Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | EDGAR VALENTE | ||
Descritores: | DESISTÊNCIA NÃO PUNIBILIDADE DA TENTATIVA OPERACIONALIDADE ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA | ||
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Data do Acordão: | 09/12/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | Cumpre definir que, no caso dos autos, estamos perante uma tentativa acabada, pois o agente (arguido), desferindo intencionalmente o golpe com o X-Ato no pescoço do assistente, que lhe provocou “uma ferida incisa cervical anterior com hemorragia profusa”, “já praticou todos os actos de execução necessários à consumação do crime”de homicídio. A questão que se coloca é: considerando que a vida do assistente foi salva pelo rápido socorro e assistência em unidade hospitalar, os factos provados integram ou não o esforço sério para evitar a consumação do crime nos exactos termos previstos no art.º 24.º, n.º 2 do C. Penal? Parece-nos adequada a interpretação de “é necessário que ele [o agente] pratique um «acto de sentido inverso» aos que foram praticados (Gegenak)”, ou seja, aquele deve colocar “em marcha um novo processo causal, pelo menos concorrente de outras causas impeditivas da ocorrência do resultado.” No caso dos autos, como está provado, o arguido, logo que se apercebeu do golpe infligido ao assistente, deslocou-se de imediato a casa da testemunha EE, pedindo para chamar uma ambulância (que veio a não ser chamada por esta testemunha por razões alheias à vontade do arguido), orientou os veículos que circulavam na estrada onde a vítima se encontrava e desviou-o para a berma (para que este não fosse atropelado), e “manteve pressão sobre o ferimento, utilizando a sua mão para controlar, como podia, o sangramento”. Não vislumbramos, em função do quadro fáctico que ocorria, que outras acções adequadas a (tentar) evitar a consumação pudesse, em concreto, ter desenvolvido. Com efeito, não é minimamente seguro que, se o próprio arguido tivesse transportado de imediato a vítima para o hospital, o resultado tivesse sido melhor, podendo até conceber-se que, sem poder assinalar devidamente (como uma ambulância) a marcha de socorro, a viagem para o hospital pudesse ser mais demorada e, eventualmente, fatal para aquela. Assim, considerando que, nos casos em que “a produção do resultado foi impedida nos termos do n.º 2 do artigo 24.º, dever-se-á exigir que o autor tenha escolhido a acção de salvamento mais adequada, pois de outra forma não terá havido esforço sério da sua parte para evitar a consumação” e o acima mencionado, que se entende integrar a mencionada “acção de salvamento”, não afecta a relevância da respectiva desistência a intervenção de terceiros (o pessoal para médico e médico que interveio impedindo efectivamente a consumação), após a chegada de “uma ambulância ao local” como efectivamente aconteceu. Atenta a operacionalidade da não punibilidade da tentativa, importa qualificar ex novo os actos à luz desta nova realidade, com a consequente subsunção da conduta ao crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. p. art.º 144.º, alínea d) do C. Penal, uma vez que se provou que o arguido ofendeu o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a provocar-lhe perigo para a vida. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - Relatório. No Juízo Central Criminal de … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de …, corre termos o processo comum colectivo n.º 640/22.7GDSTB, tendo no mesmo, relativamente ao arguido AA, filho de BB e de CC, nascido em …1976, natural de …, portador do Cartão de Cidadão n.º …, solteiro, pintor de construção civil e residente em Bairro …, …, sido proferida seguinte decisão (dispositivo): “Pelo exposto, deliberam os juízes que constituem o Tribunal Coletivo, julgar a pronuncia procedente, por provada, e em consequência: a) Condenar o arguido AA pela prática em autoria material de um crime de homicídio simples tentado, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 131.º todos do Código Penal, na pena de sete (7) anos de prisão; a) Condenar o arguido nas custas do processo fixando a taxa de justiça em 3 UC’s – (cfr. arts. 374.º n.º 4, 513.º e 514.º do Código de Processo Penal, bem como dos arts. 3.º e 8.º n.º 9 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais); b) Julgar procedente por provado o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar de …, EPE contra o arguido e demandado e, em consequência condená-lo a pagar ao demandante Centro Hospitalar de …, EPE a quantia global de €8.671,35 (oito mil seiscentos e setenta e um euros e trinta e cinco cêntimos) acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa prevista para as obrigações civis, desde data da notificação para contestar o pedido de indemnização civil até integral pagamento. c) Fixar as custas cíveis do pedido de reembolso a cargo do demandado, com taxa de justiça normal. * d) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente/demandante DD totalmente procedente com respeito a danos patrimoniais e aos danos não patrimoniais imvocados e, em consequência condenam o arguido demandado AA, a pagar-lhe a quantia de €128,82 (cento e vinte e oito euros e oitenta e dois cêntimos) e de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a titulo de indemnização. e) Determinar que sobre a primeira quantia se vencem juros contados desde a notificação do pedido até integral pagamento e sobre a segunda, por danos não patrimoniais, contabilizam-se juros moratórios, contados desde a data do presente acórdão, à taxa legal em vigor para as obrigações de natureza civil, até integral e efetivo pagamento f) Condenar ainda o demandando, ora arguido no pagamento das custas da instância cível enxertada (artigos 377.º, n.º 4, e 523.º, ambos do Código de Processo Penal). g) Nos termos do disposto no artigo 109.º, n. 1 do C.P, declaram-se perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos e relacionados à prática do facto sendo um x-ato e uma faca, dada a sua utilização na prática dos factos ou a virtualidade que manifestam de poderem ser novamente utilizados. i) Determinam o levantamento da apreensão incidente sobre do arguido (…) e do assistente (…) e pelo presente acórdão notificam arguido e assistente para querendo, no prazo legal virem proceder ao seu levantamento, conforme disposto no artigo 186.º, n.º 1 e com a cominação do n.º 3 e 4 do CPP.” Inconformado, o arguido interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição): “1. Por Douto Acórdão, foi o arguido condenado a uma pena de 7 anos de prisão pelo crime de homicídio simples na forma tentada. 2. O Acórdão ora recorrido padece do vício inserto no art.º 410º, n.º 2, al. c) do CPP, erro notório na apreciação da prova, porquanto, o Douto Tribunal formula um juízo que revela apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários, de todo insustentáveis. 3. Isto porque, consta do elenco dos factos provados que “(…) [a morte do assistente] só não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade do arguido”. 4. Ao mesmo tempo que, do ponto 4. do acervo dos factos provados consta que “o arguido apenas desferiu um golpe (…)” 5. Ora, a conclusão de que a morte da assistente não sobreveio por razões alheias à vontade do arguido é manifestamente infundada e imotivada uma vez que decorre claramente dos factos dados como provados (15 e 16) que o arguido desistiu de prosseguir com a sua conduta, independentemente das razões subjacentes a tal decisão. 6. De facto, o arguido desiste da atuação que supostamente levava a cabo com o assistente consciente e lúcido. 7. Até, porque pediu ajuda e, socorreu o assistente pressionando a ferimento para evitar o sangramento, o que conduz à conclusão de que o arguido não quis a morte do assistente, não admitiu a possibilidade desta ocorrer na sequência dos atos que praticou, não se conformando com tal resultado! 8. O arguido não abandonou o local nem o assistente, pelo contrário esteve sempre presente e, ajudou na prontidão de socorro e consequente salvamento, e nem se provou uma forma de agir que indicie total indiferença a esse previsível resultado morte como consequência da sua atuação, que não quis, não previu e não se conformou. 9. Assim, a desistência é relevante, quando o arguido, ainda que não se saibam os verdadeiros motivos subjetivos, retrocede no seu plano criminoso, podendo livremente optar por prosseguir na sua execução em vez de retroceder. 10. Nos termos do artigo 24.º, nº 1 do Código Penal: A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime. 11. Ora, decorre dos factos dados como provados que assim que se verificou, pois que se deu como provado que o arguido, apenas desferiu um gesto (para se defender), pediu ajuda e afastou-o da estrada, recorde-se – não deixou o assistente, não se ausentou do local, e não persistiu na conduta. 12. Ora, ainda que considerando que existe dolo, em qualquer das suas modalidades, sempre temos que, perante este circunstancialismo, existe uma desistência voluntária da tentativa! 13. O que sucedeu, e decorre do texto da Decisão sob censura. 14. Donde, e como melhor decorre da motivação supra, o Douto Acórdão sob censura incorreu no vício de erro notório na apreciação da prova, que ora expressamente se argui, com todas as consequências legais daí advenientes. Sem conceder 15. Sucede que, o Tribunal julgou contra a prova que foi produzida em Julgamento, ainda que o Tribunal esteja vinculado ao dever de descoberta da verdade material e da boa decisão da causa. 16. Incorreu, por isso, o Douto Tribunal, em Erro de Julgamento uma vez que a Decisão recorrida julgou incorretamente não provados os factos constantes nas alíneas v) a xi). 17. Com efeito, ao contrário do que se afirmou na fundamentação daqueles factos, a prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento impõe que seja alterada a matéria de facto vertida nos pontos atrás referidos. 18. Em audiência de discussão e julgamento não foi produzida prova de que que o assistente não agrediu o arguido, atenta a sua postura de negação, amnésica e de depressão, não sustentada cientificamente e pouco segura. 19. Também não foi provado e, nem infirmado por qualquer outra, que o arguido pretendia matar o assistente e nem se determinou a fazê-lo, mormente, através dos depoimentos do recorrente, sempre consistentes e sem “invenções”, como querem fazer crer, que o pudessem beneficiar, independentemente da fase processual em que foram prestados. Na verdade, 20. No direito processual penal português, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente, assim se consagrando o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no artigo 127º, do Código de Processo Penal, sendo perfeitamente legítima a prova por presunção, sem que o funcionamento desta colida com o princípio in dúbio pro reo, 21. Até porque nem sempre é possível a recolha de prova direta, o que sucede in casu, impondo-se não raro, fazer uso dos indícios, antes que se gere impunidade. 22. Acresce que a verdade, objeto do processo não é uma verdade ontológica ou científica, sendo antes uma convicção firmada em dados objetivos que, direta ou indiretamente, permitem a formulação de um juízo de facto. 23. Deste modo, são dois os princípios fundamentais que norteiam a apreciação da prova: - o de que ela é apreciada, salvo quando a lei disponha diferentemente, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador - principio da livre apreciação da prova; - o de que o tribunal ao decidir, não tem de formular um juízo de certeza, bastando-se a lei com a convicção da ocorrência, pelo que “respeitados estes princípios pela sentença recorrida, como se extrai do contexto da prova produzida, não pode a mesma sentença deixar de ser confirmada.” 24. Cremos que, no caso vertente, o douto Tribunal não procedeu a uma correta apreciação dos meios de prova, olvidando as presunções naturais resultantes da sua concatenação, o recurso às regras da experiência comum ou à lógica do homem médio, o dever de perseguir a verdade material, tendo o Tribunal decidido por convicção sem atender aos demais factos, mormente, o depoimento da testemunha, EE, que faz prova que o assistente trabalhou durante quinze dias, praticamente sozinho, na área da construção civil e, ao qual não notou qualquer incapacidade. 25. Até porque, o depoimento do arguido é corroborado pelo depoimento do assistente que, ouvido na sessão de julgamento do dia 14/03/2023 das 15.41.19 às 16.19.50, minuto 11.10 ao minuto 11.15 diz expressamente que acha que o arguido, no momento dos factos, o ajudou, parando as viaturas que circulavam na estrada e afastando-o da estrada para não ser atropelado. 26. Apesar da negação dos factos por parte do assistente, estes são alvo de instigação. 27. Donde, quanto aos factos não provados constantes dos pontos v) a xii) cabe esclarecer que, são objeto de investigação no processo de inquérito nº 4027/22.3…. – DIAP- … Secção, onde o arguido se constitui assistente e, o assistente é arguido, processo, que como se requereu, teria que ser apenso ao processo de cuja sentença ora se recorre. 28. A capacidade de força de mão ou braçal tem que ser avaliada cientificamente e não com um aperto de mão, quando o seu resultado põe em causa uma situação tão grave. 29. Não se prova a propriedade dum objeto, penas e só, porque não se conhece a marca do mesmo, como se fez prova de que a propriedade da faca não se pode atribuir ao assistente porque não soube o que era transmontina. 30. Não se condena um arguido pelas alegações da mandatária, quando esta de seu livre arbítrio e de consternação, se insurge pelas razões já explanadas (” Arrepio do sufragado”). 