Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
276/15.9GFELV-B.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Na acção especial emergente de acidente de trabalho foi a entidade empregadora absolvida dos pedidos contra si formulados porque não foi possível apurar a existência do nexo de causalidade adequada entre a violação de regras de segurança (que na respectiva sentença se qualificou de “claríssima”) e o acidente que veio a ocorrer.

Mas, uma perspectiva é a da sua responsabilidade nessa qualidade e nesses termos e outra a da sua responsabilidade por factos ilícitos ou pelo risco a apreciar de acordo com o estabelecido no artigo 483º e segs. do Código Civil e mormente por referência aos factos e às normas deste que a respeito a “AA, S.A.” chama à colação, sendo certo, até, que é aceite que um acidente pode, simultaneamente, ter natureza de acidente de trabalho e acidente de viação, não sendo cumuláveis as indemnizações, enquanto referentes ao mesmo dano concreto, mas podendo completar-se – por todos, vd. Acs. do STJ de 16/06/2010, Proc. nº 142/06.9GTAVR.P1.S1 e 11/07/2019, Proc. nº 1456/15.2T8FNC.L1.S1; Ac. R. de Guimarães de 12/01/2017, Proc. nº 50/12.4TBPTL.G1, disponíveis em www.dgsi.pt.

No que concerne ao proprietário do trator (e reboque), a sua responsabilidade resulta (na tese da impetrante, que sustenta com os factos que articula e com o direito que invoca) de ter a direcção efectiva do veículo e o utilizar no seu interesse próprio, operando-o o arguido em proveito daquele.

Termos em que, por se verificar o circunstancialismo previsto nos artigos 311º, 316º, nº 2 e 39º, do Código de Processo Civil, cumpre conceder provimento ao recurso, julgar admissível o incidente de intervenção principal provocada passiva deduzido pela “AA S.A.” e admitir a intervenção nos autos de CC e da sociedade “DD, Lda.”

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO

1. Nos autos com o NUIPC 276/15.9GFELV, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de …, de Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi lavrado despacho, aos 05/04/2022, que julgou parcialmente admissível o incidente de intervenção principal provocada deduzido pela demandante civil “AA S.A” e admitiu a intervenção principal provocada de BB, não admitindo a de CC e da sociedade “DD, Lda.”

2. “AA S.A.” interpôs recurso desta decisão, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

I – Vem a presente apelação interposta de douta decisão de 5-04-2022, que indeferiu a intervenção principal provocada de CC, proprietário do veículo trator cujo manuseamento deu causa à morte do lesado e da DD, Lda, sua detentora enquanto entidade por conta e no interesse da qual o trator laborava;

II – A recorrente não se conforma com o douto despacho porquanto, não beneficiando o veículo de seguro válido, conforme se discute nos autos, serão aqueles, solidariamente com o condutor, ora arguido e demandado, solidariamente responsáveis pelo ressarcimento à recorrente das importâncias já despedidas e a despender com a reparação do acidente, que foi simultaneamente de trabalho e cuja reparação, no âmbito da infortunística laboral, coube à recorrente;

III – Relativamente a ambos os chamados, verifica-se a existência de litisconsórcio voluntário passivo, em solidariedade com o arguido e bem assim, por se discutir a validade do contrato de seguro do veículo, sempre a intervenção de ambos teria cabimento no âmbito do Artº 39º do CPC, do que resulta a admissibilidade do chamamento a titulo principal em qualquer dos caso previstos no nº 2 do Artº 316 CPC;

IV - Salvo devido respeito, o douto despacho recorrido não fez o correto enquadramento do disposto no Artº 316º nº 2 do CPC, conjugados com o disposto nos artºs 483º nº 1, 497º e 507º C. Civil e com os Artºs 4º nº 1 e 6º nº 1 do DL 291/2007 de 21/8, que impunham, o deferimento da intervenção principal provocada do proprietário do veículo lesante, enquanto sujeito da obrigação de segurar e com a direção efetiva e interesse na utilização do veiculo, CC, para contra ele, solidariamente com os demais, seguir a demanda do pedido cível proposto pela recorrente.

