Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1516/15.0T8BJA.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
CULPA DO LESADO
Data do Acordão: 06/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Da análise do n.º 2 do art.º 493.º do CC, e no que respeita à repartição do encargo probatório, resulta que ao lesado caberá a prova de que o resultado danoso resultou da concretização do perigo ou perigos que justificam a qualificação daquela concreta actividade como perigosa, ao passo que o lesante, para afastar a sua responsabilidade, terá de demonstrar que “empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos”, irrelevando desde logo a demonstração da inoperância do comportamento lícito alternativo.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1516/15.0T8BJA.E1

Tribunal Judicial da comarca de Beja
Juízo Central Cível e Criminal de Beja – Juiz 2

Relatório
(…) e mulher, (…), por si e na qualidade de representantes legais de sua filha menor (…), com eles residente, instauraram contra (…) e outros, acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, tendo em vista efectivar a responsabilidade civil emergente de acidente de aviação de que foi vítima a menor, pedindo a final a condenação solidária dos RR:
“a) a pagar aos AA. a quantia global de € 7.946,51 a título de danos patrimoniais, acrescida dos juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento;
b) a pagar à menor (…), representada pelos AA, uma indemnização no valor global de € 50.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento;
c) a pagar aos AA uma indemnização no valor global de € 25.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento;
d) a indemnizar os AA, por si e em representação de sua filha menor, dos danos futuros que venham a apurar-se, a liquidar em execução de sentença”.
Em articulado aperfeiçoado alegaram ter ocorrido um acidente de aviação no dia 1 de Janeiro de 2015, no aeródromo de Beja, que consistiu na queda da aeronave ultraleve com a matrícula CS-(…) e n.º de série (…), propriedade do réu (…), que a tripulava, nela seguindo como passageira a menor (…). Em consequência os AA sofreram os danos de natureza patrimonial e não patrimonial que discriminaram, por cujo ressarcimento é aquele réu responsável, uma vez que a queda da aeronave ficou a dever-se a conduta culposa ao mesmo imputável, sendo certo que sempre responderia, independentemente de culpa, nos termos dos art.ºs 40.º do DL 238/2004 e 3.º do DL 321/89.
Tendo os autos prosseguido apenas contra o R. (…), apresentou este contestação na qual se defendeu por impugnação e, tendo imputado a queda da aeronave a inesperada conduta da menor (…), deduziu a final pedido reconvencional contra os AA, pedindo a condenação destes no pagamento da quantia de € 54.398,26, correspondendo € 34.398,26 aos danos de natureza patrimonial sofridos e reclamando € 20.000,00 para compensação dos danos de natureza não patrimonial.
Replicaram os AA, pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.
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Foi proferido despacho saneador, com delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo que da acta consta, no termo da qual foi proferida sentença que julgou improcedentes a acção e a reconvenção, absolvendo o R e os AA reconvindos dos pedidos reciprocamente formulados.
Inconformados, recorreram os AA e, com ostensiva desconsideração pelo comando plasmado no art.º 639.º, no seu n.º 1,formularam a final extensas 79 conclusões, das quais se extraem, por relevantes, as seguintes:
i. foram mal julgados os factos constantes dos pontos 9., 14., 20., 21., 32., 64. e al. d) do n.º 74. dos factos provados e als. B) e F) da matéria não provada;
ii. O ponto 9. deve ser alterado nos termos que resultam do relatório elaborado pelo GPIAA, máxime na pág. 23, e testemunhos prestados por (…) e (…), nas passagens identificadas;
iii. A redacção do ponto 14. deve ser igualmente alterada no sentido proposto, considerando o teor das declarações de parte prestadas pela menor;
iv. Também ao facto provado n.º 20 deverá ser aditada a expressão “o piloto”, conforme expressamente referido pelo A. (…) nas declarações de parte por si prestadas;
v. Deverá ser especificado no ponto 21. que quem abriu a porta foi a testemunha (…), o que foi confirmado pelo próprio, na passagem identificada.
vi. Deverá ser aditado ao ponto 32. o segmento indicado, o que decorreu das declarações de parte da menor (…) e do testemunho de (…), fisioterapeuta que a continua a acompanhar.