31. Atentas estas concretas provas produzidas em Audiência de Discussão e Julgamento, impõe-se, pois, prolação de Decisão diversa, nos termos sobreditos, com as necessárias consequências legais, mormente ao nível da determinação da medida concreta da pena. 32. Ao não o ter feito, o Douto Tribunal “a quo” incorreu em Erro de Julgamento e em violação do disposto no art.º 127º do CPP, o que expressamente se argui e que V. Exas., Venerandos Desembargadores suprirão. 33. Caso assim se não entenda, o Acórdão recorrido viola o princípio do In dúbio pro Reo, já que as provas produzidas em Audiência, deveriam ter sido suficientes para que o Douto Tribunal ora recorrido tivesse permanecido na dúvida quanto ao dolo de homicídio. 34. Ora, por via do princípio "in dúbio pro reo", segundo o qual, perante a existência de factos incertos e perante uma dúvida irremovível e razoável, que forçosamente terá de existir já que nenhuma outra prova foi produzida em julgamento, deverá o tribunal, na decisão acerca da apreciação e valoração das provas e determinação dos factos provados, favorecer o arguido. 35. Pelo que, afastando-se a violação do In dúbio pro Reo, V, Exas. decidirão como ora se pugna, o que se requer, com todas as consequências legais. 36. Sem prescindir, na aplicação da medida concreta da pena o douto Tribunal recorrido não atendeu, como deveria, às circunstâncias pessoais do recorrente e às conclusões do Relatório Social, o facto deste, estar integrado profissional, familiar e socialmente, nem atendeu à circunstância de que as consequências físicas para o assistente dadas como provadas, são anteriores aos factos pelos quais o arguido foi condenado, 37. A verdade é que o arguido foi condenado em 7 anos de prisão, pouco menos do que a pena máxima abstractamente aplicável e no mínimo da moldura penal do crime, consumado, de homicídio simples. 38. Porém, o alegado supra, e sendo conclusivo as necessidades de prevenção geral e (embora se possa admitir as exigências de prevenção neste tipo de crime), uma pena menor, já que as consequências, neste caso em concreto, (não menosprezando a dor e o sofrimento do assistente) foram 20 dias para a consolidação do ferimento, 8 dos quais com incapacidade para o trabalho, não justifica uma pena tão severa e elevada. 39. Terá, pois, de considerar-se alguma diminuição da culpa, que, resulte numa atenuação especial de pena, aplicável apenas em situações de exceção em que a moldura abstrata prevista para o crime se apresente como manifestamente desproporcionada e exagerada face ao caso concreto, como é o caso e o Douto Acórdão em crise não fez! 40. Justificando-se o funcionamento do art.º 72.º, n.º 1 do CP, a diminuição da culpa relevará como atenuante geral. 41. Além de que, o arguido admitiu todos os factos vertidos na Acusação Pública, admitiu o sofrimento do assistente e penitencia-se, ainda hoje, por ter ferido dessa forma o assistente ainda que não o quisesse. 42. Da avaliação da concreta circunstância do arguido, por relato do relatório social, resulta que a pena aplicada, revela-se desproporcionada, desnecessária e ultrapassa o limite da culpa do recorrente, pelo que, deverá ser reduzida para uma pena não superior a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, com regime de prova, sujeita a acompanhamento pela DGRSP. 43. A verdade é que, atentas as circunstâncias que subjazeram à prática do crime, as exigências de prevenção geral de ressocialização, bem como a necessidade de proteção dos bens jurídicos violados, não implicam no caso sub judice, que ao recorrente deva ser aplicada uma pena de prisão efetiva, mas sim situada no máximo do terço inferior da pena. 44. O facto do arguido ter admitido o erro, ter pedido desculpas e, até querer ajudar o assistente, constitui prognose favorável à suspensão da pena, porquanto, a simples ameaça de prisão será suficiente para obstar à prática de novos crimes, cujas conclusões não foram devidamente sopesadas pelo Tribunal. 45. Donde, atenta a argumentação expendida supra, a ausência de antecedentes criminais, considerando a pena do crime pelo qual o arguido foi condenado se situa entre os 1 (um) ano, 7 (sete) meses e 8 (oito) dias, e no limite máximo, a pena de 10 (dez) anos e 8 (oito) meses, mostra-se adequada a aplicação de pena de prisão situada no máximo do terço inferior da pena, ou seja, 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, pena que realiza de forma mais adequada e suficiente as finalidades da punição. 46. O que ora se requer. 47. Ao assim não ter decidido, o acórdão do douto Tribunal a quo violou assim, entre outras, as disposições previstas nos artigos: 410.º, nº 2 al. c) , 374.º, 375.º todos do C.P.P. ; 32. nº 1 da C.R.P.; e 14.º, nº 3, 22.º nº 2 b), 22 nº. 1, 24.º, 131.º, 40.º n.º 1, 2 e 3, 50º, 71.º, 72.º, n.º 1, todos do Código Penal. 48. Afastada que seja a violação dos citados normativos, V. Exas. decidirão nos termos pugnados, in totum, o que ora se requer.” Pugnando, sinteticamente, pelo seguinte resultado: “Tendo em consideração todo o exposto; Sem prescindir do douto suprimento de V. Exas. deve o presente recurso ser apreciado em conformidade, merecer provimento, e Revogar-se o Douto Acórdão proferido, por enfermar do vício a que alude o art.º 410º, n.º 2, al. C) do CPP, absolvendo-se o arguido ou Remeter-se os autos para novo julgamento, nos termos do art.º 426 do CPP, a fim de ser suprido o vício de Erro Notório na Apreciação da Prova. ou Revogar-se o Douto acórdão por manifesto erro de julgamento, alterando-se a matéria de facto e consequentemente a medida da pena ou absolvendo-se o arguido, nos termos peticionados ou caso assim se não entenda, por aplicação do princípio do In Dúbio por Reo, com todas as legais consequências daí advenientes. ou mantendo-se a condenação, reduzir a pena aplicada ao arguido para os 5 anos de prisão, suspensa na sua execução.” O recurso foi admitido. O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, com as seguintes conclusões (transcrição): “1. No recurso interposto, começou o arguido por invocar o vício do erro notório na apreciação da prova a que alude o artigo 410º, nº 2, alínea c) do Código de Processo Penal, por reporte aos pontos 4., 15. e 16. (acrescentando na motivação, os factos 8. a 13.), da factualidade dada como assente. 2. Prefigura-se o aludido vício quando o erro é de tal modo evidente, ostensivo, grosseiro, que não passe despercebido ao comum dos observadores, isto é, quando o homem de formação média dele se dá conta. 3. No caso vertente, não vislumbramos, da leitura dos pontos da matéria de facto dada como assente questionados pelo arguido, qualquer violação da lógica ou da experiência comum, tendo o arguido apelado a alguns factos que não foram dados como assentes, quanto à sua intervenção no processo de salvamento, mormente nos pontos 15. e 16. e que não foram mencionados no texto decisório. 4. Quanto à impugnação de forma ampla a matéria de facto, concretamente quanto aos pontos 5., 8., 9., 10., 11., 12. e 13. e as alíneas de v) a xi) do acervo dos factos não provados, afigura-se-nos que o arguido, ao remeter para toda a prova declaratória arrolada na acusação, produzida em audiência, não cumpriu, como devia, o preceituado no artigo 412º, nº 3 (e nº 4), do Código de Processo Penal. A especificação não pode traduzir-se numa remessa para a generalidade da prova produzida sob pena de se desvirtuar o seu significado, já que a admitir-se tal entendimento, estar-se-ia a permitir um reexame de toda a prova, tudo se passando como se o anterior julgamento não tivesse tido lugar, subvertendo-se os princípios da imediação e da oralidade que regem essa fase processual. 5. Caso V.as Ex.as contudo assim não o entendam, sempre diremos que, a nosso ver, o que fundamentalmente parece ressaltar é a discordância da avaliação e valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, que valorou de modo diverso do pretendido pelo arguido, a prova produzida em audiência, confundindo afinal a convicção gerada no espírito do julgador com a interpretação que ele próprio fez da prova produzida, defendendo esta última, marginalizando um princípio fundamental em processo penal, o da livre apreciação da prova. 6. Desde logo, a intenção de matar o assistente resulta dos actos de execução levados a cabo pelo arguido, idóneos a provocar a morte – golpe levado a cabo com um x-ato, no pescoço, causando ferida incisa cervical anterior com hemorragia profunda, com laceração das veias jugulares anteriores e de ambos os músculos esternocleidomastóideos, sendo maior à direita -, que só não ocorreu devido à pronta assistência médica mantida e ao sucesso da resposta hospitalar face à gravidade das lesões detetadas. Com tal conduta, é inegável que o arguido quis e logrou atingir o corpo de DD, em zona corporal na qual se encontram alojados órgãos vitais, colocando em sério risco a vida deste, formulando o arguido o propósito firme de tirar a vida ao assistente. E no que diz respeito ao elemento subjectivo, o mesmo extrai-se da conduta pelo mesmo empreendida, sabendo o arguido ser tal arma particularmente idónea à produção do fim visado e letal dada a perigosidade que a sua utilização oferece, atingindo o assistente pelo modo provado, degolando-o, atingindo as zonas corporais onde sabia alojarem-se as veias jugulares, resultado esse (morte) que só não conseguiu concretizar, pelas razões supra referidas, sendo inquestionável a sua actuação com dolo direto. 7. Conforme resulta da audição das declarações do assistente – que o arguido omitiu nos segmentos em causa, na transcrição quase integral que efectuou das declarações do assistente -, este negou taxativamente, por mais de uma vez, ter agredido o arguido. 8. Os factos não provados e não valorados a que o arguido fez referência, como o próprio reconhece, são objecto de investigação no processo de inquérito nº 4027/22.3…, que corre termos no DIAP, … Secção, sendo arguido o ora assistente e assistente o ora arguido, cuja apensação não podia ter sido decretada, atenta a diferente fase processual em que se encontram ambos os processos e o disposto no artigo 24º, nº 2, do Código de Processo Penal. 9. E quanto à fragilidade física do assistente, também a testemunha EE referiu, no seu depoimento, reconhecer-lhe alguma fragilidade, parecendo-lhe que tinha muitas limitações. 10. Pelo que deverá improceder o recurso interposto no que diz respeito à impugnação dos pontos 5., 8., 9., 10., 11., 12. e 13. e das alíneas de v) a xi) do acervo dos factos não provados, já que a convicção alcançada pelo douto Tribunal é aceitável e sustentável, mostrando-se a mesma adequadamente fundamentada. 11. Não se vislumbra qualquer violação do princípio in dubio pro reo, o qual actua apenas e somente em caso de dúvida e não para os casos em que se pretende dar à prova diferente interpretação daquela que fez o Tribunal, não se estando perante uma situação de non liquet em matéria de prova, a ser resolvida a favor do arguido, já que da leitura da motivação de facto não resulta que o Tribunal tivesse ficado com dúvidas sobre a prática pelo mesmo dos factos que lhe eram imputados e que apesar disso, os tivesse dado por assentes. 12. Dúvidas não existem de que o arguido levou a cabo actos de execução do crime de homicídio, idóneos para provocar a morte, que só não ocorreu pela imediata e tempestiva conduta médico-cirúrgica em tempo empreendida com sucesso, conforme exame pericial de avaliação do dano corporal da vítima, junto a fls. 354 a 358, não permitindo a factualidade apurada concluir pela desistência activa do arguido, por ter impedido a consumação do crime, pressuposto para a não punibilidade da tentativa, nos termos do nº 1 do artigo 24º do Código Penal. 13. Com efeito, não foi por causa da actuação do arguido que se evitou a consumação do crime, mas pela pronta actuação do INEM e subsequente intervenção médico-cirúrgica. A que o arguido foi alheio, nem sequer tendo sido ele a accionar os meios de socorro, mas uma pessoa que passava pelo local. 14. O arguido não só não dominou todo o processo de salvamento da vida do ofendido, como também, não se esforçou de modo sério por adoptar um comportamento idóneo para evitar a consumação do crime. Pelo que fica afastada a integração da sua conduta em qualquer dos números do artigo 24º do Código Penal, nenhuma censura nos merecendo a qualificação jurídica plasmada no texto decisório. 15. Nenhuma censura nos merece o sancionamento do arguido numa pena de sete anos de prisão, situada na metade superior da moldura, pouco acima do ponto médio da mesma, considerando a moldura penal aplicável, de 1 ano, 7 meses e 6 dias de prisão a 10 anos e 8 meses de prisão, ajustada à elevada gravidade da sua conduta, entendendo que, não obstante a sua severidade, ainda assim não ultrapassa a medida da culpa. 16. Mais se dirá que não se justifica a atenuação especial da pena, que deve ser usada com moderação, como se depreende do estreito condicionalismo exigido pelo nº 1 do artigo 72º do Código Penal, normativo que a prevê. 17. Precludida se mostra deste modo, a possibilidade de suspensão da execução da pena, por carência de um dos seus pressupostos, atento o preceituado no artigo 50º do Código Penal, sendo certo que as circunstâncias já invocadas em sede de determinação da medida da pena, a ausência de arrependimento e as exigências de prevenção geral e especial nunca poderiam fundamentar a formulação de um juízo de prognose favorável, impondo-se sempre uma pena de prisão efectiva. 18. Não se mostram violadas as disposições legais invocadas.” Pugnando, em síntese, pelo seguinte: “Pelo exposto (…) deve improceder o recurso interposto, nos termos ora referidos (…).” O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer, entendendo “que o recurso interposto deve ser julgado improcedente.” Procedeu-se a exame preliminar. Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1), sem resposta. Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa: “II - Fundamentação de facto 2.1. Matéria de facto provada: Discutida a causa e produzida a prova resultam assentes os seguintes factos: - Do despacho de pronuncia 1) No dia 19/07/2022, aproximadamente pelas 16:20h, no imóvel sito na Rua …, n.º …, …, o arguido e DD que ali executavam trabalhos de construção civil iniciaram uma discussão verbal motivada por questões relacionadas ao pedido feito pelo assistente ao arguido para que este lhe pagasse o salário de dois dias já trabalhados. 2) Nesse momento, o arguido encontrava-se sobre o telhado do imóvel a impermeabilizar as telhas onde acedeu através de uma escada colocada no local. 3) Vendo que o arguido não acedia ao seu pedido, o assistente retirou a escada, mas após pedido daquele, voltou a pô-la no local. Comunicou-lhe que não trabalhava mais para ele e abandonou a moradia levando consigo uma máquina de lavagem à pressão, utilizada na obra. 4) Apercebendo-se que o assistente se afastava transportando a máquina de lavagem, o arguido foi no seu encalço e, munido de um X-Ato de abertura simples, aproximou-se e desferiu com este instrumento um golpe no pescoço que causou ao assistente uma ferida incisa cervical anterior com hemorragia profusa, com laceração das veias jugulares anteriores e de ambos os músculos esternocleidomastóideos, sendo maior à direita. 5) De imediato, DD caiu prostrado no chão, com ferimento inciso na cervical anterior com hemorragia profusa. 6) DD foi prontamente socorrido pelo INEM que se deslocou ao local e posteriormente assistido na urgência do Centro Hospitalar de …. 7) Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, DD sofreu no pescoço: ferida incisa, ligeiramente oblíqua para baixo e para a esquerda, medindo 13 cm de comprimento, que se estende desde a face antero-externa direita baixa do pescoço, até ao terço interno da metáfise interna da clavícula esquerda, terminando 4 cm para fora da extremidade interna da referida clavícula, as quais determinaram 20 (vinte) dias para consolidação, oito dos quais com incapacidade para o trabalho geral e profissional. 8) Com esta conduta, o arguido, quis e logrou atingir o corpo de DD, em zona corporal na qual se encontram alojados órgãos vitais, colocando em sério risco a vida deste. 9) O arguido formulou o propósito firme de tirar a vida ao ofendido, só não o logrando concretizar ao atuar como descrito, por este ter sido atempadamente assistido em Unidade Hospitalar por médicos. 10) O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, ao desferir um corte profundo numa zona vital do corpo humano, bem sabendo que a sua ação era a adequada a determinar a morte a DD, demonstrando um profundo desprezo pelo valor da vida humana. 11) Manteve o arguido ao longo da sua conduta o controlo dos acontecimentos, determinando sempre que estes conduzissem necessária e inevitavelmente à morte do assistente mediante a utilização de um objeto de natureza corto-contundente, que só não veio a ocorrer por circunstancialismo completamente alheio à sua vontade. 12) Conhecia ainda o arguido a proibição e punição da sua conduta, sabendo que atuava contra o direito. - Da contestação: 13) O assistente prestava apoio ao arguido auxiliando-o em trabalhos leves preparatórios de pintura, isolamento e reparação de paredes, telhados e muros, o que desde dia não concretamente apurado vinha realizando na vivenda sita em Rua …, n.º …, …. 14) O arguido partilhou a casa de DD cerca de duas semanas antes da ocorrência dos factos, onde residiu e conheceu os dois filhos de DD. 15) Ao se aperceber que tinha cortado DD no pescoço, o arguido deslocou-se de imediato à habitação de EE, a quem pediu para chamar uma ambulância e procurou orientar a marcha das viaturas que circulavam na estrada. 16) O arguido afastou ainda o assistente para a zona da berma da via publica próxima ao passeio, para que o mesmo não fosse alvo de atropelamento e manteve pressão sobre o ferimento, utilizando a sua mão para controlar, como podia, o sangramento. * - Factos pessoais (história pretérita e atual do arguido) Consta do relatório social elaborado que: 17) O arguido é natural de …, localidade onde decorreu o seu processo de crescimento e socialização. É o segundo filho de uma fratria de três elementos, oriundo de uma família que lhe proporcionou um ambiente estável e uma educação orientada pelos valores sociais. 18) O arguido cessou o percurso escolar aos 16 anos, após a conclusão do 7.º ano de escolaridade e na sequência de duas reprovações que foram contextualizadas pelo desinvestimento dos estudos em prol da atividade laboral. 19) O arguido manteve-se sempre inserido no tecido social, onde mantem uma rede de conhecidos e amigos. Entre os 10 e os 20 anos de idade pertenceu ao grupo folclórico da localidade de residência, atividade que lhe permitiu conhecer grande parte do território nacional. 20) Após ter abandonado a escola e em paralelo com o início da atividade laboral por conta própria na área da venda de automóveis, o arguido realizou um curso de marketing e vendas, essencial na área onde fez a maior parte do seu percurso profissional, trabalhando como comercial para várias marcas de automóveis. 21) Aos 22 anos de idade, fixou residência em …, conjuntamente com a companheira cujo relacionamento marital tinha iniciado aos 21 anos, relação que perdurou até aos 30 anos de idade do arguido sem filhos em comum. 22) Com a crise em 2006-2007 no ramo do setor automóvel, o arguido conjugou durante cerca de um ano a sua atividade no ramo da venda de viaturas automóveis com o trabalho na área da restauração, tendo em 2007-2008 trabalhado exclusivamente como gestor de um bar. 23) Em 2008 o arguido emigrou para a …, país onde viveu até 2015 e onde aprendeu técnicas de isolamento e pintura. O seu modo de vida neste país terá sido organizado em torno do trabalho e da vida social. Em 2015, o arguido regressou a Portugal e fixou-se em …, em casa dos pais, tendo iniciado atividade profissional por conta própria no setor da construção civil, especificamente na área da aplicação de isolamento térmico e pintura, áreas onde adquiriu experiência e se foi especializando. Porém e por ter recebido uma proposta de trabalho voltou a emigrar, tendo trabalhado em …, como chefe de equipa na área de isolamento e pintura da construção civil. 24) Em 2019, o arguido regressou a Portugal com o objetivo de reinvestir na sua empresa unipessoal. A atividade laboral realizava-se em …, tendo o arguido residido em … até abril de 2020, integrando o agregado composto pelo próprio e pela progenitora. 25) Em abril de 2020 o arguido saiu de casa da progenitora e fixou-se na zona de … - …. 26) À data dos factos, o arguido vivia sozinho em casa arrendada em …, … e mantinha uma relação amorosa com uma companheira, que permanece, no …. O arguido trabalhava por conta própria através da sua empresa unipessoal na área da construção civil e especificamente dedicada ao isolamento térmico e pintura. 27) O arguido é visto como uma pessoa que cria facilmente ligações de proximidade, possui adequado relacionamento interpessoal, evidencia capacidade de organização e planeamento que fomenta um ambiente e relações positivas nos planos laboral e social, tendendo a evitar o envolvimento em situações de potencial conflito ou de discórdia. 28) Em meio prisional, o arguido tem mantido um comportamento genericamente adequado no que concerne ao relacionamento com outros reclusos e com os vários colaboradores do estabelecimento prisional. * - Factos respeitantes ao seu trajeto criminal Consta do seu certificado do registo criminal 29) O arguido possui averbamento por factos censurados pela lei penal francesa relacionados à pratica nos anos de 2012 e 2013, de ilícitos relacionados à condução estradal (falta de titulo), detenção de estupefacientes, infração de regras de circulação rodoviária e detenção de armas. * - Factos alegados pelo CH…, E.P.E 30) O assistente DD foi assistido no serviço de urgência do Hospital de … em …, onde foi sujeito a assistência médica e cuidados de saúde, incluindo cirurgia, o que implicou um custo de assistência, incluindo tratamentos, no valor global de €8.671,35. * - Factos alegados pelo demandante DD 31) Na sequencia do evento, o demandante necessitou ainda de receber acompanhamento no Hospital de … em consultas de otorrinolaringologia, realizando exames audiométricos. 32) Sofreu fortes dores, viu-se impossibilitado de se alimentar, por determinado período teve dificuldade em falar e mantém a cicatrização da ferida em local visível do pescoço. 33) O assistente chora frequentemente e encontra-se em profunda depressão, tomando medicamentos antidepressivos. Não sai de casa, mostra ansiedade e receio das pessoas e do ambiente, fazendo a medicação prescrita para o efeito, no que até à data da formulação do pedido de indemnização civil já despendeu a quantia de €128,82. 34) O assistente evidencia pânico que o arguido o possa matar ou a seus filhos ou, porque em reclusão, determinar outrem a esse resultado * 2.2. Factos não provados Com interesse para a decisão da causa não se apuraram quaisquer outros factos dos vertidos no despacho de pronuncia, da contestação e alegados em sede de pretensão indemnizatórias cíveis, designadamente (e para além dos decididos como provados): i) Que o arguido tenha agredido o assistente pelas 19h14m; ii) Que o pedido de dinheiro feito pelo assistente ao arguido estivesse destinado à compra por aquele de canábis, que este fosse consumidor desta substância e que o arguido soubesse que o assistente efetuava estes consumos e nem que por esta razão não lhe adiantasse quaisquer valores em dinheiro. iii) Que o arguido tivesse comprado muitas vezes comida aos filhos do assistente e os levasse a passear. iv) Que momentos antes da agressão, o arguido se encontrasse de pé junto à parede por onde iria descer. v) No decurso da discussão, o assistente tenha ficado descontrolado e irritado e, nem que, em razão disso tenha atirado a escada para o telhado, tendo partido algumas telhas e, atingido o arguido numa perna, ferindo-o. vi) O arguido, em consequência, o tivesse tentado acalmar e nem que o assistente só tivesse colocado a escada no lugar para descer após muita insistência por parte do arguido. vii) Que o assistente o agredisse aos socos e pontapés e, ameaçasse com uma faca, ao mesmo tempo que lhe chamava, entre o mais, “filho da puta”. viii) Que a máquina de pressão tivesse o valor de € 470 e fosse de utilização imprescindível. ix) O arguido não tivesse retirado a máquina ao assistente porque este iniciou uma agressão com a parte da pistola da máquina de pressão e nem que o tivesse atingido nas pernas, braços e mãos e lhe tivesse provocado diversos ferimentos designadamente atingindo-o na zona da cabeça e que tal ação o tenha estonteado e feito cair ao chão desmaiado. x) Ao reanimar e ao abrir os olhos, o arguido tenha deparado com o ofendido sobre si e, com a faca na mão; xi) Instintivamente e para se defender o arguido tenha levado a mão ao bolso e retirado o primeiro objeto que lhe veio à mão. xii) Que o arguido desconhecesse que do bolso retirasse um X-ato, por usar nos bolsos vários utensílios de trabalho, como chaves de fendas, fita métrica e outros. xiii) Que o assistente tenha perdido definitivamente parte da audição do ouvido esquerdo e da visão. xiv) Que o assistente seja trabalhador e conceituado no meio onde vive, sendo-lhe reconhecida profunda educação. xv) Que o assistente sinta vergonha quando se vê ao espelho, que tenha que explicar a cicatriz que possui no pescoço e nem que seja auxiliado pelo filho de … anos de idade, na leitura de documentos, nem que não o consiga fazer. * 2.3. – Eliminação de expressões conclusivas Mais se consigna que o Tribunal eliminou da descrição factual do despacho de pronuncia, das contestações e das pretensões indemnizatórias cíveis, as asserções meramente conclusivas ou que se compõem de meras expressões de direito, tais como: “dominou efetiva e finalisticamente todo o processo, os acontecimentos e o modo último da execução”, as descritas circunstâncias em 18.º. 24.º, 25.º ou 26.