V – De igual modo, o douto despacho recorrido não fez o correto enquadramento do disposto no Artº 316º nº 2 do CPC com o disposto nos Artºs 500º, nº 1, 497º e 499º do CC., que impunha, o deferimento da intervenção principal provocada da DD, Lda, para contra esta sociedade, enquanto detentora do veículo e comitente, solidariamente com o arguido e o proprietário, seguir a demanda do pedido cível proposto pela recorrente.

VI - De resto, o douto despacho consubstancia uma verdadeira desigualdade entre as partes, já que quer o CC, quer a DD, Lda., são já demandados cíveis no processo, pela viúva e filhos do falecido, com os exatos mesmos fundamentos usados pela recorrente para sustentar agora o chamamento ao seu pedido, tendo o Tribunal admitido aquele outro pedido sem reservas.

VII – Termos em que deverá o presente a presente apelação ser julgada procedente e o douto despacho de rejeição da intervenção principal provocada de CC e DD, Lda, ser substituído por douto Acórdão que a admita, por forma a contra eles, seguir também, solidariamente com os demais, o pedido cível proposto pela ora recorrente, assim se fazendo, JUSTIÇA!

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo, nos termos dos artigos 399º, 400º a contrario, 401º, nº 1, alínea b), 406º, nº 2, 407º, nº 1, 410º, 411º, nº 1 e 408º, a contrario, do CPP.

4. Inexiste resposta à motivação de recurso.

5. Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta considerou carecer de legitimidade para emitir parecer nestes autos, porquanto a questão objecto do recurso se restringe a matéria civil e o Ministério Público não demandou quem quer que fosse, nem o Estado ou outra pessoa colectiva de direito público que lhe incumba representar, nos termos do seu estatuto, foi demandado.

6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso,– neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a da admissibilidade da intervenção principal provocada de CC e da sociedade “DD, Lda.” impetrada pela demandante civil “AA S.A.”

2. Elementos relevantes para a decisão

2.1 Por sentença do Juízo de Trabalho de …, com data de 24/11/2017, em acção especial emergente de acidente de trabalho, foi decidido:

Julgar a acção parcialmente procedente e condenar a Ré “AA S.A.”, a pagar à Autora EE (viúva e única beneficiária legal do sinistrado FF) as seguintes quantias:

- Uma pensão anual e vitalícia no montante de 3.755,40 euros, devida a partir do dia seguinte ao da morte do sinistrado até à idade da reforma por velhice, e de 5.007,32 euros a partir daquela idade ou da verificação da de deficiência ou doença crónica que afecte sensivelmente a sua capacidade para o trabalho, pensão que deverá ser paga adiantada e mensalmente, até ao 3º dia útil de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, devendo os subsídios de férias e de Natal, no valor de 1/14 da pensão anual serem pagos, respectivamente, nos meses de Junho e de Novembro, acrescida de juros, contados à taxa legal, sobre a data de vencimento de cada uma das prestações e até integral pagamento.

- A quantia de 5.533,70 euros, a título de subsídio por morte, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento.

A Ré “DD, Lda.” (entidade empregadora) foi absolvida dos pedidos contra ela formulados, por se não ter provado o nexo de causalidade adequada entre a violação por parte da entidade empregadora das regras de segurança legalmente previstas para a execução dos trabalhos que se encontravam a ser efectuados pelo sinistrado e o acidente que veio a ocorrer.

2.2 Por despacho de 28/10/2019, o Ministério Público deduziu acusação, em Processo Comum, para julgamento perante Tribunal Singular, de BB, imputando-lhe a prática de factos integradores, em seu entender, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal. A acusação foi recebida, por despacho de 20/01/2020, pelos factos e enquadramento jurídico-penal dela constantes.

