Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
842/11.1TBVNO-B.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
REQUISITOS
Data do Acordão: 11/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O dever de segredo deve ceder, por prevalência do interesse do acesso ao direito e da descoberta da verdade material, com vista à realização da justiça, desde que se apure que a pretendida informação é instrumentalmente determinante, necessária e imprescindível para demonstrar a factualidade controvertida.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Os presentes autos consistem no incidente para quebra do sigilo bancário suscitado no âmbito da oposição, mediante embargos de executado, que (…) e (…) movem a (…), atenta a execução que este lhes instaurou para pagamento da quantia de € 243.528,77 com base no documento particular de confissão de dívida apresentado como título executivo.

Em sede de oposição, foi alegado, designadamente, o seguinte:
«o falecido (…) recebeu, a título de empréstimo, sem forma legal, em 10 de Março de 1998, de (…) ora Exequente a quantia de 35.000.000$00 (trinta e cinco milhões de escudos), correspondente a € 175.000,00 euros, através do cheque n.º (…) do Banco (…), pertencente à conta n.º (…), conforme cópia do cheque emitido pelo Exequente, que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
A referida quantia serviu para (…) poder emprestar dinheiro ao seu filho, (…), ora Oponente, para a aquisição, por parte deste, de uma quota na sociedade comercial "(…), Lda.".
Negócio este, da aquisição da quota, por parte do Oponente (…), que se concretizou em 14 de Maio de 1998.
Ora, o valor recebido a título de empréstimo foi integralmente pago ao Exequente.
O Exequente já recebeu, integralmente, todos os valores que emprestou a (…).
Em 10 de Março de 1999, o Exequente recebeu a quantia de 5.000.000$00, correspondente a € 25.000,00 euros.
Em 20 de Março de 2000, o Exequente recebeu a quantia de 20.000.000$00, correspondente a € 100.000,00 euros.
O Exequente, por si, ou através da sua mulher (…), recebeu, ainda, em numerário, pelo menos, as seguintes quantias nas datas indicadas:
a) Em 26/04/2005, €10.000,00 euros;
b) Em 07/02/2006, €8.000,00 euros;
c) Em 26/02/2006, €10.000,00;
d) Em 12/06/2006, €2.500,0;
e) Em10/10/2007, €5.000,00;
f) Em 18/12/2006, €5.000,00;
g) Em 30/04/2007, € 2.500,00 euros;
h) Em 08/06/2007, € 5.000,00 euros;
i) Em 03/08/2007, € 2.500,00 euros;
j) Em 30/08/2007, €5.000,00;
k) Em 11/08/2006, €2.000,00;
I) Em 29/01/2008, €5.000,00;
m) Em 23/10/2008, €8.811,89;
n) Em 28/05/2009, €10.000,00;
o) Em 04/07/2009, € 20.000,00 euros;
p) Em 23/12/2009, €10.000,00 euros;
q) Em 05/05/2010, €10.000,00 euros;
r) Em 24/12/2010, €15.000,00 euros;
s) Em 05/02/2011, € 5.000,00 euros.
O Exequente recebeu, ainda, em 20/11/2007, a quantia de € 5.000,00 euros por transferência bancária efectuada na sua conta bancária, conforme documento que se junta e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.»

Perante a impugnação de tal matéria factual, foi incluído na base instrutória o seguinte:
5.º - Os executados solicitaram ao exequente a cedência da quantia referida em B) supra?
10.º - (…) recebeu a título de empréstimo, do exequente, em 10.03.1998, a quantia de € 175.000,00, através de cheque nº (…), quantia essa que serviu para aquele emprestar esse dinheiro ao executado (…), seu filho, para a aquisição, por parte deste último, de uma quota na sociedade comercial "(…), Lda"?
11.º - Valor esse que foi ressarcido ao exequente mediante pagamentos parcelares?

Por despacho de 12/10/2015, o Tribunal de 1.ª instância aludiu ao seguinte:
- a alegada forma de pagamentos, em numerário;
- o prazo de duração desses pagamentos, entre 10 de Março de 1999 e 5 de Fevereiro de 2011;
- o desconhecimentos, por parte dos opoentes, das contas bancárias onde o dinheiro foi depositado, se é que foi depositado.

O exequente negou o seu consentimento à consulta das contas bancárias.

