Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1161/11.9PBFAR
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: CO-ARGUIDO
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
INTERROGATÓRIO DO ARGUIDO
CONVERSAS INFORMAIS
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
Data do Acordão: 04/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - O Código de Processo Penal português não dispõe de nenhuma norma que estabeleça qualquer regra probatória sobre as declarações de co-arguido. Rege, portanto, o princípio geral de apreciação probatória, sem que qualquer tabelamento probatório seja normativamente imposto.
2 - Dum preceito legal – o art. 192º, nº 3 do C.P.P. italiano - que claramente não foi querido pelo legislador português que bem conhecia o código italiano, alguma doutrina partiu apressadamente para a afirmação de que as declarações de co-arguido devem ser confirmadas por outros meios de prova, pretendendo limitar a apreciação judicial da prova por norma que, assim, se pretendia impor por via doutrinária. Tal doutrina foi claramente afastada pela jurisprudência portuguesa, de que é exemplo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-09-2008 (Proc. 08P2044) que impõe a saudável conclusão de que é processualmente válido o depoimento do arguido que incrimina os restantes arguidos reconduzindo a questão à credibilidade do depoimento do co-arguido, a ser apreciada em concreto
3 - Há uma vinculação formal, uma tipicidade de forma nos interrogatórios de arguido, detido ou não. O meio de prova “declarações de arguido” tem que ser veiculado através de um “interrogatório” previsto nos artigos 140 a 144 do C.P.P.. O meio de prova “declarações de arguido” não pode ser veiculado por “conversas informais” ou qualquer outra forma presumindo-se que, não se seguindo a forma indicada, há fraude à lei.
4 - Mas não há conversas informais quando as forças policiais se limitam a cumprir os preceitos legais, quer pela necessidade de “documentar” a prática do ilícito e suas sequelas, designadamente providenciar os actos cautelares que se imponham (v. g. artigos 243º, 248 a 250º do C.P.P.), quer quando actuam por imposição legal ao detectarem a prática de um ilícito e o arguido decide – por sua iniciativa e sem actuação criticável das forças policiais – fazer afirmações não sugeridas, provocadas ou imaginadas por aqueles OPC.
5 - Para estes casos vale o disposto nos artigos 58º e 59º do Código de Processo Penal, aquele sob a epígrafe “Constituição de arguido”, norma que é o cerne da questão (e não a questão do “depoimento indirecto” ou das “conversas informais”). E, como mera decorrência do nº 5 do artigo 58º do Código de Processo Penal, a omissão ou violação das formalidades ali previstas implica que qualquer declaração daquele que já deveria ter sido constituído como arguido não pode ser utilizada como prova.
6 - Mas esta proibição de prova não abrange as declarações ouvidas pelos agentes policiais ao arguido (antes de o ser) se não houver culpa sua no atrasar da formalização daquela constituição e se aquelas não constituírem confissão de factos.
Decisão Texto Integral:

Proc. 1161/11.9PBFAR

Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

No Tribunal Judicial da Comarca de F – 1ª Secção Criminal - correu termos o processo comum colectivo supra numerado em que são arguidos:

- AMSNS, filho de (…),

- MPLA, filho de (…),

- MLMSS, filha de (…) e

- RMCN, filho de (…),

imputando-lhes a prática, em co-autoria, de um crime de roubo (agravado), p. e p. pelo art. 210º n.º 1 e 2 al. b), com referência ao art. 204º n.º 2 al. f), ambos do CP.


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Por acórdão de 16 de Julho de 2014 decidiu o tribunal recorrido:

1 - absolver o arguido RMCN da acusação da prática de um crime de roubo agravado, p. e p. pelos art. 210º n.º 1 e 2 al. b) e 204º n.º 2 al. f) do CP;
2 - condenar o arguido AMSNS pela prática de um crime de roubo agravado, p. e p. pelos art. 210º n.º 1 e 2 al. b) e 204º n.º 2 al. f) do CP, na pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, suspensão esta sujeita a regime de prova e subordinada às seguintes obrigações:
a) receber visitas, ou comparecer perante o técnico de reinserção social competente, sempre que este o entenda por necessário,
b) comunicar ou colocar à sua disposição todas as informações e documentos solicitados, e
c) informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência, bem como sobre qualquer deslocação superior a 8 dias, e sobre a data do previsível regresso.
3 - condenar o arguido MPLA pela prática de um crime de roubo agravado, p. e p. pelos art. 210º n.º 1 e 2 al. b) e 204º n.º 2 al. f) do CP, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, suspensão esta sujeita a regime de prova e subordinada às seguintes obrigações:
a) receber visitas, ou comparecer perante o técnico de reinserção social competente, sempre que este o entenda por necessário,
b) comunicar ou colocar à sua disposição todas as informações e documentos solicitados, e
c) informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência, bem como sobre qualquer deslocação superior a 8 dias, e sobre a data do previsível regresso.
4 - condenar a arguida MLMSS pela prática de um crime de roubo agravado, p. e p. pelos art. 210º n.º 1 e 2 al. b) e 204º n.º 2 al. f) do CP, na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, suspensão esta sujeita a regime de prova e subordinada às seguintes obrigações:
a) receber visitas, ou comparecer perante o técnico de reinserção social competente, sempre que este o entenda por necessário,
b) comunicar ou colocar à sua disposição todas as informações e documentos solicitados, e
c) informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência, bem como sobre qualquer deslocação superior a 8 dias, e sobre a data do previsível regresso.
5 - Determinar o mais legal.

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Inconformado, o arguido AMSNS interpôs recurso, com as seguintes conclusões:

1 – A matéria de facto dada como provada, foi alicerçada em prova manifestamente insuficientemente e dúbia, as quais não poderiam por si só, ou conjugadas entre si, formar uma convicção segura sobre a verdade material dos factos dado como provados.

2 – O Tribunal a quo fundamentou a decisão de facto através da análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, ancorando-se nas declarações incriminatórias do co-arguido RN e do depoimento indireto da testemunha OR.

3 – Com base nas regras da experiência comum, sabido é que as declarações de co-arguido seguem-se sempre em obter “vantagem em incriminar outro co-arguido, ao qual o não ligue uma comunidade de interesses concreta, pois, se não for como meio de alijar ou desagravar a sua responsabilidade pessoal, pelo menos será com o fito de beneficiar de uma punição menos gravosa valendo-se da suposta colaboração que prestou à Justiça.”, cfr. referido em Acórdão do T.R.E., em 07-01-2014, pelo relator Sérgio Corvacho, em www.dgsi.pt;

4 – E não se descore que, o recorrente encontrava-se num estado de alucinações no momento em que esteve com a testemunha OR.

5 – Com todo o respeito pela decisão do Douto Tribunal Coletivo, não concorda a defesa, que existe uma certeza minimamente exigível, e que é muita, que possibilite formar uma convicção segura como o ora recorrente tenha preparado e executado o assalto destes autos.

6 – Pelo que, a prova produzida nos presentes autos, impunha ao Tribunal Coletivo uma decisão oposta à que resultou, considerando que o recorrente não praticou o crime de roubo qualificado.

7 – As conclusões do Tribunal recorrido enfermam de vício lógico que consubstanciam na insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova para efeitos do artigo 412º, nº 2, alínea a) e c) do C.P.P, assim como violou os princípios da liberdade da apreciação da prova, previsto no artigo 127º do C.P.P..

8 – Consequentemente foi também violado o princípio fundamental do in dúbio pro reo, e princípio da presunção da inocência, pedras basilares do Processo Penal no Estado de Direito, que procedem e deverão culminar na absolvição do crime imputado ao ora recorrente.

Nestes termos e sem prescindir do douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência, deve ser revogado o douto acórdão recorrido e substituído por outro que expurgue da motivação da matéria de facto todas as considerações atinentes à valoração das declarações confessórias e incriminatórias do co-arguido RMCN, na parte em que as mesmas possam servir de fundamento ainda que acessório à decisão final relativamente ao co-arguido AMSNS, devendo ser substituída por outra, que pressuponha como inválido e inadmissível o uso das declarações do co-arguido RMCN nos termos acima referidos, e consequentemente absolva o recorrente da prática dos crime que foi acusado, em conformidade com o versado no presente recurso.


