o acidente”, conforme expressamente dispõe o artigo 99.º, nº 2 do Código de Processo de Trabalho.
Nesta conformidade, somos a concluir que, perante a ponderação concreta dos interesses em confronto e tendo em conta a imprescindibilidade da informação pretendida, a gravidade do crime investigado e a necessidade de proteção de bens jurídicos, apresenta-se claramente superior o interesse de descoberta da verdade subjacente à investigação criminal a decorrer no âmbito do inquérito que constitui o processo principal, devendo, pois, o mesmo prevalecer perante o interesse que se visa tutelar com o sigilo imposto à seguradora.
Consequentemente, a quebra de sigilo profissional solicitada mostra-se legalmente justificada. Termos em que o incidente deverá proceder.

III- Dispositivo.
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em determinar que, com quebra do sigilo profissional, a companhia de seguros (…) forneça aos autos principais os documentos que lhe foram solicitados, nos quais se inclui:
- A documentação que ateste a existência de acidente de trabalho relativa ao sinistrado (...);
- A documentação clínica relativa aos cuidados de saúde prestados a tal sinistrado para tratamento das lesões e das sequelas decorrentes do acidente em investigação nos autos principais.
Sem custas.
(Processado em computador e revisto pela relatora)
Évora, 9 de novembro de 2021
Maria Clara Figueiredo
Maria Margarida Bacelar
Martinho Cardoso
Sumário
I - A aplicação do critério do interesse preponderante previsto no artigo 135º, nº 3 do CPP impõe que se avaliem as circunstâncias da situação concreta e que, face às mesmas, se sopesem os deveres em conflito, quais sejam o dever de respeito pelo sigilo profissional e o dever de cooperação com a justiça, sendo certo que a prevalência de um ou de outro dependerá do balanceamento a realizar entre os valores subjacentes a cada um deles, com vista à determinação do interesse dominante.
II - A interpretação global e integrada do nosso ordenamento jurídico, máxime criminal e laboral, aponta no sentido de se encontrar claramente justificada a quebra do sigilo invocado pela seguradora – relativamente à entrega da documentação que ateste a existência de acidente de trabalho e da documentação clínica relativa aos cuidados de saúde prestados ao sinistrado – no âmbito do inquérito no qual se investiga a prática do crime de violação de regras de segurança, previsto no artigo 152º-B do Código Penal, na sequência da ocorrência de um acidente de trabalho.
__________________________________________________
[1] Neste sentido cf. António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo II, Almedina, 2019, pp. 168.
[2] Paulo Mota Pinto, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, no Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 69 (1993), p. 565.