Notificado o Banco de Portugal para indicar as instituições bancárias onde o exequente tem contas bancárias, apresentou-se a «deduzir escusa legítima na prestação da informação solicitada, ao abrigo das disposições conjugadas do artigo 135.º do Código de Processo Penal e da alínea c) do n.º 3 do artigo 417.º do Código de Processo Civil, salientando que se compromete a prestar, de imediato, a informação solicitada assim que for notificado do levantamento jurisdicional do dever de segredo nos termos do incidente previsto no citado artigo 135.º do Código de Processo Penal.» Invoca, para tanto, o disposto nos arts. 80.º e 81.º-A do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.


II – Fundamentos

A – Dados a considerar
Aqueles que resultam do relato que antecede

B – O Direito

Em sede de instrução da causa, o art. 417.º do CPC consagra o dever de cooperação para a descoberta da verdade, dever esse que recai sobre todas as pessoas, sejam ou não partes na causa. Todas têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis, acarretando a inversão do ónus da prova se o recusante for parte, nos moldes estatuídos no n.º 2 da referida disposição legal.

Nos termos do disposto na al. c) do n.º 3 do art.º 417.º do CPC, a recusa é legítima se a obediência importar violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4 que, por sua vez, estabelece que deduzida a escusa com tal fundamento, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado. O que nos conduz para o regime inserto no art.º 135.º do CPP, cujo n.º 2 estabelece que cabe, em primeira linha, aferir da (i)legitimidade da escusa; mostrando-se justificada a escusa, atento o disposto no n.º 3 do referido preceito legal, cumpre suscitar o incidente perante o tribunal superior, que pode decidir pela quebra do segredo, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade dos elementos e informações para a descoberta da verdade.

Efetivamente, «o dever de cooperação para a descoberta da verdade tem como limite (para além do respeito pelos direitos fundamentais enquanto limite absoluto imposto constitucionalmente), o acatamento do dever de sigilo, ou seja, o juiz não pode, pelo menos em absoluto, ao abrigo do dever de cooperação, provocar, por via da requisição de alguma informação, a violação pela entidade requisitada do segredo profissional a que a mesma se encontre legalmente vinculada.»[1] Importa, por via do dever do sigilo, proteger os direitos pessoais, como o bom nome e reputação e a reserva da vida privada, bem como o interesse da proteção das relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes.

No caso em apreço, está em causa o dever de segredo do Banco de Portugal, regulado nos arts. 80.º, 81.º-A n.º 4, a contrario sensu, 84.º do RGICSF, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro. Ora, nos termos do disposto no art. 80.º n.º 2 do referido diploma, «Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.»

Na medida em que a intimação dirigida pelo Tribunal ao Banco de Portugal não seguiu instruída com autorização, para o efeito visado, por parte do exequente titular das contas, cabe concluir ser legítima a escusa deduzida pelo Banco de Portugal. O que, por via do disposto no art. 417.º, n.ºs 3, al. c) e 4, do CPC, implica na apreciação da questão atinente à quebra do dever do sigilo invocado em sede do competente incidente, de que ora se cuida.


Cumpre, assim, apreciar se a salvaguarda do dever de segredo imposto por lei ao Banco de Portugal, nos termos do disposto nos arts. 80.º e 81.º-A do DL n.º 298/92, deve ou não ceder face ao outro interesse conflituante, o interesse da efetiva realização dos fins da atividade judicial, de que é expressão o regime inserto no já citado art. 417.º, n.º 1, do CPC.

Ora, o dever de sigilo imposto ao Banco de Portugal, designadamente relativo aos elementos constantes das bases de dados de contas bancárias que organiza e gere (cfr. art. 81.º-A, n.º 1, do RGICSF), tem em vista a proteção dos interesses dos clientes das instituições e sociedades que são entidades participantes dessas mesmas bases de dados (sigilo das relações banco/cliente) e, bem assim, a proteção das próprias entidades participantes (sigilo dos factos respeitantes à instituição).

Cabe, no entanto, ao Estado o dever de garantir a realização dos direitos dos cidadãos, assegurando-lhes o acesso ao direito e a tutela jurisdicional efetiva, em observância do preceituado nos arts. 20.º da CRP e 2.º do CPC. Logo, o direito do cliente ao sigilo não é um direito absoluto, podendo ceder perante aqueloutros direitos. Importa, pois, ponderar a natureza civil dos interesses em causa e a concreta proporcionalidade entre a restrição do direito à reserva na intimidade da vida privada (art. 26.º da CRP) que a dispensa do sigilo irá acarretar, por um lado, e, por outro lado, os concretos interesses da contraparte[2], sendo de dispensar a confidencialidade e decidir pela inexistência de sigilo, no caso em concreto, se forem superiores os valores da justiça, com a necessária ponderação de interesses, limitando a quebra do sigilo apenas e tão só ao estritamente necessário.