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Respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de F concluindo que deve ser negado provimento ao recurso e manter-se na íntegra a sentença recorrida, com as seguintes conclusões:

O recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação alegando, muito em síntese, que a matéria de facto dada como provada, foi alicerçada em prova manifestamente insuficientemente e dúbia, a qual não poderia formar uma convicção segura sobre a verdade material dos factos dados como provados.
O Tribunal a quo fundamentou a decisão de facto através da análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, ancorando­-se nas declarações incriminatórias do co-arguido RN e do depoimento indireto da testemunha OR.
Com base nas regras da experiência comum, sabido é que as declarações de co-arguido seguem-se sempre em obter "vantagem em incriminar outro co-arguido, ao qual o não ligue uma comunidade de interesses concreta, pois, se não for como meio de alijar ou desagravar a sua responsabilidade pessoal, pelo menos será com o fito de beneficiar de uma punição menos gravosa valendo-se da suposta colaboração que prestou à Justiça.", cfr. referido em Acórdão do T.R.E., em 07-01-2014, pelo relator Sérgio Corvacho, em www.dgsLpt;
Ora da análise da fundamentação de facto do acórdão em causa, constata-se que a decisão alicerçou-se efectivamente num conjunto de elementos probatórios que, analisados criticamente, conduziram o Tribunal a concluir que o arguido teria, em co-autoria com os demais, praticado os factos pelos quais foi condenado.
Realmente resulta da análise do acórdão que o Tribunal valorou as declarações do arguido, prestadas à testemunha Orlando Guerreiro, no qual este terá assumido a autoria dos factos.
Valorou ainda as declarações prestadas pelo co-arguido RN, assim como as das restantes testemunhas e demais elementos probatórios juntos aos autos.
Entendeu o Tribunal recorrido, serem tais elementos probatórios válidos, em virtude de não terem sido obtidos à margem das formalidades e das garantias processuais, tendo justificado e fundamentado a sua posição.
E, pese embora seja vasta a jurisprudência quanto à validade ou não, quer das declarações prestadas pelo arguido ao OPC; quer as declarações prestadas pelos co-arguidos, sendo divergentes os entendimentos, não temos dúvidas de que o Tribunal recorrido ao perfilhar o entendimento do acórdão, fundamentou devidamente o seu raciocínio, pelo que, a nosso ver, se trata de uma decisão devidamente estruturada; fundamentada e em conformidade aos preceitos legais.
Do exame crítico dos vários elementos de prova que o Tribunal entendeu valorar, não se vislumbra o vício da insuficiência da matéria de facto sustentado pelo recorrente, ou qualquer outro.
10º O Tribunal recorrido fundou pois a factualidade apurada no exame crítico dos diversos elementos probatórios, tendo, para o efeito, justificado todas as decisões tomadas, sendo pois o acórdão irrepreensível na sua argumentação e decisão, não merecendo qualquer reparo.
Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado improcedente e a douta decisão recorrida mantida na íntegra.

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O Exmº. Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer defendendo a manutenção do decidido.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1) No dia 18 de Agosto de 2011, entre as 21.00 e as 23.00 hrs., os arguidos A, M E MLcombinaram entre si e decidiram em união e conjugação de esforços assaltar o estabelecimento denominado «HH».
2) Os arguidos A, M e MLdirigiram-se ao referido estabelecimento, sito na Rua José Estevão, em F.
3) Os arguidos A, M e ML, antes de entraram no «HH», muniram-se de gorros de cor preta, com os quais cobriram a cabeça, de luvas nas mãos, e de uma faca com cabo grande.
4) Em seguida, enquanto o arguido M ficou à porta do estabelecimento, os arguidos ML e A entraram no estabelecimento HH, tendo-se o arguido A aproximado do balcão de atendimento e colocado a faca que trazia consigo junto do pescoço de VM, onde a manteve, enquanto a arguida ML se dirigiu a DG, que estava a tomar conta da loja, naquela noite, e disse-lhe que lhe entregasse o dinheiro que estava na caixa registadora, tendo-lhe aquele, com receio pela sua vida e integridade física, entregado cerca de quatrocentos euros em notas e moedas, e disse-lhe ainda para entregar produtos da loja, tendo o DG procedido à entrega de produtos (semelhantes a cocaína) de nome Stardust, Blow e Incense Stick, de valor superior a 1.000 euros, que colocou numa mochila preta que a arguida ML transportava.
5) Na posse dos produtos alucinogénios e do dinheiro, os três referidos arguidos colocaram-se em fuga.
6) Os arguidos A , M , e ML , actuaram em conjunto e de forma concertada, sabendo e querendo agir nos moldes descritos, mormente sabendo e querendo utilizar a faca como descrito, com intenção de se apropriarem dos bens descritos, sabendo que não lhes pertenciam e que actuavam contra a vontade dos seus proprietários, e conscientes de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
7) Estes arguidos tinham capacidade para avaliar a ilicitude dos factos e para se determinarem de acordo com essa avaliação.
8) O arguido A apresenta um percurso de consumo de estupefacientes e de álcool iniciado cerca dos vinte anos e que parece ter mantido até ao presente, com períodos de abstenção de consumo e de recaídas. Esta sua condição afectou negativamente a sua vida, em termos relacionais e laborais.
Reside sozinho em habitação de construção antiga que não dispõe nem de água nem de luz e se encontrará à espera de ser demolida. Trata-se da mesma casa onde viveu com a mãe até que esta faleceu.
Casou com cerca de 22 anos, tendo-se separado quando o filho tinha 9 anos de idade, o qual ficou sob exclusiva responsabilidade da mãe, tendo-se o arguido demitido posteriormente das suas funções parentais.
À data dos factos e até ser preso em Novembro de 2011, o seu filho RN vivia com ele, surgindo ambos algo estigmatizados no meio residencial, pelo modo de vida associado ao consumo de álcool e de estupefacientes, bem como pela perturbação pontual do sossego e descanso dos vizinhos, atribuída ao convívio com indivíduos com modos de vida similares.
Encontra-se desempregado há vários anos, referindo que tem desenvolvido de forma irregular algumas actividades pontuais. Recebe rendimento social de inserção no valor de 178 euros. Recorre a serviços de apoio social para alimentação e vestuário.
Refere não consumir actualmente estupefacientes ou álcool, mas continua a ser referenciado no meio como mantendo um estilo de vida associado a esses consumos.
Apesar de ter consciência da gravidade dos factos em causa, tende a minimizar a sua responsabilidade pessoal, ainda que se mostre bastante intimidado pela intervenção do sistema de justiça.
Não tem condenações registadas no seu CRC.
O processo de crescimento da arguida M foi caracterizado por instabilidade sociofamiliar, decorrente da relação litigante dos pais, associada a hábitos tóxicos do progenitor, que laborava como músico, com horários diferentes da família.
A mudança da residência familiar do P para A, quando tinha 12 anos, por motivos de trabalho do pai, foi seguida pela separação dos progenitores, desestabilizando a arguida. Ambos reconstituíram família e saíram de casa. A mãe fixou-se na mesma zona e o pai passou a residir na Holanda.
Abandonou a escola por volta dos 13 anos, apenas com o segundo ciclo do ensino básico.
O facto de ter passado vários anos a transitar entre o agregado paterno na Holanda e o da mãe no A introduziu insegurança/inconstância na organização da arguida e prejudicou o seu sentido de auto-estima. Fala em rejeição nos agregados que a obrigavam a mudar.
Fez um curso de manequim na Holanda e fez alguns trabalhos nessa área, e, em A e noutros pontos do país, trabalhou como angariadora/vendedora no ramo de Time-Sharing. Mas a sua socialização foi-se degradando com o recurso cada vez mais sistemático a actividades e relacionamentos desviantes, incentivados pelo consumo de estupefacientes.
Iniciou os consumos de haxixe cerca dos 15 anos, os quais intensificou quando esteve na Holanda, onde trabalhou em coffee shop’s. No contexto do convívio com colegas de trabalho em A, aos 18/19 anos, começou a fumar heroína e cocaína, aumentando as doses de modo descontrolado, pelo que, aos 23 anos, injectava ambos os tóxicos, observando-se a degradação das capacidades e motivações da arguida. Passou nessa época a recorrer à prostituição para garantir a aquisição das referidas substâncias. Contraiu doença infecto-contagiosa irreversível ainda jovem e, na sequência de um relacionamento fortuito, foi mãe, tendo a criança, hoje com 15 anos, sido acolhida inicialmente pelo avô materno na Holanda e depois pela avó materna, no A, situação que se mantém actualmente, dada a desresponsabilização e incapacidade da arguida.
No seu percurso aditivo, a arguida sujeitou-se a alguns processos de desintoxicação e reabilitação, alguns clinicamente assistidos, tendo estado internada em comunidade terapêutica e integrado o programa de substituição com metadona por duas vezes.
Há cerca de 14 anos, na sequência de um desses programas de tratamento, iniciou o relacionamento com o companheiro, M , também portador do mesmo tipo de problemáticas de saúde e consumidor de drogas. Trata-se de uma relação de forte co-dependência, que, opondo-se à vontade da mãe da arguida, se vem consolidando ao nível afectivo-emocional com os anos.
Esta união tem sido reforçada funcionalmente pela partilha das dificuldades sociais e de saúde.
A arguida desorganizou-se ainda mais, entre 2010 e 2011, quando substituiu a heroína e a cocaína pelos produtos químicos disponíveis nas smartshop’s, que assume ter consumido em excesso. Com ideação psicótica terá sido internada várias vezes em F e depois no Hospital E, tendo-lhe sido prescrita medicação antipsicótica.
Cumpriu medida de suspensão de execução da pena com adesão às injunções aplicadas, bem como o previsto no Plano de Reinserção Social, designadamente no acompanhamento da problemática aditiva e infecciosa.
Toxicodependente e sem emprego, a rede de suporte de ML era constituída pelo companheiro e um irmão deste, igualmente orientados pelos hábitos aditivos e a sobrevivência.
Em 2012 veio para L, fixando-se numa apartamento herdado na altura pelo companheiro, com fracas condições de habitabilidade. ML subsistia do valor do seu Rendimento de Inserção Social (RSI), da reforma de invalidez do companheiro, do valor do aluguer de um apartamento situado no rés-do-chão do mesmo lote, bem como de uma semanada de uma familiar do companheiro, enviada dos EUA.
Depois de abandonar os consumos oriundos das smartshop’s, a arguida recairia no consumo de heroína e cocaína em Janeiro de 2013.
Apesar de alguma tentativa de branquear a sua delinquência, a arguida é capaz de fazer uma análise crítica dos seus dados biográficos e do momento actual.
Deseja continuar junto do companheiro, de modo a poder continuar a apoiá-lo nos problemas de saúde dele.
A arguida M foi condenada:
- por decisão de 23.03.2004, transitada em 11.05.2004 [proc. 608/02 do Tribunal de A], na pena de 75 dias de multa à taxa diária de 1,5 euros e em 7 meses de prisão suspensa por 1 ano, pela prática em 04.04.2002 de um crime de injúria agravada e um crime de resistência e coacção, p. pelos art. 181º e 184º e 347º do CP – pena suspensa já declarada extinta pelo cumprimento.
- por decisão de 24.09.2007, transitada em 07.01.2010 [proc. 3/05 do Tribunal de F], na pena de 14 meses de prisão, suspensa por igual período, pela prática em 01.02.2005 de um crime de tráfico de menor gravidade, p. pelos art. 21º n.º1 e 25º al. a) do DL 15/93, de 22.01 – pena já declarada extinta pelo cumprimento.
- por decisão de 03.07.2013, transitada em 30.09.2013 [proc. 680/13 do Tribunal de L], nas penas de 1 ano e 8 meses de prisão e 6 meses de prisão, e na pena conjunta de 2 anos de prisão, suspensa por igual período, pela prática em 26.06.2013 de um crime de roubo e de um crime de detenção de arma proibida, p. pelos art. 210º n.º1 do CP e 86º n.º1 al. d) da Lei 572006, de 23.02.
- por decisão de 30.04.2014, transitada em 30.04.2004 [proc. 892/13 do Tribunal de L], na pena de 3 anos de prisão, suspensa por igual período, pela prática em 22.08.2013 de um crime de violência doméstica, p. pelo art. 152º n.º1 al. b e 2 do CP.
O arguido M foi condenado:
- por decisão de 10.04.1995 [proc. 289/94 do Tribunal de L], na pena de 5 anos de prisão (com perdão de 1 ano), pela prática em 06.09.1992 de um crime de roubo, p. pelos art. 306º n.º1 e 3 al. b) e 5 e 297º n.º2 al. h) do CP – pena já declarada extinta pelo cumprimento.
- por decisão de 24.05.2004, transitada em 25.06.2004 [proc. 352/02 do Tribunal de L], na pena de 90 dias de prisão, substituída por igual período de multa, à taxa diária de 2 euros, pela prática em 05.04.2002 de um crime de resistência e coacção, p. pelo art. 347º do CP – pena já declarada extinta pelo cumprimento.
- por decisão de 30.05.2008, transitada em 30.06.2008 [proc. 1143/06 do Tribunal de F], na pena de 9 meses de prisão, substituída por 290 dias de multa à taxa diária de 5 euros, pela prática em 20.07.2006 de um crime de injúria agravada e um crime de resistência e coacção, p. pelos art. 181º e 184º e 347º do CP – pena suspensa já declarada extinta pelo cumprimento.

