Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
107/20.8T8ALR-A.E2
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
TRIBUNAL COMPETENTE
Data do Acordão: 11/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
É competente em razão da matéria o Juízo de Competência Genérica de Almeirim e não o Juízo de Comércio de Santarém para preparar e decidir uma ação declarativa comum em que se discute a transmissão por morte do arrendamento à pessoa que residia em economia comum com o falecido arrendatário, ainda que o imóvel tenha, entretanto, sido apreendido no processo de insolvência do locador. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
No Tribunal da Comarca de Santarém, Juízo de Competência Genérica de Almeirim, em 19-03-2020, B… intentou ação declarativa de condenação, com processo comum, na forma ordinária, contra I… e INSOLVÊNCIA DE I…, pedindo que seja reconhecido o arrendamento original entre M… (arrendatária) e I… (senhorio), e subsequente transmissão da posição da arrendatária, por morte daquela, sua mãe, ao filho, ora Autor, que com ela residia em economia comum há mais de um ano, atento o disposto no artigo 1106.º, n.º 1, do Código Civil.

Contestou a MASSA INSOLVENTE DE I…[1] por exceção (invocando o caso julgado, a incompetência em razão da matéria do tribunal onde a ação foi intentada; a caducidade/preclusão do direito do Autor à transmissão do arrendamento; a ilegitimidade passiva dos Réus e o abuso de direito do Autor), por impugnação (invocando que o bem locado foi apreendido no processo de insolvência do primeiro Réu, onde vai ser vendido, não podendo subsistir à venda qualquer arrendamento), deduzindo, ainda, reconvenção (condenação do Autor a reconhecer que o imóvel se encontra apreendido à ordem da insolvência, sendo inoponível e ineficaz qualquer oneração (arrendamento) que o Autor invoque em relação ao ato de disposição do imóvel naquele processo).

Cumprido o princípio do contraditório, foi proferido em 03-11-2020, despacho (que vem a ser o recorrido) que apreciou a competência em razão da matéria do tribunal onde a ação foi proposta, concluindo nos seguintes termos:
«Consequentemente, compete ao presente Juízo de Competência Genérica de Almeirim, em razão da matéria, tramitar e julgar a presente causa, o que desde já se declara, julgando improcedente a excepção suscitada pelos Réus.»

