Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
428/16.4T8STR.E1
Relator: CONCEIÇÃO FERREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
FORÇAS ARMADAS
COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 10/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Pretendendo a autora acionar o Estado e um seu funcionário no âmbito de responsabilidade civil extracontratual, é a jurisdição administrativa a competente para conhecer da respetiva ação, tendo em consideração o disposto no artigo 4º, n.º 1, als. g) e h), do ETAF vigente.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 428/16.4T8STR.E1 (1ª Secção Cível)


ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém (Juízo Central Cível de Santarém – J1), corre termos ação declarativa comum pela qual (…) demanda (…) e o Estado Português/Ministério da Defesa Nacional, pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento da quantia de € 143.800,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, e da quantia ou quantias a liquidar em execução de sentença quanto a danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da incapacidade de que ficou a padecer, tudo acrescido de juros moratórios vencidos e vincendos.
Fundamenta a sua pretensão num acidente de viação que ocorreu no dia 28 de Julho de 2008 e que envolveu um veículo militar quando ambos exerciam funções militares no Campo Militar de Santa Margarida, ela como Soldado e ele como Primeiro-Cabo.
Em representação do Estado veio o Ministério Público contestar arguindo a exceção de incompetência absoluta material deste juízo central cível, uma vez que, estando em causa a responsabilidade civil extracontratual do Estado decorrente de um acidente de viação no qual intervieram dois militares que se encontravam ao seu serviço, é ao tribunal administrativo e não à instância comum que compete apreciar e dirimir o conflito.
Por despacho de fls. 203 foi ordenada a notificação da autora para se pronunciar sobre tal exceção, o que fez tomando posição no sentido da competência material ser do tribunal cível.
Por decisão de 17/02/2017 foi apreciada a exceção da incompetência material arguida tendo-se decidido “de harmonia com os arts. 96.º, al. a), 97.º, n.º 1, 98.º, 99.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. a), e 578.º do CPC, julgo a exceção invocada pelo réu Estado Português totalmente procedente e declaro este juízo central cível incompetente em razão da matéria.
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Inconformada, veio a autora interpor o presente recurso e apresentar as respectivas alegações, terminando por formular as conclusões que se passam a transcrever:
A) A presente ação é a extensão do pedido de indemnização civil enxertado no processo-crime que correu os seus termos pela Instância Local de Abrantes do Tribunal da Comarca de Santarém com o n.º 13/09.7NJLSB e que o tribunal, por despacho de 17-12-2015, decidiu REMETER AS PARTES PARA OS TRIBUNAIS CIVIS, ao abrigo do disposto no artigo 82.º, n.º 3, do CPP, em virtude de o processo-crime estar à beira da prescrição e "não existir data para a conclusão da perícia médico-legal", conforme douta promoção do MP e despacho que se encontram juntos aos autos.
B) Ora, se era a Instância Local de Abrantes do Tribunal da Comarca de Santarém o tribunal competente para apreciar o pedido de indemnização civil deduzido contra o Estado Português nos autos n.º 13/09.7NJLSB, não pode deixar de ser também esta Instância Central Cível a competente, após a remessa das partes para os tribunais civis por despacho de 15/12/2015, quando a fundamentação do pedido é exactamente a mesma e o referido artigo 82.º, nº 3, do CPC manda remeter as partes expressamente para os tribunais civis.
C) A presente ação, sublinhe-se, é um pedido de indemnização civil enxertado em processo-crime e deduzido contra o arguido, o R./…, e o Estado Português, enquanto comissário, por conta e ao serviço de quem agiu o R. ….
D) Ou seja, a responsabilidade extracontratual em questão deriva da existência de um crime e o pedido de indemnização está conexo com a verificação ou não desse crime.
E) E se dúvidas não existem de que o tribunal civil era o competente para apreciar o pedido de indemnização deduzido contra o Estado Português e contra o R./…, enxertado no processo-crime, por força do princípio da adesão, e porque o artigo 72.º do CPP não ressalva a possibilidade de dedução de pedido de indemnização civil em separado, nos casos em que o pedido devesse ser julgado por jurisdição especializada, forçoso será concluir, até pela redacção do artigo 82.º do CPP, que o tribunais civis são competentes para dirimir a presente ação (ver Ac TRL de 8-5-2012, in http://www.dgsi.pt).
F) Finalmente, o despacho proferido no âmbito do processo-crime que correu termos pela Instância Local de Abrantes do Tribunal da Comarca de Santarém com o n.º 13/09.7NJLSB, já transitado, proferido perante as mesmas partes e sobre o mesmo objeto agora em discussão (ou seja, a competência dos tribunais civis para dirimir a questão dos autos), não pode deixar de formar caso julgado quanto a esta questão, atento desde logo os princípios da segurança jurídica e da confiança, pelo que a Sentença recorrida viola o caso julgado formado naquela ação que, aqui, à cautela, desde já se invoca.
G) Decidindo, como decidiu, violou o Exmo. Juiz, designadamente, o disposto nos artigos 72.º e 82.º, n.º 3, do CPP e artigos 578.º, 580.º, n.º 1 e 2, e 581.º do CPC.
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Foram apresentadas contra-alegações por parte Ministério Público, pugnando pela manutenção do julgado.

Cumpre apreciar e decidir

O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso.

Em face do teor das conclusões as questões suscitadas e a apreciar são:
1ª – Se o tribunal de jurisdição comum é competente materialmente para conhecer da pretensão da ora recorrente;
2ª – Se a sentença recorrida viola caso julgado, formado na ação nº 13/09.7NJLSB.

Conhecendo da 1ª questão
Na decisão recorrida teve-se em conta essencialmente o seguinte circunstancialismo:
- No dia 28 de Julho de 2008 ocorreu um acidente que envolveu um veículo militar quando a autora e o 1º réu exerciam funções militares no Campo Militar de Santa Margarida, ela como Soldado e ele como Primeiro-Cabo.

A respeito da questão da competência material convirá dizer, antes de mais, que os tribunais judiciais gozam de competência genérica – o que significa que são competentes para o conhecimento de todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (artºs 211º, da Constituição da República Portuguesa e 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário).
Neste sentido dispõe ainda o art.º 64º do CPC que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, designadamente à jurisdição administrativa e fiscal que é exercida pelos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/02, na redação da Lei nº 107-D/2003, de 31/12.
Assim, não cabendo uma causa na competência de outro tribunal, será a mesma da competência residual do tribunal comum.
Para apreciar a competência deste Tribunal em razão da matéria, há que ter em primeira linha de conta, conforme uniformemente tem sido entendimento da Jurisprudência, ao pedido e à causa de pedir, ou seja, há que atender há natureza da relação jurídica material em apreço segundo a versão apresentada em juízo pela autora atendendo-se ao direito de que a mesmo se arroga e que pretende ver judicialmente protegido.
Efetivamente, a atribuição da competência em razão da matéria será daquele tribunal que estiver melhor vocacionado para apreciar a questão colocada pela autora, projetando um critério de eficiência que só poderá ser aferido em função do pedido deduzido e da causa de pedir, donde, portanto a necessidade de verificar se existe norma que atribua a competência a um tribunal especial e, não havendo, caberá ela subsidiária e residual aos designados “tribunais comuns” (Ac. do STJ de 12-02-2009, in www.dgsi.pt).
Os tribunais administrativos têm a sua competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas nos termos do artº 212º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa e a competência cinge-se ao julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Nos termos do estatuído na alínea g) e h) do nº 1 do artº 4º do ETAF em vigor desde 1de Janeiro de 2004, compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.
Desde a entrada em vigor da citada lei, todas as ações por responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público passaram a ser da competência dos tribunais administrativos. Aliás, tal decorre das Linhas Gerais da Reforma do Contencioso Administrativo. (v. Ac. do STJ de 27-09-2007).
Na verdade, como se salienta no Ac. do STA de 20/09/2012 disponível in www.dgsi.pt, seguindo os ensinamentos de Sérvulo Correia, in Direito do Contencioso Administrativo I, pág. 714, a inclusão na competência material dos tribunais administrativos o conhecimento de questões em que haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa justifica-se, por uma incidência subjetiva, independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos.
Assim, podemos concluir que só os tribunais administrativos são os competentes para apreciar todas as questões relativas à responsabilidade civil extracontratual da Administração em geral, quer os atos sejam praticados no âmbito de um exercício de gestão pública ou de gestão privada, uma vez que o critério assente em atos de gestão pública ou de gestão privada usado na vigência do ETAF de 1984 deixou de relevar decisivamente no âmbito do novo ETAF aprovado pela Lei 13/2002.
Atento o alegado na petição inicial, está em causa apurar a responsabilidade civil emergente de danos materiais sofridos em consequência de “uma ocorrência”, onde se refere que um dos responsáveis pela mesma foi (…), 1º Cabo do exército português, que se encontrava ao serviço do 1º Batalhão de Infantaria Mecanizado, do Campo Militar de Santa Margarida, sendo ele o condutor da viatura Mercedes 1222, com a matrícula (…)-37-24, pertencente ao exército português, ou seja, está em causa ato ilícito imputado a agente de pessoa coletiva pública.
Sendo o Estado uma pessoa coletiva de direito público e pretendendo a autora acionar a sua responsabilidade civil extracontratual, é a jurisdição administrativa a competente para conhecer da respetiva ação. (v. Ac. do STA de 26-9-2007, in www.dgsi.pt; Mário Aroso de Almeida in O Novo Regime de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, 99; João Caupers in Notas sobre a responsabilidade civil do Estado – FDL disponível in www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jc_MA_5351.docý; Santos Serra in A Nova Justiça Administrativa e Fiscal Portuguesa, comunicação efetuada em 28 de Agosto de 2006 no Congresso Nacional e Internacional de Magistrados, VI Assembleia da Associação Iberoamericana dos Tribunais de Justiça Fiscal e Administrativa, realizada na Cidade do México; Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Almeida in Código do Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotado, vol. I¸59; Pedro Cruz e Silva in Breve Estudo sobre a competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais em matéria de responsabilidade civil e de contratos, disponível in www.verbojurídico.net).
Concluindo-se, assim, pela competência material dos Tribunais Administrativos, para a apreciação e conhecimento da pretensão da autora.