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B.1.2 – Factos não provados -

a) o arguido RN participou nos factos descritos, tendo, em especial, ficado a cerca de cem metros do estabelecimento a efectuar vigilância.

b) em 1), os arguidos tinham a finalidade exclusiva de obter produtos alucinogénios que se encontravam à venda no estabelecimento.

c) o estabelecimento tem o n.º (…)


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B.1.3 - E apresentou as seguintes razões – de facto - para fundamentar a matéria de facto:

«O apuramento dos factos objectivos descritos em 1 a 5 assentou nos depoimentos, (…) [que se encontravam no local aquando dos eventos em causa, como descrito nos factos apurados], os quais descreveram os factos que presenciaram com rigor e isenção.
No que concerne à autoria dos factos, concorreram elementos probatórios de perfil diverso mas que, conjugadamente, se articulavam na sustentação inequívoca dos eventos imputados. Assim:
- relevam, em primeiro lugar, as declarações do arguido A prestadas perante a testemunha OVGR [agente da PSP], e que esta relatou em audiência - e nas quais aquele arguido assumiu a autoria dos factos, juntamente com os demais arguidos.
A valoração deste depoimento envolve duas questões distintas.
A primeira prende-se com a natureza do depoimento. Trata-se, com efeito, de depoimento indirecto no exacto sentido de que quem não assistiu aos factos (no caso, à prática do roubo) reproduz declarações de terceira pessoa, que deles tinha conhecimento directo (no caso, por ser seu co-autor) [depoimento indirecto em sentido amplo; já tem sido entendido que não constitui depoimento indirecto, o depoimento de uma testemunha que relata o que ouviu o arguido dizer porque se trata de «algo que aquele ouviu directamente da sua boca, de viva voz»; a afirmação, salvo o devido respeito, não é exacta: o depoimento é efectivamente directo no que respeito à reprodução do que se ouviu dizer; mas é indirecto quanto aos factos relatados, pois esses factos não foram directamente observados pela testemunha e o acesso a eles faz-se através da mediação da narração do arguido]. Ele apresenta, porém, a especificidade de o autor das declarações reproduzidas assumir a qualidade de arguido no processo. Considera-se que o art. 129º do CPP não contempla estas situações pois está pensado para terceiros ao processo cujas declarações se reproduzem [v.g., o arguido não é um terceiro estranho, que possa e deva ser chamado a intervir para depor, como o regime dos n.º1 e 2 do CPP supõe, e assume uma qualidade processual incompatível com o estatuto do terceiro/testemunha, tal como suposto por aquele art. 129º]. Assim, este depoimento indirecto em sentido amplo fica sujeito ás regras legais gerais, sendo admissível a sua utilização, sujeita à livre apreciação do tribunal (art. 125º e 127º do CPP) - inexistindo, mormente, fundamento legal ou lógico para valoração restritiva destas declarações, mormente enquanto meio de prova directo dos factos em investigação. O silêncio do arguido, no caso, não afecta o valor deste depoimento indirecto pois corresponde a uma opção pessoal que, se não o pode prejudicar, também lhe não atribui vantagens probatórias (mormente na paralisação de outros meios de prova), nem a lei atribui a esse silêncio tal efeito [e, se se considerasse aplicável o art. 129º, tal silêncio sempre equivaleria à impossibilidade de inquirição da fonte do depoimento indirecto]. Desta forma, nada impede que se atribua valor demonstrativo a tal depoimento indirecto.
A segunda prende-se com a natureza funcional da testemunha (agente da PSP) e com a conexa proibição de valoração de conversas informais do arguido. Ora, entende-se que a valoração de declarações extra-processuais do arguido que terceiros relatam em audiência pode ser admitida, ainda que estes terceiros sejam polícias, desde que, neste último caso, as declarações surjam no quadro das diligências de recolha de elementos atinentes à averiguação da existência do crime, de indícios deste ou de recolha cautelar de meios de prova [v.g., no quadro do art. 249º (e art. 55º n.º2) do CPP], ou pelo menos desligadas de um processo e de diligências desenvolvidas no seu âmbito - pois nestas hipóteses não ocorre nenhuma das situações que gravitam em torno da referida proibição [que visa evitar as situações de fraude à lei, substituindo o silêncio do arguido ou a leitura de autos por conversas mantidas à margem do processo, ou melhor, das suas regras próprias]. Ou seja, o que importa é que se não trate de «declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe», o que é seguro no caso.
Com efeito, do depoimento da aludida testemunha resulta que o arguido A é que procurou os agentes policiais, quadro este no âmbito do qual a testemunha intervém por fazer parte do piquete de prevenção, sendo que aquele arguido relata os factos em que intervém com base em motivação heterónoma aos agentes policiais (e de forma espontânea, não provocada por estes) - sendo ainda que a aludida testemunha não só não era interveniente na investigação do roubo como nem sequer dele tinha, ou do respectivo processo, conhecimento (conhecimento que só vem a ter posteriormente, quando efectua pesquisas na esquadra). Ou seja, as declarações deste arguido surgem em contexto no qual inexistia qualquer fundamento para então lhe atribuir qualquer específico estatuto processual (mormente para permitir a sua constituição como arguido). A sua admissão dos factos foi então efectuada de forma espontânea e desligada de qualquer específica iniciativa processual. Neste sentido, as suas declarações, quando assume a autoria dos factos, poderiam ser autonomamente consideradas, nos termos do aludido depoimento indirecto (entendido em sentido amplo).
Ora, destas declarações retira-se uma directa afirmação da autoria dos factos - reforçada por alguns pormenores dados pelo arguido, então, mormente quanto ao uso de roupa escura, luvas e gorros (donde aliás a fixação dessa matéria), e de uma faca, e ao valor em dinheiro (400 e tal euros), a que acresciam outros produtos (revelando que o arguido tinha um conhecimento imediato e rigoroso dos factos).
- relevam, em segundo lugar, as declarações do co-arguido RN, que descreve, com base em conhecimento directo, a intenção dos restantes arguidos em efectuar o assalto à loja HH, a preparação que efectuam, e ainda a sua deslocação em direcção à loja assaltada, de noite (este RN teria seguido os restantes arguidos até cerca de 100 metros da loja). Não assistindo ao assalto, nem vendo a loja, rePu a chegada pouco depois de inúmeros polícias à zona.
É conhecida a discussão travada em torno da admissibilidade e valor destas co-declarações incriminatórias (oscilando entre a tese que lhes recusava valor probatório, a tese intermédia que lhes reconhecia esse valor desde que existissem elementos corroboratórios da versão incriminatória e a tese que admitia sem limitações o seu valor probatório, a valorar nos termos gerais do art. 127º do CPP). Entende-se que o regime do actual art. 345º n.º4 do CPP (introduzido pela Lei 48/2007) veio intervir na querela, negando o valor probatório das declarações do co-arguido apenas quando este se recusar a responder ás perguntas formuladas em contra-interrogatório. Tal não ocorreu no caso pelo que inexistia obstáculo à valoração daquelas declarações - sendo que a corroboração das declarações do co-arguido não constitui, no regime vigente, requisito da admissibilidade destas declarações. Questão diferente é a que se prende com a avaliação crítica dessas declarações prestadas pelo co-arguido (com a confiança que elas podem, em cada caso, merecer do tribunal - aspecto em que a corroboração pode ter papel especial, embora sem ser necessária ou sequer essencial). De todo o modo, verifica-se que, no caso, esta corroboração acaba por ser a forma mais directa e imediata de sustentar a veracidade daquelas declarações (quando envolvem os demais arguidos) pois elas são notoriamente conformes aos depoimentos das aludidas testemunhas VM e DG (que envolvem três, pessoas, sendo uma mulher, e ainda permitem identificar o arguido M ) e ainda ás declarações, de admissão lícita como explicitado, do próprio arguido A .
- montam em terceiro lugar os depoimentos das aludidas testemunhas VM e DG, quando descrevem a intervenção articulada de três pessoas (o mesmo número de pessoas que o arguido RN refere, como se indicou), sendo uma delas homem e outra mulher (não sabem indicar o género da terceira pessoa, aquela que usa a faca); acresce, de forma muito relevante, a circunstância de a testemunha DG ter reconhecido a voz da pessoa que ficou à porta (quando esta chamou os restantes co-arguidos presentes), não tendo tido reservas em atribui-la ao arguido M - cuja voz conhecia por ser cliente da loja; e releva ainda a circunstância de este M e de a ML serem clientes da loja, que conheciam muito bem, sendo que os agentes dos factos não só conheciam bem o local onde se guardavam os produtos em que estavam interessados, como também conheciam as medidas de segurança existentes, preocupando-se em evitar que o DG alertasse a empresa de segurança (como decorreu dos depoimentos destas testemunhas).
Naturalmente, estes elementos ainda se conjugam entre si para reciprocamente se confortaram, reforçando o individual valor probatório de cada uma delas.
Donde a imputação dos factos aos arguidos. Quanto à fixação do papel de cada um, o papel da arguida derivava da circunstância de ser a única mulher e de as testemunhas VM e DG referirem que a pessoa que lidou com o DG era uma mulher; o papel do arguido M derivava da sua identificação pela testemunha DG; o papel do arguido A era necessariamente o sobejante (dada a intervenção de três pessoas no estabelecimento).
Quanto ao arguido RN, e pese embora o arguido A tenha referido genericamente a sua intervenção, inexistia outro meio de prova que o colocasse no local e, assim, elementos que o permitissem associar ao quadro dos factos em causa. Donde a exclusão da matéria da al. a) e da segunda parte da al. j) dos factos não provados.
No que tange ao descrito em 6 e 7, considerou-se que estes factos decorriam de forma segura, por inferência e com apoio nas regras da normalidade, das descritas condutas dos arguidos.
No que especialmente respeita ao arguido A negrão , foram ainda particularmente relevantes as declarações, consistentes e seguras, do perito A AG[médico psiquiatra que já contactou com este arguido], o qual esclareceu que apesar de o consumo de drogas poder provocar os episódios psicóticos que afectaram o arguido A , a forma, organizada e planeada, dos factos exclui a possibilidade de ele (ou algum dos intervenientes) poder estar a agir sem capacidade de avaliar os actos, ou o sentido dos seus actos – levando em conta ainda, também, que, segundo explicou, o estado de alteração da consciência existe, nestes casos de consumo de drogas, num período de tempo reduzido, em regra. Pelo que a imputabilidade do arguido A (mas também dos demais arguidos) na ocasião dos factos (data em que, em rigor, se ignora a sua situação exacta) é perfeitamente compatível com um seu consumo habitual de drogas. Naturalmente, as declarações do arguido RN, a propósito do carácter alucinado dos restantes arguidos, são, neste contexto, absolutamente irrelevantes. Donde também a exclusão da matéria da al. l) dos factos não provados.
O estado de afectação do arguido A quando falou com a testemunha OR também não afecta o valor das suas afirmações por não estar em causa qualquer acto processual cujas regras tenham sido violadas (ao invés, trata-se de mera conversa extraprocessual), e, de outro lado, por tais declarações serem notoriamente verdadeiras, não correspondendo a efabulações do arguido (a não ser que este imaginasse um assalto perfeitamente análogo ao que ocorreu efectivamente…).
Os factos reportados em 8 decorreram dos relatórios sociais (em que, pelas suas fontes e metodologia, se confiou) e dos CRC juntos aos autos.
Quanto aos restantes factos não provados, foram excluídos por não ter sido produzida prova que os confirmasse ou por se terem apurado factos distintos, incompatíveis com aqueles que se excluíram.
As restantes testemunhas inquiridas não revelaram conhecimentos relevantes para o esclarecimento dos factos.
Eliminaram-se:
- as menções valor total dos produtos levados, e dos produtos e do dinheiro levados, por corresponderem a meras operações aritméticas, a realizar a partir dos factos alegados.
- a menção «obtidos de modo ilícito» por conclusiva: traduz uma qualificação jurídica realizada pelo acusador, e não uma descrição factual.
- as menções «e através do uso de violência, e com o recurso a uma arma branca, e apropriaram-se dos produtos alucinogénios e do dinheiro pertencente ao estabelecimento HH» e «intento que lograram alcançar» por conclusivas: pese embora inseridas em parágrafo aparentemente dedicada à descrição dos elementos subjectivos relevantes, as menções têm carácter exclusivamente objectivo (i. é, qualificando a actuação dos arguidos e não descrevendo um estado subjectivo) e, nessa feição, a primeira traduz uma qualificação (e em grande medida normativa) das descritas condutas, e a segunda traduz a opinião do acusador sobre o sucesso dos arguidos.»

