Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1271/15.3T8SLV.E1
Relator: CONCEIÇÃO FERREIRA
Descritores: EXECUÇÃO FISCAL
HABITAÇÃO PRINCIPAL DO EXECUTADO
SUSTAÇÃO DA EXECUÇÃO
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A operacionalidade do regime previsto no artigo 794.º do CPC tem como pressuposto que o exequente possa reclamar o seu crédito na execução em que a penhora do bem ocorreu em primeiro lugar e que a venda desse bem não esteja proibida, de modo a obter a satisfação do seu crédito pelo produto da venda.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1271/15.3T8SLV.E1 (2ª Secção Cível)




ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


Nos autos de execução que é exequente Caixa Geral de Depósitos, S. A. e executado (…), que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro (Juízo de Execução de Silves – J1, na qual foi penhorado, em 18/05/2015, um bem imóvel (fração autónoma descrita na CRP de Portimão sob o n.º …) que tem sido destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor, foi em 04/03/2018, pelo Agente de Execução, declarada a extinção da execução nos termos do nº 4 do artigo 794º e da alínea e) do nº 1 do artigo 849º, ambos do CPC., sem prejuízo da possibilidade de ser renovada a instância nos termos do nº 5 do 850º do mesmo Código, em virtude de sobre o bem penhorado incidirem penhoras anteriores da Fazenda Nacional, no âmbito dos processos de execução fiscal n.º 1090200701001426 (penhora registada em 10/07/2009) e n.º 1112200901076604 (penhora registada em 15/03/2013).
Por requerimento de 21/05/2020 a exequente que também detém hipoteca sobre o aludido imóvel penhorado, registada em 09/01/2004, veio solicitar ao tribunal a renovação da instância executiva nos termos do n.º 5 do artº 850º do CPC, ex vi do artº 794º, n.º 4, do mesmo Código atendendo a que os processos executivos fiscais não avançaram após o registo das respetivas penhoras, encontrando-se a Autoridade Tributária impedida de prosseguir com a venda do imóvel por força do n.º 2 do artº 244º do CPPT, como lhe deu conta (v. doc. junto com o requerimento) de modo que a venda nesses processos nunca será agendada/concretizada, vendo-se a ora exequente impedida de ver o seu crédito ressarcido.
Por despacho de 24/06/2020 foi indeferida a pretensão da exequente com vista ao prosseguimento da execução.
+
A exequente, por não se conformar com esta decisão veio dela interpor recurso tendo apresentado alegações e formulado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
a- A interpretação do artigo 794º do CPC, deve ter em conta o estado em que se encontra o processo de execução a favor do qual se encontra registada a penhora prévia sobre o imóvel penhorado sob pena de ficarem estagnadas duas execuções, posto que, em nenhuma delas, se pode avançar com a venda do imóvel.
b- Quando verificados os pressupostos que determinam a aplicação do nº 2 do artigo 244º do CPPT, ficando impedida a venda de imóvel penhorado pela ATA que consubstancia casa de morada de família, a execução fiscal é uma execução definitivamente inviabilizada, porque, ab initio, impedida de atingir a sua finalidade última, a promoção da venda do imóvel penhorado.
