Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2168/09.1TBSTR-I.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
MULTA
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 06/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Viola o princípio da cooperação processual (sendo, por isso, passível de incorrer em multa), a parte que, apesar de responder à solicitação do Tribunal, o faz de forma manifestamente desajustada, fugindo à questão, apenas para que não se diga que não respondeu.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2168/09.1TBSTR-I.E1-2ª (2015)
Apelação-1ª
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Nos presentes autos de execução comum, que correm actualmente termos na Secção de Execução do Entroncamento da Instância Central da Comarca de Santarém (depois de iniciados no Tribunal Judicial de Santarém), instaurados por «Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL» contra (…) e mulher, (…), vêm os executados interpor recurso de apelação de despacho, proferido em 20/2/2012, que condenou cada um dos executados em multa de 3 UCs, por violação do princípio da cooperação processual.

Esse despacho, quanto ao referido tópico, apresenta o seguinte teor:
«Requerimento datado de 1 de Fevereiro de 2012, referência 1005257: efectivamente os executados não deram resposta à notificação relativa ao despacho proferido em 25 de Janeiro de 2012. Nem justificaram tal omissão.
Assim, pelo silêncio dos executados condeno cada um deles, que violaram o princípio da cooperação processual, na multa equivalente a 3 UC.»

O recurso em apreço começou por não ser admitido, o que motivou a apresentação de reclamação pelos executados, a qual acabou por ser deferida, através de decisão deste Tribunal da Relação, proferida a 8/5/2014. Na sequência do referido processo de reclamação, e depois de vicissitudes várias (respeitantes, por um lado, e inicialmente, à falta de elementos necessários à apreciação do respectivo recurso e, por outro lado, a equívoco posteriormente constatado na correlação entre aqueles autos de reclamação e o processo de recurso de apelação àqueles correspondente, entretanto tramitado autonomamente nesta Relação e objecto de subsequente anulação desse indevido processado autónomo), mostram-se finalmente disponíveis todos os elementos e verificadas todas as condições imprescindíveis à prolação da decisão do referido recurso, a ter lugar nos presentes autos de recurso de apelação em separado, após a sanação daquele equívoco e a consumação da adequada apensação.

Dos elementos constantes dos presentes autos de apelação em separado e dos autos apensos de reclamação extrai-se o seguinte (com a nota de que a menção às referências das peças processuais se baseia nos elementos documentais fornecidos pelo tribunal a quo, já que, como é sabido, os juízes dos tribunais de recurso não têm acesso ao CITIUS):

– por requerimento da exequente de 17/1/2012 (referência nº 9103826), foi dado conhecimento ao tribunal de 1ª instância de que prédio penhorado aos executados nos autos de execução se encontrava ocupado por terceiros e pedida a notificação dos executados para esclarecerem quem estaria a proceder a tal ocupação e a que título;

– por despacho judicial de 25/1/2012 (referência nº 3919503), foi concedido aos executados um prazo 10 dias para se pronunciarem sobre o anterior requerimento do exequente;

– por requerimento dos executados de 30/1/2012 (referência nº 9219719), foi por eles dito o que se passa a transcrever:

«(…) Em virtude do requerimento apresentado pela Exequente, informar V. Exa. que não assiste razão à Exequente, pois os Executados apresentaram uma garantia através da hipoteca de um imóvel, com valor muito superior ao valor da quantia exequenda, acrescida de juros, custas, encargos, etc.
Acresce ainda que, como é do conhecimento de V. Exa., os Exequentes apresentaram a sua Oposição à Execução, que corre por apenso, sendo que ainda não foi decidida, nem foi extinta.
Assim, pelo que vem sendo exposto, deve ser indeferido o requerido pela Exequente.
O que aqui se requer, com todas as consequências legais daí resultantes.»

– por requerimento da exequente de 1/2/2012 (referência nº 9246548, identificada pelo tribunal a quo, no despacho recorrido, por “referência nº 1005257”), pronuncia-se esta sobre o anteriormente referido requerimento dos executados, assinalando a omissão injustificada destes em prestarem a informação pretendida sobre a situação ocupacional do imóvel e pedindo a sua condenação em multa condigna, por violação do dever de colaboração e de boa fé processual.