º da contestação ou as que se fundam na descrição em abstrato dos danos não patrimoniais invocados, por se entender tratar de matéria conclusiva extraída da alegação de de outros factos. * 2.4. Motivação da decisão de facto A convicção do tribunal quanto à prova dos factos descritos como provados e não provados formou-se com base no conjunto da prova produzida, na audiência de julgamento e respetiva apreciação crítica, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, como assim rege o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal. Concretizando e desde logo, ao nível dos meios de prova pré-constituídos e adquiridos nos autos, consideramos os indicados no despacho de pronuncia a saber, no que respeita à prova pericial: 1) relatório da perícia de avaliação do dano corporal (fls. 354 a 358 e respetivos versos); 2) relatório de exame pericial (fls. 260 a 272); 3) relatório de exame pericial (fls. 275 a 293); 4) relatório de exame pericial de lofoscopia (fls. 339 e 340); no que respeita à prova documental, valoramos todos os documentos juntos aos autos, designadamente: 1) auto de notícia (fls. 45 a 47 e respetivos versos); a 2) reportagem fotográfica (fls. 49, 50 e respetivos versos); 3) autos de apreensão (fls. 51 e 253); 4) relatório de urgência hospitalar (fls. 132 a 147 e respetivos versos); o acordo de prestação de serviços firmado entre o arguido e a testemunha EE, o certificado do registo criminal do arguido de fls. 36 e atualizado a fls. 495 a 497 verso e o relatório social, para cuja elaboração prestou o arguido o devido consentimento, de fls. 507 a 509 verso. Assim, na valoração da prova documental, o Tribunal teve em consideração o expediente relativo à comunicação do crime (fls. 5 - data e hora na descrição dos factos - 45 a 47 e 151 e 152, onde a autoridade policial deu conta que no dia 19/07/22, pelas 17:30 foi chamada uma patrulha perto do Restaurante “…” em …, elemento que a par do teor da hora determinada no documento de fls. 260 e da hora de entrada do assistente na unidade hospitalar – 17:39h – fls. 300, permitiu dar por provada a hora mais aproximada da ocorrência dos factos, dando-se como não apurada a firmada em i) dos factos não provados) e considerou-se, bem assim, a reportagem fotográfica de fls. 49 e 50, os autos de apreensão de fls. 51 e 253, o auto de diligências iniciais de fls. 221 a 236, o relatório de urgência hospitalar de fls. 132 a 147 que descreve as lesões sofridas pela vítima e que correspondem às elencadas no despacho de pronúncia. Ao nível da prova pericial consideramos os exames periciais, realizados ao local no dia dos factos, com reportagem fotográfica (incluindo o do próprio arguido), recolha dos objetos e vestígios encontrados, do vestuário e calçado da vítima e do arguido (fls. 260 a 293), exame direto à faca e ao X- ATO apreendidos (auto de fls. 343 e 344), o exame pericial ao X-ATO com o qual o arguido feriu a vítima (fls. 339 a 340), o exame pericial de avaliação do dano corporal da vítima onde se descrevem as lesões sofridas pelo assistente e para a demonstração destas (fls. 354 a 358), tendo-se ali concluído que: - A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável, em 08/08/2022. -As lesões atrás referidas terão resultado de traumatismo de natureza cortante o que é compatível com a informação. -Em função dos elementos clínicos disponíveis e atrás transcritos nas suas partes mais relevantes, tais lesões terão determinado 20 dias para a consolidação, sendo os primeiros oito (8) dias considerados com impossibilidade para o trabalho genérico e indiferenciado. - Que da ofensa perpetrada no assistente resultou uma situação clínica grave consubstanciada numa “ferida incisa cervical anterior com hemorragia profusa” com laceração das veias jugulares anteriores e de ambos os músculos esternocleidomastóideos sendo maior à direita. - Em função do instrumento empregue, da região do corpo atingida (pescoço) que, como é sabido, aloja órgãos essenciais à vida, da ofensa em apreço resultou um quadro clínico grave que, por si só, tem idoneidade para produzir a morte, situação que só foi ultrapassada pela imediata e tempestiva conduta médico-cirúrgica em tempo empreendida com sucesso. Mais resulta destes elementos que – e em função dos elementos clínicos disponíveis e atrás transcritos da ofensa resultou uma situação de concreto perigo para a vida do sinistrado, devido à superveniência de um quadro clínico de choque hemorrágico com necessidade de emergente intervenção cirúrgica (urgente) em ambiente hospitalar, sob anestesia geral e necessidade de transfusões de sangue e fatores de coagulação para seu reequilíbrio, e ainda período de internamento em unidades de cuidados intensivos e intermédios até ser possível a alta hospitalar, dada a perda de sangue verificada. E bem assim que do evento resultaram para o Examinado as consequências permanentes descritas, as quais, sob o ponto de vista médico-legal, se traduzem na subsistência de cicatriz de ferida incisa, ligeiramente oblíqua para baixo e para a esquerda, medindo 13 cm de comprimento, que se estende desde a face antero-externa direita baixa do pescoço, até ao terço interno da metáfise interna da clavícula esquerda (fotos 1, 2 e 3 integrantes o presente relatório pericial). Todos estes elementos de avaliação médica que consubstanciam a prova pericial e documental mostraram-se essenciais na fixação da factualidade descrita de 3) a 8) dos factos provados, mormente no que respeita à demonstração das lesões. Para além destes meios de prova, o Tribunal ponderou ainda a prova por declarações e depoimento. Com efeito no que à primeira respeita, prestaram declarações em audiência de discussão e julgamento respetivamente, arguido e assistente. O primeiro referiu conhecer o assistente havia 2 a 3 meses e sensivelmente há 2 meses, por referência à ocorrência dos factos, que este trabalhava para si. No dia do evento recorda-se de ter chegado à obra por volta das 15:00 horas. O assistente disse-lhe que não queria trabalhar mais para si e queria receber o valor do seu trabalho, referindo-se ao trabalho executado segunda e terça-feira. Respondeu-lhe que teria que esperar pela chegada da Sra. EE dona da obra) pois estava dependente que esta lhe entregasse uma nova tranche de dinheiro, já que o que era usual era pagar ao sábado, como tinha sucedido no sábado anterior. Entretanto esta chegou, mas o assistente começou a ficar alterado e chamou-lhe nomes. O arguido encontrava-se a lavar o telhado de um telheiro e o assistente retirou-lhe a escada. Pediu-lhe que voltasse a colocar a escada no lugar, mas, entretanto, na movimentação da escada para cima, o assistente feriu-lhe uma perna. Após voltar a colocar a escada no sitio, ainda continuou a envernizar as telhas por 1 ou 2 minutos. Porém, o assistente disse-lhe que ia levar a máquina de pressão da obra com ele, já que o arguido não lhe pagava os valores que pretendia receber. Apercebendo-se que ia levar a máquina com ele e se preparava para passar o portão, o arguido correu atrás de si, intercetando-o e dizendo-lhe que estivesse sossegado. De imediato, o assistente puxou de uma faca que trazia e tentou desferir-lhe um golpe com ela. Era uma faca de cabo, com a lamina de serrilha. Estavam próximos da viatura da Sra. EE. Em seguida e tendo a máquina de lavar à pressão segura pela outra mão, o assistente desferiu-lhe por diversas vezes com a pistola desta no corpo, causando-lhe ferimentos, designadamente no braço. Da vez que o agrediu com a pistola na cara, caiu ao chão e desmaiou, perdendo os sentidos, ainda que por pouco tempo. Quando voltou a si apercebeu-se que o assistente estava debruçado sobre si e possuía a faca na mão. Retirou um x-ato que tinha guardado no bolso lateral da calça de fato de treino que trazia vestida e se encontrava com a extremidade não totalmente recolhida e, com ele, mantendo os olhos fechados, manobrou-o vindo a atingir o assistente na zona golpeada. Refere que a única coisa em que pensou foi libertar-se da situação em que se encontrava e sair do local. Quando se apercebeu que tinha golpeado o assistente, socorreu-o de imediato. O assistente ficou na via pública enquanto se afastou para pedir que chamassem o INEM. Deixou-o sossegado junto do passeio ao pé de uma arvore. Foi confrontado com as imagens que foram recolhidas no local, a saber as de fls. 224 (fotografia 3). Explicou que a máquina de pressão pesava cerca de 7 a 8 kg e mediria cerca de meio metro de altura, deslocando-se apoiada em 2 rodas. Esclareceu ainda que pelos dois dias de trabalho o assistente deveria receber 100 euros (50 euros por cada dia) e que viveu com o assistente cerca de 15 dias em casa deste, sabendo que o mesmo tinha 2 filhos pequenos que também ali viviam com ele. Enquanto lá esteve emprestou-lhe dinheiro (que acaba por dizer serem 60 euros correspondentes ao tempo que lá viveu) e comprou comida para as crianças, sabendo que todos viviam com dificuldades. Refere que a D.EE presenciou o inicio da discussão e foi a ela que recorreu para pedir ajuda após o ferimento do DD. Bem assim o Tribunal valorou as declarações prestadas pelo arguido em 1.º interrogatório judicial, examinando-as criticamente, após a sua reprodução em audiência de discussão e julgamento. Muito sumariamente se dirá que, nesta sede, o arguido referiu que DD lhe mostrou uma faca; depois bateu-lhe na cabeça com a pistola de plástico de uma máquina de lavagem à pressão pelo que em consequência desse ato caiu tonto no chão. Ali explicou, ocorrendo as suas declarações no dia seguinte à data da prática dos factos que quando se levantou, de olhos fechados, tirou o X-ATO que tinha num bolso para se defender. Não se lembra se o abriu, mas pensa que sim. A lâmina aberta e cabo teriam cerca de 20 cm e a lâmina propriamente media entre 7 a 8 centímetros. Explicando como atuou, descreveu ter empreendido de pé e de frente para o assistente um gesto semelhante ao ato de ceifar e com o referido objeto acertou no pescoço do ofendido, mantendo sempre os olhos fechados e a cabeça para baixo. Não fez força, porque não queria magoá-lo. Afirmou ainda que o “X- ATO é o objeto que mais corta no mundo”, mostrando claramente conhecer as potencialidades lesivas do objeto que utilizou, explicadas ademais pelo recurso a essas mesmas utilidades nos atos precisos que, no âmbito da sua atividade eram exigidos e, de acordo com o próprio, a que destinava aquele instrumento corto-perfurante. Assim, no decurso das suas declarações prestadas em sede de 1º interrogatório judicial, o arguido admitiu a prática dos factos imputados com recurso a esse instrumento, mais concretamente a um X-ATO, tendo com ele atingido o ofendido nas zonas indicadas as quais alojam órgãos vitais e que são irrigadas veias (jugulares e músculos) que, lacerados, constituem perigo para a vida, designadamente através de hemorragia (no caso, o golpe feito pela sua profundidade atingiu a união do pescoço com a cabeça, vide a foto de fls. 49). Por sua vez, o assistente DD, que se encontra residente em Portugal desde 2006, explicou-nos que na data dos factos já não trabalhava, estava aposentado por invalidez, porque não conseguia levantar pesos, em razão de um acidente anterior já ocorrido em Portugal – que o impede realizar trabalhos de forças e maiores esforços - que lhe causou um traumatismo na coluna e na cabeça (perda de massa encefálica) e o impediu de trabalhar. Refere que a pedido de um outro amigo seu, acolheu o arguido em sua casa por uns dias mesmo com muitas dificuldades económicas e sem ter condições. Antes de o abrigar não o conhecia. Pergunta-se atualmente sobre o que pudesse ter acontecido nessa ocasião, que não tivesse feito bem e que tivesse determinado o comportamento do arguido contra si, no dia dos factos. O arguido necessitava de um lugar para ficar e ele cedeu-lhe a sua casa onde permaneceu em sua companhia e das crianças. Numa exposição muito sofrida, em que o relato sobre os factos foi fortemente condicionado pelo medo (e pânico, diremos) evidenciado, por estar em tribunal e na presença do arguido, o assistente não deixou de reconhecer o arguido como a pessoa que o agrediu. Sobre o que aconteceu propriamente, evidenciando muitos lapsos de memória decorrentes da sua condição de saúde, disse-nos que no dia dos factos (como nos anteriores) se encontrava a trabalhar para o arguido, que o havia contratado para o ajudar numa empreitada de pintura. Na obra, ajudava-o apenas a lavar os muros e em tarefas que não reclamavam muito dispêndio energético ou de força (que não consegue fazer) e ali esteve a trabalhar 2 a 3 dias. Nesse dia em que os factos ocorreram, o arguido prometeu-lhe uns “trocados” para comprar leite e alimentos para as crianças. Porém, não apareceu. Quando o arguido chegou à moradia começaram a discutir um com o outro, porque o assistente lhe pediu o valor que achava poder receber por ter trabalhado. O arguido disse-lhe que não tinha o dinheiro e que precisavam esperar pela proprietária da casa – a dona da empreitada – para que esta o abonasse e lho pudesse entregar. Entretanto, a senhora chegou e como o arguido nada fizesse para lhe pagar e não lhe desse dinheiro, disse-lhe “já que não me dás dinheiro vou levar a máquina de lavar à pressão”, tendo agarrado a máquina que se encontrava no local e afastando-se, a levado com ele. De imediato, o arguido veio atras de si para recuperar a máquina de pressão e, sem que o consiga explicar, desferiu-lhe um corte no pescoço com um instrumento que não reconheceu. Não se lembra quem dos dois, primeiramente, puxou a máquina de pressão. Mas recorda-se de ter exercido força para a manter consigo. Perguntado não se lembra como o corte foi feito. Lembra-se de, após o golpe, correr para fugir para fora da propriedade, mas caiu, porque a vista começou a clarear e deixou de ver. Não conseguiu correr para muito longe. Não recorda também as horas exatas em que os acontecimentos se verificaram. Nega que tenha, por que forma fosse agredido o arguido, dizendo que não tem força sequer para segurar o filho ao colo; sabendo das suas limitações físicas não é pessoa de se confrontar com terceiros, por saber que, em caso de contenda, não pode corresponder ou defender-se de agressões. Não utilizou, por isso, contra ele, a máquina de lavar à pressão, nem desferiu agressões com o cabo ou com a pistola, ações que nega. E quanto à facilidade da utilização da faca (que o arguido nos referiu encontrar-se em seu poder e utilizou, ameaçando-o) negou, sem hesitações, a sua utilização ou posse. Recorda-se de ver a imagem do arguido quando se encontrava já na rua. Recorda-se de ter visto no local a proprietária da moradia (aquando da discussão, esta encontrava-se lá, pensa que terá dito alguma coisa, mas não se lembra exatamente o quê). Não se recorda com precisão se o arguido o auxiliou após a agressão, mas crê que sim. Recorda-se que ficou caído no meio da rua (e que o arguido o puxou e retirou do local onde caiu, arrastando-o para a berma para que não fosse atropelado; lembra-se ainda que o arguido parou os carros, impedindo a circulação e de ter aparecido no local um bombeiro, mas não se recorda se o arguido chamou a ambulância para seu socorro). Por fim, referiu que se encontrava com receio que