***

Cumpre conhecer.

B.2 - O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.

O recorrente suscita as seguintes questões:

a) – as declarações incriminatórias do co-arguido RN;

b) – o “depoimento indirecto” da testemunha OR;

c) – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

d) – o erro notório na apreciação da prova;

e) – a violação do princípio da livre apreciação da prova;

f) – a violação do principio in dubio pro reo.

Por uma questão metodológica começaremos pelo conhecimento das alíneas c) a f), de forma a deixar para o final o conhecimento das duas questões de invocado erro de direito sobre a prova [alíneas a) e b)].


*

***


B.3.1 - O recurso sobre matéria de facto apresenta duas vias de invocação: (1) a invocação dos vícios da revista alargada (artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal) por simples referência ao texto da decisão recorrida; (2) a alegação de erros de julgamento por invocação de prova produzida e erroneamente apreciada pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação (artigo 4120º, nsº 3 e 4 do Código de Processo Penal).

Se no primeiro caso ao recorrente se pede, apenas, a sua alegação, aliás, não essencial, já que de conhecimento oficioso (pois que são os vícios extremos, em absoluto não tolerados pela ordem jurídica), já no segundo caso se impõe ao recorrente o cumprimento do ónus de impugnação especificada contido nos números 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.

E é assim que se vem firmando jurisprudência exigente quanto à necessidade de estrita observância deste ónus.

Recentemente o STJ, por acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/2012 veio a consagrar a seguinte jurisprudência, alterando ligeiramente o entendimento anteriormente existente pela criação de uma alternativa quanto a um dos pressupostos de impugnação:

«Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às provadas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

Podemos concluir que as exigências se apresentam agora com uma configuração alternativa quanto a um dos requisitos e ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais:

- A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);

- A indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);

- Se a acta contiver essa referência, a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal);

– Ou, alternativamente, se a acta não contiver essa referência, a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).

Cumpridos estes ónus de carácter processual estará garantido o amplo recurso em matéria de facto?

Sim, mas com uma precisão. O legislador não exige, apenas, que o recorrente indique as provas que permitam uma diversa apreciação da matéria de facto. O legislador exige que o recorrente indique as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto.

A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico.

E a justificação surge cristalina. A apreciação da prova no julgamento realizado em 1ª instância beneficiou de claras vantagens de que o tribunal de recurso não dispõe: a imediação e a oralidade. E constitui uma manifesta impossibilidade que a segunda instância se substitua, por inteiro, ao tribunal recorrido, através de um novo julgamento. Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção (declarações, depoimentos, acareações) – assente que obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”. Impõe-se-lhe que “imponha” uma outra convicção. É imperativo que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais. Não apenas o relativo do “possível”, sim o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

Em concreto o recorrente não indica os pontos de facto que são objecto da sua impugnação. Os restantes requisitos, claramente, não foram cumpridos.

Em resumo, não há válida e eficaz impugnação factual.


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B.3.2 - Questão diversa diz respeito à resposta sobre a existência dos vícios de conhecimento oficioso, os previstos no artigo 410º, n. 2, als. a) [insuficiência para a decisão da matéria de facto provada] e c) [erro notório na apreciação da prova].

Aquilo que o recorrente invoca como erros são a “insuficiência para a decisão da matéria de facto” e o “erro notório na apreciação da prova”.

Quanto à primeira invoca o recorrente que existe na medida em que não existe prova suficiente para a sua condenação, o que implica a existência de erro na apreciação da prova. Ora isto significa que há aqui um evidente mal-entendido pois que o conceito de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” refere-se à omissão de pronúncia pelo tribunal sobre os factos que são objecto do processo invocados na acusação e na contestação ou resultantes da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão. Isto é, são aqueles factos que o tribunal não deu como provados ou como não provados sendo, todos, relevantes para a decisão da causa.

Assim, não tem nada a ver com tal vício a “insuficiência da prova produzida”, nem com a “insuficiência dos factos provados” para a decisão de direito proferida – V.g. acórdão do STJ de 11-11-1998 (Proc 98P1093 – Cons. Leonardo Dias).