Inconformados com a decisão supra transcrita, que os condenou em multa, dela apelaram os executados, formulando as seguintes conclusões:

«1) Conforme resulta de fls., foi proferido um Despacho pela Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo”, onde concedeu aos Recorrentes o prazo de 10 dias “como requerido pela exequente”;

2) Em resposta ao supra referido Despacho, os Recorrentes/Executados deram entrada via CITIUS, no dia 30/01/2012, com a referência nº 9219719, o requerimento que acima se transcreveu para melhor análise deste Venerando Tribunal;

3) Por Despacho de fls., a Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo” decidiu condenar os Executados em multa equivalente a 3 UC, por violação do princípio da cooperação, em virtude da “não resposta” e do seu “silêncio”;

4) Salvo o devido respeito não podemos concordar com tal decisão;

5) A Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo” deu como facto adquirido que os Executados não apresentaram qualquer “resposta”, quer ao Despacho de fls., quer ao requerido pela Exequente;

6) Consultados os autos, verifica-se, desde logo, que os Executados apresentaram um requerimento, dentro do prazo concedido, em resposta ao requerido pela Exequente, na sequência do Despacho de fls.;

7) Apenas por lapso por parte da Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo”, foi tomada a decisão de condenar os Executados em multa, por não terem apresentado qualquer resposta, e assim terem infringido o Princípio da Cooperação Processual;

8) Pelo “silêncio dos executados” foram condenados em multa equivalente a 3 UC por “violarem o princípio de cooperação processual”;

9) Os Executados não ficaram em silêncio, e efetivamente apresentaram um requerimento em resposta ao Despacho e ao requerido pela Exequente;

10) Deve ser revogado o Despacho de fls.;

11) O que aqui se requer, com todas as consequências legais daí resultantes;

12) Sem conceder em nada do que vem sendo dito, caso se venha a entender que o requerimento de fls. apresentado pelos Executados não deve ser entendido como “resposta” ao Despacho de fls. ou ao requerido pela Exequente, os Executados haviam de ser notificados primeiro dessa desconformidade;

13) E só depois, caso estes não respondessem, então deveriam ser condenados nos termos em que se decidiu no Despacho que ora se recorre;

14) Nunca poderiam os Executados ser condenados por violar o princípio da cooperação processual, em virtude do seu silêncio;

15) Na verdade os Executados não ficaram em silêncio;

16) Silêncio entende-se como ausência de resposta, ou por inação da parte, coisa que não se verifica no caso em apreço;

17) Não houve silêncio por parte dos Executados quanto ao que lhes foi demandado;

18) Os executados “deram resposta à notificação” e não ficaram em “silêncio”;

19) Motivo pelo qual deve o Despacho de fls. ser revogado;

20) O que aqui se requer, com todas as consequências legais daí resultantes;

21) Sem conceder, lendo-se atentamente a decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto suscetível de revelar, informar, e fundamentar, a real e efetiva situação, do verdadeiro motivo da condenação dos Recorrentes;

22) A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 13º, 20º, 202º, nº 2, 204º e 205º da C. R. P.;

23) A decisão recorrida não é de mero expediente, daí ter de ser suficientemente fundamentada;

24) O Tribunal com a decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos dos alegantes, em não fundamentar exaustivamente a sua decisão, e nem sequer aplicar as normas legais aplicáveis ao caso em concreto;

25) A Meritíssima Juiz limitou-se apenas, e tão só, a emitir uma sentença “economicista”, isto é, uma decisão onde apenas de uma forma simples e sintética foram apreciadas algumas das questões sem ter em conta os elementos constantes no processo;

26) Cometeu pois uma nulidade;

27) Deverá ser revogada a decisão recorrida.»


Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações dos executados resulta que a matéria a decidir se resume a apurar, por ordem de precedência lógica, se ocorre nulidade da decisão recorrida, por falta de fundamentação (com referência ao artº 615º, nº 1, al. b), do NCPC, o que se infere do alegado, já que o preceito não foi citado expressamente pelos recorrentes), e, subsidiariamente, se a conduta processual dos executados configura efectivamente a aludida violação do princípio da cooperação processual e se, nessa base, é justificada a aplicada condenação em multa (fixada em 3 UCs).

Cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO:

1. Comecemos por apreciar, até pela sua precedência lógica, a suscitação pelos recorrentes da questão da nulidade da sentença, por falta de fundamentação de direito, com referência ao artº 615º, nº 1, al. b), do NCPC.

Sobre a nulidade por falta de fundamentação, importa ter presente o que já dizia ALBERTO DOS REIS, perante norma de teor idêntico ao actual artº 615º, nº 1, al. b), do NCPC. Afirmava esse autor sobre a referida norma, na vertente da falta da fundamentação de direito, que «o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade» (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 140).

Recorde-se o teor nuclear do despacho recorrido: «(…) os executados não deram resposta à notificação (…) [n]em justificaram tal omissão. Assim, pelo silêncio dos executados condeno cada um deles, que violaram o princípio da cooperação processual, na multa (…)».

Olhando à decisão recorrida, verifica-se que nela se apresenta uma perceptível argumentação jurídica, ainda que sucinta: os executados foram notificados para se pronunciarem sobre determinada questão e não se pronunciaram sobre ela, pelo que violaram o seu dever de cooperação processual – e, como tal, são condenados em multa.

Foi dito o essencial: foi feita uma correlação entre uma actuação processual de não satisfação de pedido de resposta formulado pelo tribunal e um dever processual de cooperação, cuja violação a lei comina com multa (cfr. artº 519º, nos 1 e 2, do anterior CPC, vigente à data do despacho recorrido, com equivalência no artº 417º do NCPC); e daquele incumprimento decorre, necessariamente, a condenação decretada. É certo que não se discorre extensivamente sobre tal incumprimento – mas não deixou de se exprimir a ideia de que, no confronto do teor da solicitação feita pelo tribunal com o teor do requerimento subsequentemente apresentado pelos executados, este requerimento se traduzia em “não-resposta”, “omissão” e “silêncio”. E também não se indica expressamente a norma que consagra o dever processual de cooperação e na qual se funda a condenação em multa – mas é indicado o dever violado, sendo conhecido de qualquer jurista (e também por aquele que patrocina os executados) a fonte legal de tal dever e a consequência da sua violação. Poderia ter-se caracterizado melhor aquela omissão ou ter-se citado a disposição legal que sustenta o indicado dever violado, mas as referências à “omissão” e à “violação do dever de cooperação” são bastantes para não permitir falar aqui de «falta de fundamentação». Ou, dito de outro modo: a fundamentação pode ter pecado por escassa, mas não inexiste de todo. Se assim é, podemos dizer que foi cumprido, de forma suficiente, o dever de fundamentação que se impunha ao tribunal (cfr. artº 158º, nº 1, do anterior CPC, vigente à data do despacho recorrido, com equivalência no artº 154º do NCPC).

Neste ponto, refira-se ainda que não se entende a argumentação dos recorrentes no sentido da ofensa de um vasto elenco de normas constitucionais. A este propósito, convirá dizer que, se com essa alegação se pretendesse invocar um qualquer vício de inconstitucionalidade da decisão recorrida, isso não teria cabimento, porquanto tal vício se reporta apenas a normas – ou seja, não se pode dizer de uma decisão judicial que é inconstitucional.

Afigura-se-nos, portanto, que foi cumprido, de forma suficiente, o dever de fundamentação que se impunha ao tribunal a quo, por força da norma do artº 205º, nº 1, da Constituição, depois precipitada no artº 158º do anterior CPC (e também no artº 154º do NCPC). E, como tal, resta concluir pela improcedência da arguição de nulidade da decisão recorrida, fundada no artº 615º, nº 1, al. b), do NCPC.

Já questão diversa é a parte discordar dos fundamentos sucintamente enunciados (o que os executados não deixaram de fazer) – mas aí a divergência já não se resolve no plano da nulidade da sentença, mas no do eventual erro de julgamento inscrito na decisão recorrida, o que coloca a questão no plano da sua eventual revogação por ilegalidade.

Passemos, então, a apreciar a substância da impugnação ínsita no presente recurso.

2. No plano substantivo, a questão que se coloca resume-se a aferir do acerto da decisão recorrida: houve (ou não) violação do dever de cooperação processual; e era (ou não) devida a aplicada condenação em multa.