o arguido finalizasse o que iniciou, mas tal não veio a acontecer. Ora, como vemos, a versão do arguido no sentido de ter atuado num quadro de legitima defesa assenta apenas na versão por si trazida aos autos, infirmada pelo assistente – a quem foi designadamente pedido um aperto de mãos em audiência para experienciar a sua força de mão ou braçal – que em absoluto afastou qualquer comportamento por si mantido para além do propósito de levar consigo a maquina de lavagem à pressão. A confirmação da versão dos factos como efetuada pelo arguido não encontra, ademais, acolhimento bastante em qualquer outro meio de prova, não podendo ser atribuída ao assistente a propriedade e utilização da faca de marca transmontina – que, perguntado que foi, desconhece - encontrada após os factos junto a uma árvore como se colhe de fls. 228 e 269 (ambas, negadas) e próximo de uma mochila ali também encontrada, como também o diremos, as regras de experiência comum nos dizem que, dadas as características do assistente e os recursos físicos com que ficou após o acidente - que o acometeu antes dos factos, com perda de massa encefálica, lesões cerebrais e de coluna - se torna de difícil compreensão a utilização de uma faca numa das mãos e a pistola da máquina de lavar à pressão na outra, utilizada como instrumento de agressão sem que o arguido (a quem não são atribuídas ou reconhecidas limitações físicas) não conseguisse prontamente eliminar a imputada atuação ao assistente. Na verdade, sendo divergente em momentos essenciais da demais prova produzida no inquérito, nomeadamente das declarações prestadas pela vítima, as declarações do próprio arguido, prestadas em momento anterior, mais próximo da data em que ocorreram os factos confirmam, tendo presente o instrumento corto perfurante utilizado e a zona do corpo da vitima que atingiu, que a sua intenção terá sido matá-lo, e que só não logrou concretizar por circunstâncias alheias à sua vontade, fundadas na atempada assistência que foi prestada à vítima. Isto por um lado. Por outro lado, a nossa consideração que não se provou qualquer ação do assistente que se mostrasse lesiva da integridade física do arguido resultou do depoimento da única testemunha que tinha aptidão a realizar uma descrição presencial: EE. Esta testemunha, EE, professora aposentada, conhece o arguido por tê-lo contratado para fazer pinturas e limpezas em sua casa, em … (vide o documento de fls. 251). Sobre os factos referiu-nos que a nada assistiu. Sabe que o arguido trabalhou mais ou menos 15 dias em sua casa, ainda que na obra só estivesse esporadicamente. O DD, ao contrário, ia lá todos os dias. O arguido deixava-o na obra e depois ia embora. Refere que os pagamentos ao arguido foram estabelecidos por tranches e era deste a responsabilidade de fazer contas com os empregados. No dia dos factos não estava programado qualquer pagamento, que era feito em fases (e sempre à sexta-feira). Nesse dia foi às compras ao supermercado e quando chegou a casa encontrou o assistente. Este disse-lhe que não trabalhava mais para o AA, porque este não lhe tinha pago. Disse-lhe “ olhe, esse é um assunto que é vosso” e “é com ele que tem que falar” não dando continuidade ao assunto. Encontrava-se a arrumar as compras quando ouviu uma voz aflita e o som de lhe bateram à porta de entrada. No momento em que tomou contacto direto com a situação, os factos já haviam ocorrido. Era o arguido a pedir-lhe que chamasse uma ambulância, pois algo tinha sucedido ao DD. Talvez entre a sua chegada a casa e este momento tenham decorridos cerca de 10 minutos. Quando chegou a casa vinda do supermercado, o arguido encontrava-se em cima do telhado (de um telheiro). Nessa altura ouviu o arguido e o assistente a conversar, mas não se apercebeu do assunto nem que se tratasse de qualquer discussão entre eles, não dando eco à versão transportada, desde o inicio, pelo arguido, pelo que se haverá de concluir no sentido de, ainda que constando fotografias em que se evidenciam pequenas lesões (superficiais) na pele do arguido, cfr. fls. 277 a 279 (e de fls. 254, também) prova que não foi feita do que as mesmas sejam resultantes do comportamento do assistente, posto que qualquer comportamento de natureza agressiva, por parte deste, se provou e por isso não resultaram provados os factos que de descreveram de iv) a ix) dos elenco dos factos não provados. De todo o modo, sempre se dirá que, se por hipótese, se tivesse por apurada a invocada situação de legitima defesa, nos moldes em que o arguido a configura e a descreveu em julgamento (que, como vimos se não provou e já a havia argumentado na fase de instrução) nunca a mesma consubstanciaria causa de justificação da ilicitude do seu comportamento, posto que, talqualmente já o salientara o despacho de pronuncia – e nada de novo, em julgamento se acrescentou - resulta das suas próprias declarações que a agressão do assistente (seja lesiva de bens pessoais e/ou patrimoniais) já não era atual nem iminente, antes havia ocorrido e se consumado em momento anterior e só após a sua concretização o arguido se defendeu (alegadamente do acontecido) atingido o assistente da forma descrita. Não está assim em causa uma agressão nem atual, nem iminente, como o referimos, nem nada se provou que justificasse a consideração que o seu comportamento se concretizou no quadro de uma legitima defesa putativa, por recear a continuação de uma agressão – não provada – ou num quadro de excesso de legitima defesa. A versão do arguido, despida de qualquer comprovação secundária, acessória ou periférica da prova não assume por isso e só por si credibilidade, para além dos factos em que este, o assistente e a testemunha EE se firmam: (i) que estavam assistente e arguido a trabalhar no local, (ii) que existiram divergências que conduziram a uma discussão (não assistida pela referida testemunha) por falta de pagamento de valores que o assistente reclamou do arguido, (iii) que o primeiro querendo dar por satisfeita essa obrigação decidiu levar consigo uma máquina de lavagem à pressão – de cujo valor não se fez prova e por isso, assim se decidiu – na sequência do que o arguido lhe desferiu um golpe no pescoço, com recurso a um x-ato, que trazia no bolso, comportamento que lhe causou as lesões apuradas. Do mesmo passo não resultou da prova realizada em julgamento que o pedido de dinheiro feito pelo assistente ao arguido estivesse destinado à compra por aquele de canábis. O arguido não o referiu, nem o disse o assistente, aludindo tão somente a “trocados” para comprar pão e leite para as crianças, situação de desfavorecimento que o arguido não afastou, nada referindo no sentido de saber que este fosse consumidor desta substância e que o arguido soubesse que o assistente efetuava estes consumos (pese embora na mochila apreendida se encontrasse um pedaço de haxixe (fls. 248) o tribunal desconhece a quem o mesmo pertencia, se pertencia ao assistente ou a terceiro, a quem se destinava ou a que fim era destinado e se sempre lá esteve colocado ou guardado, sendo que, no rigor dos princípios teremos que afirmar que nenhum interveniente foi, em julgamento, confrontado com esse facto, com a mochila e seu conteúdo, e nem que por esta razão – a dos consumos - não lhe adiantasse quaisquer valores. A ausência de prova ditou que se respondesse como descrito em ii) dos factos não provados, como também não resultou apurado que para além de ter residido em casa do assistente com este e os filhos, comprasse muitas vezes comida aos filhos do assistente e os levasse a passear (não prova do facto iii). Como referido, entendemos também que prova não se fez, da factualidade inserta em iv) v), vi) nem que o assistente tivesse chamado nomes ao arguido ou o ameaçado com o recurso a uma faca, sendo que em nosso entendimento tal factualidade, apenas referida pelo arguido e assumindo os contornos da sua defesa, não assenta em qualquer outro meio de prova, como também não se provou o valor da máquina de pressão e nem que da sua utilização resultasse qualquer imprescindibilidade. Não deixamos ainda de o referir que a versão trazida pelo arguido em julgamento (no sentido que agrediu o assistente quando, deitado no chão e após perder os sentidos se apercebeu que este se encontra debruçado sobre si, fletido, com a faca na mão) colide com a prestada em 1.º interrogatório judicial, já que nesta o arguido admite encontrar-se de pé, em frente do assistente e ao empreender um ato semelhante ao ceifar golpeou-o com o x-ato. Em momento algum da prestação de declarações, o arguido invoca ter levado a mão ao bolso e retirado o primeiro objeto que lhe veio à mão (como o alegou na contestação; facto xi) e xii) não provados) e nem que ali estivessem outros a que podia ter recorrido o que não fez. É alias, a aptidão que reconhece ao objeto utilizado que forma claramente a nossa convicção no sentido de ter sido este o escolhido, sendo também contrário às regras de experiencia comum que o arguido o trouxesse aberto no interior da peça de vestuário, mas antes o pontuou, abrindo a lâmina que no exterior o habilitou ao corte, podendo caso a tivesse guardado aberta no bolso, cortar-se ou rasgar a roupa envergada. A matéria de facto apurada e o modo como se perfila a ocorrência dos factos, nos termos descritos, permite aferir o dolo do arguido, revelando claramente a sua intenção e determinação na prática dos mesmos, não se confundindo o dolo para o facto com a surpreendida conduta posterior. Não esquecendo que o juízo sobre a prova é necessariamente um juízo global, no sentido de que a convicção se forma no escrutínio rigoroso e cuidado de cada uma das provas, individualmente consideradas, e depois de todas elas no seu conjunto, a convicção formar-se-á sempre a final, ou seja, avaliada cada prova e todas as provas. A prova tem de ser avaliada também aqui, ou sobretudo aqui, na sua globalidade, atenta a especificidade da factualidade em apreço (demonstração de factos internos, que não se provam diretamente), justificando-se o apelo às inferências e presunções, conjugando-se as provas diretas e as provas indiretas, assim se formando, num quadro de regras lógicas e no saber dado pela experiência comum, a convicção. Mas mais uma vez, de uma forma singela, a região do corpo atingida pelo golpe desferido pelo arguido, a utilização particular daquele objeto cujas potencialidades o arguido conhecia mediante força significativa para provocar a laceração de músculos e veias leva a concluir, de acordo com critérios de normalidade da vida e as regas da experiência comum, que o arguido atuou dolosamente. E neste sentido, a dinâmica da ação do arguido, quando analisada à luz das regras da lógica, da experiência e senso comum, levou a julgar provados os factos respeitantes à intenção e voluntarismo direto, nada se tendo faticamente apurado que concite a conclusão que a sua conduta se estabeleceu no plano do dolo necessário ou eventual. Para a demonstração deste elemento levamos ainda em conta ainda o testemunho de EE. Depois de o arguido a procurar, veio para a rua ver o que se passava e trouxe o telefone. Alguém que passou pela rua e viu o estado em que se encontrava o assistente, chamou os bombeiros e o INEM. Avistou-o caído perpendicularmente à estrada, cabeça apoiada no passeio e o arguido a pressionar com a mão o pescoço do ofendido, o que evidencia claramente a sua intervenção no sentido de, reconhecendo ser a fonte de perigo, ter atuado no sentido de o acompanhar enquanto aguardava pela assistência médica. Também FF, militar da GNR, antigo comandante do Posto de … nos referiu que quando chegou ao local, e após contacto com a patrulha, já se encontrava o INEM a prestar assistência e não se aproximou da vitima. O arguido encontrava-se exaltado com o sucedido, meio arrependido com o que acabara de empreender sem medir consequências; ali encontrava-se também a proprietária do imóvel. No local era visível uma grande poça de sangue (entre a berma e a estrada, mesmo à frente da casa onde estavam a trabalhar). Veio depois a encontrar o x-ato utilizado pelo arguido, tendo sido este quem lhe apontou o local, não se recordando de ter encontrado qualquer outra arma (designadamente, a faca). Sendo que o passado criminal do arguido está documentado, e por isso se provou, tendo por base o CRC atualizado a que acima nos referimos (facto 29), os factos respeitantes às condições de vida (pretéritas e atuais – factos 17) a 28) e à reputação e estima que angariou ao longo da vida resultaram claramente apuradas tendo por base o relatório social elaborado, mas também assentaram no depoimento atestatório das testemunhas GG, irmão do arguido, HH e II, seus amigos, que abonaram a personalidade do arguido e o seu temperamento, descrevendo-o como pessoa calma, responsável, amigo para todas as horas, pessoa cujo temperamento se distancia de confusões e desacatos, sendo por todos estimado, sendo aliás de valorar o seu comportamento posterior ao facto. No que respeita ao pedido de indemnização cível introduzido pelo Demandante e Assistente, o Tribunal fez fé, para além da documentação junta com a pretensão indemnizatória cível a fls. 459 a fls. 461 verso, no depoimento das testemunhas JJ, sobrinha do assistente e KK. A primeira referiu ter visitado o tio, ora assistente, no Hospital, após a ocorrência dos factos, a quem disse que cuidaria a partir de então. O tio encontrava-se muito debilitado, não conseguia falar ou comer. Engasgava-se. A recuperação do tio foi gradual; no inicio sentiu muitas dores, não conseguia falar. Tinha imensas dificuldades a comer, só comia iogurtes e alimentos líquidos, progredindo depois para a alimentação de sólidos. Na altura, o tio ficou muito confuso por causa da situação, e ficou muito preocupado com o