Ou seja – e o STJ tem sido claro na delimitação dos contornos de tal conceito – o conceito refere-se aos casos em que “o tribunal recorrido não esgotou como devia o objecto do processo, assim deixando a matéria de facto exposta ao vício de insuficiência a que alude o artigo 410.º, n.º 2, a), do Código de Processo Penal” – acórdão do STJ de 15-03-2007 (Cons. Pereira Madeira – Proc. 07P648)

O cerne da alegação do recorrente assenta na ideia de que a prova produzida não suporta a matéria de facto provada, é insuficiente para tal, de onde parte para a afirmação da existência de “erro na apreciação da prova” e existência de violação do princípio in dubio pro reo.

Ora, esse não é o campo de aplicação dos vícios indicados nem do princípio invocado.

Não há, portanto, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, erro na apreciação da prova e violação do princípio in dubio pro reo.


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B.4 – Ou seja, aquilo que o recorrente alega é a existência de dois erros de direito na produção da prova e uso inadequado, portanto, do princípio da livre apreciação da prova.

Iniciaremos a análise pela invocada impossibilidade ou ilegalidade de atender às declarações incriminatórias de co-arguido, no caso do co-arguido RN.

Começamos por afirmar que o Código de Processo Penal português não dispõe de nenhuma norma que estabeleça qualquer regra probatória sobre as declarações de co-arguido. Rege, portanto, o princípio geral de apreciação probatória, sem que qualquer tabelamento probatório seja normativamente imposto.

Ao contrario do que ocorre com a “fonte” do nosso código, o Código de Processo Penal italiano, que no seu art 192º, n. 3, sob a epígrafe “Valutazione della prova(“avaliação da prova”), dispõe: “Le dichiarazioni rese dal coimputato del medesimo reato o da persona imputata in un procedimento connesso a norma dell'articolo 12 sono valutate unitamente agli altri elementi di prova che ne confermano l'attendibilità” («3 - As declarações do co-acusado ​​do mesmo crime ou uma pessoa acusada em processos relacionados ao abrigo do artigo 12 são avaliadas juntamente com as outras provas que confirmam a confiabilidade»), o nosso diploma apenas no artigo 127º estabelece uma regra de apreciação probatória, a livre apreciação probatória.

Dali, dum preceito legal que claramente não foi querido pelo legislador português que bem – muito bem – conhecia o código italiano, alguma doutrina partiu apressadamente para a afirmação de que as declarações de co-arguido devem ser confirmadas por outros meios de prova, pretendendo limitar a apreciação judicial da prova por norma que, assim, se pretendia impor por via doutrinária.

Tal doutrina foi claramente afastada pela jurisprudência portuguesa, de que é exemplo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-09-2008 (Proc. 08P2044, sendo relator o Cons. Santos Cabral) que resume bem a miríade de aspectos a ter em conta neste tema:

(…) “II - No que respeita à questão de saber se é processualmente válido o depoimento do arguido que incrimina os restantes arguidos, a resposta é frontalmente afirmativa e dimana desde logo da regra do art. 125.º do CPP, que dispõe que são admitidas as provas que não forem proibidas por lei. Por outro lado, não se sente qualquer apoio numa interpretação rebuscada da Constituição que aponte a inconstitucionalidade de tal interpretação: pelo contrário, a consideração de que o depoimento do arguido – que é, antes do mais, um cidadão no pleno uso dos seus direitos – se reveste à partida de uma capitis diminutio só pelo facto de ser arguido ofende o princípio da igualdade dos cidadãos. Portanto, a questão que se coloca neste caso é, como em relação a todos os meios de prova, a da credibilidade do depoimento do co-arguido.

III - Esta credibilidade só pode ser apreciada em concreto, face às circunstâncias em que é produzida. O que não é admissível é a criação de regras abstractas para essa apreciação, retornando ao sistema da prova tarifada: assim, dizer em abstracto e genericamente que o depoimento do co-arguido só é válido se for acompanhado de outro meio de prova é uma subversão das regras da produção de prova sem qualquer apoio na letra ou no espírito da lei.

IV - A admissibilidade do depoimento do arguido como meio de prova em relação aos demais co-arguidos não colide minimamente com o catálogo de direitos que integram o estatuto inerente àquela situação, mostrando-se adequada à prossecução de legítimos e relevantes objectivos de política criminal, nomeadamente no que toca à luta contra a criminalidade organizada.

V - A proibição de valoração, contra o arguido, do exercício do direito ao silêncio incide apenas sobre o silêncio que aquele adoptou como estratégia processual, não podendo repercutir-se na prova produzida por qualquer meio legal, designadamente a que venha a precisar e demonstrar a responsabilidade criminal do arguido, revelando a falência daquela estratégia.

VI - O depoimento incriminatório de co-arguido está sujeito às mesmas regras de outro e qualquer meio de prova, ou seja, aos princípios da investigação, da livre apreciação e do in dubio pro reo. Assegurado o funcionamento destes e o exercício do contraditório, nos termos preconizados pelo art. 32.º da CRP, nenhum argumento subsiste contra a validade de tal meio de prova.

VII - Aliás, a partir do momento em que o arguido depõe no exercício do seu direito de defesa, é evidente que as suas palavras têm uma dupla conotação: sendo emergentes de um inviolável direito de defesa, elas são também um meio de prova. Não é possível, em termos práticos, separar aquela realidade concreta que é o depoimento arguido, considerando-o ora como um exercício legítimo de um direito ora como meio de prova. Tal visão, para além de um inequívoco maniqueísmo, esquece que o processo penal visa a descoberta da verdade material e não de tantas realidades quantas as que interessam aos diversos sujeitos processuais.

(…)

IX - É evidente que, tal como em relação ao depoimento da vítima, é preciso ser muito cauteloso no momento de pronunciar uma condenação baseada somente nas declarações do co-arguido, porque este pode ser impulsionado por razões aparentemente suspeitas, tal como o anseio de obter um trato policial ou judicial favorável, o ânimo de vingança, o ódio ou ressentimento, ou o interesse em auto-exculpar-se mediante a incriminação de outro ou outros acusados.

X - Por isso, para dissipar qualquer dessas suspeitas objectivas, é razoável que o co-arguido transmita algum dado externo que corrobore objectivamente a sua manifestação incriminatória, com o que deixará de ser uma imputação meramente verbal para se converter numa declaração objectivada e superadora de uma eventual suspeita inicial. Não se trata de criar, à partida e em termos abstractos, uma exigência adicional ao depoimento do co-arguido quando este incrimine os restantes, mas sim de uma questão de credibilidade daquele depoimento em concreto.

XI - A credibilidade do depoimento incriminatório do co-arguido está na razão directa da ausência de motivos de incredibilidade subjectiva, o que, na maioria dos casos, se reconduz à inexistência de motivos espúrios e à existência de uma auto-inculpação, assumindo igualmente uma real importância a concorrência de corroborações periféricas objectivas que demonstrem a verosimilhança da incriminação.

XII – (…). [1]

E esta relação já se debruçou suficientemente sobre o tema, como ocorreu no acórdão de 07-12-2012 (Proc. 602/11.0JACBR.E1, sendo relator o Desemb. Proença da Costa):

«2. Não existe obstáculo legal à valoração das declarações de co-arguido, apreciadas de acordo com os critérios que devem presidir à livre apreciação da prova, plasmados no artigo 127.º do CPP, desde que garantido o indispensável contraditório e tendo presente que essa valoração deve ter em conta os riscos de menor credibilidade que essas declarações comportam, pelas implicações resultantes da situação de imputação de responsabilidade criminal também a esse co-arguido, circunstância que justifica e exige maior prudência e cuidado na procura de toda a corroboração possível para que a livre apreciação do julgador se fundamente em dados seguros.

3. (…)».

A leitura que a jurisprudência constitucional já fez confirma o acerto das considerações precedentes.

E isto num contexto factual mais gravoso, a da leitura normativa a fazer no caso de declarações de co-arguido que, após, se remete ao silêncio, dessa forma inviabilizando o contraditório.

Aqui já a jurisprudência constitucional se pronunciou, conforme se constata pelo decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão n. 524/97 lavrado na sequência do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Dezembro de 1996, julgou inconstitucional, «por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição da República, a norma extraída com referência aos artigos 133º, 343º e 345º do Código de Processo Penal, no sentido em que confere valor de prova às declarações proferidas por um co-arguido, em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias destoutro co-arguido, o primeiro se recusa a responder, no exercício do direito ao silêncio».

Posição que vem a reafirmar posteriormente, no ponto 6 in fine, do acórdão n. 133/2010.

Ou seja, mesmo a exigir-se uma “corroboração” (“teoria da corroboração) esta terá que se ater a uma norma de apreciação probatória inserida na livre apreciação da prova, que não norma doutrinariamente importada com pretensões vinculativas ou tabelares.

Ora, no caso concreto além destas declarações de co-arguido dispomos, no dizer do tribunal recorrido, de outros dois elementos probatórios, o depoimento de OR (agente da PSP a quem o arguido A Negrão se dirigiu) e os depoimentos de VM e DG, estes apenas na medida em que referem três agentes do acto ilícito, um deles reconhecido pela voz, o arguido M .

Duas questões, então, se colocam: a aceitabilidade do depoimento de OR e – após tal análise - a suficiência dos meios de corroboração factual para a imputação dos factos ao arguido recorrente A Negrão da .


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B.5.1 – O recorrente prefere situar a proibição do depoimento na sua característica de depoimento indirecto, por referência ao determinado no artigo 129º do C.P.P..

Quer-nos parecer, no entanto, que o tema se não resolve nessa sede.

Há abundante jurisprudência sobre a matéria dos eventuais “depoimentos indirectos” prestados por agentes policiais e das ditas “conversas informais”, mas a sua indicação e reprodução apenas complicaria o que é simples, pois que a nossa questão, passando pelo afastamento dessas duas questões, se centra no saber se as declarações de quem ainda não é formalmente arguido podem ser objecto de depoimento de terceiro que seja agente policial.