vii. Deverá ser reformulada a redacção do ponto 64., dado o testemunho da psicóloga que a acompanhou, na passagem indicada;
viii. Deve ser clarificada a matéria que ficou a constar da al. d) do ponto 74., acrescentando-se que, tal como resulta do testemunho prestado pela esposa do R., este suportou as despesas ali elencadas por não as ter comunicado atempadamente aos serviços sociais da GGD;
x. deve ser parcialmente dada como provada a al. B) dos factos não provados, conforme resultou do relato rigoroso da menor (…) nas declarações que prestou na passagem indicada;
xi. Deve ser dada como provada a factualidade constante da al. F), dada a personalidade estruturada, o carácter forte e a maturidade da menor à data do acidente, o que resulta dos testemunhos prestados por (…), (…) e (…), nas passagens que identificam, conjugados com as regras da experiência e declarações da própria (…);
ix. A responsabilidade do réu resulta da aplicação do disposto no art.º 493.º, n.º 2, do CC, uma vez que a navegação aérea não pode deixar de se considerar uma actividade perigosa, conforme vem sendo entendido pela doutrina e jurisprudência;
x. Ainda a entender-se que não é aplicável ao caso o regime do art.º 493.º, n.º 2, do CC será aplicável o disposto no art.º 40.º do DL 238/2994, de 18 de Dezembro, que consagra a responsabilidade objectiva dos pilotos e proprietários das aeronaves, salvo se o acidente se ficar a dever a culpa exclusiva do lesado, pelo que sempre o R. seria responsável.
Com os descritos fundamentos requerem a modificação da matéria de facto nos termos apontados e a revogação da sentença recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que condene o R nos pedidos formulados.
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Também o réu impugnou a sentença, impugnação mandada seguir como recurso subordinado e, tendo apresentado alegações, rematou-as com as seguintes conclusões:
“1.ª Pretende o recorrido (…), ao abrigo do disposto n.º 2 do art.º 636º do CPC impugnar a decisão sobre a matéria de facto e não impugnada pelos apelantes, em concreto o ponto 10 dos factos provados e os pontos L) e M) dos factos não provados;
2.ª A matéria constante do ponto 10 dos factos provados – 10. “O R. não realizou um briefing explicativo à menor”, deve ser alterada, dando-se antes como provado, face à prova testemunhal produzida e já indicada, que “10. O R. não realizou um briefing explicativo à menor, tendo-lhe dito apenas para não mexer em nada”.
3.ª Relativamente à matéria constante do ponto L) dos factos não provados – “À data do acidente a aeronave tinha um valor compreendido entre os € 25.000,00 e os € 30.000,00 – deve a mesma ser igualmente considerada provada face à existência de prova testemunhal e documental, conforme devidamente indicada em sede de alegações.
4.ª Relativamente ao Ponto M) constante dos factos não provados e tendo a sentença recorrida, dado como não provado M): “Os Réus deviam saber que a menor não possuía capacidade e maturidade para ter um baptismo de voo”, deve este passar a constar dos factos provados, tendo em conta que os apelantes (…) e (…) não lograram afastar a presunção legal de culpa que sobre eles impende, nos termos do art.º 491º do CC.
5.ª Em consequência desta alteração da matéria de facto de não provada para provada, deve o pedido reconvencional ser julgado procedente, por verificação de todos os pressupostos ínsitos no art.º 491º do CC, preceito que comina a responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outrem, através de uma presunção de culpa, configurando uma situação específica de responsabilidade subjetiva pela omissão, assentando na ideia de que não foram tomadas as necessárias precauções para evitar o dano, por omissão do dever de vigilância;
6.ª E pela não elisão da presunção de culpa, ou seja, pela inexistência de prova liberatória: a demonstração que cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivesse cumprido.
7.ª Os pais da menor estavam obrigados à vigilância da sua filha menor (…), a quem deviam vigiar na sua atuação, ainda mais quando permitiram o embarque desta num ultraleve, num batismo de voo, descurando o dever de cuidado que uma atividade desta natureza pressupõe e o seu risco inerente.
8.ª Pelo que lhes cabia ter adotado todas as diligências necessárias e concretas a evitar qualquer comportamento que a menor (…) pudesse ter a bordo do ultraleve, factor de responsabilização acrescido pelo conhecimento que o pai (…) havia acabado de adquirir no voo que havia feito durante cerca de 45 minutos.
9.ª Os apelantes (…) e (…) não lograram demonstrar que cumpriram o dever de vigilância perante uma menor de 14 anos de acordo com o padrão de conduta que lhes era exigível naquele caso concreto.
10.ª Estando provado que o acidente se ficou a dever ao movimento da manche efetuado pela (…), conduta adequada à produção de danos para ambos os intervenientes, verifica-se estarmos perante uma atuação desconforme ao caso concreto, o que originou danos.
11.ª Em momento algum foi produzida qualquer prova no sentido dos pais terem tomado alguma diligência preventiva, nomeadamente informando a menor (e em especial o seu Pai … que havia acabado de voar) das sensações que iria ter a bordo daquela aeronave, prevenindo qualquer ataque de pânico ou qualquer receio durante o voo.
12.ª Conforme afirmou o apelante (…), conduziu a sua filha ao ultraleve, colocou-lhe os auscultadores e os cintos e fechou a porta.
13.ª E o apelado (…) apenas lhe disse “não mexas em nada”.
