Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1176/12.0TBELV-E.E1
Relator: SILVA RATO
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 02/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Deve ser considerada grave e culposa, com prejuízo do seu património, agravando a possibilidade dos seus credores, de forma equitativa e mais ampla, serem pagos dos seus créditos, nos termos do art.º 186º, n.º 1, do CIRE, a actuação da insolvente que, por via da dação em cumprimento de parte do seu património, cerca de 6 meses antes de se apresentar à insolvência, bem sabendo o peso das suas dívidas, e que corriam contra si várias execuções que não tinha possibilidade de pagar, deu preferência no pagamento a um dos seus credores, por acaso seu pai, alienando assim a terceiros parte do pouco património que tinha disponível para solver as suas dívidas e, consequentemente, agravando a sua situação de insolvência.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Proc. N.º 1176/12.0TBELV-E
Apelação 1ª Espécie
Comarca de Portalegre (Elvas)
Recorrente: (…)
R10.2015

I. (…) veio, no requerimento inicial de apresentação à insolvência, requerer a exoneração do passivo restante.
Decreta a insolvência da Requerente, por sentença de 12/12/2012, o Sr. Administrador da Insolvência emitiu parecer, cuja cópia está junta a fls. 145 deste apenso, no sentido de ser admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, e o credor “(…), SA”, pronunciou-se, por requerimento, cuja cópia está junta a fls. 162 deste apenso, no sentido do indeferimento liminar de tal pedido.

Por despacho de 21 de Maio de 2014, foi decidido o seguinte
“…
O instituto da exoneração do passivo restante confere ao devedor pessoa singular a possibilidade de este obter a exoneração das obrigações que tem perante os credores da insolvência, e que não puderem ser liquidadas no decurso do processo de insolvência ou nos cinco anos subsequentes, em ordem a evitar que ficasse vinculado a essas obrigações até ao limite do prazo de prescrição, assim permitindo um fresh start e recomeçar a actividade económica sem o peso da insolvência anterior – Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da insolvência”, Almedina, 2ª Ed., 2009, págs. 307 e 308.
Resulta do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004 de 18 de Março, que se está na presença do “princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a possibilidade de os devedores singulares se libertarem de algumas das suas dívidas e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”, em benefício dos mesmos, sem se perder de vista que o processo de insolvência tem, como objectivo, a obtenção da satisfação dos direitos dos credores, na medida do possível.
Para se ter acesso ao benefício de exoneração do passivo e ver deferido respectivo o pedido, a lei impõe certos requisitos e procedimentos, fixados nos artigos 236.º, 237.º e 238.º do CIRE.
Estabelece o mencionado artigo 238.º do CIRE:
1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
2 - O despacho de indeferimento liminar é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência na assembleia de apreciação do relatório, excepto se este for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no número anterior.
No caso em apreço, o pedido de exoneração do passivo restante foi tempestivo, porquanto formulado no próprio requerimento de apresentação à insolvência (cfr. art. 236.º, n.º1, 1.ª parte, e artigo 238.º, n.º 1, alínea a), do CIRE).
Por outro lado, nos autos não existem quaisquer elementos que permitam concluir que a Insolvente tenha, com dolo ou culpa grave, fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza (cfr. art. 238.º, n.º1, al. b), do CIRE).
Igualmente não se vislumbra que a Insolvente já tenha beneficiado da exoneração do passivo restante, nos dez anos anteriores à data do início do processo de insolvência (art. 238.º, alínea c) do citado diploma legal).
Porém, a conduta da insolvente não revelou a lisura e transparência que deve ser exigida ao beneficiário da exoneração do passivo restante,
Senão veja-se,
A insolvente aquando da apresentação à insolvência – 15/11/2012 - indicou como credor, entre outros, o seu pai, (…), reconhecendo-lhe o crédito no valor de € 6.978,33.
Nessa mesma apresentação à insolvência a requerente afirmou que o seu único património consistia no imóvel com o artigo matricial (…), (…).