c- Veja-se o entendimento jurisprudencial do Tribunal da Relação de Lisboa mais recente, e que tem vindo a decidir que: «O disposto no n.º 1 do artigo 794º do Código de Processo Civil deve ser lido como referindo a pendência de execuções efetivas, com potencialidade de atingirem o seu fim último de materialização coerciva de direitos, incidentes sobre os mesmos bens, o que afasta do seu âmbito as execuções definitivamente inviabilizadas antes de atingirem a sua finalidade última ao abrigo do estabelecido no n.º 2 do artigo 244.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário»
e
“Sustada a execução comum por existência de penhora registada anteriormente em sede de execução fiscal e encontrando-se esta última suspensa (art. 244/2 CPPT), nada impede o prosseguimento daquela (execução comum), com vista à venda do bem imóvel, podendo a Fazenda Nacional reclamar nesta (execução comum) o seu crédito, que será objeto de verificação e graduação de créditos, com vista ao ressarcimento do crédito do credor (s) exequente, afastando-se a aplicação do art. 794/1 CPC.”
e
“I - Pelo facto de se encontrar registada penhora sobre imóvel inscrita a favor da Autoridade Tributária, com registo anterior à efetuada numa execução comum, não obsta ao prosseguimento desta execução com a venda desse bem, quando naquela execução tal venda não possa ocorrer, por força do disposto no art. 244º, nº 2 do CPPT, por o imóvel constituir a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar.
II – O art. 244º, nº 2, do CPPT, apenas proíbe a venda do imóvel afeto à habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar, desde que essa venda ocorra no âmbito de uma execução fiscal.
III – Não podendo a penhora ser levantada no âmbito da execução fiscal, a não ser que a dívida seja paga ou anulada, e nem podendo prosseguir a impulso dos credores reclamantes, não tem aplicação na execução civil, o estatuído no art. 794º, nº 1, do CPCivil” – Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/07/2019 (processo 985/15.2T(AGH-A.L1-6), de 05/21/2020 (processo 19356/18.2T8SNT-B.L1-8), de 06/04/2020 (13361/19.9T8SNT-A.L1-2) – em anexo ao presente recurso.
d- Carece de sentido, desde logo por com respeito com o princípio do aproveitamento dos atos processuais, sustar uma penhora/execução em curso em virtude da existência de uma penhora prévia em processo impedido, à partida, de promover a venda de casa de morada de família, com o entendimento que nada impede que o credor, que já deu início a um processo de execução comum, elaborando o respetivo requerimento inicial (executivo) com os inerentes custos, vá, ainda, reclamar créditos e impulsionar esse processo de execução criado por terceiros.
e- A sentença do douto tribunal a quo, salvo o devido respeito, viola o princípio do aproveitamento dos atos processuais e o entendimento jurisprudencial do Tribunal da Relação de Lisboa mais recente – Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/07/2019 (processo 985/15.2T(AGH-A.L1-6), de 05/21/2020 (processo 19356/18.2T8SNT-B.L1-8), de 06/04/2020 (13361/19.9T8SNT-A.L1-2) – em anexo ao presente recurso.
f- Motivo pelo qual deverá a decisão do douto tribunal a quo, da qual se recorre, ser revogada e substituída por decisão que ordene o prosseguimento dos autos de execução com as necessárias diligências tendentes à venda do imóvel penhorado, notificando-se a Autoridade Tributária para reclamar os seus créditos.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar e decidir