2.3 EE (viúva do sinistrado), GG (filha do falecido), HH filha), II (filha) e JJ (filho), deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido BB, a sociedade “DD, Lda.”, CC e “KK, SGPS, S.A., requerendo a sua condenação no pagamento aos demandantes, solidariamente, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, actuais e futuros e lesão do direito à vida do falecido, da quantia de 380.949,952 euros e juros de mora à taxa legal contados desde a “citação dos demandados até efectivo e integral pagamento”.

Fundaram o seu pedido, entre o mais, nos factos constantes da acusação pública, fazendo derivar a responsabilidade da sociedade demandada do facto de o arguido (BB) exercer funções como operador de máquinas, por conta, à responsabilidade e sob a direcção e ordens da mesma (considerando existir uma relação comitente/comissário, nos termos do artigo 500º, nºs 1 e 2, do Código Civil) e a do demandado CC de ser o proprietário do trator (e reboque), tendo conhecimento e previamente autorizado o arguido a exercer essas funções, o que fazia no interesse e sendo sua a direcção efectiva (explicitam ser este solidariamente responsável com o condutor, nos termos do artigo 503º, nº 1, do Código Civil)

No tribunal recorrido, por despacho de 20/01/2020, foi admitido “o pedido cível deduzido por EE e outros contra os demandados aí identificados”.

2.4 Nestes autos, “AA S.A.”, deduziu pedido de indemnização civil contra “KK, S.A.”, impetrando a condenação da demandada a pagar-lhe:

a) A quantia de 21.965,31 euros, respeitante ao pagamento de pensões, subsídios de férias e de Natal, subsídio por morte e actualizações desde o dia seguinte ao do acidente e até 31/12/2019.

b) As quantias, relativas a pensões, subsídios de férias e de Natal e suas actualizações, que se vencerem e forem pagas posteriormente a esta data e na pendência da causa, a ser objecto de ampliação do pedido até ao encerramento da audiência de julgamento.

c) As quantias, relativas a pensões, subsídios de férias e de Natal e suas actualizações, que se vencerem e forem pagas posteriormente ao encerramento da audiência de julgamento.

d) Juros de mora à taxa legal desde a citação para contestar este pedido cível e até integral pagamento.

e) Custas, incluindo as de parte.

Funda o seu pedido, na parte que aqui interessa, em o arguido conduzir o trator agrícola com a matrícula … e reboque … com o conhecimento e prévia autorização do seu proprietário CC, sendo que este havia transferido a responsabilidade civil por danos causados a terceiros, decorrentes da circulação , utilização e detenção do trator e seu reboque para a demandada, por contrato de seguro titulado pela apólice nº …, sendo o acidente que vitimou FF qualificado como acidente de trabalho e dado origem a processo especial emergente de acidente de trabalho, tendo a demandante procedido ao pagamento de valores que concretiza à beneficiária.

Aduz ainda que, com os referidos pagamentos, ficou a demandante sub-rogada nos direitos da beneficiária contra os responsáveis civis pelo acidente de trabalho, nos termos do artigo 592º, do Código Civil e artigo 17º, nºs 1 e 4, da Lei nº 98/2009, de 04/09, respondendo pelos danos causados a seguradora do veículo, ora demandada, nos termos do artigo 64º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21/08.

2.5 “KK, S.A.”, notificada do pedido de indemnização civil formulado por “AA S.A.”, apresentou contestação, em que articula, entre o mais, que celebrou com CC um contrato de seguro do ramo Tratores e Máquinas Agrícolas, em que este transferiu para aquela a responsabilidade civil emergente da circulação do trator agrícola de matrícula … – contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel - não estando contratada qualquer cobertura para danos decorrentes da responsabilidade civil em laboração, pelo que, tendo o sinistro ocorrido por via da laboração do trator em funções meramente agrícolas e não da sua circulação e não se mostrando também garantida a responsabilidade pelo risco pelos danos causados pelo reboque, está excluída a responsabilidade da contestante.