Porém, na sequência das diligências encetadas pelo Administrador da Insolvência, verificou-se que em 4 de Abril de 2012 (i.e. 6 meses e 10 dias antes de se apresentar à insolvência) a insolvente celebrou a escritura pública junta a fls. 144 e ss., de onde decorre que a insolvente cedeu a seu pai, (…), os dois quinhões hereditários de que era titular, para pagamento integral da dívida que tinha perante este, no valor de € 6.500,00, de que se confessava devedora.
Ora, através desta dação em pagamento a insolvente – à revelia dos demais credores e quando já se encontravam pendentes duas acções executivas contra si - dispôs de parte do seu património, favorecendo um credor em detrimento dos demais credores, sendo que o credor favorecido tem uma especial relação com a devedora, já que é o pai da insolvente.
Como se isto não bastasse, após a realização da referida escritura de dação em cumprimento, a insolvente apresentou-se à insolvência e relacionou (…) como sendo seu credor, pelo montante de € 6.978,33.
Estabelecem as citadas alíneas e) e g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE:
Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º; (…)
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.”
Por sua vez o artigo 186.º do CIRE dispõe:
“1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou e as depositar na conservatória do registo comercial.
4 - O disposto nos n.os 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
5 - Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.”
Ora, dos factos apurados resulta evidente que a insolvente, cerca de 6 meses antes de se apresentar à insolvência e quando já pendiam contra si duas acções executivas por incumprimentos ocorridos entre 2006 e 2008, pagou preferencialmente um credor, com especial relação com a sua pessoa, prejudicando os demais credores.
E a insolvente não podia ignorar – agindo com a normal e mediana diligência exigível de qualquer adulto – que, ao agir dessa forma estava a fazer dispor dos seus bens em favor de terceiro, agravando a de forma culposa a sua situação de insolvência (preenchendo a previsão das alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 186.º, ex vi n.º 4 desse mesmo preceito legal).
Complementarmente, importa ainda dizer que a insolvente ao relacionar como credor o seu pai – cujo crédito já havia sido satisfeito por via da dação em cumprimento - violou não só o dever de colaboração que lhe assistia como agravou se forma dolosa o seu estado de insolvência, assim, preenchendo o disposto nas alíneas b) e i) do n.º 2 do citado preceito 186.º).
Não temos pois dúvidas que, ao agir da forma descrita nos factos provados, a Insolvente agravou a sua situação de insolvência e actuou de forma manifestamente imprevidente e culposa, actuação essa que teve lugar nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Em face do exposto e com os fundamentos supra, resultando da factualidade apurada que existiu culpa da insolvente na criação e agravamento da situação de insolvência, não poderá a pretensão de exoneração do passivo restante merecer despacho inicial favorável.
*
Pelo exposto, e nos termos das normas legais citadas, indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante deduzido pela Insolvente (…).
…”

Inconformada com tal decisão, veio a Insolvente interpor recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões:
A) Nos presentes autos, a ora recorrente apresenta-se à insolvência, no dia 15 de Novembro de 2012, nos termos do art. 18º e seguintes do CIRE, por se reconhecer como incapaz de fazer face às suas obrigações para com os credores, tendo sido declarada insolvente por sentença datada de 11 de Dezembro de 2012.
B) Aquando do requerimento inicial apresentado a insolvente formulou o pedido de exoneração do passivo restante (cf. art. 235.º e segs do CIRE), tendo o mesmo sido liminarmente indeferido pelo despacho ora recorrido, por considerar como verificada a violação do dever de colaboração e por agravar de forma dolosa o seu estado de insolvencia, previsão legal que constitui causa de indeferimento liminar, prevista na al. e) e g)do n.º1 do art. 238.º e a), b) De i) do n.º 2 do 186.ºdo CIRE.
C) A verdade é que, discordamos em absoluto da decisão ora recorrida, por considerarmos que, contrariamente ao pela mesma sustentado, não se encontram preenchidos os pressupostos constantes das citadas previsões legais.
D) A figura da exoneração do passivo restante encontra a sua previsão legal nos artigos 235.º e segs. do CIRE, sendo que, pela mesma é permitido ao devedor que, em certas circunstâncias, ao fim de cinco anos, veja extintas as suas dividas não satisfeitas (ou totalmente satisfeitas) pela liquidação da massa insolvente (ou através da cessão de rendimento), libertando-se, assim, do encargo de as pagar no futuro – solução inspirada no modelo de “fresh start”, sendo concedido ao devedor uma segunda oportunidade, sem o peso da situação de insolvência em que se encontra.
E) Por seu turno, as situações que conduzem ao indeferimento liminar de tal pedido, encontram-se enumeradas nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 238.º do CIRE, sendo que, com excepção da alínea a) (apresentação fora do prazo do pedido de exoneração), os demais fundamentos de indeferimento liminar têm natureza substantiva e referem-se a comportamentos do devedor que justificam a não concessão da exoneração.
F) Nos presentes autos, a decisão ora recorrida, considerou como verificada a violação do dever de colaboração e por agravar de forma dolosa o seu estado de insolvência, previsão legal que constitui causa de indeferimento liminar, prevista na al. e) e g)do n.º1 do art. 238.º e a), b) De i) do n.º 2 do 186.ºdo CIRE.
G)A verdade é que O crédito relacionado na PI, pela insolvente é distinto do saldado através da dação em cumprimento, PI Fls 2 a 53, Resposta insolvente Fls 191 a 208 e Resposta autoridade tributaria Fls 217 a 226. O crédito relacionado na PI não se encontra satisfeito
H) Para fazer face ao pagamento de divida fiscal proc n.º (…) e (…), a insolvente contraiu empréstimo junto de seu pai (credor nos autos de insolvência) que para tanto emitiu cheque n.º (…), do banco (…), no valor de € 6.978,33, à ordem de IGCP, PI Fls 2 a 53 e Resposta autoridade tributaria Fls 217 a 226.
I) Por dação em cumprimento a insolvente declarou-se devedora a (…) da quantia de € 6.500,00 relativa a Pagamentos por conta efetuados no âmbito do processo de divida fiscal n.º (…), Resposta insolvente Fls 191 a 208 e Resposta autoridade tributaria Fls 217 a 226, Pagamentos efetuados por conta de empréstimo que a insolvente tinha contraído no banco Caixa Geral depósitos n.º (…), Resposta insolvente Fls 191 a 208, e ainda, Pagamento do acto de escritura de dação em cumprimento e respectivos impostos, Resposta insolvente Fls 191 a 208.
J) Deparamo-nos assim, com créditos completamente distintos, sendo que, o relacionado na P.I. não se encontra satisfeito pelo que, consideramos que a douta decisão recorrida, peca por ignorar a veracidade desses factos. Tendo o Tribunal a quo alicerçado a sua decisão em factos erróneos e que se encontram verdadeiramente documentados através da prova junta aos autos Fls 2 a 53, Fls 191 a 208 e Fls 217 a 226.
K) Pelas razões expostas a insolvente não violou o dever de colaboração que lhe assistia nem agravou de forma dolosa o seu estado de insolvência, não preenchendo assim o disposto nas alíneas b) e i) do n.º 2, do 186.º do CIRE conforme enunciado na douta decisão recorrida do tribunal a quo.
L) No que respeita à culpa na criação e agravamento da sua situação de insolvência há que referir que no caso em apreço, não restam dúvidas que a conduta da insolvente contribuiu à estabilização do seu passivo e diminuição dos montantes em divida, através do pagamento por dação em cumprimento. A celebração da referida escritura não representou uma dificuldade acrescida da satisfação dos créditos dos credores, não dispondo o Tribunal à quo sequer de elementos para concluir que a dação em cumprimento redundou em qualquer prejuízo para os restantes credores.
M) A insolvente não ocultou o bem dado em pagamento a um dos credores. Não assumiu nova responsabilidade de passivo, agravando o seu património, mas sim, e bem, pelo contrário, aliviou a sua divida. A dação em cumprimento de 1/6 e 1/8 dos quinhões hereditários da insolvente em nada prejudicou os restantes credores, Sendo uma realidade, o facto dos restantes credores terem ao seu alcance a mesma oportunidade e conhecimento da existência dos quinhões hereditários da insolvente e não pretenderam dar uso a esse conhecimento na medida em que nem o tribunal nem os credores podem ignorar que todas as buscas de património ao abrigo das execuções pendentes já terem sido efetuadas à data da escritura de dação em cumprimento e nenhum credor demonstrou interesse em abater as dívidas da insolvente através de penhora, dação ou outro instituto, os quinhões hereditários (1/6 e 1/8) da insolvente. Porque a verdade é que na realidade só um credor co-herdeiro, com quinhão nos prédios onde a insolvente detinha 1/6 e 1/8, é que poderia valorizar por conta da divida que esta detinha e detém perante este os referidos quinhões.
N) Não resulta da douta decisão recorrida, para além da mera invocação nenhum prejuízo em concreto alegado ou provado. Não resulta dos autos, nem inclusivamente do relatório do Senhor Administrador de Insolvência, que o comportamento da insolvente fosse de molde a prejudicar gravemente os credores.
O) Foi prestada toda a colaboração por parte da insolvente aos autos de insolvência, devidamente notificada, no âmbito das diligências efetuadas no sentido de aquilatar a sua conduta e não foram apurados quaisquer factos que levassem à verificação de uma relação causa- efeito de insolvência culposa. Sendo uma verdade incontornável, que a insolvente sempre se pautou por princípios de Boa- Fé no sentido de encontrar uma forma seria e honrada de resolver a sua solvência pessoal e poder criar e educar o seu filho.
P) Saldou a divida que detinha junto da fazenda Nacional, saldou sozinha a divida solidaria com o ex-cônjuge junto da fazenda nacional, saldou sozinha a divida solidaria com o seu ex-cônjuge junto do banco (…), saldou sozinha através da dação em cumprimento com o pai desta uma divida oriunda do seu dissolvido casamento e desconta coercivamente parte do seu ordenado mensalmente para o seu principal credor (…, SA), divida esta, também solidaria, com o seu ex-cônjuge, que até à presente data nenhum valor entregou para abater qualquer divida mencionada.
Q) Todo este historial reflete sobejamente a postura da insolvente, a luta diária após a separação que tem travado para atingir infrutiferamente a sua solvência.
R). Assim, não ocorrendo nenhum dos pressupostos do art. 238.º do CIRE, deve o pedido ser, liminarmente, admitido.
Nestes termos, atentas as razões alegadas e por violação do regime plasmado no art. 238.º e 186.º do CIRE, deverá ser admitido o presente recurso, sendo revogada a douta decisão recorrida, e em consequência, ser a mesma substituída por decisão de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente, assim se fazendo a devida e acostumada
JUSTIÇA!!
…”
Cumpre decidir.

II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual:
1. A Insolvente (…) é divorciada e, fruto do seu dissolvido casamento com (…), teve um filho, ainda menor, (…).
2. A requerente iniciou a sua vida de trabalho com 18 anos, tendo iniciado esta sua carreira como operadora de caixa no supermercado (…), em (…), depois foi trabalhar como encarregada para as Frutas (…), Lda., passando pelos Supermercados (…) como caixa, ingressando na Comissão Unitária dos Reformados, Pensionistas e Idosos do Concelho de (…) como Assistente Administrativa, onde actualmente exerce funções, auferindo um salário mensal de 747,74 Euros.
3. Na constância do seu dissolvido casamento, a requerente juntamente com o seu ex-marido contraíram junto do Banco (…), SA, os contratos de empréstimo, n.ºs aquisição n.º (…), celebrado em 16/02/2000, Multiopções n.º (…), celebrado em 23/03/2004, e BHP Obras n.º (…), celebrado em 16/02/2000, estando em débito até à presente data a quantia acima de € 141.261,32 (cento e quarenta e um mil, duzentos e sessenta e um euros e trinta e dois cêntimos).
4. Os quais devido a incumprimento verificado em 15/05/2006, 15/01/2006 e 15/05/2008, respectivamente, se encontram em execução a correr termos no 1º juízo, Proc (…)/09.0 TBELV, Tribunal de Elvas.
5. Ainda na constância do seu dissolvido casamento, a Requerente ficou com responsabilidade no pagamento juntamente com o seu ex-marido de um empréstimo junto do Banco (…), contrato n.º (…), cuja divida actual ascende o montante de € 11 022,24 (onze mil, vinte e dois euros, vinte e quatro cêntimos), cuja execução corre termos no 9º Juízo cível de Lisboa, 3ªa Secção, Proc. n.º …/2001.
6. A requerente era devedora do montante de € 6.978,33 (seis mil novecentos e setenta e oito euros e trinta e três cêntimos) ao Ministério da Finanças, cuja quantia se encontrava já em execução fiscal.
7. Para fazer face a essa divida contraiu um empréstimo pessoal com (…), seu pai, nesse mesmo montante.
8. Apesar de se convencer que conseguiria resolver os seus problemas financeiros, as suas previsões não resultaram certas, pois, o seu salário revelou-se insuficiente para suportar os encargos inerentes da família, alimentação, vestuário, educação do filho menor que está a seu cargo, água, luz, etc.
9. Estando impossibilitada de fazer face às suas despesas viu-se obrigada a viver na casa dos pais, sendo estes o seu suporte diário.
10. Em a insolvente celebrou a escritura de confissão de dívida e cessão de quinhões hereditários por dação em cumprimento, conforme decorre do documento junto a fls. 144/152, cujo teor aqui se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais.
11. A insolvente apresentou-se à insolvência em 15/11/2012.
***
III. Nos termos do disposto nos art.ºs 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, ambos do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 608º do mesmo Código.

A questão a decidir resume-se, pois, a saber se deve ser admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Compulsada a sentença verifica-se que o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, assentou em dois fundamentos, a saber:
a) Por um lado, “a insolvente ao relacionar como credor o seu pai – cujo crédito já havia sido satisfeito por via da dação em cumprimento - violou não só o dever de colaboração que lhe assistia como agravou se forma dolosa o seu estado de insolvência, assim, preenchendo o disposto nas alíneas b) e i) do n.º 2 do citado preceito 186.º)”.
b) Por outro, “dos factos apurados resulta evidente que a insolvente, cerca de 6 meses antes de se apresentar à insolvência e quando já pendiam contra si duas acções executivas por incumprimentos ocorridos entre 2006 e 2008, pagou preferencialmente um credor, com especial relação com a sua pessoa, prejudicando os demais credores.
E a insolvente não podia ignorar – agindo com a normal e mediana diligência exigível de qualquer adulto – que, ao agir dessa forma estava a fazer dispor dos seus bens em favor de terceiro, agravando a de forma culposa a sua situação de insolvência (preenchendo a previsão das alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 186.º, ex vi n.º 4 desse mesmo preceito legal).

No que respeita ao fundamento referido na alínea a), não resulta dos autos que assim seja, sendo plausível a justificação apresentada pela Insolvente no seu requerimento, cuja cópia está junta a fls. 195 e sgs. deste apenso.
Na verdade, conforme se constata contrapondo o cheque, cuja cópia está junta a fls. 37 deste apenso, e os documentos emitidos pela Autoridade Tributária, cuja cópia está junta a fls. 220 e sgs. deste Apenso, o montante desse cheque no valor de € 6.978,33., emitido em 01/10/2007, a favor do IGCP, corresponde ao valor pago nessa mesma data nos processos … (fls. 225 deste Apenso - € 1.094,03), … (fls. 228 deste Apenso - € 3.230,96) e … (fls. 229 deste Apenso - € 2.653,34).
E não temos razões para duvidar que os valores que a Insolvente articula no seu Requerimento de fls. 195, e documenta, para justificar os empréstimos parcelares, que ascenderam ao valor global de € 6.500,00, e que fundaram a dação em cumprimento, correspondem à realidade.
Concluindo-se assim, que o crédito referido nos artigos 8º e 9º da p.i., é diverso que deu origem à dação em cumprimento plasmada na Escritura cuja cópia está junta a fls. 148 e sgs. deste Apenso, pelo que não se vislumbra motivo para, com base no fundamento citado na alínea a), se indefira liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

O fundamento referido na alínea b), reporta-se ao pagamento preferencial de um dos credores, pai da Insolvente, relativamente aos seus restantes credores no momento em que já pendiam contra si duas acções executivas, por incumprimentos ocorridos entre 2006 e 2008.

No que ao caso interessa, são fundamento do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, entre outros, os que constam das alíneas e) e g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, que citamos:
“e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º; (…)
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.”

Por outro lado, define o n.º 1 do art.º 186º do CIRE, como regra geral, que a insolvência é considerada culposa, quando “a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
Para além desta regra geral, entendeu o legislador estabelecer um conjunto de situações que, no caso do devedor que não seja pessoa singular, permitem qualificar a actuação dos administradores como culposa, o que veio a consagrar nos n.ºs 2 e 3 do citado art.º 186º.
Qualificadas como presunções legais (neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda in CIRE Anotado, em nota ao art.º 186º, e Menezes Leitão, Direito da Insolvência, págs. 270 e 271) de situações típicas de insolvência culposa (as do n.º 2 do preceito - Ac. do Tribunal Constitucional n.º 570/2008), ou de ficções legais (as do n.º 2 do preceito - Ac. do TRP, de 10.02.2011, com o n.º 1283/07.0TJPRT-AG.P1) as situações definidas nesses n.ºs 2 e 3, permitem ao Tribunal qualificar sempre (as do n.º 2) ou desde que não haja prova em contrário (n.º 3), a insolvência como culposa.
Subsumidos os factos apurados a qualquer uma das situações previstas nas alíneas do n.º 2 do citado art.º 186º, a insolvência é sempre considerada culposa, sem admissão de qualquer prova em contrário, presunção que abrange não só a existência de culpa grave, como do nexo de causalidade entre essa actuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência (neste sentido Menezes Leitão, Direito da Insolvência, pág. 270).
Não estabelece no entanto o citado n.º 2, um limite temporal para que opere a estabelecida presunção de insolvência culposa.
Pelo que se deve recorrer à normal geral, estabelecida no n.º 1 do preceito, ou seja, ao período dos 3 anos anteriores ao início do processo (neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda in CIRE Anotado, em nota ao art.º 186º), que deve ser interpretada como aplicável a todas as situações enunciadas no n.º 2, com excepção da situação constante da segunda parte da sua alínea i) que, necessariamente, terá de ocorrer na constância do processo de insolvência.
Já o n.º 3 do art.º 186º do CIRE, consagra as situações em que se permite ilidir a presunção de existência de culpa grave aí estabelecida, por prova em contrário (n.º 2 do art.º 350º do Cód. Civ.).
No entanto, operando a presunção, por prova de factos que se subsumam às situações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 3, tal presunção não se entende ao nexo de causalidade entre o apurado comportamento e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, pelo que é necessária a prova de factos que permitam concluir pela existência desse nexo (neste sentido Menezes Leitão, Direito da Insolvência, pág. 271).
Também aqui, entendemos que, não havendo um limite temporal específico, se deve aplicar o limite temporal previsto no n.º 1, às situações previstas neste n.º 3.
Apesar do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 186º do CIRE ter sido definido expressamente como aplicável a devedores que não sejam pessoas singulares, o n.º 4 do mesmo dispositivo manda aplicar esses dispositivos às pessoas singulares insolventes, onde a isso se opuser a diversidade das situações.
O que significa que as presunções previstas nos citados n.ºs 2 e 3, se aplicam, em grande parte às pessoas singulares (neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda in CIRE Anotado, em nota ao art.º 186º, a págs. 16 do II vol. e Menezes Leitão, Direito da Insolvência, pág. 271).

Feito este enquadramento, cumpre analisar se a situação de facto em apreço, ou seja a dação em cumprimento constante da escritura cuja está junta a fls. 148 e sgs. deste Apenso, efectuada para pagamento, ao pai da ora Insolvente, de uma dívida de € 6.500,00, que a Insolvente alega corresponder a empréstimos para solver parcelas das sua dívidas, e o pagamento da própria escritura, e numa altura em que a ora Insolvente já tinham instauradas contra si duas execuções, por incumprimentos ocorridos entre 2006 e 2008, não se enquadra, como entendeu o Tribunal “a quo”, no disposto nas “alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 186.º, ex vi n.º 4 desse mesmo preceito legal”.
Dispõe a alínea a), do n.º 2 do art.º 186º do CIRE que se considera “sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;”
Este dispositivo pressupõe, desde logo, que em qualquer dos casos elencados, o património feito desaparecer, ou ocultado, seja a totalidade, ou parte considerável do património, o que está por demonstrar nos presentes autos, não cabendo ao Insolvente demonstrar, como é óbvio, que assim não é.
Basta atentar para o efeito nos valores considerados pelo Sr. Administrador da Insolvência, quanto ao imóvel pertença da Insolvente e do seu ex-cônjuge, no valor global de € 59.100,00 (vide fls. 183 deste Apenso), pelo que ½ do mesmo corresponde a € 29.550,00, e ao valor do direito da Insolvente nas Fracções A e B, respectivamente de € 2.916,67 e € 4.687,50 (vide fls. 249 deste Apenso), o que está longe de permitir concluir que a ora Insolvente dissipou parte considerável do seu património.
Quanto à alínea d) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE, dispõe que se considera “sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
Chamando à colação o n.º 1 do art.º 186º do CIRE, parece-nos evidente que, por via da dação em cumprimento de parte do seu património, a ora Insolvente, cerca de pouco mais de 6 meses antes de se apresentar à insolvência, bem sabendo o peso das suas dívidas, e que corriam contra si várias execuções que não tinha possibilidade de pagar, deu preferência no pagamento a um dos seus credores, por acaso seu pai, alienando assim a terceiros parte do pouco património que tinha disponível para solver as suas dívidas e, consequentemente, agravando a sua situação de insolvência.
Actuação que deve ser considerada grave e culposa, com prejuízo do património da ora Insolvente, agravando a possibilidade dos seus credores, de forma equitativa e mais ampla, serem pagos dos seus créditos.
Isto, para além da ora Insolvente, dever ser censurada, pela actuação culposa de não ter fornecido voluntariamente ao Tribunal “a quo” todos os elementos que permitissem revelar ao processo a dação em cumprimento de parte do seu património.
Assim sendo, e tendo em conta o disposto nos art.ºs 238º alíneas e) e g), e 186º, n.º1 e 2, alínea d), ambos do CIRE, decide-se indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela Insolvente.

Improcede assim o presente recurso.
***
III. Decisão
Pelo acima exposto, decide-se pela improcedência do recurso, confirmando-se a decisão recorrida, com os fundamentos supra expendidos.
Custas pela massa falida.
Registe e notifique.
Évora, 12 de Fevereiro de 2015
Silva Rato
Assunção Raimundo
Abrantes Mendes