14.ª Daí que, salvo o devido respeito entendemos que os elementos factuais disponíveis permitem afirmar a ilicitude da atuação da menor (…), quando subitamente puxa a manche do avião, provocando com esta atuação o acidente, não tendo sido feita prova suficiente que permita afastar a presunção de culpa por facto próprio dos seus progenitores”.
Com os aludidos fundamentos concluiu pela alteração da matéria de facto no sentido pretendido e consequente condenação dos AA reconvindos no pedido reconvencional formulado.
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Os AA contra alegaram e, tendo suscitado a questão do não conhecimento do recurso do R. reconvinte no que respeita à impugnação do facto não provado M), por inobservância dos ónus prescritos pelo art.º 640.º do CPC, concluíram pela sua improcedência.
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Questão prévia: delimitação do objecto do recurso
Os AA entendem que o recurso interposto pelo R., no que concerne à pretendida alteração da al. M), não se encontra em condições de ser conhecido, uma vez que o recorrente não cumpriu a este respeito quanto impõe o citado art.º 640.º. E têm razão, uma vez que percorridas as alegações do recurso verifica-se que não foi indicado nenhum elemento probatório que impusesse a modificação do decidido, optando o reconvinte por discorrer sobre a responsabilidade dos reconvindos com fundamento na culpa em vigilando, que tem por verificada. Ora, independentemente da valia dos argumentos que aportou aos autos, não têm os mesmos virtualidade para operarem a modificação da decisão de facto termos em que, ao abrigo do disposto no art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC, vai o recurso rejeitado, nesta parte.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões submetidas à apreciação deste Tribunal:
A) Apelação dos AA
- indagar do erro de julgamento no que respeita aos factos provados e não provados;
- determinar se ocorreu erro na interpretação e aplicação do disposto nos art.ºs 493.º, n.º 2 do CC e 40.º do DL 238/2994, de 18 de Dezembro.
B) Apelação do R.
- indagar do erro de julgamento nos factos não provados;
- decidir se o Tribunal errou na interpretação e aplicação da norma plasmada no art.º 491.º do CC, com a consequência dos AA reconvindos serem responsáveis pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo reconvinte.
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i. impugnação da matéria de facto
Porque as questões de facto precedem logicamente as questões de direito, importa apreciar a impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto em ambas as apelações.
Estão em causa os factos dados como provados sob os n.ºs 9., 14., 20., 21., 32., 64., al. d) do n.º 74, as als. B) e F) dos factos não provados (apelação dos AA), 10. dos factos provados e als. L) e M) dos não provados, com o seguinte teor:
Factos Provados
“9. Na fase da descolagem, atento o barulho provocado pela aeronave, é inaudível qualquer comunicação entre o piloto e o passageiro;
10. O R. não realizou um briefing explicativo à menor;
14. No acto de descolagem da aeronave a menor (…) agarrou o comando “manche” posicionada à sua frente e puxou-a para si;
20. Os AA., que assistiam a tudo, precipitaram-se de imediato na direcção da aeronave acidentada, a fim de dela retirarem a menor;
21. A A. (…), após ter-se libertado dos 2 cintos de segurança e após a abertura da porta por uma pessoa que ali se encontrava, saiu do avião;
32. Por indicação médica, teve que frequentar sessões de fisioterapia e hidroterapia, não só para tentar recuperar a mobilidade que tinha antes do acidente, mas também como de forma a atenuar as dores que sentia e ainda sente;
64. A. A (…) recusou-se a prestar qualquer depoimento ao GPIAA;
74. O R. despendeu as seguintes importâncias:
a) Episódio de Urgência de 1 de Janeiro de 2015, no valor de € 85,91;
b) Pagamento das taxas moderadoras relativas ao episódio de urgência, no valor de 50€;
c) Pagamento relativo ao transporte pelos bombeiros – € 257,34;
d) Internamento na ULSBA de 09/01 a 24/01 e Exames – € 6.433,46;
e) Aquisição de Cinta Lombar, no valor de € 71,55;

Factos não provados
B) Quando o R. estava a efectuar a manobra de descolagem da aeronave e a mesma já tinha abandonado o solo, encontrando-se numa posição inclinada de subida, o R. começou a apontar na direcção da “manche” em frente à A. (…), fazendo-lhe sinais e gesticulando para que segurasse a mesma, com um ar transtornado;
F) Caso o R. tivesse informado a A. (…) que a manche era o comando de voo e que em hipóteses alguma lhe poderia mexer, esta teria cumprido a instrução que lhe tivesse sido dada;
L) À data do acidente a aeronave tinha um valor compreendido entre os € 25.000,00 e os € 30.000,00;
M) Os réus deviam saber que a menor não possuía a capacidade e maturidade para ter um baptismo de voo.

Apreciando:
Os AA apelantes pretendem seja modificada a redacção do ponto 9., acrescentando-se a final o segmento “se os auscultadores não estiverem a funcionar”, invocando para tanto os testemunhos prestados por (…) e (…), ambos pilotos de aeronaves com características idênticas à acidentada, e ainda passagem destacada do relatório do GPIAA, elementos probatórios dos quais extrai as conclusões de que “se os ditos auscultadores estivessem a funcionar, teria sido possível a comunicação entre o piloto e a passageira, sem recurso a linguagem gestual e, ainda, sem recurso a voz alta” e “os auscultadores utilizados em aeronaves como a acidentada destinam-se à comunicação entre o piloto e o passageiro durante todo e qualquer momento do voo, incluindo na fase de descolagem”.
Pois bem, ouvidas a este respeito as testemunhas identificadas, quer pelos apelantes, quer pelo réu nas suas contra alegações, de modo algum podem ser sancionadas as ditas conclusões. Assim, e antes de mais, nem os auscultadores se destinam a permitir a comunicação entre o piloto e o passageiro na fase de descolagem, nem resulta que a comunicação fosse eficaz nesta fase ainda que estivessem funcionais.
A propósito, ambas as mencionadas testemunhas … e … (este o perito de segurança na aviação civil revisor do relatório elaborado pelo GPIAA junto aos autos) referiram que a função dos auscultadores neste tipo de aeronaves é essencialmente de protecção, dado o ruído intenso que se faz sentir, em particular na descolagem. E se este último reconheceu que o deficiente funcionamento dos auscultadores, tratando-se de dois pilotos, é aspecto a ponderar, já não quando estão em causa e o piloto e o passageiro, quando tudo o que é necessário ser dito terá de o ser ainda no solo. Tal foi confirmado pela aludida testemunha (…), que apontou ser de todo inconveniente a comunicação entre piloto e passageiro na fase de descolagem.
Deste modo, e por respeito à prova produzida e a que se fez referência, modifica-se o aludido ponto 9., que passará a ter a seguinte redacção:
“9. Na fase da descolagem, atento o barulho provocado pela aeronave, é inaudível qualquer comunicação entre o piloto e o passageiro, sendo no entanto possível fazendo uso dos auscultadores que se encontrem a funcionar sem deficiência os quais, todavia, assumem função essencialmente de protecção do ruído intenso, sendo de todo inconveniente a comunicação entre piloto e passageiro nesta fase”.
Quanto ao ponto 14., e o com ele relacionado facto dado como não provado sob a al. B), os recorrentes fazem apelo às declarações de parte, que qualificam de rigorosas, prestadas pela (…).
Sucede, porém, que as declarações de menor, no relato que faz do que sucedeu no interior da aeronave, não merecem a menor credibilidade. Aliás, a este respeito não pode deixar de se assinalar que os AA trouxeram aos autos diferentes versões, o que é um indício comprometedor da correcção do alegado.
Assim, na primitiva petição inicial, os AA limitaram-se a alegar que “imediatamente após levantar voo, a aeronave realizou um looping, posto o que caiu a pique, na pista” (cf. art.º 11.º).
Na contestação o réu, no art.º 18.º, fez alusão, contrariando-a, à versão do acidente publicada no jornal Correio da Manhã do dia 8 de Fevereiro, ali referida como proveniente da própria menor, segundo a qual “o piloto se teria sentido mal antes do embate da aeronave no solo e terá sido este a pedir-lhe para pegar nos comandos”, acrescentando que não teria já relatado a sua versão à GPIAA “por ainda aguardar a marcação da sua entrevista”.
Na réplica oferecida os ora recorrentes acusaram o R. de se servir de “notícias (de credibilidade duvidosa…) divulgadas nos meios de comunicação social, para atribuir aos AA uma versão dos factos que não foi em momento algum sequer trazida aos autos”, acrescentando que “nunca os AA alegaram que o R. havia desmaiado e pedido à A. (…) para segurar os comandos do ultraleve” (cf. art.ºs 13.º e 14.º da réplica). Não obstante tão claro desmentido, na petição aperfeiçoada não se inibiram os mesmos AA de alegar que “Subitamente, e quando iniciava a descolagem, o ora R. desmaiou, perdendo o controlo da aeronave”, que “realizou um looping, posto o que caiu a pique, na pista” (cf. art.ºs 14.º e 15.º), versão depois sustentada em juízo pela (…) que, no entanto, já reconheceu (o que no articulado fora omitido) que pegara na manche, alegadamente em obediência a ordem que o R. lhe transmitira por gestos. Mas é claro que as coisas não se passaram assim, o que resultou demonstrado à evidência, mesmo sem contar com as consistentes declarações de parte prestadas pelo R., pelos testemunhos conhecedores, convergentes e isentos dos já mencionados (…), perito de segurança, (…), piloto de aeronaves que se encontrava no local, (…), também piloto, e, decisivamente, (…), piloto e instrutor de aeronaves, o qual declarou peremptoriamente que a única explicação possível para o comportamento verificado na aeronave é alguém ter puxado de forma abrupta e violenta a manete para si, manobra que nenhum piloto faz, assim confirmando a versão do demandado. Ademais, e conforme todos declararam, a manobra efectuada em ordem a corrigir a posição da avioneta, e que permitiu evitar piores consequências, exigiu a intervenção do piloto, em termos que não teriam sido possíveis caso se encontrasse desmaiado, tudo conforme a Mm.ª juíza deixou cabalmente explicitado.
Acrescenta-se que, ainda a aceitar que o R. (…), na iminência de uma queda a pique, seguramente fatal, tivesse perdido tempo a deitar um olhar transtornado à menor e à manche, tal só se justifica pelo facto de ter sido surpreendido com o comportamento da avioneta na sequência e como consequência da conduta da (…).
Em face do exposto, não merecendo a pretensão modificativa dos demandantes acolhimento, mantêm-se os pontos impugnados.
Quanto aos factos vertidos nos pontos 20. e 21., são igualmente de manter, o que se afirma em antecipação.
No que respeita ao ponto 20., recorda-se que os AA alegaram desde o início que, tendo assistido a tudo, se precipitaram de imediato na direcção da aeronave acidentada, a fim de dela retirarem a menor (cf. art. 11.º da petição original, 16.º do articulado aperfeiçoado). Pretendem agora, por apelo às declarações prestadas pelo próprio autor, que a tal facto se adite que acorreram para retirarem a menor e também o piloto.
Ora, para lá da escassa ou mesmo nula relevância do segmento pretendido aditar, e sendo certo que o autor saberá o que tinha em mente, a verdade é que, conforme o réu justamente faz notar nas suas contra alegações, o que é natural, comum e conforme às regras da experiência, é que quem tem uma filha menor no interior de uma aeronave que acabou de cair e se encontra em chamas é acorrer para a retirar -a ela e só a ela- do local o mais depressa possível. Admitindo-se que depois lhe acuda ao espírito a necessidade de socorrer o piloto e outras pessoas que se encontrem em risco, não parece curial que num primeiro momento, e enquanto a filha não se encontrar a salvo, se preocupem em socorrer outras pessoas.
Deste modo, e porque o facto em causa, tal como se encontra consignado, para lá de corresponder ao alegado pelos ora recorrentes, sem impugnação, é o que melhor se adequa às regras da experiência ou presunções judiciárias autorizadas, mantém-se nos seus precisos termos.
No que se refere ao aditamento pretendido para o ponto 21., sendo embora verdade que foi a identificada testemunha (…) quem abriu a porta, trata-se de menção que nada aporta à decisão da causa, pelo que nada há a alterar.
Quanto ao ponto 32., considerando o depoimento consistente da testemunha (…) invocado pelos recorrentes, a qual declarou desconhecer se a menor (…) era actualmente acompanhada por fisioterapeuta, tem-se como demonstrado apenas e só que no futuro e em caso de gravidez, é conveniente que faça fisioterapia para fortalecimento muscular.
No que concerne ao ponto 64., a despeito do testemunho prestado por (…), psicóloga clínica que acompanhou a menor, e sem pôr em causa que esta tenha julgado desaconselhável que a mesma fosse colocada numa situação em que teria de relembrar o acidente, não se convenceu este Colectivo que fosse esta a razão pela qual a (…) não depôs perante o GPIAA. Na verdade, e conforme com pertinência o recorrido chamou a atenção nas contra alegações, a menor, segundo o testemunho prestado pela mesma psicóloga, apresentou uma boa evolução, tendo recuperado rapidamente do trauma. Acresce, conforme revelou a mencionada testemunha (…), fisioterapeuta que a acompanhou, que a menor, de forma espontânea, lhe descreveu o acidente -curiosamente, numa versão aproximada à publicada pelo CM, notícia pelos AA apelidada de credibilidade duvidosa mas que pelos vistos reproduziu aquela que era a versão da menor- sem incómodo visível. Ora, se a menor relatou de forma espontânea o acidente ao fisioterapeuta, tendo-se o perito do GPIAA disponibilizado para ouvi-la em condições que lhe proporcionassem todo o conforto, não cremos, nem tal a nosso ver se justificava, que tenha sido o parecer da psicóloga – que a acompanhou durante um número limitado de sessões, cessando o acompanhamento no final do ano – a determinar a recusa dos AA em autorizar a inquirição da filha no âmbito do inquérito, tanto mais que este se prolongou por cerca de 2 anos até à apresentação do relatório. Mantém-se, por isso, imodificado o dito ponto 64.
No que respeita ao aditamento à al. d) do facto 74., é igualmente de recusar, por irrelevante. Com efeito, a terem sido os serviços sociais da CGD a suportar as despesas médicas do R. (…) e não deixaria de lhes assistir o direito a sub-rogar-se ao assistido contra os responsáveis, mantendo-se a eventual responsabilidade dos reclamantes.