Conhecendo da 2ª questão
Invoca a recorrente que a presente ação é a extensão do pedido de indemnização civil enxertado no processo-crime que correu os seus termos pela Instância Local de Abrantes do Tribunal da Comarca de Santarém com o nº 13/09.7NJLSB e que o tribunal, por despacho de 17-12-2015, decidiu remeter as partes para os Tribunais Civis, ao abrigo do disposto no artº 82º, nº 3, do CPP, em virtude de o processo-crime estar à beira da prescrição, tendo-se formado caso julgado quanto a esta questão.
Sendo certo que a Instância Local de Abrantes do Tribunal da Comarca de Santarém, por decisão proferida em 17/12/2015, decidiu remeter as partes para os tribunais civis, ao abrigo do disposto no artº 82º, nº 3 do C P Penal, tendo antes ouvido as partes intervenientes no processo, sendo que a ora recorrente, na altura insurgiu-se, com tal decisão pois entendia que quanto ao pedido de indemnização cível seriam competentes os Tribunais administrativos (v. fls. 225 dos autos).
Por tal, não foi surpresa para a recorrente a decisão recorrida que reconheceu a incompetência em razão da matéria.
Mas, sempre se dirá, que não lhe assiste razão, pois não há caso julgado que obstaculize a apreciação do pedido de indemnização formulado nos tribunais administrativos.
A decisão penal dirimiu aquela situação da prescrição, como questão incidental, é sabido que, quanto às questões incidentais ou prejudiciais que a sentença dirime, a regra é a de que a sua decisão não constitui caso julgado fora do respetivo processo, não tem força de caso julgado material.
Como bem se salienta na decisão recorrida e passamos a reproduzir:
… a decisão proferida no processo criminal de acordo com a qual foram as partes remetidas para os tribunais civis não faz caso julgado na interpretação que a autora lhe pretende atribuir, ou seja, como tendo sido solucionada uma exceção de incompetência material. Na verdade, e como a própria autora refere (cfr. 10 do seu requerimento), o tribunal decidiu enviar as partes para os tribunais civis ao abrigo do art. 82.º, n.º 3, do CPP. Ora, prescreve este dispositivo legal que o tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal. Em nenhuma parte daquele preceito adjetivo se faz qualquer referência à competência do tribunal enquanto pressuposto processual, nem tem por objetivo agilizar o procedimento judicial por causa da competência. Tal artigo visa apenas impedir que o processo penal possa ser prejudicado pelo inevitável retardamento dos trabalhos inerentes ao enxerto civil ou pelas dificuldades que a sua tramitação conjunta possa causar na realização da justiça penal, que se quer pronta e eficaz por si mesma. Todas as considerações que constam do despacho proferido pelo tribunal penal são pois considerações que não foram feitas a propósito de uma exceção de incompetência material que tivesse sido invocada e, como tal, não têm força vinculativa externa, isto é, não se formou caso julgado externo que vincule este tribunal. Tais considerandos são pois meras justificações laterais do tribunal penal que, por não constituírem o reasoning judicial de uma questão controversa – que, como se disse, não se colocava (recorde-se que o despacho que ordenou a remessa das partes para os tribunais civis não dirimiu qualquer questão de competência, aliás estranha ao próprio art. 82.º do CPP) – não podem vincular este Tribunal, amarrando-o ao que ali se decidiu.
Improcede, também, nesta vertente o recurso.
Nestes termos, não merece censura a decisão impugnada, que conheceu da exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal de Jurisdição Cível, improcedendo as conclusões da recorrente.

Em conclusão (artº 663º, n.º 7, do CPC):
1 - Os tribunais administrativos são os competentes para apreciar todas as questões relativas à responsabilidade civil extracontratual da Administração em geral, quer os atos sejam praticados no âmbito de um exercício de gestão pública ou de gestão privada, uma vez que o critério assente em atos de gestão pública ou de gestão privada usado na vigência do ETAF de 1984 deixou de relevar decisivamente no âmbito do novo ETAF aprovado pela Lei 13/2002.
2 - Pretendendo a autora acionar o Estado e um seu funcionário no âmbito de responsabilidade civil extracontratual, é a jurisdição administrativa a competente para conhecer da respetiva ação tendo em consideração o disposto no artigo 4º, n.º 1, als. g) e h), do ETAF vigente.
3 - Todas as considerações tecidas por decisão criminal em que se discutiam os factos referente à existência de ilícito penal e que também estão na origem deste pedido de indemnização cível, que não se debruçaram sobre uma exceção de competência material, não formam caso julgado externo, que desse modo vinculem o Tribunal Cível.
DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Évora, 26-10-2017
Maria da Conceição Ferreira
Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura
Mário António Mendes Serrano