Não se trata de depoimento indirecto pois que este tem por objecto o que se ouviu dizer a outra pessoa, não assistindo o depoente ao facto relatado, ao que foi dito. Ora não é isso que se passa no caso sub judicio em que o pomo da discórdia se centra na aceitabilidade do depoimento de quem ouviu directamente do arguido as suas declarações e onde o depoimento incriminatório se centra nas declarações ouvidas ao arguido.

Nos termos do acórdão da Relação de Guimarães de 11-02-2008 (Proc. 2181/07, rel. Cruz Bucho), “quando a testemunha relata em tribunal aquilo que ouviu da boca de outra pessoa, o depoimento é directo porque a testemunha dele teve conhecimento directo por o ter captado por intermédio dos seus próprios ouvidos”. [2]

É princípio geral relativo à prova por depoimento que a testemunha deva ser inquirida sobre factos de que tenha conhecimento directo – artigo 128º do Código de Processo Penal. Como já afirmámos no acórdão da Relação de Coimbra de 14-10-2009 (Recurso 63/09-3PECBR.C1), o depoimento por ouvir dizer (por outiva, per auditur), uma das formas de depoimento indirecto, reconduz-se à não percepção directa (sensorial) do facto objecto de prova, sim à recepção do que resulta percepcionado por outro meio de prova, por outra pessoa. E são as exigências resultantes dos princípios da imediação, oralidade e, maxime, do acusatório, a aconselharem que o iter cognoscitivo do tribunal quanto ao facto a apurar e subsequente formação da convicção do tribunal e sua motivação, se centrem no facto directamente percepcionado e não no indirectamente ouvido.

Mas aqui, no n. 7 do artigo 356º do C.P.P., não é a imediação e a oralidade que se pretendem defender directamente. Prioritariamente pretende evitar-se o abuso de órgãos estaduais, via abuso policial, obrigando estes a cumprirem as normas que lhes impõem uma determinada formalidade, máxime o interrogatório de arguido, que tem que ser devidamente acautelado por se ter entendido, após séculos de experiência civilizacional, que deve seguir configuração certa e formal e deve ser defendido, em audiência de julgamento, de procedimentos que pretendam desvirtuar a formalismo que se entendeu mais adequado à defesa dos direitos do arguido.

Ora, no caso concreto o agente policial em causa percepcionou directamente os factos (declarações), aliás recebeu-as, pelo que não há depoimento indirecto. Acontece é que os factos directamente percepcionados foram o declarado pelo ainda não arguido.

E são estas realidades de facto – directamente percepcionado ou não, declarações de arguido ou não – que têm causado certa instabilidade jurisprudencial.

E a circunstância de serem agentes policiais não torna o seu depoimento de natureza “indirecta”, vício de raciocínio que parece surgir com inusitada frequência.

Logo, não é a análise do regime do depoimento indirecto que se impõe fazer no caso em exame. [3]

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B.5.1 – A primeira questão centra-se na análise do artigo 356º, n. 7 do Código de Processo Penal e o valor jurídico – mais que probatório – das ditas “conversas informais”.

Aquele número do preceito contém uma clara proibição de produção e valoração de prova no sentido de impedir que prestem depoimento os “órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha” sejam inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas declarações.

Seria assim resposta clara a não admissão do depoimento da testemunha OR na medida em que tomou declarações ao arguido. Mas recordemos factos pertinentes.

Os factos ocorreram dia 18 de Agosto de 2011, entre as 21.00 e as 23.00 horas.

O interrogatório de arguido que se apresenta a fls. 17 dos autos – o primeiro interrogatório policial formalmente apresentado nos autos – é de 26-01-2012. O responsável policial é PACF.

Dessa mesma data – 26-01-2012 - é a constituição de arguido – fls. 15-16.

Mas a fls. 65 e a 25-08-2011 consta um aditamento onde o agente OR dá notícia de que AMSNS, aparentando estar desorientado/alucinado, dizia andar a ser seguido e ameaçado de morte por indivíduos por ele ter efectuado um “roubo” com uso de arma branca, num estabelecimento de artigos alucinogénios. Ali se afirma, igualmente, que após se constatar que o ora arguido não estava a ser seguido nem ameaçado de morte acabou por ser transportado de ambulância para o hospital no episódio de urgência n. 11101410.

Será, pois, com base nestes factos que o depoimento deste agente foi considerado pelo tribunal recorrido.

E o que resta apurar é se estes factos podeM ser considerados, e com que extensão, na apreciação probatória.


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B.5.2 – A qualidade de agente policial e os deveres que lhe incumbem de formalização em actos processuais das declarações do arguido, assim como a necessidade de evitar que na pendência do inquérito se pratiquem actos que sejam impeditivos do direito de defesa dos arguidos levou o legislador a estabelecer uma barreira de proibição de produção e valoração de prova, a resultante do regime decorrente dos artigos 356º, nº 7 e 357º, nsº 2 e 3 do Código de Processo Penal. É óbvio que essa barreira se concretiza na proibição da sua produção e valoração em audiência de julgamento, mas daí decorre a proibição da sua prática em inquérito.

O que o legislador pretende é instituir a exclusividade de produção (realização) do meio de prova “declarações do arguido” através de uma forma vinculada, taxativa, típica, prevista ao pormenor nos artigos 140 a 144º do Código de Processo Penal, com o nome “interrogatório de arguido”, com exclusão de qualquer outra forma.

Há, portanto, uma vinculação formal, uma taxatividade, uma tipicidade de forma nos interrogatórios de arguido, detido ou não. O meio de prova “declarações de arguido” tem que ser veiculado através de um “interrogatório” previsto nos artigos 140 a 144 do C.P.P.. O meio de prova “declarações de arguido” não pode ser veiculado por “conversas informais” ou qualquer outra forma presumindo-se que, não se seguindo a forma indicada, há fraude à lei.

Dito de outra forma, o formalismo dos interrogatórios de arguido é uma questão central no próprio valor do meio de prova, uma vinculação à forma querida pelo legislador, produto ou resultado de uma evolução histórica processual que concluiu ser este formalismo do interrogatório a melhor forma de acautelar direitos. [4]

Portanto o que se pretende é evitar que as forças policiais consigam introduzir em audiência de julgamento um elemento de prova cujo cumprimento normativo é inexistente e, consequentemente, cuja falta de fiabilidade é patente e potenciadora da violação de direitos do cidadão.

Assim, as “conversas informais” são uma informalidade afrontosa, fraudulenta, que permite a violação desses direitos que se pretendem acautelar. E surgem nos processos como forma de tornear a previsão dos artigos 140 a 144º e 356º e 357º do Código de Processo Penal. E surgem temporalmente muito cedo, pouco após a entrada em vigor deste código, uma forma ínvia de tentar a “revogação” prática do C.P.P..

Ou seja, uma forma de tornear direitos e, assim, negá-los, em nome de uma suposta verdade “descoberta” pelo investigador policial que, dessa forma, pretende determinar o resultado do julgamento. São, portanto, um expediente de má polícia. Um abuso. Uma fraude à lei e ao Direito. E incumbe a qualquer tribunal impedir essa fraude ao Direito.

Daí que as “conversas informais” sejam habitualmente, com pouca ambição, consideradas prova nula, não apreciável em sede de livre apreciação e vedada como base motivacional de facto. Em nossa opinião devem ser mais (pelo que se acaba de dizer em sede de “tipicidade de interrogatório” de arguido), conduzindo à inexistência do meio de prova declarações de arguido, se estas surgirem através de uma “conversa informal”.[5]

Porque, de facto, só a invalidade processual “inexistência” parece ser suficiente para caracterizar a pretensão de produção de um meio de prova em tão flagrante violação das normas de produção desse meio de prova.

Por outro lado, a sua consideração como prova válida conduziria ao abuso policial como sistema, ao descrédito da Justiça e à violação de direitos do arguido em inquérito – “declarações” não controladas (se é que o são pois que podem ser simulações ou falsidades) – que se podem reflectir em audiência de julgamento (Direito ao Silêncio” ali exercido).

Há variadíssima jurisprudência sobre a matéria mas limitamo-nos a afirmar que a posição praticamente unânime vai no sentido da proibição de valoração das “conversas informais” desde o acórdão do STJ de 29-01-1992 (CJ, I, pag. 20-24). A doutrina segue no mesmo sentido.[6]

Nada de novo, nada de inesperado, o contrário é que seria espantoso.

Não obstante jurisprudência algo imprecisa quanto à delimitação conceptual das situações de facto (conceito de “depoimento indirecto” quando o agente percepcionou directamente factos, ou de “conversa informal” com arguido, quando ainda não há constituição como arguido), pensamos que uma adequada delimitação das situações de facto e de direito é a sufragada pelo STJ no acórdão de 15-02-2007 (Proc. 06P4593, relator o Cons. Maia Costa):

I - Relativamente ao alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer”, pode considerar-se adquirido, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe.

II - Pretenderá, assim, a lei impedir, com a proibição destas “conversas”, que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas.

III - Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido: a partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente.

IV - De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º do CPP).

V - Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo.

VI - Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando já há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito”.

Ou seja, não nos parece que ocorra no caso concreto uma qualquer fraude à lei e é certo que o caso dos autos não se pode reconduzir à noção de “conversa informal”, com o sentido habitual de “meio fraudulento de prova”, o ocorrido com o aditamento de 25-08-2011.