Inconformada, apelou a massa insolvente de I…, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«A) O Despacho recorrido, ao julgar improcedente a excepção de incompetência material em razão da matéria (competência que cabe ao Juízo de Comércio de Santarém) e assim firmando a sua competência para conhecer da matéria em causa nos presentes autos, incorreu em violação da norma do art. 619.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (aplicável ex vi art. 17.º do CIRE) e do caso julgado do supra citado despacho prolatado pelo Juízo de Comércio de Santarém, bem como das normas do art. 109.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e do art. 128.º, n.º 1, e n.º 3, da Lei da Organização do Sistema Judiciário. É que,
B) Como quer que seja (mesmo até que assim não fosse, mesmo que a fundamentação do Despacho recorrido fosse a correcta), a verdade é que o Juízo de Comércio de Santarém decidiu favoravelmente a questão da sua própria competência material e julgou de fundo a matéria, agora novamente em apreciação nos presentes autos, no sentido de que «Perante a ausência de prova da existência dum contrato de arrendamento que onere o bem apreendido para a massa, e não tendo sido instaurada por apenso a estes autos qualquer acção destinada a fazer valer o suposto direito do ocupante do mesmo, devera o Sr. AI diligenciar pela venda do imóvel sem qualquer ónus de arrendamento, notificando o ocupante para desocupar o imóvel em prazo que entenda por conveniente, sob pena de recurso à força pública para a sua desocupação (art. 150º/4-c do CIRE)» tendo este despacho transitado em julgado, pelo que sobre o assim decidido pelo Juízo de Comércio de Santarém, quanto à competência em razão da matéria e à questão de fundo, se formou caso julgado material nos termos dos arts. 619.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, ex vi art. 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não podendo agora, sob pena de repetição ou contradição de decisões e assim de violação do caso julgado, o Meritíssimo Juízo a quo julgar-se competente e voltar a apreciar a questão de fundo. Por outro lado,
C) Contrariamente ao defendido o Despacho recorrido pelo Meritíssimo Juízo a quo, da invocada norma do art. 109.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não resulta que no processo de insolvência não possa decidir-se a questão da existência ou validade de um contrato de arrendamento e que como tal, ex vi art. 128.º, n.º 1, a) e n.º 3 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, não seja antes o Juízo de Comércio o competente em tal matéria, pois de tal norma do art 109.º, n.º 3, do CIRE resulta apenas a aplicação da lei civil, mesmo em sede de processo de insolvência, mormente quanto à subsistência (emptio non tollit locatum) na venda coerciva do arrendamento celebrado antes da apreensão do imóvel em processo de execução (singular ou universal) e antes de um direito real de garantia que aí se faça valer e à caducidade com a venda coerciva do arrendamento celebrado posteriormente (arts. 824.º, n.º 2 e 1057.º do CIRE) e foi este, e não aquele outro, o sentido em que tal norma foi interpretada pelo Acórdão citado no Despacho recorrido. E, sobretudo,
D) Afigura-se apodítico que, à luz do art. 128.º, n.º 1, a) e n.º 3 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a competência para conhecer da matéria em questão, agora também nos presentes autos, incumbe ao Juízo de Comércio de Santarém e não ao Juízo de Competência Genérica de Almeirim cuja competência para conhecer de tal matéria assim se verifica. Como assim,
E) Em obediência à norma do art. 619.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (aplicável ex vi art. 17.º do CIRE) e do caso julgado do supra citado despacho prolatado pelo Juízo de Comércio de Santarém, bem como às normas do art. 128.º, n.º 1, a) e n.º 3 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, deve o despacho recorrido ser revogado e decidir-se ao invés pela verificação da excepção de incompetência em razão da matéria do Juízo de Competência Genérica de Almeirim para conhecer da matéria em causa nos presentes autos (competência que cabe antes ao Juízo de Comércio de Santarém) e pela absolvição dos Réus da instância.»

Não foi apresentada resposta ao recurso.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se aferir da competência em razão da matéria do Juízo de Competência Genérica de Almeirim para preparar e julgar a presente ação.

B- De Facto
Os factos e ocorrências processuais constam do antecedente Relatório.

III- DO CONHECIMENTO DO RECURSO
O objeto do presente recurso reporta-se, no essencial, à apreciação da exceção dilatória de incompetência em razão da matéria do Juízo de Competência Genérica de Almeirim, onde a ação foi intentada.
Como decorre do despacho recorrido, este Juízo considerou-se competente em razão da matéria para apreciar e decidir o presente litígio, julgando consequentemente improcedente a referida exceção suscitada pelos Réus.
O recorrente continua a pugnar pela procedência da exceção de incompetência absoluta do tribunal onde a ação foi proposta por entender ser competente o Juízo de Comércio de Santarém.
Invoca para o efeito, e em suma, a violação do artigo 128.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Lei Orgânica do Sistema Judiciário - LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26-08, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27-03 – ROFTJ -, globalmente vigente desde 01/09/2014), o artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, bem como o artigo 619.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 17.º do CIRE.

Em face do exposto, cumpre, então, conhecer da competência em razão da matéria do tribunal onde a causa foi proposta.

É comumente aceite que a competência em razão da matéria se afere em função da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor.
A causa de pedir «é o facto jurídico concreto de que emerge o direito que o autor se propõe fazer declarar»[2], cabendo ao autor articular na petição inicial os factos essenciais integradores, também ditos constitutivos, do direito, não se podendo confinar à indicação da relação jurídica abstrata, atenta a teoria da consubstanciação consagrada na nossa lei[3] (artigos 581.º, n.º 4, do CPC).
Por sua vez, o pedido é o efeito jurídico que se pretende conseguir por via da ação, a forma de tutela jurisdicional requerida para um ato subjetivo ou interesse legalmente protegido (artigos 581.º, n.º 4, 1.ª parte, do CPC).
Nessa aferição relevam os elementos objetivos e subjetivos da ação. Quantos aos primeiros, importa aferir a tutela peticionada em face do direito alegado, o facto ou factos donde resulta o direito e, quanto aos segundos, a identidade e a natureza das partes.
É o que resulta do ensinamento de MANUEL DE ANDRADE quando escreveu que a competência dos tribunais é aferida em função dos termos em que a ação é proposta, «seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina REDENTI – “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”, é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes.[4]»
A competência de um tribunal, também como é sabido, corresponde a um pressuposto processual que visa repartir o poder jurisdicional, segundo vários critérios definidos legalmente, pelos vários tribunais.
Fixa-se no momento em que se instaura a ação, sendo, em regra, irrelevantes as modificações de facto e de direito, exceto nas situações especialmente previstas na lei (artigo 38.º da LOSJ).
A competência interna dos tribunais respeita à parcela do poder jurisdicional atribuído a cada um dos tribunais integrados numa certa categoria, e é estabelecida em função de quatro critérios: o da matéria, o do valor, o da hierarquia e o do território (artigo 37.º, n.º 1, da LOSJ).
No que concerne à competência em razão da matéria, no plano interno, assenta a mesma essencialmente no critério da especialização, ou seja, atende-se à natureza das matérias das causas, estipulando o artigo 211.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (e o artigo 40.º, n.º 1, da LOSJ, em consonância com mesmo) que «1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurisdicionais
No que concerne à 1.ª instância, a LOSJ estabelece um sistema complexo quanto à redistribuição das parcelas do poder jurisdicional em termos de competência em razão da matéria (cfr. artigos 80.º e seguintes).
Interessa para o que ora releva neste recurso e, em suma, que em relação ao Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, o artigo 96.º do RLOSJ consagra um desdobramento dos tribunais de comarca (cfr. artigo 81.º da LOSJ) integrando, entre outros, na instância central, um Juízo de Comércio, com sede em Santarém (alínea i), do n.º 1) e, na instância local, entre outros, um Juízo de competência genérica, com sede em Almeirim (alínea b), do n.º 2).
A competência em razão da matéria dos juízos de comércio (competência especializada) colhe-se do artigo 128.º da LOSJ.
A competência dos juízos de competência genérica é recortada por exclusão de parte (artigo 80.º da LOSJ), ou seja, a sua competência encontra-se recortada por via residual, sendo da sua competência as causas não abrangidas pela competência de outros tribunais.
Os juízos de comércio, conforme decorre do artigo 128.º da LOSJ, são juízos especializados[5] e têm competência para preparar e julgar determinadas causas em função da matéria (ou seja, independentemente do valor e da forma de processo), prescrevendo o preceito do seguinte modo:
«1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As ações de liquidação judicial de sociedades;
f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.
2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.
3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.»

O preceito não abrange os litígios em que se discuta a transmissão do arrendamento àquele que vivia em economia comum há mais de um ano com o arrendatário falecido (artigo 1106.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil e artigo 57.º, n.º 1, alínea d) do NRAU - Lei n.º 6/2006, de 27-02). Ação por via da qual o autor pretenda o reconhecimento do direito ao arrendamento por parte do locador, independentemente do mesmo, entretanto, ter sido declarado insolvente.
Por outro lado, o facto de um dos réus ser uma massa insolvente e do imóvel locado ser um bem apreendido para a massa insolvente, não determina, por si só, a competência do juízo de comércio para apreciar a ação onde se pede o reconhecimento da transmissão da posição do arrendatário.[6]
Na verdade, nem o artigo 128.º da LOSJ, nem qualquer normativo do CIRE, prevê, expressa ou implicitamente, a competência material dos juízos de comércio para em ação autónoma, por apenso ou de forma incidental ao processo de insolvência, preparar e julgar uma ação declarativa condenatória comum em que se peça o reconhecimento do direito à transmissão do contrato de locação ao familiar que vivia em economia comum há mais de um ano com o locatário falecido, mesmo que que o bem locado esteja aprendido para a massa insolvente por via da insolvência do locador.

Porem, invoca o apelante em oposição ao despacho recorrido que do artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, não resulta que no processo de insolvência não possa decidir-se a questão da existência ou validade de um contrato de arrendamento, inserindo-se o litígio no âmbito da competência do juízo de comércio por via do artigo 128.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do CIRE.
Salvo o devido respeito, nenhuma razão assiste ao apelante.
A norma atributiva de competência material aos juízos de comércio consta do artigo 128.º da LOSJ e tem caráter taxativo. A alínea a), do n.º 1, do artigo 128.º da LOSJ, estipula que compete aos juízos de comércio preparar e julgar os processos de insolvência e de revitalização. O n.º 3 do preceito alarga a competência aos incidentes, apensos e execuções das decisões referentes às ações elencadas no n.º 1 do artigo.
O artigo 109.º do CIRE estipula sobre os efeitos da declaração de insolvência em relação ao contrato de locação quando o insolvente seja o locador.
Se a coisa já tiver sido entregue (como ocorre no caso em apreço), a declaração de insolvência não determina a suspensão da execução do contrato de locação, pelo que tem de ser cumprido. Porém, a lei confere, tanto às partes como ao administrador da insolvência, o direito de fazer cessar o contrato, nos termos previstos na parte final do n.º 1 do artigo 109.º do CIRE.
Integrando o imóvel a massa insolvente por ter sido apreendido nesse processo, o mesmo destina-se a ser alienado, para com o produto da venda, se satisfazerem os credores, de acordo com as regras próprias deste processo (artigos 158.º e 164.º do CIRE).
Todavia, a lei concede tutela ao locatário nessa situação, nos termos previstos n.º 3 do artigo 109.º do CIRE, mantendo os direitos que lhe são reconhecidos em tal circunstância, ou seja, caso seja alienado o imóvel locado.
Traduz-se a mesma, basicamente, na transferência automática da posição contratual do locador com a alienação do bem e, por outro lado, na concessão ao arrendatário de direito de preferência na alienação (artigo 1057.º e 1091.º do Código Civil e artigo 59.º, n.º 2, do NRAU ).[7]
O n.º 3 do artigo 109.º do CIRE alheia-se, assim, do litígio sobre a qualidade de arrendatário, já que a pressupõe, regulando, antes, a tutela daquele que se apresenta no processo de insolvência com essa ou nessa qualidade jurídica.
Assim, o artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, não é uma norma atributiva de competência material (ou outra) dos tribunais de comércio. Insere-se no Capítulo IV, do Título IV do CIRE que regula os efeitos da declaração de insolvência, mais concretamente os efeitos em relação aos negócios em curso à data da declaração de insolvência (cfr. artigos 81.º e ss).
Como se refere no Acórdão desta Relação: «O art. 109º não limita os meios conferidos ao locatário para defesa dos seus direitos sobre o bem locado, desde logo porque nenhuma menção é feita nessa norma a qualquer meio processual.
O objeto normativo daquele preceito não é a determinação dos meios processuais de que pode lançar mão o locatário para defesa dos seus direitos.
Estes meios são regulados no Título V do CIRE, no qual se insere o art. 141º, que é uma norma de carácter exclusivamente processual. O que regula o art. 109º é coisa bem diferente: os efeitos da declaração de insolvência nos contratos de locação em curso (cfr. Capítulo IV do Título IV do Código), sendo uma norma substantiva de direito insolvencial.»[8]
Em conclusão, a validade e/ou existência do contrato de arrendamento e a transmissão da posição de locatário por via do regime do artigo 1106.º do Código Civil encontram-se a montante do regime do artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, não sendo o processo insolvencial o meio processual adequado para dirimir eventuais conflitos sobre a relação de arrendamento.