Por último, pretendem os AA que deve ser considerado provado quanto consta da al. F, atendendo às características da personalidade da menor (…), reveladas pela própria, e ainda pelas testemunhas (…), (…) e (…).
A propósito, não podemos deixar de observar que tendo a menor, na sua versão, manipulado a manche por ter entendido, admitindo que em erro, que tal lhe estava a ser solicitado pelo réu por se estar a sentir mal, tal significa que tinha a percepção de que se tratava do comando do avião, o que contraria a asserção de que não sabia o que era nem para que servia.
Por outro lado, e tal como a Mm.ª juíza fez consignar na motivação, desconhecendo-se o motivo que levou a menor a puxar a manche para si de forma abrupta e violenta, não é possível asseverar que, caso lhe tivesse sido detalhadamente explicada a sua função, não lhe teria mexido. Isso mesmo foi mencionado pelas experientes testemunhas (…) e (…), quando aludiram à imprevisibilidade do comportamento do passageiro se tomado de pânico aquando da corrida de descolagem, atentas as características da aeronave, e ainda que se trate de um passageiro frequente de voos comerciais, dado que se tratam de situações absolutamente distintas.
Acresce, e com isto entramos na impugnação deduzida pelo réu, que sendo verdade que não explicou à menor, ainda que de forma sucinta, o que era o manche e sua função – o que, todavia, na sua opinião seria intuitivo – não deixou de lhe recomendar que não mexesse em nada. Tal resulta das declarações que prestou, afigurando-se por outro lado verosímil e muito provável, por conforme às regras da experiência, que lhe tenha feito tal genérica advertência. E acreditou-se que não deixou de a fazer, uma vez que, tratando-se embora de uma criança com catorze anos, sabia ser o seu primeiro voo do género.
Os AA argumentam que o réu não alegou tal facto na contestação e que, ouvido no âmbito do inquérito conduzido pelo GPIAA, reconheceu não ter feito um briefing ao passageiro prévio ao embarque, ao que acresce que tendo a menor os auscultadores colocados, os quais não funcionavam, e dado o ruído produzido pela aeronave, ainda a ter sido feita tal recomendação, a mesma não teria sido ouvida pela (…), a qual, de resto, negou que tal tivesse ocorrido.
A este respeito repete-se que, infelizmente, as declarações prestadas pela menor não se afiguraram minimamente credíveis, apresentando a sua versão do acidente sérias contradições, já evidenciadas, não tendo resistido ao confronto com os testemunhos antes indicados, o que corrompeu em absoluto a sua credibilidade.
Arredadas pois as declarações da menor, é todavia correcto que, sem impugnação nesta sede de recurso, se encontra provado que no caso não foi efectuado briefing. Tal facto, no entanto, não é contrariado por aquele outro do R. ter dito à menor para não mexer em nada. E foi com certeza porque o que estava em discussão era saber se tinha ou não sido feito um briefing, que passaria necessariamente pela identificação do manche e dos pedais e explicação das funções de cada um, o que efectivamente não ocorreu, que o referido facto não terá sido alegado.
Em todo o caso, e como se referiu, ouvido o declarante (…), não só mereceu credibilidade, pela coerência das declarações que prestou, mas ainda e sobretudo porque tal conduta, como se referiu e reitera, é perfeitamente conforme às regras da experiência, ou seja, na concreta situação daquele R., o homem comum dirigiria seguramente à menor uma advertência semelhante. E mesmo tendo tal genérica recomendação sido feita à (…) quando se encontrava já sentada na aeronave, terá de se presumir que foi feita antes de lhe terem sido colocados os auscultadores, sob pena de se concluir que o R., piloto experimentado, falou sabendo que não iria ser ouvido.
Em suma, procede quanto ao aludido aditamento a modificação requerida pelo réu.
No que respeita ao valor da aeronave, aponta o impugnante como elementos probatórios a atender o documento de fls. 110 e os testemunhos a este propósito prestados por (…) e (…), ambos familiarizados com o valor das aeronaves.
No que respeita ao documento, declaração de uma sociedade que se presume da área, impõe-se reconhecer que não se encontra suficientemente fundamentado, uma vez que alude apenas ao historial da aeronave, da qual faz uma descrição muito sumária, não fornecendo todavia qualquer informação quanto ao estado em que se encontraria à data e horas de voo.
Por outro lado, também não foram rigorosos os testemunhos indicados pelo impugnante, e sendo certo que adiantaram ambos valores da ordem dos € 40 – 50.000,00, a verdade é que também não fundamentaram de forma consistente o juízo emitido. Não obstante tais considerandos, a verdade é que a aeronave teria com certeza um valor, dando-se por isso como assente que a aeronave pertencente ao reconvinte tinha, à data, valor não apurado.