Quanto à questão da violação do dever de cooperação processual, afirmam os recorrentes que apresentaram “resposta” ao requerimento da exequente, pelo que nunca poderia o tribunal a quo ter entendido que houve, da parte dos executados apelantes, “não-resposta”, “omissão” e “silêncio”, o que apenas se deverá a lapso daquele tribunal.

É certo que houve apresentação de um requerimento pelos executados (em 30/1/2012), na sequência da notificação do tribunal recorrido para se pronunciarem sobre o requerimento da exequente. Mas não é essa sequência formal (ou a falta dela) que estava em causa no despacho recorrido. Para não ofender a normal inteligência de um qualquer observador de boa-fé acerca da conduta processual dos executados, a única interpretação aceitável do despacho recorrido (e a única que os executados deveriam e poderiam considerar) seria a de entender que a “não-resposta”, “omissão” e “silêncio” a que o tribunal se reportava eram de natureza substantiva. Importa, por isso, verificar se o requerimento apresentado pelos executados, na sequência daquela notificação do tribunal recorrido, continha (ou não) uma “resposta” substantiva ao solicitado.

Ao ditame do tribunal para os executados prestarem esclarecimentos sobre quem ocupava o imóvel penhorado e a que título (na sequência do pedido formulado nesse sentido pela exequente, no seu requerimento de 17/1/2012 supra indicado), apenas uma resposta seria admissível: prestarem os executados os esclarecimentos solicitados sobre essa ocupação (ou justificarem porque não dispunham de informação sobre a mesma). Ora, não é uma “resposta” ao solicitado aquilo que os executados fizeram inscrever no seu requerimento de 30/1/2012: trata-se de um requerimento – como bem se vê do seu teor, supra transcrito – no qual nada dizem sobre a referida ocupação, em que discorrem sobre outras matérias e que terminam com um pedido de indeferimento do requerimento da exequente.

O que estava em causa era um pedido de esclarecimento da exequente que o tribunal já tinha acolhido: nada havia já a indeferir; o que havia era que prestar a informação solicitada. Os executados fizeram-se desentendidos, ignorando o que havia sido determinado pelo tribunal e nada dizendo sobre aquela ocupação do imóvel penhorado. Nisto se traduziu a “não-resposta”, “omissão” ou “silêncio” a que se referia o tribunal a quo no despacho recorrido.

E disto os executados não poderiam deixar de ter plena consciência: não há uma “resposta” substantiva e própria quando a suposta “resposta” não tem qualquer relação lógica com a “pergunta”. Também por isso não está em causa uma qualquer violação do princípio do contraditório (contrariamente ao insinuado, já que não afirmado expressamente, pelos executados nas conclusões 12ª e 13ª das suas alegações de recurso): não havia que fazer qualquer notificação sobre a desconformidade entre a “pergunta” e a “resposta” (e sobre a possibilidade de aplicação de multa por violação do dever de cooperação), quer porque a desconformidade era notória (e, por isso mesmo, manifestamente intencional), quer porque é sabido por qualquer jurista (e também por aquele que patrocina os executados) que uma tal desconformidade se traduz em violação do dever de cooperação, a qual tem como consequência inelutável a aplicação da multa legalmente prevista.

Houve, efectivamente, uma não-satisfação da informação pretendida pelo tribunal. E, perante isso, não poderia deixar de ser qualificada a actuação processual dos executados como uma violação do dever processual de cooperação (emergente do artº 519º, nº 1, do anterior CPC, vigente à data do despacho recorrido), de que decorreria necessariamente a imposição de condenação em multa (nos termos do artº 519º, nº 2, do anterior CPC). Foi, por isso, devidamente aplicada tal sanção – e em medida que não merece qualquer reparo.

Concorda-se, assim, com os fundamentos da decisão recorrida e não se vislumbra, pois, qualquer razão para alterar o que foi decidido na 1ª instância. E assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

Em suma: concorda-se com o juízo decisório formulado pelo tribunal a quo, não se mostrando violadas as disposições legais invocadas nas conclusões das alegações de recurso.
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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a presente apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes (artº 527º do NCPC).

Évora, 25 / 06 / 2015

Mário António Mendes Serrano
António Manuel Ribeiro Cardoso
Acácio Luís Jesus das Neves