A jurisprudência que vem sendo afirmada nesta matéria assenta nos seguintes vetores:
- o interesse da «boa administração da justiça» prevalece sobre o interesse da «proteção da posição do consumidor de serviços financeiros» ou mesmo da manutenção do clima de confiança na banca;[3]
- quando a informação solicitada ao banco é necessária e adequada para que o interesse público da realização da justiça se sobreponha claramente ao interesse privado, verificam-se os requisitos legais para a quebra do sigilo bancário;[4]
- justifica-se a medida excecional da quebra do segredo bancário, por prevalência do interesse de acesso ao direito e da descoberta da verdade material, quando a prova dos factos, sem tal quebra, possa ficar seriamente comprometida e com isso, eventualmente, a justa decisão da causa;[5]
- existindo a necessidade de verificar os movimentos bancários realizados pelas partes na gestão da empresa a partilhar entre os cônjuges – como elemento de prova idóneo a desvendar essa situação – deve levantar-se o sigilo bancário a que a instituição financeira, à partida, estaria obrigada (art. 417.º, n.º 4, do CPC);[6]
- a prevalência do interesse preponderante deve ser ponderada em concreto, em função dos contornos do litígio; na ponderação dos interesses em confronto, há que averiguar se a informação pretendida é necessária – tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas da prova, bem como o ónus e regras de prova – ou imprescindível – no sentido de não poder ser obtida de outro modo;[7]
- esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, até porque, pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita.[8]

No caso em apreço, pretende aceder-se às contas bancárias do embargado de modo a apurar se, entre 10 de Março de 1999 e 5 de Fevereiro de 2011, este recebeu quantias parcelares, em numerário, que perfazem o valor global de € 266.311,89 (cfr. a matéria factual invocada pelos embargantes), em pagamento da quantia cedida por empréstimo, desconhecendo-se, tal como é exarado em despacho constante dos autos, se as quantias alegadamente recebidas foram efetivamente depositadas em qualquer instituição bancária. Neste concreto enquadramento, afigura-se que a informação bancária pretendida não é instrumentalmente determinante para apurar se teve lugar a restituição da quantia mutuada. Na verdade, ainda que viesse a constatar-se existirem depósitos bancários em contas da titularidade do embargado, depósitos esses realizados por outrem que não os embargantes ou o alegado mutuário (…), sempre estaria por demonstrar que os depósitos bancários tinham por objeto dinheiro recebido em pagamento da quantia mutuada.

Por conseguinte, como a pretendida informação bancária não se apresenta determinante, necessária e imprescindível para demonstrar a factualidade que permanece controvertida, inexiste fundamento bastante para determinar ao Banco de Portugal a quebra do dever de segredo a que está sujeito.

As custas recaem sobre os embargantes – art. 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC.

Concluindo:
- o dever de segredo deve ceder, por prevalência do interesse do acesso ao direito e da descoberta da verdade material, com vista à realização da justiça, desde que se apure que a pretendida informação é instrumentalmente determinante, necessária e imprescindível para demonstrar a factualidade controvertida;
- o que não se verifica se está em causa o apuramento de entregas de quantias monetárias em numerário, de forma fracionada ao longo de 12 anos, desconhecendo-se se foram objeto de depósitos bancários em contas do embargado.


III – DECISÃO

Pelo exposto, julgando-se improcedente o presente incidente, indefere-se a pretensão do levantamento do dever de segredo que impende sobre o Banco de Portugal.

Custas pelos embargantes.

Évora, 9 de Novembro de 2017
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos

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[1] Cfr. Ac. TRL de 03/07/2012 (Graça Amaral).
[2] Vasco Soares da Veiga, Direito Bancário, p. 236.
[3] Ac. TRC de 06/07/1994.
[4] Ac. TRL de 22/10/1996.
[5] Ac. TRE de 15/01/2015.
[6] Ac. TRE de 29/01/2015.
[7] Ac. TRC de 28/04/2015.
[8] Ac. do STJ para Fixação de Jurisprudência n.º 2/2008, de 13/02/2008.