2.6 “AA S.A.”, notificada da contestação apresentada por “KK, S.A.” veio requerer a intervenção principal provocada, para contestarem o pedido de indemnização civil, de:

a) BB.

b) CC.

c) “DD, Lda.”

Funda-se em que a responsabilidade de BB, enquanto condutor do trator agrícola e reboque, decorre dos termos gerais da responsabilidade civil extra-contratual, consagrados no artigo 483º e segs., do Código Civil; a de CC, de o primeiro tripular os veículos com o seu conhecimento e consentimento, sendo o respectivo proprietário, nos termos do artigo 503º, nº 1, do Código Civil; a responsabilidade da “DD Ldª”, ainda no seu entender, resulta de BB, à data dos factos, exercer as funções de operador de máquinas por conta e sob a responsabilidade, da mencionada sociedade, com sustentação no estabelecido nos artigos 500º, nº 1, 497º e 499º, do Código Civil.

2.7 Em 05/04/2022, foi proferido o despacho recorrido, com o seguinte teor (transcrição):

Do requerimento de intervenção principal provocada de BB, CC e DD, Lda (acção cível por AA, S.A.):

Notificada da contestação deduzida pela Ré KK S.A., veio a AA S.A., requerer a intervenção principal provocada do arguido, de CC (proprietário do tractor com a matrícula …) e da DD, Lda (entidade empregadora) para contestar o pedido de indemnização cível, alegando, em síntese, que em face da defesa invocada pela KK S.A., consubstanciada na exclusão da apólice não garantir a responsabilidade pelo risco por danos causados pelo reboque com a matrícula … e, bem assim, na circunstância da apólice contratualizada não abranger os danos causados pelo veículo tractor com a matrícula … em caso de acidente de laboração.

Nos termos do artigo 30.º do Código de Processo Civil, a legitimidade traduz-se no interesse directo da parte em demandar ou contradizer, e resulta concretamente para o autor, da utilidade derivada da procedência da acção. Todavia, o interesse, que assenta em princípio na titularidade da relação material controvertida, pode dizer respeito a várias pessoas, caso em que estaremos perante uma situação de litisconsórcio.

Ainda assim, mesmo em caso de litisconsórcio, situações há em que é permitido que só uma delas intervenha, embora possam participar as restantes (litisconsórcio voluntário, nos termos do artigo 32.º do mesmo diploma), e outras em que é exigida a intervenção de todas em conjunto (litisconsórcio voluntário, nos termos do artigo 33.º).

Não se olvida o que resulta do disposto no art. 64.º, n.º1, al. a), do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, na medida em que estipula que as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório.

No entanto, em face das excepções peremptórias deduzidas pela ré KK S.A, e na eventualidade da sua procedência, tem a Demandante AA, S.A., nos termos do art. 17.º, da Lei de Acidentes de Trabalho, legitimidade para demandar o terceiro causador do acidente, deixando de ter aplicabilidade o disposto no art. 64.º, n.º1, al. a), do DL 291/2007, de 21 de Agosto, em face da prova de que dependerá produzir acerca da (in)existência de seguro válido que a demandada KK S.A. invocou.

Considerando a materialidade alegada no pedido de indemnização cível deduzido pela AA, S.A., nos termos da qual tem na sua base a acusação pública deduzida (artigo 1.º, do seu articulado) e sem olvidar o princípio de adesão previsto no art. 71.º e 73.º, do Código de Processo Penal, invocou, assim, a demandante factos que fundamentam um interesse atendível em chamar a intervir o arguido, enquanto litisconsorte voluntário, sujeito passivo da relação material controvertida.

A sociedade DD, Lda., enquanto entidade empregadora, a mesma responde nos termos definidos pelos artigos 2.º a 7.º, da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, ou seja, pelos danos ocorridos no âmbito dos acidentes de trabalho.