Procedem assim em parte, nos termos expostos, ambas as impugnações.
Nos termos do disposto no art.º 662.º, n.º 1 e n.º 2, al. c), esta última “a contrario sensu”, por constarem do processo todos os elementos probatórios, aditam-se ainda aos factos provados os seguintes, que decorrem dos já mencionados testemunhos consistentes prestados por (…), (…), (…) e (…), corroborados pelo teor do relatório: i. Foi a manobra da menor que provocou que a aeronave tomasse a atitude de elevação do nariz, ficando em segundos na posição invertida; ii. As manobras realizadas pelo R. permitiram que a aeronave viesse a embater no solo numa posição praticamente de nível, minorando a severidade do impacto.
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II. Fundamentação
De facto
Agora estabilizada, é a seguinte a matéria de facto a ter em consideração para a decisão:
1. Os dois primeiros AA. são pais de (…), menor.
2. O R. é piloto e proprietário da aeronave ultraleve – Rans Coyote II, com a matrícula CS-(…), nº de série (…).
3. A aeronave possui dois comandos de manobração, colocados ao meio dos dois bancos, cuja denominação é a de “manche”, e cuja utilização é simultânea.
4. No dia 01 de Janeiro de 2015, os AA. dirigiram-se ao aeródromo de Beja.
5. Uma vez chegados ao aeródromo, o R., após ter convidado e voado com o pai da menor, convidou a A. (…), para dar um passeio na aeronave.
6. A menor aceitou o convite e os pais consentiram na realização desse passeio.
7. O 1.º A. acompanhou a menor até à aeronave, certificando-se que a mesma colocava os auscultadores e os cintos de segurança.
8. Os auscultadores não se encontravam a funcionar.
9. Na fase da descolagem, atento o barulho provocado pela aeronave, é inaudível qualquer comunicação entre o piloto e o passageiro, sendo no entanto possível fazendo uso dos auscultadores que se encontrem a funcionar sem deficiência os quais, todavia, assumem função essencialmente de protecção do ruído intenso, sendo de todo inconveniente a comunicação entre piloto e passageiro nesta fase.
10. O R. não realizou um briefing explicativo à menor, tendo-a apenas advertido de que não devia mexer em nada.
11. Tendo de imediato colocado a aeronave em funcionamento.
12. O R. sabia que era aquele o primeiro voo que a menor realizava naquele tipo de aeronave.
13. Após o que o A. se afastou, ficando com a A. mãe a observar a descolagem.
14. No acto de descolagem da aeronave a menor (…) agarrou o comando “manche” posicionada à sua frente e puxou-o para si.
15. Após a descolagem a aeronave colocou nariz em cima até cerca de 135º.
15. a) Foi a intervenção da menor que provocou que a aeronave tomasse a atitude de elevação do nariz, ficando em segundos na posição invertida.
16. O R. manteve a aceleração máxima para que o sopro que vinha do hélice não permitisse que os lemes de controlo da aeronave entrassem em falência.
17. Em ordem a corrigir a posição da aeronave, puxou o seu comando manche para a esquerda (deflexão completa do manche à esquerda) e carregou no pedal esquerdo tendo em vista facilitar a manobra de rotação da aeronave sobre si própria.
18. A aeronave rodou pela esquerda no eixo longitudinal e também pela esquerda do eixo vertical ao mesmo tempo que iniciava a queda.
19. Continuou a rodar e descer até ficar aproximadamente na mesma direcção da descolagem e embater no solo.
19. a) A manobra realizada pelo R. permitiu que a aeronave viesse a embater no solo numa posição praticamente de nível, minorando a severidade do impacto.
20. Os AA., que assistiam a tudo, precipitaram-se de imediato na direcção da aeronave acidentada, a fim de dela retirarem a menor.
21. A A. Beatriz, após ter-se libertado dos 2 cintos de segurança e após a abertura da porta por uma pessoa que ali se encontrava, saiu do avião.
22. A menor foi assistida por profissionais do INEM, que foram chamados ao local, e posteriormente transportada, de ambulância, para o Hospital de Beja, tendo dado entrada nesses serviços cerca das 18h32.
23. No mesmo dia foi transferida para a Urgência Pediátrica do Hospital D. Estefânia, em Lisboa, para observação nos serviços de Neurocirurgia e Unidade Vertebro Medular.
24. Em consequência do acidente, a menor sofreu traumatismo craniano e vertebro-medular, traumatismo abdominal e torácico, com fractura das vertebras L1, L2 e L3, fractura temporal direita e lesões de queimadura no membro inferior esquerdo.
25. A menor esteve internada no Hospital D. Estefânia durante 12 dias.
26. Foi submetida a uma intervenção cirúrgica em 08/01/2015, para “fixação de D12 e L3 com CD horizonte/longitude de Medtronic”.