Quando a testemunha refere que foi contactada pelo arguido e que este aparenta estar desorientado/alucinado e refere estar a ser seguido e ameaçado por um grupo de indivíduos está a depor sobre factos ocorridos após a prática do crime e que com estes apresentam uma ligação que apenas se entende (e o agente apenas percebeu depois) após o confronto com outros factos conhecidos através de outros meios de prova.

E principalmente, não são declarações de arguido. Esta precisão é essencial, do depoimento da testemunha OR não se podem ter em linha de conta qualquer excerto – mesmo que mínimo – de possíveis declarações de arguido, sob pena de se entenderem como confessóriaS as suas declarações antes da constituição como arguido.


*
B.5.3 – Isto porquanto não há conversas informais quando as forças policiais se limitam a cumprir os preceitos legais, quer pela necessidade de “documentar” a prática do ilícito e suas sequelas, designadamente providenciar os actos cautelares que se imponham (v. g. artigos 243º, 248 a 250º do C.P.P.), quer quando actuam por imposição legal ao detectarem a prática de um ilícito e o arguido decide – por sua iniciativa e sem actuação criticável das forças policiais – fazer afirmações não sugeridas, provocadas ou imaginadas por aqueles OPC.

Não só as forças policiais estão a cumprir preceitos legais que lhes impõem uma actuação, como o arguido fez afirmações unilaterais não provocadas nem obtidas por qualquer forma de coacção (a “conversa informal” exige bilateralidade, comunicação, uma provocação para a “confissão por ouvir dizer” ou, mesmo, o “relatar” fraudulento de uma “conversa” inexistente ou, mesmo que existente, sugerida ou obtida por coacção).

Ao invés, no caso presente a “comunicação” reduziu-se à eventual verbalização voluntária de uma “queixa” contra desconhecidos por parte do arguido antes de ter essa qualidade.

Ou seja, as forças policiais não estão proibidas de falar com os cidadãos que podem vir a ser arguidos ou com os suspeitos, ou com quem se encontra numa “cena de crime”, que a tal resultado conduz o excesso, o radicalismo, na análise destas situações e na fase inicial do processo.

Esta situação teórico-processual é de fronteira e de difícil solução em muitos casos, mas no caso concreto ela não assume tal dificuldade e é, aliás, evidente numa análise calma da situação de facto e seus significados normativos.

E é de fronteira quando o ainda não arguido mas já pode ser suspeito, ainda não foi constituído arguido, podendo considerar-se que há motivo para tal. Mas o caso dos autos não é de fronteira, pois que o arguido, antes de o ser e de haver motivos para o ser, na perspectiva do agente que o ouve naquele momento, faz uma afirmação que denuncia a prática eventual de um crime, de que o agente tem que tomar conhecimento e formalizar.

Só após a sua afirmação surge a possibilidade – que pode não ser imediata, por necessidade de obter mais indícios – de constituição de arguido. No caso nem isso pois que o arguido teve – e bem, que ser transportado às urgências hospitalares.

Para este caso parece-nos, deveria valer o disposto nos artigos 58º e 59º do Código de Processo Penal, aquele sob a epígrafe “Constituição de arguido”, norma que é o cerne da nossa questão concreta (e não a questão do “depoimento indirecto” ou das “conversas informais):

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:

d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada.

2 - A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º que por essa razão passam a caber-lhe.

3 - …

5 - A omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova.

6 - A não validação da constituição de arguido pela autoridade judiciária não prejudica as provas anteriormente obtidas.

E, como mera decorrência do nº 5 do artigo 58º do Código de Processo Penal, a omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que qualquer declaração daquele que já deveria ter sido constituído como arguido não pode ser utilizada como prova. Tratar-se-ia de clara proibição de prova (produção e valoração) se tal tivesse ocorrido.

Mas esta proibição de prova não abrange as declarações ouvidas pelos agentes policiais ao arguido (antes de o ser) se não houver culpa sua no atrasar da formalização daquela constituição e se aquelas não constituírem confissão de factos.

Como se fundamenta no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 11 Julho 2001: [7]

“Convém realçar que a não constituição de alguém como arguido nos casos a que se refere o citado artigo 58°, nomeadamente, a violação ou omissão das formalidades aí previstas "implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova contra ela" (n.° 4).

Face ao ordenamento português e no caso concreto parece-nos indubitável que simples cidadão não suspeito nem arguido ou cidadão apenas suspeito não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações, melhor, depoimento, é válido, enquanto as mesmas não obrigarem à sua constituição como arguido.

Isso mesmo se deduz, sem interpretação a contrario sensu, do n. 2 do artigo 59º na parte sublinhada.

Se ainda não havia obrigação de constituição como arguido e as entidades policiais agiam dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241º e 242º) e de medidas cautelares e de polícia (artigos 248º e segs., designadamente o artigo 250º do C.P.P.) e, sem má-fé ou atraso propositado na constituição de arguido, ouvem do cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, isso não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida.

Por isso que a questão não se centra em saber se a proibição de “conversas informais” deve abranger afirmações anteriores ou posteriores à constituição de arguido.[8]

Que são proibidas após a constituição como arguido é do reino do óbvio. Que nunca são antes da constituição como arguido também nos parece evidente, já que aí nem existem “conversas informais”, sim afirmações de um cidadão, que pode ser suspeito ou nem isso. E o suspeito ou nem isso é, no ordenamento processual penal português, uma testemunha.

Excepto se a má-fé policial tiver ilegalmente atrasado essa constituição. Por isso que o artigo 58º tenha um nº 5, que comina com a nulidade probatória uma conduta policial que conduza a um resultado não querido pelo legislador. [9]

Assim, sendo certo que as “declarações” prestadas antes da constituição como arguido não valem como confessórias, a questão centra-se, no caso de situações de fronteira, na distinção a fazer entre as figuras de “suspeito” e “arguido”. Este goza de direitos, aquele é testemunha. O arguido goza do direito ao silêncio, o suspeito não. [10]

Numa situação de facto duvidosa em que as forças policiais não constituem logo como arguido – que o pode ser verbalmente – um suspeito da prática de um crime é de reconhecer ao suspeito o direito ao silêncio (e seus benefícios em audiência – não admissão de depoimentos policiais)? Ou seja, podemos resolver a questão através da extensão de direitos do arguido ao suspeito? Ou fazer rectrotrair a condição de arguido a momento anterior independentemente de uma situação de nulidade (fora, portanto, da operatividade do nº 5 do artigo 58)? Ou estaremos limitados à clara delimitação da situação de facto, até em função da relevância do momento em que a constituição como arguido deve ocorrer? [11]

O direito francês resolve o problema suscitado por estas questões de fronteira através da figura da “témoin assisté”, [12] reconhecendo a esta direitos análogos aos do arguido – Code de Prócedure Pénale, artigos 113-2 a 113-8 (48º Edition, 2007, Dalloz), principalmente o artigo 113-4, 1º §. [13]

O caso concreto permite-nos afirmar que, na essência, a questão se coloca na proibição de produção e valoração de prova do depoimento do agente policial no que respeita a tudo o que sejam “declarações de arguido”, constem ou não de auto.

No caso presente, em que sequer se indicia deficiente conduta policial (muito menos má-fé na sua actuação), mas uma verbalização voluntária do arguido, não estamos perante uma situação de fronteira.

Desde logo a afirmação de que tais “verbalizações”, sendo a notícia do crime para aquele concreto agente, exigem um percurso probatório que não pode passar pela promoção do “dito” (conversa pré-processual que deu notícia do crime) a “confessado”, exercendo o arguido ou não o seu direito ao silêncio.

Porque bastarmo-nos com as palavras supostamente ditas pelo arguido e valorá-las através de um depoimento que a lei proíbe é elevá-las à categoria de “confissão” pré-processual. E isso está vedado ao tribunal, como é natural.

Desde logo pela natureza do dito, depois pelas cautelas de que o efeito confessório é rodeado pela ordem jurídica, por fim porque aceitar o verbalizado como equiparada a “confissão” é inviabilizar direitos a exercer no futuro desenrolar do processo, designadamente o direito ao silêncio e, aliás, ao próprio direito a um julgamento em audiência pública. Seria a completa negação da imediação e oralidade e, máxime, do acusatório.

Assim, no nosso caso, em que não há atraso na constituição de arguido no momento em que faz a afirmação que revela a prática da co-autoria do crime não se fica a dever a conduta criticável do agente OR, que agiu da forma mais adequada assegurando com prioridade a saúde do arguido, mas sim a esta imperativa necessidade, a única solução plausível passa por determinar de forma clara e concreta o que é válido e inválido nesse depoimento.

Ou seja, é aceitar tudo o que seja depoimento da testemunha e que se não refira a reproduzir declarações do arguido. [14]

Daqui resulta que é admissível o depoimento da testemunha sobre a circunstância de o arguido o ter contactado no dia, hora e local indicados no aditamento, a circunstância de se apresentar desorientado/alucinado, que o arguido andou com a testemunha à procura de uma faca e que foi transportado ao hospital num episódio de urgência.

O restante são declarações não atendíveis na medida em que, ditas, nasceu a obrigação de constituição como arguido nos termos do artigo 59º C.P.P. e tais declarações não poderem ser tidas como pré-processualmente confessórias.


*

B.6 – Persiste, assim, a segunda questão suscitada supra: os elementos probatórios existentes são suficientes para sustentar a condenação do arguido? A resposta não pode deixar de ser afirmativa.

Sabendo que foi assaltada – 6 dias antes - uma loja de alucinogénios, que tal facto foi asseverado com imputação dos factos ao arguido por um co-arguido, que do depoimento da testemunha OR resulta que o mesmo se apresentava alucinado a ponto de necessitar de assistência médica, que andaram à procura de uma faca, que um dos agentes do crime usara faca, que as testemunhas VM e DG Sousa narram os factos de forma concordante com as declarações do co-arguido, tudo são factos que corroboram as declarações incriminatórias do co-arguido e sustentam o juízo condenatório.