Nos termos do art. 79.º do mesmo diploma, o empregador é obrigado a transferir a responsabilidade de tais acidentes, através de seguro obrigatório. Como resulta dos autos, os danos emergentes de acidente de trabalho encontram-se reparados, cumprindo apenas ressarcir aqueles que não estão previstos pelo regime de reparação de acidentes de trabalho.

Em face do exposto, a sociedade DD, Lda. pretendendo ser demandada na qualidade de entidade empregadora e não sendo a mesma interveniente no âmbito do acidente em si de viação e já havendo sido determinada a responsabilidade pela relação laboral em que interveio, nada pode ser assacada.

O mesmo se refira em relação ao proprietário relativamente ao qual não se descortina nenhuma fonte de obrigação: a discussão centra-se no manuseamento do tractor e não no tractor enquanto objecto em si.

Assim, não ocorrendo preterição de litisconsórcio voluntário do lado passivo quanto a tais sujeitos passivos, que por via do presente incidente a demandante pretende sanar, afigura-se que não se encontram verificados os requisitos legais para que se admita o chamamento.

Face ao exposto, por se verificar o circunstancialismo previsto nos artigos 311.º e 316.º, n.º 3 e 317.º do Código de Processo Civil, julga-se legalmente e parcialmente admissível o incidente de intervenção principal provocada passiva deduzido pela demandante e, consequentemente, admite-se a intervenção principal provocada de BB.

No mais, não se admite a intervenção principal provocada de CC e DD, Lda., como associados da Ré.

Custas do incidente pela Requerente, uma vez que não foi deduzida oposição – artigos 539.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e 7.º, n.º 4, com referência à tabela II, do Regulamento das Custas Processuais, no mínimo legal.

Apreciemos.

Consagra-se no artigo 316º, do Código de Processo Civil:

“1 - Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.

2 - Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.

3 - O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:

a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;

b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.”

Por seu lado, o artigo 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21/08, estabelece: “toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei”, sendo que, de acordo com o nº 1 do artigo 6º, do mesmo diploma: “a obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário”.

E, nos termos do artigo 64º, nº 1, alínea a), ainda desse diploma, as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório.

Ora, o tribunal recorrido considerou que “em face das excepções peremptórias deduzidas pela ré KK, S.A., e na eventualidade da sua procedência, tem a Demandante AA, S.A., nos termos do art. 17.º, da Lei de Acidentes de Trabalho, legitimidade para demandar o terceiro causador do acidente, deixando de ter aplicabilidade o disposto no art. 64.º, n.º1, al. a), do DL 291/2007, de 21 de Agosto, em face da prova de que dependerá produzir acerca da (in)existência de seguro válido que a demandada KK S.A. invocou” e decidiu que a mesma demandante articulou factualidade que sustentam um interesse atendível em chamar a intervir o arguido, enquanto litisconsorte voluntário, sujeito passivo da relação material controvertida.

Já quanto à sociedade “DD, Lda.”, explicitou que “enquanto entidade empregadora, a mesma responde nos termos definidos pelos artigos 2.º a 7.º, da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, ou seja, pelos danos ocorridos no âmbito dos acidentes de trabalho.

Nos termos do art. 79.º do mesmo diploma, o empregador é obrigado a transferir a responsabilidade de tais acidentes, através de seguro obrigatório. Como resulta dos autos, os danos emergentes de acidente de trabalho encontram-se reparados, cumprindo apenas ressarcir aqueles que não estão previstos pelo regime de reparação de acidentes de trabalho.

Em face do exposto, a sociedade DD, lda. pretendendo ser demandada na qualidade de entidade empregadora e não sendo a mesma interveniente no âmbito do acidente em si de viação e já havendo sido determinada a responsabilidade pela relação laboral em que interveio, nada pode ser assacada.

O mesmo se refira em relação ao proprietário relativamente ao qual não se descortina nenhuma fonte de obrigação: a discussão centra-se no manuseamento do tractor e não no tractor enquanto objecto em si.”