O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso.

Tendo por alicerce as conclusões, a única questão que importa apreciar é a de saber se não obstante existir penhora anterior, em sede de execução fiscal, sobre o mesmo bem penhorado, também, no âmbito da presente execução, que se encontrava extinta nos termos do disposto n o artº 794º do CPC, deverá ser deferida a pretensão do exequente com vista à sua renovação e consequente prosseguimento da execução por o processo executivo fiscal se encontrar paralisado.

A matéria a ter em consideração para apreciação da questão é a que se mostra referenciada no relatório, supra.

Conhecendo da questão
Apresentando a exequente requerimento com vista à renovação da execução e tramitação regular com intuito de venda da fração penhorada e por essa via ver ressarcido o seu crédito perante o executado, o mesmo veio a ser indeferido com o fundamento de que “o artigo 794.º do Código de Processo Civil não foi alterado, nomeadamente, pela Lei n.º 13/2016 de 23 de Maio – o que significa que o legislador não quis mandar prosseguir a venda executiva nos tribunais comuns com pendência de registo de penhora anterior. Aquela lei apenas exclui a possibilidade de fazer a venda executiva fiscal da casa de morada de família para efeitos da cobrança de créditos fiscais – o que significa que não está impedida a sua venda, no processo de execução fiscal, para efeitos do pagamento de outras dívidas, mormente hipotecárias. Para tanto, cabe aos credores reclamantes – que são parte na execução fiscal – requererem aí a prossecução da venda do imóvel, com vista à satisfação dos seus créditos”.
Dispõe o artigo 794.º, n.º 1, do CPC sob epígrafe de “Pluralidade de execução sobre os mesmos bens” que “Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga”, consignando-se no seu n.º 4 que “A sustação integral determina a extinção da execução, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artº 850º”.
Por sua vez, dispõe o n.º 5 do art.º 850º do CPC, epigrafado de “Renovação da execução extinta” que “O exequente pode ainda requerer a renovação da execução extinta nos termos das alíneas c), d) e e) do n.º 1 do artigo anterior, quando indique os concretos bens a penhorar, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no número anterior.” Dispondo o artº 849º, n.º 1, do CPC epigrafado de “Extinção da execução” que:
A Execução extingue-se nas seguintes situações:
a) Logo que se efetue o depósito da quantia liquidada, nos termos do artigo 847.º;
b) Depois de efetuada a liquidação e os pagamentos, pelo agente de execução, nos termos do Regulamento das Custas Processuais, tanto no caso do artigo anterior como quando se mostre satisfeita pelo pagamento coercivo a obrigação exequenda;
c) Nos casos referidos no n.º 3 do artigo 748.º, no n.º 2 do artigo 750.º, no n.º 6 do artigo 799.º e no n.º 4 do artigo 855.º, por inutilidade superveniente da lide;
d) No caso referido na alínea b) do n.º 4 do artigo 779.º;
e) No caso referido no n.º 4 do artigo 794.º;
f) Quando ocorra outra causa de extinção da execução.”
No artigo 244º, n.º 2, do CPPT estipula-se que “Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim.
Refere-se no n.º 1 do artº 822º do CC, epigrafado de “Preferência resultante da penhora”, que “Salvo nos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior”.
A questão em apreço tem vindo a ser debatida e apreciada pela jurisprudência tendo-se formado duas correntes de opinião a respeito da articulação entre o que dispõe o artº 794º, n.º 1, do CPC e o consignado no artº 244º, n.º 2, do CPPT.
Numa das correntes, a defendida pelo Julgador “a quo”, ao que nos é dado perceber, e que temos por minoritária, o disposto no artº 244º, n.º 2, do CPPT só impossibilita a venda legal do imóvel penhorado em sede de processo de execução fiscal, quando a autoridade tributária seja o único interveniente no processo fiscal, pelo que existindo reclamação de créditos, no âmbito desse processo, nada obstará a que por impulso de qualquer credor comum se proceda à realização da venda. Ou seja, faz-se uma interpretação restritiva do preceituado no referido artigo e assim, não há impossibilidade de no processo de execução fiscal se proceder aos normais trâmites da venda de um bem imóvel destinado a habitação própria e permanente do devedor, executado – (v. Acórdãos do TRC de 24/10/2017 no processo 249/13.6TBSPS-A.C1 e de 25/05/2020 no processo 367/16.9T8CVL-C.C1, disponíveis em www.dgsi.pt).