futuro (seu e dos filhos), com a segurança pessoal de todos e se melhoraria. O tio sofreu muitas dores. Ajudou-o, no período mais complicado, a tomar conta dos filhos, o tio ficou muito tempo de repouso. Sabe que o tio tomou – e toma - ansiolíticos, antidepressivos e medicamentos para as dores. KK, indicada pelo assistente à matéria do pedido de indemnização cível, referiu-nos conhecer o assistente há cerca de 5 anos, em razão da sua participação como voluntária numa associação que lhe presta apoio alimentar e o acompanha na área da saúde. Depois do evento a que se reportam os autos, continuou a apoiar as crianças, filhos deste. A mãe dos meninos ficou em casa do assistente para cuidar deles. Mais tarde falou com ele ao telefone para o acalmar. Aconselhou-o a ir para casa de um familiar para se recuperar, continuando a ser prestado apoio alimentar aos filhos. Atualmente o assistente tem pavor de sair de casa. Já tinha sofrido um acidente traumático que lhe causou lesões e esquecimento. O assistente receia que o arguido apareça e lhe faça mal e aos seus filhos. Comprovou-o há dias que lhe foi entregar uma televisão a sua casa, mostrando o assistente pânico real em sair à rua, por temer que o arguido o mate ou, alguém a seu mando, assim possa proceder. O assistente vive os dias fechado em casa, no escuro, não consegue fazer nada, chora com frequência e mostra sempre muito medo. Estes meios de prova serviram assim à demonstração dos factos vertidos de 31) a 34) sendo que não resultou provado que o assistente tenha perdido definitivamente parte da audição do ouvido esquerdo e da visão (os documentos juntos não o comprovam e o assistente, perguntado que lhe foi, não confirmou esses factos) como também não logrou fazer prova da factualidade que se descreveu assim como não provada nos pontos xiv) e xv) – neste segmento que o assistente sinta vergonha quando se vê ao espelho, que tenha que explicar a cicatriz que possui no pescoço e nem que seja auxiliado pelo filho de … anos de idade, na leitura de documentos, pois que não o consegue fazer, dado que nenhuma prova se lhes correspondeu. No que respeita a prova do pedido do Centro Hospitalar de …, EPE – facto 30) - resultou esta não só da matéria de facto atinente à causa penal apurada em que sobressai a análise do conjunto da documentação clínica respeitante à assistência hospitalar prestada ao assistente e ao teor da fatura junta com o articulado, mormente a fls. 410. * Por fim quanto aos factos que se decidiram demonstrados e se firmaram nos pontos 13) a 16) resultaram das declarações conjugadas prestadas pelo arguido e pelo assistente, sendo que aspetos existem que mereceram a confirmação da testemunha FF, corroborando-os. No que concerne aos factos que se deram por não provados, a nossa convicção quanto a eles resultou de não ter sido feita prova segura, nesse sentido, dada a dualidade ou a falta de consistência das versões ou por ter sido cabalmente assegurada a demonstração de factualidade distinta do alegado.” 2 - Fundamentação. A. Delimitação do objecto do recurso. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso. As questões a decidir no presente recurso são as seguintes (2): 1.ª questão – Erro notório na apreciação da prova. 2.ª questão - Erro de julgamento da matéria de facto. 3.ª questão - Violação do princípio in dubio pro reo. 4.ª questão – Reexame da matéria de direito. * B. Decidindo. 1.ª questão – Erro notório na apreciação da prova. Segundo o recorrente, o aludido vício resulta da existência de (i) erro na crítica dos factos e de se ter (ii) valorizado prova e desvalorizado outra contra as regras da experiência comum. São formulações originais que demandam, para a sua apreensão (naquilo que é possível descortinar), uma minuciosa análise do alegado. Afirma-se que na decisão recorrida se traça um “filme” dos acontecimentos (essencialmente a descrição da agressão do arguido ao assistente com um X-ato e a respectiva intenção de matar) e que tal “filme” “tem como consequência um erro de raciocínio na apreciação das provas” porque as provas revelam claramente que “o arguido voluntariamente cessou a agressão”, foi à habitação da casa onde trabalhavam e pediu para chamar a ambulância, afastou os carros que passavam do assistente e manteve pressão sobre o ferimento controlando o sangramento. Depois de aludir a aspectos que nada têm a ver com a presente questão (3), conclui, inexplicavelmente, que “o arguido não admitiu a possibilidade da morte ocorrer nem se [conformou] com tal resultado!” Vejamos. O recurso pode ter como fundamento (nos termos do art.º 410.º, n.º 2, alínea c)), desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum o erro notório na apreciação da prova. Tal erro, dizem-nos Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques (4), é uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível para o cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se tirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis.” A tese defendida pelo recorrente, salvo o devido respeito, é totalmente insubsistente. Com efeito, afirmar que o arguido, “pelas regras da experiência comum e patente aos olhos de qualquer observador que lê a decisão”, ao desferir com o X-ato um golpe no pescoço do assistente, que lhe provocou uma ferida incisa de 13 cm de comprimento com hemorragia profusa, não admitiu a possibilidade da morte ocorrer e não se conformou com tal resultado, é asserção que, ela própria é que se revela violadora das mais elementares regras da experiência e do senso comum. Com efeito, parece que o recorrente apenas viu a segunda parte do “filme” a que alude (a “ajuda” ao assistente) e olvida, muito convenientemente, a primeira parte do mesmo (a própria agressão e a intenção à mesma subjacente). Com efeito, são as próprias regras da experiência que nos impõem o juízo lógico, concordante e isento de qualquer arbitrariedade, até respeitando as legis artis (como se vê dos elementos médicos juntos aos autos) que impõem a prova de que aquela agressão, pelas suas características e pela zona atingida, era adequada a tirar a vida ao assistente e que, no momento da mesma (5), o arguido “formulou o propósito firme de tirar a vida ao ofendido” (facto provado 9), agindo de “forma deliberada e consciente” (facto provado 10). A questão é, assim, improcedente. 2.ª questão – Erro de julgamento da matéria de facto. Constitui princípio geral que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, nos termos do art.º 428.º. O recorrente afirma que existiu erro na apreciação da prova. A este propósito, importa lembrar o que dispõe o art.º 412.º, com referência à motivação do recurso e conclusões: “3 – Quando impune a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 364.º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.” Como consta do Comentário do Código de Processo Penal (6), em anotação à referida norma, “[a] especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (…)” ; “[a] especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida”, a que “(…) [a]cresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação. (7)” Assim sendo, sempre que seja impugnada a matéria de facto por se entender que determinado ponto da mesma foi incorrectamente julgado, o recorrente tem de expressamente indicar esse ponto, a prova em que apoia o seu entendimento e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida. Por seu turno, importa que o recorrente concretize qual é a “decisão diversa da recorrida” que entende deve ser adoptada, pois, caso o não faça, a sua pretensão é essencialmente inócua e sujeita às mais variadas interpretações (o facto deve ser considerado totalmente provado /não provado; o facto deve ser considerado parcialmente provado / não provado; o facto deve ser provado com uma redacção diferente e qual em concreto) pelas quais, obviamente, o tribunal não pode optar. Tal(is) exigência(s) decorre(m) da circunstância de que todos os recursos – à excepção do recurso de revisão – se encontrarem “concebidos na lei como remédios jurídicos e não como instrumentos de refinamento jurisprudencial, o que inculca que aos impugnantes seja pedido (em obediência ao princípio da lealdade processual) que indiquem qual o defeito ou vício de que padece o acto impugnado, por forma a habilitar o tribunal superior a ajuizar do mérito das razões invocadas. Ora é exactamente para isso que serve a motivação: permitir ao recorrente apontar ao Tribunal ad quem o que na sua perspectiva foi mal julgado e oferecer uma proposta de correcção para que o órgão judiciário o possa avaliar.” (8) Por outro lado, pretendendo o recorrente “impugnar a decisão da matéria de facto, forçosamente há-de saber o que nesta decisão concretamente quer ver modificado, e os motivos para tal modificação, podendo, portanto, expressá-lo na motivação.” (9) As exigências previstas nos números 3 e 4 do art.º 412.º não se revestem de natureza meramente secundária ou formal: ao invés, relacionam-se com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e só a sua estrita observância permitirá ao tribunal de recurso conhecer a vontade do recorrente e pronunciar-se sobre um objecto escolhido, não por si próprio, mas por quem não se conforma com uma decisão. Complementarmente se dirá que a ratio das aludidas exigências repousa na circunstância de o recurso sobre a matéria de facto não ter como escopo “a realização, pelo tribunal ad quem, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros clamorosos (evidentes e óbvios) na apreciação/aquisição da prova produzida em primeira instância” (10), como sucede quando “o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário”(11), por exemplo, “se o tribunal a quo tiver dado como provado que A bateu em B com base no depoimento da testemunha Z, mas se da transcrição do depoimento de tal testemunha não constar que ela afirmou esse facto (…) [ou] se, apesar de afirmar que A bateu em B, souber de tal facto apenas por o ter ouvido a terceiros” (12). Por outro lado, é de sublinhar que, “se, perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova”. (13) No caso dos autos, o recorrente afirma, a fls. 23 da motivação (4.º §) (i) que deverá “ser alterada a factualidade dada como apurada, que consta dos pontos 5., 8., 9., 10., 11., 12., e 13. e alíneas de v) a Xi) do acervo dos factos não provados.” Posteriormente, nas conclusões (ponto 16), afirma (ii) que a decisão recorrida “julgou incorretamente não provados os factos constantes nas alíneas v) a xi)” e que (ponto 17), “a prova produzida (…) impõe que seja alterada (14) a matéria de facto vertida nos pontos atrás referidos.” Do exposto flui que nada é dito nas conclusões quanto aos factos provados ou, especificamente, quanto à respectiva impugnação. Finalmente, no pedido formulado a final, apenas pugna pela (iii) alteração da “matéria de facto”. Do exposto flui como meridiana clareza que o recorrente, nem na motivação, nem nas conclusões, nem sequer no seu pedido final, concretiza qual é a “decisão diversa da recorrida”(15) que entende deve ser adoptada relacionando-a, de forma inequívoca, com cada um dos factos impugnados. Sem prejuízo de tal essencial incompletude, dir-se-á: Afirma-se (conclusão 18) que não foi produzida prova de que o assistente não agrediu o arguido, atenta a sua postura de negação, amnésica e de depressão, não sustentada cientificamente e pouco segura. Vejamos. Recorde-se que, na motivação da matéria de facto, explicou o tribunal a quo: [O assistente ] nega que tenha, por que forma fosse agredido o arguido, dizendo que não tem força sequer para segurar o filho ao colo; sabendo das suas limitações físicas não é pessoa de se confrontar com terceiros, por saber que, em caso de contenda, não pode corresponder ou defender-se de agressões. Não utilizou, por isso, contra ele, a máquina de lavar à pressão, nem desferiu agressões com o cabo ou com a pistola, ações que nega. E quanto à facilidade da utilização da faca (que o arguido nos referiu encontrar-se em seu poder e utilizou, ameaçando-o) negou, sem hesitações, a sua utilização ou posse.” Do exposto flui que não corresponde à verdade aquela “inexistência” de prova, movendo-nos aqui no puro domínio da convicção do tribunal relativamente à prova produzida. Compreende-se que para o recorrente as declarações do assistente sejam uma inexistência, mas, como sabemos, não é, de facto e de direito, assim. O recorrente afirma que o assistente não se recorda dos factos em questão (o que as próprias transcrições que efectua desmentem), que fica em silencio, invocando sempre o seu estado de saúde, “desculpabilizando-se”. Primeiro, o assistente não ficou sempre em silêncio (é certo que não respondeu a algumas perguntas que lhe eram feitas sucessivamente, o que não tem qualquer significado em face do seu debilitado estado de saúde: recorde-se que é o próprio recorrente que transcreve parte da “história clínica” do assistente (fls. 20/21 da motivação), onde consta que sofreu “[a]cidente de viação em 24.05.2010 com traumatismo crânio-encefálico e cervical com internamento no serviço de Neurocirurgia do Hospital … (…) seguido em consulta de Psiquiatria no contexto de perfil neuropsicopatológico compatível com compromisso das vias fronto-temporo-parietais bilateral sequelares a TCE grave.” Se a tal quadro clínico acrescentarmos as lesões e o trauma infligidos pelo arguido, apresenta-se como totalmente desprovida de fundamento qualquer crítica ao comportamento por vezes errático do assistente, traduzindo até, para quem agrediu gravemente aquele, imputar-lhe uma postura desculpabilizante!? (cumpre questionar – desculpabilizante de quê, de ter sido ferido de forma grave com um X-ato no pescoço que o deixou às portas da morte? A alegação (conclusão 19.ª) de que “não foi provado (…) que o arguido pretendia matar o assistente” assente apenas nos “depoimentos do recorrente” é também, salvo o devido respeito, uma afirmação que se esgota em si mesma, em função de todo o quadro probatório referido minuciosamente na decisão recorrida, sinteticamente no proémio da motivação (fls. 10 a 12), mais desenvolvidamente nas fls. 12 a 21 daquela e que o recorrente, na sua essência, ignora. Por seu turno, quanto à questão da “robustez física” do assistente, abordada especificamente no depoimento da testemunha EE: Desde logo, não conseguimos descortinar uma qualquer relação entre os factos impugnados não provados e esta questão, que se nos afigura sem qualquer importância. De qualquer forma, ouvido integralmente o depoimento da testemunha, constata-se que a mesma afirmou não ter notado quaisquer limitações físicas no desempenho laboral do assistente (muito embora também não o tivesse visto a fazer trabalhos pesados, como transportar sacos de cimento, mas apenas a fazer cimento na betoneira, já ali se encontrando os respectivos materiais), não deixou de o qualificar como tendo alguma “fragilidade” física. Mais importante a extrair do depoimento desta testemunha é que a etiologia da discussão entre o assistente e o arguido (que, curiosamente, o recorrente omite das suas transcrições, apenas das mesmas resultando que, segundo disse, o assistente, sem razão aparente o começou a agredir selvaticamente) foi a circunstância de, alegadamente, o arguido não pagar o que devia ao assistente pelo seu trabalho, mais afirmando a mesma que o arguido “talvez fosse um bocadinho conflituoso”, afirmação que o recorrente também achou por bem omitir. Por último, quanto à alegada faca que o assistente teria utilizado contra si, como se diz na motivação da decisão recorrida, inexiste qualquer prova dessa utilização para além da sua própria afirmação, a que o tribunal a quo, não deu credibilidade, explicando consistentemente porquê, explicação que se sufraga por inteiro. Em síntese, é a impugnação da matéria de facto totalmente improcedente, não se vislumbrando qualquer violação normativa no processo que levou à formação da convicção do tribunal a quo sobre a respectiva prova. 3.ª questão – Violação do princípio in dubio pro reo. Como sabemos, segundo o art.º 32.º, n.º 2 da CRP, todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. O princípio da presunção de inocência cristalizado neste comando constitucional “surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.” (16) Entendemos, como detalhadamente foi exposto, que o tribunal a quo descreveu com rigor o iter que seguiu para chegar à convicção de prova sobre os factos, explicitando de forma fundada e consistente as opções de prova tomadas, nomeadamente porque motivo deu especial credibilidade ao depoimento do ofendido. Assim, concluímos que o mencionado iter traduz um correto entendimento do princípio da livre apreciação da prova, nos termos recortados pelo art.º 127.º, não se vislumbrando qualquer interpretação inconstitucional do mesmo (por violação, não explicada, dos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, números 1 e 2 da CRP), desconhecendo-se em que se baseia o recorrente para arguir a inexistência de prova direta (17) (?!) dos factos probandos e de uma sobreposição (!?) do princípio da livre apreciação da prova relativamente a “efetiva prova dos factos em discussão”: Trata-se de expressões enigmáticas e vazias de conteúdo, que, obviamente, nunca poderão fundamentar a existência de qualquer inconstitucionalidade, que não se vislumbra de todo. Aliás, de tudo o exposto supra flui que na decisão sob censura o tribunal a quo não evidencia quaisquer dúvidas relativamente à prova dos factos. Nesta sede, o recorrente volta a repisar na tecla da robustez física do assistente, sem que se perceba porque tal questão poderia colocar qualquer dúvida sobre os factos ao tribunal a quo. Por outro lado, a invocação de que a valoração do estado psicológico do ora recorrente deveria ter conduzido “à certeza de que o arguido sempre disse a verdade” é também asserção que se esgota em si própria, desconhecendo-se porque motivo tal “conclusão” (a que o próprio chega) deveria ter provocado qualquer dúvida nos julgadores sobre a prova dos factos, desconhecendo-se igualmente o que quer o recorrente significar com “factos incertos” (cfr § 6.º de fls. 28 da motivação). A este propósito, importa recordar que “a dúvida relevante nesta sede é a do tribunal e não a do recorrente”(18). Ou, de forma mais impressiva: “De todos os modos, o princípio in dubio pro reo não é lesado quando, segundo opinião do condenado, o juiz devia ter duvidado, mas tão-só quando o juiz condenou apesar da existência real de uma dúvida” (19) É, assim, a questão totalmente improcedente, mantendo-se o acervo factual dado como provado / não provado integralmente intocado. 4.ª questão – Reexame da matéria de direito. Em primeiro lugar, importa mencionar o art.º 24.º, n.º 1 do C. Penal e a sua aplicabilidade ao caso dos autos. Segundo o recorrente, a tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime e decorre dos factos dados como provados, que o arguido apenas desferiu um golpe, recorde-se – não abandonou o local, socorreu a vítima ao pedir ajuda e pressionar (com a própria mão) a ferida para evitar o sangramento, pelo que não persistiu na conduta e assim, ainda que considerando que existe dolo, em qualquer das suas modalidades, sempre temos que, perante este circunstancialismo, existe uma desistência voluntária da tentativa! Vejamos a norma em causa: Artigo 24.º Desistência 1 - A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação, ou, não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime. 2 - Quando a consumação ou a verificação do resultado forem impedidas por facto independente da conduta do desistente, a tentativa não é punível se este se esforçar seriamente por evitar uma ou outra. Desde logo, cumpre definir que estamos perante uma tentativa acabada, pois o agente (arguido), desferindo intencionalmente o golpe com o X-Ato no pescoço do assistente, que lhe provocou “uma ferida incisa cervical anterior com hemorragia profusa”, “já praticou todos os actos de execução necessários à consumação do crime”(20) de homicídio. A questão que se coloca é: considerando que a vida do assistente foi salva pelo rápido socorro e assistência em unidade hospitalar (factos provados 6) e 9)), os factos provados 15) e 16) integram ou não o esforço sério para evitar a consumação do crime nos exactos termos previstos no art.º 24.º, n.º 2 do C. Penal? Vejamos. Parece-nos adequada a interpretação de “é necessário que ele [o agente] pratique um «acto de sentido inverso» aos que foram praticados (Gegenak)”, ou seja, aquele deve colocar “em marcha um novo processo causal, pelo menos concorrente de outras causas impeditivas da ocorrência do resultado.” (21) No caso dos autos, como está provado, o arguido, logo que se apercebeu do golpe infligido ao assistente, deslocou-se de imediato a casa da testemunha EE, pedindo para chamar uma ambulância (que veio a não ser chamada por esta testemunha por razões alheias à vontade do arguido), orientou os veículos que circulavam na estrada onde a vítima se encontrava e desviou-o para a berma (para que este não fosse atropelado), e “manteve pressão sobre o ferimento, utilizando a sua mão para controlar, como podia, o sangramento”. Não vislumbramos, em função do quadro fáctico que ocorria, que outras acções adequadas a (tentar) evitar a consumação pudesse, em concreto, ter desenvolvido. Com efeito, não é minimamente seguro que, se o próprio arguido tivesse transportado de imediato a vítima para o hospital, o resultado tivesse sido melhor, podendo até conceber-se que, sem poder assinalar devidamente (como uma ambulância) a marcha de socorro, a viagem para o hospital pudesse ser mais demorada e, eventualmente, fatal para aquela. Assim, considerando que, nos casos em que “a produção do resultado foi impedida nos termos do n.º 2 do artigo 24.º, dever-se-á exigir que o autor tenha escolhido a acção de salvamento mais adequada, pois de outra forma não terá havido esforço sério da sua parte para evitar a consumação” (22) e o acima mencionado, que se entende integrar a mencionada “acção de salvamento”, não afecta a relevância da respectiva desistência a intervenção de terceiros (o pessoal para médico e médico que interveio impedindo efectivamente a consumação), após a chegada de “uma ambulância ao local” (23), como efectivamente aconteceu. Atenta a operacionalidade da não punibilidade da tentativa, importa qualificar ex novo os actos à luz desta nova realidade, com a consequente subsunção da conduta ao crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. p. art.º 144.º, alínea d) do C. Penal, uma vez que se provou que o arguido ofendeu o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a provocar-lhe perigo para a vida. Recorde-se que é o próprio recorrente que pugna, expressamente, pela sua condenação pela prática, em autoria material, de um crime de ofensas à integridade física qualificada. (§ 6.º de fls. 7 da motivação de recurso). Nestes termos, sobrevindo aqui uma alteração da qualificação jurídica dos factos que é proposta pelo próprio recorrente (de homicídio tentado para ofensas à integridade física), entendemos que a mesma não tem de ser comunicada ao arguido nos termos do art.º 424.º, n.º 3 (24). Relativamente à questão da apensação de um outro processo que o recorrente suscita na conclusão 27, se efectivamente a mesma foi requerida, será eventualmente sindicável a decisão que sobre tal pretensão recair, não tendo sido objecto de qualquer decisão no acórdão recorrido. Não é cognoscível na presente decisão. Quanto ao quantum da pena a aplicar ao arguido ao abrigo da nova qualificação jurídica dos factos. Recorde-se que a moldura punitiva respectiva é de 2 a 10 anos. Segundo o recorrente a pena não deve ultrapassar os cinco anos de prisão e ser suspensa na sua execução. Vejamos. No essencial, o tribunal a quo, nesta sede, ponderou: “Aferindo das circunstâncias do art.71º do Código Penal face à factualidade apurada importa salientar: - O grau de ilicitude dos factos, afigura-se muito elevado, considerando as consequências da conduta do arguido para o assistente; - O arguido agiu com dolo direto e especialmente, sendo manifesta a agressividade espelhada no ato e no modo como reagiu. Ainda que o arguido não seja tido como uma pessoa violenta, em julgamento, atribuiu o seu comportamento a causas externas relacionadas ao comportamento do assistente, responsabilizando-se de modo muito comedido, diremos, pela sua atitude e valorizando como fator desencadeante a atitude do assistente, sendo por isso que, ao arrepio do sufragado pela sua Il. Mandatária, o tribunal não encontrou na sua postura qualquer intenção confessória, nem valorou nas suas palavras o arrependimento que tem relevo para a atenuação da pena, antes resultando do seu depoimento que o prejuízo resultante da sua atuação é analisado de forma autocentrada e conduzido ao prejuízo pessoal (e não, como se impunha, com enfoque em tudo o que o seu comportamento causou - e causa - ao assistente). A conduta do arguido tomada pela brutalidade da agressão tornou limitada qualquer capacidade de defesa por parte de quem a recebeu, sendo a escolha do pescoço (com o corte bilateral das jugulares) a zona privilegiada e visada com as agressões realizada com recurso a um instrumento de corte, conhecido pelo próprio agressor como aquele que mais corta, provocando necessariamente intenso sofrimento na vítima - o que revela um modo de execução particularmente censurável, no que concorre o grau elevado de desvalor da ação, enquanto contrariedade à lei, demonstrando falta de ressonância ética relativamente a valores de universal respeito - os sentimentos manifestados pelo agente na atuação, no fundo relacionados ao facto de não aceitar que o assistente transportasse a máquina de lavagem de pressão e pretendesse destiná-la como lhe aprouvesse para fazer face a necessidades para que lhe solicitara o devido pagamento. - O grau de lesão, intenso, dos bens jurídicos violados; A seu favor ponderam-se as condições pessoais e as circunstâncias da história pretérita de vida, que não impõem particular atenção no conspecto da ressocialização do agente e da sua integração comunitária, sendo no caso de avaliar, ao nível das competências, as traduzidas mormente tendo em conta a sua integração social, a existente integração familiar, que vão valoradas em conformidade e nos limites do apurado, sendo certo que o registo criminal do arguido apenas regista condenações nos anos de 2012 e 2013, que dada a sua temporalidade e circunstância de terem sido objeto de ponderação à luz de regimes penais estrangeiros não assumem particular preponderância na determinação concreta da pena. - A admissão parcial dos factos aquilatada prudentemente, com a ausência de arrependimento evidenciado, numa postura genérica de justificação externa. Em seu beneficio, pondera o Tribunal o comportamento do arguido posterior ao facto, isto é, após se ter apercebido das graves lesões que lhe provocara, o arguido deslocou-se de imediato à habitação de EE, a quem pediu para chamar uma ambulância e tentou parar a marcha das viaturas que circulavam na estrada, desviando-as. O arguido afastou ainda o assistente para a zona da berma da via publica próxima ao passeio, para que o mesmo não fosse alvo de atropelamento e manteve pressão sobre o ferimento, utilizando a sua mão para controlar, como podia, o sangramento, atitude que, no contexto da elevada gravidade da conduta intrusiva, será a seu favor ponderado e merecerá reflexo na determinação da pena. Por fim, ainda que não se mostrem de grande expressividade as exigências de prevenção especial, o comportamento do arguido exaspera os sentimentos da comunidade evidenciando as razões e as necessidades de prevenção geral, dada a natureza do ilicito e e o abalo que causam na comunidade. Ponderando todos estes fatores, tendo em conta a gravidade nos factos, com expressão máxima na gravidade das lesões, entende-se ser adequado aplicar ao arguido a pena de sete (7) anos de prisão, pena que se determina em concreto sopesando o comportamento de assistência e auxilio gerado após a prática do evento lesivo – e atendendo expressamente na sua determinação e na dimensão da sua valia no salvamento do assistente, que não ocorreria se não fosse pela pronta assistência, para que o arguido contribuiu - pena que se mostra a adequada a garantir o respeito pelo bem jurídico violado garantindo as expetativas comunitárias sendo a consentânea com a medida da sua culpa.” Relativamente ao exposto e muito embora tais considerações digam respeito a uma caracterização delituosa diversa, como vimos, entendemos ser de as subscrever na sua essencialidade, obviamente com excepção das relativas ao comportamento do arguido posterior ao facto, que, atento o princípio de proibição da dupla valoração, atendendo a que já foram valoradas decisivamente para não punir a tentativa de homicídio. (25) Mais especificamente se dirá: De acordo com o art.º 71.º, n.º 1 do C. Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. ''A redacção dada ao nº 1 harmonizou esta norma com a do novo art.º 40.º: o texto anterior podia sugerir que se atribuía à culpa um papel preponderante na determinação da medida da pena, possibilitaria mesmo, contra a filosofia que era já a do Código, uma leitura que apontasse no sentido da afirmação da retribuição como fim das penas; poderia ser entendido como atribuindo às exigências de prevenção um papel secundário, meramente adjuvante, naquela determinação, que não é, de modo algum, o que agora expressamente se lhes assinala.'' (26) Deste modo, resulta expressamente do normativo citado a necessidade da consideração da díade culpa / prevenção na determinação do quantum punitivo. Relativamente à culpa, entende-se como inequívoco que se trata de um conceito chave do Código Penal de 1982, constando do ponto 2 do respectivo preâmbulo que “toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta”. A eleição legal de um verdadeiro princípio da culpa cinde-se em duas realidades diferentes, a saber, a culpa como fundamento da pena e a culpa como fundamento da medida da pena (27), sendo desta última que agora nos ocuparemos. De que forma pode a culpa determinar a medida concreta da pena, articulando-se harmoniosamente nessa função com as citadas exigências de prevenção? A jurisprudência alemã (28) desenvolveu a chamada “teoria do espaço livre”: segundo esta, não é possível determinar-se de modo exato uma pena adequada à culpa, sendo apenas possível delimitar uma zona dentro da qual deve situar-se a pena para que não possa falhar a sua função de levar a cabo uma justa compensação da culpabilidade do autor; esta relação imprecisa entre a culpa e a pena pode ser aproveitada pelo tribunal para a prevenção especial, fixando a sanção entre o limite inferior e superior do “espaço livre” da culpa, de acordo com os efeitos que possam esperar-se daquela para a integração social do autor do ilícito. (29) Para Jorge de Figueiredo Dias (30), a finalidade primordial visada pela pena há-de ser a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto; e esta há-de ser também por conseguinte a ideia mestra do modelo de medida da pena. Tutela dos bens jurídicos não, obviamente, num sentido retrospetivo, face a um crime já verificado, mas com um significado prospetivo, corretamente traduzido pela necessidade de tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada (prevenção geral positiva ou prevenção de integração). Esta ideia traduz a convicção de que existe uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena visa alcançar. Porém, tal como na anteriormente aludida “teoria do espaço livre”, esta medida ótima de prevenção geral positiva também não fornece ao juiz um quantum exato de pena. Assim, de acordo com este entendimento é a prevenção geral positiva (não a culpa) que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial de socialização. Importa sublinhar que o “que é missão do juiz é individualizar, ajustar a sanção a todas as particularidades do caso singular, na medida em que elas possam ser tomadas em linha de conta para o valor a combater penalmente, conforme aos fundamentos político-sistemáticos da lei.” (31) Importa, assim, indagar dos aludidos “fundamentos político-sistemáticos da lei”, para, de seguida, articular a relevância do “caso singular” na sua essencial qualidade contraditória (e respetiva medida), em concreto, com aqueles fundamentos. Procurando o necessário equilíbrio entre as circunstâncias previstas no art.º 71.º, n.º 2 do CP e ponderando nuclearmente, por um lado, o dolo directo, na especial intensidade criminosa (modo de execução do facto) traduzida na perpetração de um golpe na vítima com um X-ato na zona do pescoço (zona conhecidamente letal) provocando-lhe uma ferida de 13 cm de comprimento com hemorragia profusa, nas sequelas com que obviamente o assistente ficou e ainda nas prementes exigências de prevenção geral no sentido de obliterar vigorosamente as manifestações de extrema violência que se têm vindo a generalizar, e, por outro lado, o seu carácter primário, entendemos que a pena se deve fixar precisamente no centro do intervalo punitivo entre os mínimo e o máximo abstractos, o que se mostra essencialmente equilibrado, não ferindo os normativos que regulam tal matéria, nomeadamente os invocados pelo recorrente (fls. 33 da motivação) ou seja, 6 anos de prisão. Quanto à solicitada suspensão de execução da pena, devemos atender à norma que define os respectivos pressupostos: Artigo 50.º (32) Pressupostos e duração 1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. A operatividade do instituto depende, pois, da verificação de pressupostos formais e materiais (33). Considerando que a pena fixada foi de 6 anos de prisão, não se mostra preenchido o respectivo pressuposto formal, pelo que não pode ser ponderada a sua aplicação. Importa, pois, dar global resposta negativa e esta específica questão. 3 - Dispositivo. Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso parcialmente procedente e, consequentemente, revogar parcialmente o acórdão recorrido, condenando-se o arguido AA, pela prática em autoria material de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. p. art.º 144.º, alínea d) do Código Penal, na pena de seis anos de prisão, mantendo-se o demais decidido. Sem custas. (art.º 513.º, n.º 1 a contrario) (Processado em computador e revisto pelo relator)
----------------------------------------------------------------------------------- 1 Diploma a que pertencerão as menções normativas ulteriores, sem indicação diversa. 2 Seguimos, com algumas pequenas correcções, a exposição de questões proposta pelo próprio recorrente. 3 Como a cessação da punibilidade da tentativa em caso de desistência (art.º 24.º, n.º 1 do Código Penal) e a respectiva dogmática técnico-jurídica, que serão objecto de análise ulterior oportuna. 4 Recursos Penais, 9.ª edição, Rei dos Livros, Lisboa, 2020, página 81. 5 Como se diz de forma expressiva na decisão recorrida (fls. 18), “não se [confunde] o dolo para o facto com a surpreendida conduta posterior.” 6 Paulo Pinto de Albuquerque e Helena Morão, 5.ª edição, vol. II, UCP Editora, 2023, página 677. 7 Idem, ibidem, página 678. 8 Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques in Ob. cit., página 109 (itálico e negrito da nossa autoria). É de sublinhar que no Código de Processo Civil se encontra expressamente vertida a exigência de, quando exista impugnação da matéria de facto, o impugnante deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, “[a] decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (art.º 640.º, n.º 1, alínea c)). Muito embora esta exigência não conste formalmente do acervo normativo do CPP, entendemos que ela necessariamente se deduz na redacção do n.º 3, alínea b) do art.º 412.º deste compêndio normativo. 9 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/2004, de 10 de Março de 2004 – Diário da República, II Série, de 17 de Abril de 2004, referindo-se a uma versão do art.º 412.º, n.º 3 e nº 4 do Código de Processo Penal era menos exigente do que a actual relativamente aos ónus dos recorrentes. 10 Acórdão deste TRE de 19.05.2015, proferido no processo 441/10.5TABJA.E2, disponível em www.dgsi.pt, como todos os demais mencionados sem indicação diversa. 11 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.05.2017, proferido no processo 324/14.0SGPRT.P1. 12 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04.02.2004, proferido no processo 0315956. 13 Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 15.03.2011 proferido no processo 212/04.8TACTX.E1. 14 Sem que se afirme em que sentido. 15 No 5.º § de fls. 23 da motivação (que se segue ao 4.º § acima parcialmente descrito), o recorrente explana a seguinte expressão enigmática cujo alcance não vislumbramos de todo: “Donde cabe esclarecer que, salvo o devido respeito, a inclusão dos mesmos [quais?] nos elencos dos factos provados e não provados carece de qualquer fundamento, por deficiência na condução da investigação e consequentemente a não prova [de quais factos? Dos provados ou dos não provados?], circunstância se pugna venha a ser acolhida da Decisão a proferir, analisando o presente Recurso.” Provavelmente terá olvidado o recorrente que estamos em fase de recurso de uma decisão da 1.ª instância, estando a fase investigatória há muito concluída, desconhecendo-se, inclusive, como poderia a condução da investigação conduzir necessariamente a qualquer juízo probatório em fase de julgamento. 16 J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Volume I, 2007, página 519. 17 Com excepção dos elementos subjectivos, pacificamente provados (quase) sempre por prova indirecta. 18 Acórdão do STJ de 27.11.2019 proferido no processo 232/16.0JAGRD.C1.S1.2 (Relator Vinício Ribeiro). 19 Claus Roxin e Bernd Schünemann, Derecho Procesal Penal (tradução da 29.ª edição alemã de 2017), Ediciones Didot, Buenos Aires, 2019, página 573 (tradução nossa). 20 Maria Paula Ribeiro de Faria in Formas Especiais do Crime, Universidade Católica Editora, Porto, 2017, página 271. De referir que “[a] distinção [entre tentativa acabada e não acabada] tem efeitos práticos relevante: a desistência da tentativa acabada exige um arrependimento ativo do agente no sentido de impedir a consumação material do crime. ; ao invés, a desistência da tentativa inacabada exige apenas que o agente omita (deixe de realizar os demais atos de execução necessários à consumação material do crime.” (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, 2021, página 207) 21 Maria Paula Ribeiro de Faria in Ob. cit., página 277. 22 Maria Paula Ribeiro de Faria in Ob. cit., página 278. 23 Idem, ibidem. 24 Neste sentido, vide Acórdão do STJ de 21.03.2018 proferido no processo n.º 1188/15.1PHLRS.L1.S1 apud Código de Processo Penal Comentado, 3.ª edição revista, 2021, Almedina, página 1357. 25 Sobre a questão da proibição da dupla valoração vide Figueiredo Dias in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, página 313. Vide também, a tal propósito, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal cit., página 396. 26 José Gonçalves da Costa, Revisão do Código Penal - Implicações Judiciárias mais Relevantes da Revisão da Parte Geral, CEJ, Lisboa, 1996, página 29. 27 Sobre esta distinção fundamental, pode ver-se Claus Roxin in Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Editorial Civitas, Madrid, 1997, páginas 813 e 814, onde se afirma que a culpa como fundamento da pena diz respeito à imputabilidade ou capacidade de culpa, bem como à possibilidade de conhecimento da proibição, sendo que a culpa como fundamento da medida da pena é uma realidade suscetível de fixação em concreto através da consideração de circunstâncias (cfr. o n.º 2 do art.º 71.º do C. Penal). 28 A norma do C. Penal Alemão equivalente ao art.º 71º do Código Penal Português tem a seguinte estrutura: o § 46 I daquele diploma contém o enunciado de que na individualização da pena se devem tomar em consideração os fins da mesma e no nº II enumeram-se as circunstâncias que, em benefício ou em prejuízo do autor, devem ser levadas em consideração para o aludido desiderato. 29 Assim, Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend in Tratado de Derecho Penal – tradução da 5.ª Edição do ''Lehrbuch des Strafrechts, All. Teil'' - Comares, Granada, Dezembro de 2002, páginas 948 e 949. Sabemos que Eduardo Correia (com a concordância da Comissão Revisora) defendia, nas suas linhas essenciais, este conceito, ao afirmar ''é claro que que, em absoluto, a medida da pena é uma certa; simplesmente, qual ela seja exactamente é coisa que não poderá determinar-se, tendo, pois, o aplicador de remeter-se a uma aproximação que, só ela, justifica aquele ''spielraum'', dentro do qual podem ser decisivas considerações derivadas da pena prevenção.'' (BMJ n.º 149, página 72). 30 Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, páginas 105 a 107. 31 Zimmerl, Strafr. Arbeitsmethode, apud José de Sousa e Brito, Sentido e Valor da Análise do Crime, Direito e Justiça, vol. IV, 1989/1990, páginas 140/1. 32 Do Código Penal. 33 A terminologia é de Jorge de Figueiredo Dias, Novas e Velhas Questões Sobre a Pena de Suspensão de Execução da Prisão, RLJ, Ano 124, página 67. |