No seu requerimento de intervenção principal provocada, a demandante “AA, S.A.”, aduz que a responsabilidade de CC emerge da circunstância de ser proprietário do trator agrícola e reboque, que era tripulado pelo arguido com o seu conhecimento e consentimento, chamando à colação o estabelecido no artigo 503º, nº 1, do Código Civil.

Já quanto à sociedade, alicerça essa responsabilidade civil no facto de o arguido exercer as funções de operador de máquinas por conta e sob a responsabilidade daquela, verificando-se uma relação de comitente/comissário e fazendo apelo às normas dos artigos 500º, nº 1, 497º e 499º, do Código Civil.

Vejamos.

Como resulta claramente do retro enunciado, a viúva e filhos da vítima deduziram pedido de indemnização civil contra, entre outros que aqui não estão em causa, a sociedade “DD, Lda.” e CC, tendo o pedido sido admitido nos seus precisos termos, sem que mácula alguma tivesse sido encontrada pelo tribunal a quo no que tange à legitimidade passiva destes.

Mas, tendo a “AA, S.A.” requerido a intervenção principal provocada de CC e da sociedade exatamente nos mesmos termos de facto e de direito, viu a sua pretensão indeferida, o que dificilmente se compreende.

Por outro lado, o fundamento avançado pelo tribunal recorrido quanto à sociedade “DD, Ldª”, de que “pretendendo ser demandada na qualidade de entidade empregadora e não sendo a mesma interveniente no âmbito do acidente em si de viação e já havendo sido determinada a responsabilidade pela relação laboral em que interveio, nada pode ser assacada”, não pode ter acolhimento.

Com efeito, na acção especial emergente de acidente de trabalho foi essa entidade empregadora absolvida dos pedidos contra si formulados, mas porque não foi possível apurar a existência do nexo de causalidade adequada entre a violação de regras de segurança (que na respectiva sentença se qualificou de “claríssima”) e o acidente que veio a ocorrer.

Mas, uma perspectiva é a da sua responsabilidade nessa qualidade e nesses termos e outra a da sua responsabilidade por factos ilícitos ou pelo risco a apreciar de acordo com o estabelecido no artigo 483º e segs. do Código Civil e mormente por referência aos factos e às normas deste que a respeito a “AA, S.A.” chama à colação, sendo certo, até, que é aceite que um acidente pode, simultaneamente, ter natureza de acidente de trabalho e acidente de viação, não sendo cumuláveis as indemnizações, enquanto referentes ao mesmo dano concreto, mas podendo completar-se – por todos, vd. Acs. do STJ de 16/06/2010, Proc. nº 142/06.9GTAVR.P1.S1 e 11/07/2019, Proc. nº 1456/15.2T8FNC.L1.S1; Ac. R. de Guimarães de 12/01/2017, Proc. nº 50/12.4TBPTL.G1, disponíveis em www.dgsi.pt.

No que concerne ao proprietário do trator (e reboque), a sua responsabilidade resulta (na tese da impetrante, que sustenta com os factos que articula e com o direito que invoca) de ter a direcção efectiva do veículo e o utilizar no seu interesse próprio, operando-o o arguido em proveito daquele.

Termos em que, por se verificar o circunstancialismo previsto nos artigos 311º, 316º, nº 2 e 39º, do Código de Processo Civil, cumpre conceder provimento ao recurso, julgar admissível o incidente de intervenção principal provocada passiva deduzido pela “AA, S.A.” e admitir a intervenção nos autos de CC e da sociedade “DD, Lda.”

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto pela demandante “AA S.A.” e, em consequência, julgam admissível o incidente de intervenção principal provocada passiva deduzido e admitem a intervenção nos autos de CC e da sociedade “DD, Lda.” como associados da demandada “KK S.A”.

Sem tributação.

Évora, 18 de Abril de 2023

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(Nuno Garcia)

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(António Condesso)