Na outra corrente, que temos por maioritária, e a que aderimos, defende--se que nem a Autoridade Tributária, nem qualquer credor reclamante pode prosseguir a execução sustada por força do disposto no n.º 2 do artº 244º do CPPT, vigorando no âmbito do processo de execução fiscal um impedimento à venda judicial, independentemente de ser a Autoridade Tributária ou qualquer credor reclamante a impulsionar o processo. Impondo-se, por isso, ao credor reclamante que requeira o prosseguimento da execução comum (que havia sido sustada por existir penhora anterior registada no âmbito da execução fiscal), com vista à realização da venda em sede de execução comum, onde não vigora o aludido impedimento, podendo a Fazenda Nacional reclamar aí os créditos fiscais – (v. entre outros, Ac. do TRL de 02/07/2019 no processo 985/15.2T8AGH-A.L1-6; Ac. do TRL de 06/04/2020 no processo 13361/19.9T8SNT-A.L1-2; ac. do TRL de 21/05/2020 no processo 19356/18.2T8SNT-B.L1-8; Ac. TRC de 18/12/2019 no processo 205003/.1YIPRT.1.C1; Ac. do TRG de 17/01/2019 no processo 956/17.4T8GMR-C.G1; Ac. do TRG de 23/05/2019 no processo 2132/17.7T8UCT-B.G1; Ac. do TRE de 12/07/2018 o processo 893/12.9TBPTM.E1; Ac. do TRE de 30/05/2019 no processo 402/18.6 T8MMN.E1; Ac. do TRE de 23/04/2020 no processo 91/14.7TBBNV-B.E1; ac. do TRE de 24/09/2020 no processo 3165/19.4T8STB-B.E1; todos disponíveis em www.dgsi.pt; Ac. do STJ de 23/01/2020 no processo 1303/17.0T8AGD-B.P1.S1 disponível in https://jurisprudencia.csm.org.pt/).
Como se salienta no acórdão do STJ de 23/01/2020 “ratio legis da norma do artigo 794º, nº 1, do Código de Processo Civil, tendo subjacente razões de certeza jurídica e de proteção tanto do devedor executado como dos credores exequentes, postula que ambas as execuções se encontrem numa relação de dinâmica processual ou, pelo menos, a possibilidade do dinamismo da execução em que primeiramente ocorreu a penhora sobre o mesmo bem e em que o credor deve fazer a reclamação do seu crédito. Não está nessa situação de dinamismo processual a execução fiscal em que a Autoridade Tributária está impedida, nos termos do disposto no artigo 244º, nº 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, de promover a venda do imóvel penhorado por este constituir a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar. Tendo sido suspensa, nos termos do disposto no artigo 794º, nº 1, do Código de Processo Civil, a execução comum em que foi penhorado imóvel do executado destinado exclusivamente a sua habitação própria e permanente e do seu agregado familiar e sobre o qual incide penhora com registo anterior realizada em execução fiscal e encontrando-se esta execução parada por a Autoridade Tributária não poder promover a venda deste imóvel, em virtude do impedimento legal constante do artigo 244º, nº 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, impõe-se determinar o levantamento da sustação da execução comum, que deve prosseguir os seus termos, com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos na execução comum”.
Com efeito, parece resultar claro que atento o teor taxativo do n.º 2 do artº 244º do CPC no que respeita à não realização da venda “o credor reclamante não pode prosseguir a execução fiscal sustada, nomeadamente para requerer o prosseguimento da execução e da venda, por estar legalmente impedida no âmbito do processo tributário, e o CPPT não prevê o prosseguimento da execução fiscal por impulso dos credores reclamantes, faltando uma norma equivalente ao artº 850º, n.º 2, do CPC. Assim, estando suspensa a execução fiscal, não pode funcionar o regime previsto no artº 974º, n.º 1, que tem como pressuposto a ausência de qualquer impedimento legal ao prosseguimento normal da execução prioritária” (v. Abrantes Geraldes; Paulo Pimenta, Luís Pires de Sousa in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2020, 209).
A operacionalidade do regime previsto no art.º 794.º do CPC tem como pressuposto que o exequente possa reclamar o seu crédito na execução em que a penhora do bem ocorreu em primeiro lugar e que a venda desse bem não esteja proibida, de modo a obter a satisfação do seu crédito pelo produto da venda, o que não ocorre no caso em apreço.
O prosseguimento da execução comum, embora a penhora nela não seja prioritária (sendo prioritária a penhora efetuada e registada no âmbito da execução fiscal), em nada prejudica os direitos da Fazenda Nacional uma vez que pode sempre reclamar o seu crédito fiscal na execução comum (para o que deve ser citada para esse efeito ao abrigo do preceituado no art.º 786º do CPC) o qual será graduado no lugar que lhe competir, gozando da preferência resultante da penhora prioritária em conformidade com o que dispõe o artº 822º do CC.
Nestes termos, impõe-se a procedência da apelação, com a consequente revogação do despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que defira a renovação da ação executiva de modo a possibilitar a realização das necessárias diligências com vista à venda do imóvel penhorado, notificando-se a Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos.

DECISÂO
Em face do exposto, julga-se procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento da execução, com vista à venda do bem penhorado, com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos, nos termos referidos.
Custas de parte, pelo apelado.
Évora, 05 de novembro de 2020
Maria da Conceição Ferreira
Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes