Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
707/19.9PBFAR-F.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: COMUNICAÇÕES POR CORREIO ELETRÓNICO
COMUNICAÇÕES POR TELECÓPIA
REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Nas comunicações com os tribunais, nomeadamente para envio de peças processuais, os intervenientes processuais, representados por advogado ou solicitador, podem utilizar o correio eletrónico, equivalendo essa comunicação à remessa por via postal registada, desde que a respetiva mensagem seja cronologicamente validada, mediante a aposição de selo temporal por uma terceira entidade idónea
II. A falta de apresentação do original do requerimento para abertura da instrução do arguido, remetido a juízo, por correio eletrónico simples e sem validação cronológica, no prazo legal de 10 dias, não tem como consequência imediata a rejeição liminar daquele requerimento, por inadmissibilidade legal, nos termos do disposto no artigo 287.º/ 3 CPP.
III. O dever de notificar o arguido para apresentar o original do requerimento para a abertura da instrução, que foi remetido por correio eletrónico simples e sem validação cronológica, antes de rejeitar o requerimento de abertura de instrução, corresponde à exigência de um processo equitativo, revelando-se desproporcional, sancionar essa omissão, com a rejeição liminar.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I. RELATÓRIO


A –
Nos presentes autos de Inquérito que com o nº 707/19.9PBFAR-F, correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Instrução Criminal de Faro – Juiz 2, recorre o arguido:
- GUE, devidamente identificado nos autos.
Do despacho proferido em 18 de Março de 2022, pela Juíza titular dos autos, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução formulado pelo mesmo arguido, nos termos do disposto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, por inadmissibilidade legal, por ter sido apresentado por um meio legalmente inadmissível.

Da motivação do recurso, o arguido/recorrente GUE retirou as seguintes conclusões (transcrição):
1. Por despacho datado de 18-03-2022, o tribunal a quo rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, por o mesmo não respeitar as exigências de forma legalmente exigidas.
2. O Arguido ora Recorrente não se conforma com o despacho de que ora se recorre porquanto o arguido ora recorrente apresentou em tempo o requerimento de abertura de Instrução, assinado digitalmente, isto é, com a assinatura digital aposta e com a inscrição de que o documento se encontrava assinado digitalmente e remeteu o RAI via correio electrónico dirigido ao Ministério Público DIAP de Faro.
3. O correio electrónico foi enviado no dia 02-03-2022 pelas 19:13 horas, consta da comunicação enviada o dia e hora da expedição, sendo certo que o RAI foi enviado do e-mail (…), e-mail esse pertencente à sociedade de Advogados para a qual labora a mandatária subscritora e que se encontra devidamente registado como e-mail oficial no portal da Ordem dos Advogados.
Aliás da consulta do portal da ordem dos advogados como registado e como tal autêntico.
4. Ao que acresce que o próprio e-mail contém o timbre da sociedade de Advogados, encontra-se devidamente identificado e assinado pelo mandatário subscritor e está ele próprio autenticado digitalmente.
5. Por outro lado, o despacho recorrido falsamente faz referência a que não foi carreado para os autos o original no prazo legalmente concedido de 10 dias, o que não corresponde à verdade dado que no dia seguinte 03-03-2022 foi endereçado ao Tribunal o original do Requerimento de Abertura de Instrução, o qual foi subscrito e remetido pela mandatária subscritora.
6. Andou mal o tribunal ao considerar que o envio do original do RAI remetido por correio electrónico trata-se de uma repetição do acto sem as garantias devidas pois sempre se dirá que o RAI foi legítima e tempestivamente apresentado, tendo sido respeitado todo o procedimento e bem assim todos os requisitos legais.
7. O requerimento de abertura de instrução foi remetido pelo endereço oficial, o qual inclusive está registado na plataforma da Ordem dos Advogados (OA) e por esta certificado, a mandatária subscritora usou a assinatura digital facultada pela Ordem dos Advogados certificado multicert, a qual encontra-se instalada no seu computador e que lhe permite a utilização para assinatura de documentos digitais.
8. Inclusive é o requerimento consta de papel timbrado de Advogado, com toda a identificação, os contactos e o número de cédula profissional.
9. O RAI não respeita as exigências de forma legalmente exigidas, não carecendo o requerimento apresentado de assinatura digital ou qualquer outra.
10. A assinatura digital é utilizada meramente para substituir a assinatura autografa do Advogado subscritor.
11. Não existe qualquer preterição de regras processuais, nem existe qualquer irregularidade.
12. Assim como não foi violado o disposto na Portaria 624/2004 de 16 de Junho, nem a ratio da criação do mesmo, dúvidas não existindo acerca da genuinidade do RAI, da autenticidade e da tempestividade do mesmo.
13. O tribunal ao entender que a assinatura digital e o envio de peças processuais de e-mail certificado pela Ordem dos Advogados não respeitam as exigências de forma legalmente exigidas viola o disposto no artigo 3º da Portaria 642/2004 de 16 de Junho.
14. Estabelece o artigo 3º da Portaria 642/2004 de 16 de Junho que o envio de peças processuais por correio electrónico equivale à remessa por via postal registada, nos termos do nº 3 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 290-D/99, de 2 de Agosto, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 62/2003, de 3 de Abril, bastando para tal a aposição de assinatura electrónica avançada.
15. Ao que acresce que os originais do RAI enviado por correio electrónico foram remetidos para o tribunal por correio registado, motivo pelo qual somos do entendimento que pelo mandatário judicial foi garantida a integralidade, autenticidade e inviolabilidade a que obriga o nº 2 do artigo 132º do CPC.
16. O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/2014 veio admitir a remessa a juízo de peças processuais através de correio eletrónico.
17. O artigo 144º do Código de Processo Civil elenca os casos em que devem ser apresentados a juízo os respetivos originais dos documentos submetidos via eletrónica.
18. Não ocorreu in casu, pela fundamentação do despacho, nenhum destes pressupostos.
19. E mesmo que se entenda que a assinatura electrónica aposta no RAI não é válida sempre se dirá que se trata de uma irregularidade, facilmente sanável, tendo inclusive o mandatário posteriormente remetido o RAI assinado manualmente.
20. Cabendo ao tribunal ao abrigo do princípio da adequação formal ter endereçado esse mesmo convite ao mandatário, o que não ocorreu, não podendo colher o argumento de que tal convite iria contornar o prazo legalmente concedido para requerer a abertura de instrução uma vez que esse prazo já se encontrava integralmente cumprido.
21. O despacho de que ora se recorre para além de violar a ratio da Portaria 642/2004 de 16 de Junho e o artigo 3º, viola o princípio da adequação formal e o princípio de colaboração a que está adstrito pelo disposto no artigo 7º do CPC.
22. E o disposto no artigo 287º, nº 3 do CPP que consagra que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do Juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, não tendo ocorrido nenhum destes motivos.
23. Nem constitui uma causa de rejeição do Requerimento de Abertura de Instrução a não verificação do disposto na Portaria nº 642/2004, de 16 de Junho, referente aos actos processuais e notificações enviados por correio electrónico.
24. O tribunal fez uma errada aplicação do artigo 287º, nº 3 do CPP, do artigo 7º do CPC e da Portaria 624/2004 de 16 de Junho.
25. O despacho de que ora se recorre é uma evidente expressão de discricionariedade e uma evidente prevalência da forma em detrimento da verdade material pela qual o Processo Penal, para não dizer toda a Justiça, sempre deverá ser norteado.
26. O fundamento apresentado pelo tribunal não configura inadmissibilidade legal da instrução, pelo que o requerimento para abertura de instrução não pode ser rejeitado.
27. Uma vez que é perfeitamente admissível o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo ora Recorrente.
28. Nem tão pouco configura qualquer um dos outros dois fundamentos de rejeição que a lei prevê no n° 3 do artigo 287° (extemporaneidade e incompetência do juiz).
29. Posto isto, o despacho que rejeitou a abertura de instrução apresentado pelo ora Recorrente viola o disposto no artigo 287º, nº 3 do CPP, bem como todos os direitos constitucionais e garantias do processo criminal previstos na nossa Constituição, uma vez que in casu não estamos perante nenhuma situação que configure uma situação de inadmissibilidade legal da instrução.
30. Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso e em consequência ser revogado o despacho ora recorrido e proferido outro que admita o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo ora recorrente.
Nestes termos e nos melhores de direito deverá V. Exa. dar provimento ao presente recurso e revogar o douto despacho recorrido por violação dos artigos 286º e 287º do Código de Processo Penal e bem assim artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, proferindo outro que admita o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo ora recorrente, assim se fazendo Justiça.

Notificado o Ministério Público nos termos do disposto no artigo 411º, nº 6, do Código de Processo Penal, para os efeitos do disposto no artigo 413º, nº 1, do mesmo diploma legal, veio apresentar resposta ao recurso interposto, concluindo por seu turno (transcrição):
1. Salvo melhor opinião, não assiste razão ao ora recorrente.
2. Com efeito, compulsando os autos, constata-se que o mencionado requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido GUE foi enviado por correio eletrónico, sem assinatura manual ou digital e sem validação cronológica, circunstância pela qual apenas goza do valor de telecópia, sem que tenha carreado o original aos autos no prazo de 10 dias.
3. Aconteceu, ainda, que foi enviado, por correio registado, o mencionado requerimento de abertura de instrução novamente sem assinatura, manual ou digital, dizendo, apenas, assinado eletronicamente, mas sem o ser efetivamente, circunstância que consubstancia uma mera repetição do ato e sem as garantias devidas.
4. Ora, os requerimentos apresentados em juízo devem ser assinados e enviados por correio eletrónico e por correio registado, sendo que, neste caso, a inexistência de assinatura configura uma inexistência jurídica, tal como assertivamente fundamentado pelo Tribunal a quo.
5. No caso dos autos, foram preteridas as exigências formais necessárias para admissão do requerimento de abertura de instrução.
Por conseguinte, o recurso interposto não deverá de merecer provimento e, consequentemente, ser mantido o douto Acórdão.
V. Exas. farão, como sempre, Justiça.

Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto, conforme melhor resulta do seu parecer junto aos autos.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, sem que o arguido apresentasse qualquer resposta.
Procedeu-se a exame preliminar.
Cumpridos os vistos legais, foi realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -
A decisão recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos de que se transcreve dado o interesse para o objecto do presente recurso (transcrição):

O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/2014 pronunciou-se no sentido de que «em processo penal, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio eletrónico, nos termos do disposto no art. 150 nº 1 al. d) e nº 2 do CPC e na Portaria nº 624/2004, de 16/6, aplicáveis por força do disposto no art. 4º do CPP.».
Por sua vez, o art. 3º, nº 4 da Portaria nº 624/2004, de 16 de junho, dispõe que «O envio de peças processuais por correio eletrónico equivale à remessa por via postal registada, nos termos do nº 3 do art. 6º do DL nº 290-D/99, de 2/8, bastando para tal a aposição de assinatura eletrónica avançada.» e o nº 6 do mesmo normativo assinala que «A expedição da mensagem de correio eletrónico deve ser cronologicamente validada, nos termos da al. u) do art. 2º do DL nº 290-D/99, de 2/8, com a redação que lhe foi dada pelo DL nº 62/2003, de 3 de Abril, mediante a aposição de selo temporal por uma terceira entidade idónea.».
Em complemento, o art. 10º da aludida portaria sustenta que à apresentação de peças processuais através de correio eletrónico simples ou sem validação cronológica é aplicável, para todos os efeitos legais, o regime estabelecido para o envio através de telecópia.
Nos termos de tudo o exposto devidamente concatenado, firma-se que o envio de peças processuais via correio eletrónico só pode suceder em conformidade com o legalmente definido, ou seja, com aposição de assinatura eletrónica do subscritor, para que se possa garantir que a mesma foi elaborada pelo próprio e que se junta por mandatário judicial seja uma garantia ao mandante, arguido em processo penal.
O art. 4º, do Decreto-Lei nº 28/92, de 27-02, delineia que «1 - As telecópias dos articulados, alegações, requerimentos e respostas, assinados pelo advogado ou solicitador, os respectivos duplicados e os demais documentos que os acompanhem, quando provenientes do aparelho com o número constante da lista oficial, presumem-se verdadeiros e exactos, salvo prova em contrário. 2 - Tratando-se de actos praticados através do serviço público de telecópia, aplica-se o disposto no artigo 3º do Decreto-Lei nº 54/90, de 13 de Fevereiro. 3 - Os originais dos articulados, bem como quaisquer documentos autênticos ou autenticados apresentados pela parte, devem ser remetidos ou entregues na secretaria judicial no prazo de sete dias contado do envio por telecópia, incorporando- se nos próprios autos.» - sublinhado nosso.
Em decorrência do plasmado no art. 6º, nº 1, al. b), do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12-12, o prazo para entrega dos originais deve ser de 10 dias e não de 7 dias.
Sucede que os requerimentos de abertura de instrução apresentados pelos arguidos GUE e ALL foram enviados por correio eletrónico, sem assinatura manual ou digital e sem validação cronológica, gozando do valor da telecópia, sem que tenha carreado o original aos autos no prazo legalmente concedido, de 10 dias.
Por outro lado, foram enviados por correio registado os requerimentos, mais uma vez sem qualquer assinatura, manual ou digital, dizendo, apenas «assinado eletronicamente», mas sem o ser efetivamente, sendo, portanto, uma repetição do ato e sem as garantias devidas.
Aliás, todos os requerimentos apresentados em juízo devem ser assinados e os enviados por correio eletrónico e por correio registado de um requerimento de abertura de instrução desprovido de qualquer assinatura consubstancia uma inexistência jurídica que implica a inadmissibilidade legal da instrução. O art. 98º, nºs 1 e 2, do CPP, é claro que o arguido é o único que pode enviar requerimentos sem estarem assinados pelo defensor, enquanto garantia dos seus direitos fundamentais, no entanto, tal não pode suceder se o ato é praticado pelo próprio defensor, como parece suceder no caso em análise. Nesta senda, se o defensor apresentar um requerimento é pressuposto de existência jurídica que o mesmo seja assinado.
Em verdade, os segundos requerimentos enviados por correio registado sem MDDE, o qual deixou de existir, e sem qualquer assinatura, não passa do envio de novo documento com o mesmo valor que o anterior, ou seja, nenhum. Não se considera, portanto, que o envio de uma cópia por correio registado sem qualquer assinatura possa ser considerado a junção de um original cuja cópia não possui igualmente assinatura. Entende-se, portanto, que, por razões de lógica e de justeza, as consequências jurídicas de enviar um requerimento de abertura de instrução por correio eletrónico sem assinatura eletrónica e validação cronológica têm que ser as mesmas para o posterior envio de um requerimento de abertura de instrução por correio, sem certificação e sem qualquer assinatura. Na verdade, a inexistência jurídica do primeiro não se supre com o segundo em iguais circunstâncias.
Este Tribunal segue o entendimento de que em tais situações não pode ser formulado um convite para juntar os originais e/ou para vir assinar os requerimentos enviados por correio eletrónico e via postal, sob pena de se desvirtuar um dever imposto por lei e contornar o prazo legalmente concedido para requerer a abertura de instrução, tanto mais tendo em consideração que se trata de um processo urgente, com arguidos sujeitos à medida de coação de prisão preventiva.
Salvo melhor entendimento, é de considerar que este tipo de convites não se compadece com o processo penal, com a celeridade processual que se impõe e não existe qualquer razão que os sustente, gerando um desequilíbrio injustificado entre os interesses em conflito.
Neste sentido veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13-04-2021, relatora Maria Fernanda Palma, disponível em www.dgsi.pt.
Perante o esquadrinhado, ao abrigo do disposto no art. 287º, nº 3 do CPP, enquanto legalmente inadmissível, mais não resta do que rejeitar os requerimentos de abertura de instrução de fls. 4958 e 4976 e de fls. 4965 e 4975, apresentados pelos arguidos ALL e GUE, por não respeitarem as exigências de forma legalmente exigidas.
(…)

II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

De acordo com o disposto no artigo 412º, do Código de Processo Penal e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19-10-95, publicado no D.R. I-A de 28-12-95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.

Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que a questão suscitada é a seguinte:

- Incorrecta interpretação e aplicação no despacho recorrido, do disposto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, relativamente à rejeição do requerimento de abertura de instrução formulado pelo arguido GUE.

2 - Apreciando e decidindo:

- Da incorrecta interpretação e aplicação no despacho recorrido, do disposto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, relativamente à rejeição do requerimento de abertura de instrução formulado pelo arguido GUE.
É pacífico que em processo penal a apresentação de peças processuais por correio electrónico “avançado” e “simples” é admissível.
Pretendendo pôr termo a divergências jurisprudenciais na matéria, o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão nº 3/2014, publicado no DR, 1ª Série, de 15 de Abril de 2014, fixou a seguinte doutrina: “em processo penal, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio electrónico, nos termos do disposto no artigo 150º, nº 1, alínea d), e nº 2, do Código de Processo Civil de 1961, na redacção do Decreto-Lei nº 324/2003, de 27-12, e na Portaria nº 642/2004, de 16-06, aplicáveis conforme o disposto no artigo 4º do Código de Processo Penal”.
Esta mencionada jurisprudência permanece aplicável às acções excluídas da Portaria nº 280/2013, conforme o Acórdão do STJ, de 24-1-2018, (proc. nº 5007/14.8TDLSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt), nomeadamente nas acções que se encontrem na fase de inquérito/instrução, e de acordo com o artigo 17º, da Portaria nº 267/2018 de 20 de setembro.
Ou seja, a Portaria 280/2013, referente à tramitação eletrónica dos processos judiciais, não se aplica nas ações que se encontrem na fase de inquérito/instrução.
Daqui decorre que o correio electrónico constitui ainda uma forma admissível de prática de actos processuais em todos aqueles processos ou fases processuais, excluídos do âmbito de aplicação da Portaria nº 280/2013.
Razão por que, no caso sub judice teremos de chamar à colação a Portaria nº 642/2004 de 16-06, que regula a forma de apresentação a juízo dos atos processuais enviados através de correio eletrónico, aplicável no que respeita ao envio de peças processuais em processo penal), uma vez que o requerimento de abertura de instrução do arguido foi apresentado por via de correio eletrónico e o envio do original remetido aos autos não contém a assinatura original do subscritor, nem a certificação dessa mesma assinatura , pelas formas legais admissíveis, tratando-se de uma mera fotocópia.
Preceitua o artigo 3°, n° 1, da mencionada Portaria, que: “o envio de peças processuais por correio eletrônico equivale à remessa por via postal registada, nos termos do n° 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei n° 290-D/99 de 2 de Agosto, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 62/2003, de 3 de Abril, bastando para tal a aposição de assinatura electrónica avançada
Por sua vez, o nº 3 do mencionado normativo refere que: “a expedição da mensagem de correio electrónico dever ser cronologicamente validada, nos termos da alínea u) do artigo 2 º do Decreto-Lei nº 290D/99, de 2 de Agosto, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 62/2003, de 3 de Abril, mediante a aposição de selo temporal por uma terceira entidade idónea.
Compulsados os autos, verificamos que no caso em apreço, o arguido GUE aquando da apresentação do requerimento de abertura de instrução, enviou apenas um email simples com o referido requerimento digitalizado, não contendo o email qualquer assinatura eletrónica avançada nem a aposição de selo temporal por entidade terceira idónea.
Assim, ter-se-á de aplicar o regime estabelecido para o envio através de telecópia, que se encontra regulado pelo Decreto-lei nº 28/92, de 27/02 e, no seu artigo 4º, nº 3, refere que “os originais dos articulados, bem como quaisquer documentos autênticos ou autenticados apresentados pela parte, devem ser remetidos ou entregues na secretaria judicial no prazo de sete dias contado do envio por telecópia, incorporando-se nos próprios autos”.
No caso dos autos, o prazo de 7 dias deve ter-se como alargado para 10 dias, em consequência do disposto no artigo 6º, nº 1, alínea b), do Decreto-lei nº 329-A/95, de 12-12.
Dos autos resulta que o arguido GUE apresentou o seu requerimento de abertura de instrução através de correio eletrónico simples, não constando do mesmo a assinatura eletrónica certificada nem a aposição de selo temporal por entidade terceira idónea.
Não resulta do processado que foi cumprido o disposto no artigo 4º, nº 3, do Decreto-lei nº 28/92, de 27-02, juntando ao mesmo o original do requerimento de abertura de instrução, devidamente assinado pelo seu subscritor no prazo de 10 dias e não uma fotocópia dessa mesma assinatura.
A questão reside em saber qual a cominação ou a consequência jurídica da não apresentação dos originais das peças processuais remetidas a juízo, por telecópia, no prazo legalmente estabelecido de 10 dias.
Nem no Decreto-Lei nº 28/92, de 27 de Fevereiro, nem noutro diploma legal é prevista cominação específica para o caso de a parte não fazer juntar ao processo, no prazo legal de 10 dias, os originais dos articulados ou dos documentos autênticos ou autenticados que haja apresentado, através de telecópia.
Segundo o entendimento perfilhado pelo Sr. Juiz “a quo”, no despacho recorrido e que tem apoio na jurisprudência, que cremos ser maioritária, a remessa de um requerimento para a abertura da instrução, a juízo, por correio eletrónico, simples, sem a aposição de assinatura eletrónica e sem validação cronológica do respetivo acto de expedição, não sendo o respetivo original remetido ou entregue na secretaria judicial, no prazo de dez dias, com a assinatura do subscritor igualmente original e não com uma simples cópia, nos termos estabelecidos no artigo 4º, nº 3, do Decreto-Lei nº 28/92, de 17 de Fevereiro, em conjugação com o artigo 6º, nº 1, al. b), do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, determina a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal da instrução, ao abrigo do preceituado no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, não havendo lugar à notificação do apresentante do requerimento de abertura de instrução para apresentar o respetivo original.
Salvo o devido respeito por esse entendimento maioritário, permitimo-nos divergir do mesmo.
Entendemos que não fixando a lei cominação específica para falta de apresentação do original da telecópia, no prazo legalmente previsto de 10 dias, a rejeição liminar do articulado ou do requerimento remetido a juízo, por telecópia, por falta de apresentação do o respetivo original, naquele prazo, corresponde a uma solução demasiado drástica, que o legislador não pretendeu consagrar.
No âmbito do processo civil, quando se admitia a apresentação de peças processuais por telecópia, formou-se jurisprudência maioritária, no sentido de que não fixando a lei cominação específica, para a falta de apresentação dos originais de tais peças, no prazo de 7 dias, era possível, fazê-lo além desse prazo, desde que não se deixasse de o fazer quando para o efeito se era notificado. Ou seja, de acordo com esta orientação jurisprudencial a não apresentação dos originais, no prazo legalmente previsto, não tem como efeito imediato a invalidade ou a ineficácia do acto praticado por telecópia, o qual, nos termos do disposto no artigo 4º, nº 5, do Decreto-Lei nº 28/92, de 27 de Fevereiro, só não aproveita à parte se esta, notificada para exibir os originais, o não fizer, inviabilizando culposamente a incorporação nos autos.
E, salvo o devido respeito, pela orientação em sentido contrário, não se vê razão para que este entendimento não seja aplicado, no processo penal, designadamente e, no que ao presente caso importa, ao requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido, pelas razões que passaremos a explicitar.
Entendemos que não têm aqui aplicação os fundamentos subjacentes à jurisprudência fixada, pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/2005, de 12-05-2005, no sentido de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”
No caso que nos ocupa, diferentemente daquele sobre que versou a jurisprudência fixada no referenciado AFJ nº 7/2015, não está em causa a concessão de um prazo suplementar, ao assistente, para apresentar um novo requerimento para abertura da instrução, posto que, este acto considera-se praticado, com o envio daquele requerimento, por correio eletrónico, que, por não se mostrar eletronicamente assinado e por falta de validação cronológica do respetivo acto de expedição, nos termos sobreditos, tem o valor de telecópia.
A apresentação do original do requerimento de abertura de instrução, tem apenas a função de confirmar o acto antes praticado, através de telecópia, permitindo a respetiva conferência, não servindo para completar ou corrigir eventuais deficiências da telecópia.
E assim sendo, nessa situação, a possibilidade de notificação do assistente/arguido para apresentar, no prazo que venha a ser fixado pelo juiz, o original do requerimento de abertura de instrução, remetido, por telecópia, não se traduz na concessão, ao mesmo, de qualquer prazo suplementar para requerer a abertura da instrução, nem viola as garantias de defesa do arguido ou o principio do acusatório.
Em relação ao principio da celeridade processual, também não fica afectado, se a referida notificação tiver lugar, sendo fixado um prazo curto, havendo que procurar o necessário equilíbrio entre esse princípio e a justiça da decisão, em ordem a salvaguardar o direito à tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo, consagrado no artigo 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa e a respeitar o princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18º, nº 2, da mesma Constituição da República Portuguesa.
Afigura-se-nos que a rejeição liminar do requerimento para abertura da instrução, apresentado pelo arguido GUE, por correio eletrónico, simples, com o valor de telecópia, por falta de apresentação do respetivo original, no prazo legalmente previsto de 10 dias, sem que haja prévio convite, para suprir essa omissão, se traduziria numa cominação desproporcionada.
Por identidade de razões, relativamente à rejeição liminar do recurso apresentado pelo arguido, enviado por correio eletrónico – não sendo este um meio legalmente previsto para apresentação de peças processuais –, sem que fosse formulado convite, ao recorrente, para apresentação do recurso pela via considerada adequada, o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 174/2020, de 11-03-2020 , decidiu julgar inconstitucional, por ferir, de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva, na modalidade de direito a um processo equitativo (artigo 20º, nº 4, e artigo 18º da Constituição), “a interpretação normativa extraída da conjugação do artigo 4º da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, do artigo 144º, nºs 1, 7 e 8, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, e da Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto, com o disposto nos artigos 286º, 294º e 295º do Código Civil, e artigo 195º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho segundo a qual é nulo o recurso apresentado pelo arguido a juízo, por correio eletrónico, dentro do prazo, no âmbito do processo penal, sem prévio convite à apresentação daquela peça processual pela via considerada exigível.”
Entendemos, assim, que a falta de apresentação do original do requerimento para abertura da instrução do arguido, remetido a juízo, por correio eletrónico simples e sem validação cronológica, no prazo legal de 10 dias (cfr. disposições conjugadas dos artigos 4º, nº 3, do Decreto-Lei nº 28/92, de 17 de Fevereiro e no artigo 6º, nº 1, al. b), do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), não tem como consequência imediata a rejeição liminar daquele requerimento, por inadmissibilidade legal, nos termos do disposto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal.
Sufragamos o entendimento de que a rejeição do requerimento de abertura de instrução, remetido a juízo, pelo arguido, através de correio eletrónico, por inobservância dos legais requisitos de forma para a prática do acto, por esse meio, pressupõe a prévia notificação determinada pelo juiz para apresentar o original do requerimento de abertura de instrução, para que seja incorporado no processo e que, só no caso, de, na sequência dessa notificação, o arguido não apresentar o original desse requerimento, poderá, com esse fundamento e nos termos do disposto no artigo 4º, nº 5, do Decreto-Lei nº 28/92, de 17 de Fevereiro, rejeitar o requerimento de abertura de instrução.
O dever de notificar o arguido para apresentar o original do requerimento para a abertura da instrução, que foi remetido por correio eletrónico simples e sem validação cronológica, antes de rejeitar o requerimento de abertura de instrução corresponde à exigência de um processo equitativo, revelando-se desproporcional, sancionar essa omissão, com a rejeição liminar.
Nesta conformidade, reconhecendo-se assistir razão ao recorrente, impõe-se revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que notifique o arguido GUE, na pessoa do seu Mandatário, para, em prazo a fixar, apresentar o original do requerimento para abertura da instrução, que foi remetido a juízo, por correio eletrónico simples, com a assinatura original do seu subscritor.

Assim, pelo exposto decide-se julgar totalmente procedente o recurso interposto pelo arguido GUE.

Sem custas atenta a procedência do recurso interposto.


III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar procedente o recurso interposto pelo arguido GUE e, em consequência:

- Revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que notifique o arguido, na pessoa do seu Mandatário, para, em prazo a fixar, apresentar o original do requerimento para abertura da instrução, que foi remetido a juízo, por correio eletrónico simples, naturalmente assinado pelo punho do respectivo subscritor.
- Sem custas.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 07-06-2022

Fernando Paiva Gomes M. Pina

Beatriz Marques Borges
Gilberto da Cunha