Invoca, ainda, o apelante o caso julgado para defesa da sua tese quanto à competência do juízo de comércio de Santarém, dizendo que se julgou competente e decidiu de mérito quanto à ausência de um contrato de arrendamento que onere o bem apreendido para a insolvência, ordenando a sua venda livre de ónus de arrendamento e desocupado, sem que o ora apelante tenha reagido no momento processual próprio, «(…) tendo este despacho transitado em julgado, pelo que sobre o assim decidido pelo Juízo de Comércio de Santarém, quanto à competência em razão da matéria e à questão de fundo, se formou caso julgado material nos termos dos arts. 619.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não podendo agora, sob pena de repetição ou contradição de decisões e assim, violação do caso julgado, o Meritíssimo Juízo a quo julgar-se competente e voltar a apreciar a questão de fundo.»
O despacho em causa proferido em 29-04-2019 no processo de insolvência (P. n.º 29717.0T8STRC-C), que faz parte da certidão que instruiu este Apenso em Separado, nada decidiu sobre a sua competência em razão da matéria para apreciar o pedido formulado na presente ação. Limitou-se a constatar que havia um imóvel apreendido, que não tinha havido qualquer reação por parte de terceiro invocando qualquer oneração incidente sobre o mesmo (cfr. artigos 141.º, n.º 1, alínea c), 144.º, n.º 1, e 146.º, n.º 1 e 2, do CIRE), pelo que ordenou a venda em conformidade com a informação que consta do processo, ou seja, sem qualquer ónus e desocupado.
Não existe, pois, qualquer caso julgado sobre a questão objeto deste litígio, ou seja, sobre a competência em razão da matéria do juízo de competência genérica de Almeirim versus competência em razão da matéria do juízo de comércio de Santarém (cfr. artigos 619.º a 621.º do CPC) para apreciar o pedido de transmissão do contrato de arrendamento por morte do arrendatário.
Em suma, face ao modo como o autor estruturou o seu pedido e a causa de pedir nesta ação (transmissão do contrato de arrendamento por morte da primitiva locatária por sobrevivência de pessoa que com ele residia em economia comum há mais de um ano, o ora apelante), e sem antecipar qualquer análise do mérito da causa, é de concluir que o Juízo de Competência Genérica de Almeirim é competente em razão da matéria para tramitar e julgar a presente ação.
Nestes termos, improcede a apelação.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 11-11-2021
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)
__________________________________________________
[1] Por sentença proferida em 07-03-2017, no processo n.º 29/17.0T8STR, do Juízo de Comércio de Santarém, foi declarada a insolvência de I…, tendo a mesma já transitado em julgado.
[2] ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 1945, p. 375. Cfr. também ANTUNES VARELA et al., Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª ed., 1985, p. 245.
[3] ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Declaratório, Almedina, 1981, Vol. I, p. 205 e 208 e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Sobre a Teoria do Processo Declarativo, Coimbra Editora, 1980, p. 158.
[4] MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 91.
[5] Cfr. artigo 80.º, n.º 2, 81.º, n. º1, alínea a) e n.º 2, alínea f), da LOSJ.
[6] Como se infere do AC. do STJ, de 29-01-2019, proc. 12080/16.2T8LRS.L1-S2, em www.dgsi.pt
[7] CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, QJ, 2015, p. 481-482 (5 e 6) e MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS, Insolvência e Locação. Os efeitos da declaração de insolvência sobre o contrato de locação, in Cadernos de Direito Privado, 70, Abril-Junho 2020, Cejur, p. 3-12, maxime, p. 9-10.
[8] Ac. RE, de 26-01-2017, proc. 253/15.0T8ABF.E1, (relatado pelo ora 2.º Adjunto), disponível em www.dgsi.pt