Por tais razões é o recurso improcedente.


*

C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso.

Custas a cargo do recorrente, com 3 (três) UCs. de taxa de justiça.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 07 de Abril de 2015

João Gomes de Sousa

Felisberto Proença da Costa

__________________________________________________

[1] - Posição que já era maioritária como se confirma, ao menos, desde o acórdão de 25-02-1999 (Proc. 98P1404, sendo relator o Cons. Hugo Lopes): «I - Conferir valor probatório às declarações proferidas, em audiência de julgamento, por um arguido em desfavor de outro, estando este impossibilitado de efectuar, mesmo através do próprio tribunal, um contra interrogatório, seria, sem sombra de dúvida, deixar de todo em esquecimento os princípios de que o processo criminal deve assegurar todas as garantias de defesa e de que a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar estão subordinados ao princípio do contraditório (artigo 32, ns. 1 e 5, da CRP). II - De resto, o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre o valor probatório deste tipo de declarações, julgando "inconstitucional, por violação do artigo 32, n. 5, da Constituição da República Portuguesa, a norma extraida com referência aos artigos 133, 134 e 345 do CPP, no sentido que confere valor de prova às declarações proferidas por um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando, a instância deste outro co-arguido, o primeiro se recusa a responder, no exercício do direito ao silêncio" - cfr. Ac. do T.C. n. 524/97 (1. Sec.), de 14 de Julho, BMJ n. 469 pág. 116. III - Se o tribunal julgador valorar probatoriamente declarações como as em causa, enfermará a decisão que profira de vício que a invalida, devendo ser prolatada nova decisão que as não valore».

[2] - No mesmo acórdão e por referência ao acórdão do S.T.J. de 12-12-2001, considerou-se “não se estar perante um depoimento indirecto, mas antes perante o relato de um facto concreto e de que a testemunha teve conhecimento directo por o ter captado por intermédio dos seus próprios ouvidos, quando essa testemunha transmite ao tribunal o que ouviu um dos co-arguidos dizer”.

[3] - De qualquer forma sempre se afirma que do estatuído no artigo 129º, nº 1 do Código de Processo Penal claramente decorre que o depoimento per auditur não é “absolutamente proibido” na ordem jurídica portuguesa. A regra acaba por ser a aceitação. Como já afirmámos no acórdão de 14-10-2009 supra citado, apesar de a regra da hearsay is no evidence ser vista ainda hoje como "uma característica de todos os processos de estrutura fundamentalmente acusatória, enquanto a sua admissibilidade é característica dos processos de fundo inquisitório” (Prof. Costa Andrade, in Colectânea de Jurisprudência, ano VI, 1981, tomo 1º, pág. 6), isso hoje já só se justifica numa abordagem historicista. De facto, este dualismo jurídico não é tão claro, afastando-se claramente do “hearsay is no evidence” depois de o britânico “Civil Evidence Act 1995” [secção 1. (1) e (2)] ter abolido a regra para o processo civil (sem prejuízo das salvaguardas da secção 2.) e de o “Criminal Justice Act 2003” ter consagrado um grande campo de excepções à regra no campo penal (secções 114, 116 e 118).

O mesmo se passa com as Federal Rules of Evidence, onde a Rule 602 (Lack of Personal Knowledge) impõe que “A witness may not testify to a matter unless evidence is introduced sufficient to support a finding that the witness has personal knowledge of the matter”.. e, subsequentemente a Rule 802 (Hearsay Rule) determina que “Hearsay is not admissible except as provided by these rules or by other rules prescribed by the Supreme Court pursuant to statutory authority or by Act of Congress”. Não obstante, a Rule 803 (Hearsay Exceptions) contém um tal campo de excepções à regra geral que esta se torna uma excepção, cumpridas que estejam as duas condições da sua admissibilidade, o dar conhecimento à outra parte da intenção de produzir tal prova e a audição da testemunha fonte, quando disponível.

Constatamos, pois, que o direito de raiz anglo-saxónico é hoje menos rígido - pela abertura de um grande campo de excepções à regra - do que os direitos europeus continentais, pelo menos os mais próximos do direito processual penal português, designadamente o italiano e o espanhol.

[4] - V. g., a propósito do meio de prova “reconhecimento” mas aplicável por maioria de razão ao interrogatório de arguido, Medina de Seiça, «Legalidade da prova e reconhecimentos “atípicos” em processo penal» in “Liber Discipulorum a Jorge de Figueiredo Dias», pp. 1387- 1421 (principalmente pp. 1399-1410), Coimbra Editora, 2003.

[5] - Ver a este propósito o acórdão da Relação de L de 04-03-2009 (Proc. 1592/99.OSXLSB.L1, rel. Rui Gonçalves) – “VI – Não é possível, à luz do processo penal português, criar-se uma nova categoria processual de “conversas” ou de actos “informais” (inexistente numa teoria dos actos processuais-penais), sendo que tal categoria seria, de todo, incongruente com o estatuto processual conferido ao arguido.”

[6] - V. g. José Damião da Cunha, in “O regime processual de leitura de declarações na audiência de julgamento” in RPCC, ano 7, fasc. 3, pag. 422 e segs.

[7] Colectânea de Jurisprudência (STJ), Tomo III/2001, Rel. Lourenço Martins, Processo: 1796/01.

[8] - Acórdão da Relação do P de 13-06-2012 (proc. 1222/11.4JAPRT.P1): “I – As conversas informais dos arguidos com os agentes policiais, quer ocorram antes quer ocorram depois da constituição de arguido, são desprovidas de valor probatório por violação do princípio constitucional do direito a um processo justo e equitativo”.

[9] - Parecem-nos ir neste sentido os acórdãos: do STJ no supracitado acórdão de 15-02-2007 (Proc. 06P4593, relator o Cons. Maia Costa): “IV - De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º do CPP). V - Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo”.

- da Relação de Coimbra de 09-07-2008 (Jorge Dias, proc. nº 601/07.6GBCNT.C1): “Deve ser valorado em audiência de julgamento o depoimento de um agente da autoridade que, no exercício das suas funções, ao tomar conta de uma ocorrência, foi informado por um interveniente em acidente de viação, que era ele o condutor”

- da Relação de Coimbra de 09-05-2012 (Proc. 12/11.9PECTB.C1, rel. Jorge Dias): “Os depoimentos prestados em audiência pelos agentes da autoridade relatando a forma como abordaram o dono do carro, dentro do qual se encontrava a arma proibida, e que mais tarde viria a ser constituído arguido, perguntando-lhe a quem pertencia tal arma, constitui prova válida e atendível adquirida no âmbito da investigação que lhes competia efetuar”.

- da Relação de L de 02-03-2006 (Rel. Fernando Correia Estrela, proc. 22/07.0FCSTB.L1): “I- Não consubstancia o sentido de 'conversas informais' o diálogo estabelecido entre um qualquer agente de autoridade e o suspeito da prática de crime (condução em estado de embriaguez), no local e imediatamente após acidente de viação, pelo que não constituindo prova proibida, pode ser valorado pelo tribunal de julgamento o depoimento da testemunha, agente policial que tomou conta da ocorrência”.

- da Relação de L de 10-03-2009 (rel. Luís Gominho): “VI. É que o relato referente à abordagem inicial de quem enceta uma acção de fiscalização, para num primeiro momento procurar um interlocutor válido com quem dialogar, sedimentando, no seu prosseguimento, a convicção obtida, não integra o conceito de “conversa informal”, do mesmo modo que a elaboração de um auto de notícia não pode ser confundido com um auto de declarações, não estando portanto tal relato no âmbito da proibição do art.356º., nº.7 do Código de Processo Penal”.

- da Relação de Guimarães de 25-02-2009 (proc. 736-08.8GAEPS.G1, rel. Carlos Barreira): “IV – Pressuposto desse direito ao silêncio do arguido é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido: a partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente. V – De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art.º 249º do C.P. Penal). VI – Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo”.

[10] - Ver a questão colocada de forma clara e racional pelo Prof. Germano Marques da , in “Curso de Processo Penal” 5ª edição - Vol. I, pp. 291-293, Editorial VERBO, 2008.

[11] - V. g. o Prof. Germano Marques da - na obra citada a fls. 291 – na referência à Lei nº 43/86, de 26-09 e a relevância da “definição rigorosa do momento e do modo de obtenção do estatuto de arguido”

[12] - Aut. ob. e loc. cit.

[13] - “Lors de la première audition du témoin assisté, le juge d'instruction constate son identité, lui donne connaissance du réquisitoire introductif, de la plainte ou de la dénonciation, l'informe de ses droits et procède aux formalités prévues aux deux derniers alinéas de l'article 116. Mention de cette information est faite au procès-verbal” – redacção da Lei n° 2000-516 de 15 Junho 2000 (em vigor desde 1 de Janeiro de 2001).

[14] - V. g. Acórdão do STJ de 22 de Janeiro de 1997, proc. 1022/96, sendo relator o Cons. Joaquim Dias («II - Nada impede que os órgãos de polícia criminal possam depor como testemunhas sobre factos de que tenham conhecimento directo adquirido por outras vias, que não as resultantes das declarações por si recebidas em inquérito») e 22 de Maio de 1997, proc. 152/97, sendo relator o Cons. Abranches Martins («II - O agente policial não está impedido de depor sobre factos de que tenha conhecimento directo obtido por meios diferentes das declarações do arguido no decurso do processo, ainda que as tenha ouvido e que elas não possam ser lidas em audiência»).