27. Em virtude do acidente ocorrido e das lesões por ele provocadas a menor (…) deixou de poder comparecer no estabelecimento de ensino que frequentava e apenas pôde regressar à escola em 19 de Fevereiro de 2015.
28. Regressou ainda com limitações, uma vez que ficou impedida de frequentar as aulas de Educação Física até ao final do ano lectivo 2014/2015.
29. Ficou também impossibilitada de transportar qualquer peso, nomeadamente e entre outros a mochila escolar, o que obrigou ao acompanhamento permanente dos pais e ao acompanhamento permanente por parte de uma auxiliar do colégio.
30. Em virtude do acidente, a (…) teve e continuará a ter de fazer consultas médicas.
31. Teve e continuará a ter de realizar exames médicos, para avaliar o estado das lesões, a sua evolução e as possíveis sequelas.
32. Por indicação médica, teve que frequentar sessões de fisioterapia e hidroterapia, não só para tentar recuperar a mobilidade que tinha antes do acidente, bem como de forma a atenuar as dores que sentia e ainda sente, sendo recomendável que o faça em caso de eventual gravidez para fortalecimento muscular.
33. Desde a data do acidente até 11.12.2015 foi seguida por uma psicóloga.
34. Deixou de poder praticar natação, ténis e hip-hop, que praticava antes do acidente.
35. A (…) sempre foi uma pessoa dinâmica, aluna de excelência e que sempre se dedicou a diversas actividades.
36. Manifestou sempre uma grande preocupação de que as faltas às aulas pudessem vir a prejudicar o seu percurso académico, o que lhe tem causado momentos de grande nervosismo e stress.
37. Em virtude do acidente sofrido, a (…) passou a precisar de ajuda para se vestir e para a sua higiene diária.
38. No momento do acidente e nos dias que se lhe seguiram, a (…) e os pais temeram pela sua vida.
39. As lesões causadas pelo acidente provocaram-lhe muitas dores.
40. Bem como profundo mal-estar, não tendo posição para se deitar e descansar.
41. A (…) passou a estar triste, deprimida, revoltada, receosa e angustiada;
42. Tem até hoje pesadelos relacionados com o acidente.
43. A menor não participou na viagem de finalistas do 9.º ano com a sua turma a Paris, o que lhe causou um grande desgosto.
44. Em Agosto de 2016 a menor foi submetida a nova intervenção cirúrgica.
45. A A. (…) esteve de baixa durante dois meses após o acidente, para dar apoio à filha (…).
46. Os AA. viveram preocupados com o estado da filha, com a sua evolução, com as sequelas que o acidente deixaria, com as intervenções cirúrgicas que realizou ou que tem que realizar, com as dores por que passou e passa.
47. Por essa razão tiveram dificuldades em concentrar-se no trabalho.
48. Sofreram e ainda sofrem por a verem deprimida e triste.
49. Bem como se sentem receosos das eventuais sequelas do acidente, e por desconhecerem as suas consequências futuras.
50. Após sair do Hospital a menor teve que passar a usar um colete de protecção, que usou durante 126 dias e que custou € 210,00.
51. Os AA. viram-se ainda obrigados a comprar peças de vestuário para a menor que se adaptassem ao uso do colete de protecção, no valor global de € 534,36.
52. Passou a dormir numa cama articulada, no que despenderam os AA. a quantia de € 196,98;
53. Com a compra de uma secretária os AA. gastaram € 16,90.
54. Em consultas médicas e de psicologia, medicação, exames médicos despenderam, até à data, os AA. a quantia global de € 1.029,41.
55. Em sessões de fisioterapia, hidroterapia e natação despenderam os AA. a quantia de € 466,40.
56. Cerca de um ano depois do acidente a A. (…) efectuou duas novas viagens de avião com os colegas do estabelecimento de ensino que frequenta.
57. A A. (…) ignorava que a “manche” era o comando da aeronave.
58. A aeronave interveniente no acidente não estava coberta por qualquer seguro de responsabilidade civil e o certificado de voo estava caducado.
59. O R. não era detentor de um certificado de navegabilidade válido.
60. A documentação do motor do avião não correspondia ao motor instalado.
61. O R. possui licença válida de piloto de ultraleve desde 20-11-1998, contando com mais de 406,45 horas de voo.
62. Nunca tinha tido qualquer acidente com a aeronave.
63. O GPIAA – Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves levou a cabo uma investigação técnica às causas do acidente.
64. A A. (…) recusou-se a prestar qualquer depoimento ao GPIAA.
65. O GPIAA – Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves apresentou como causa do acidente a interferência nos comandos de voo (manche) por parte da passageira e como factores contributivos o embarque apressado devido à aproximação de pôr-do-sol, a ausência de um briefing à passageira sobre o avião e a o piloto não ter contrariado em tempo útil a força exercida pela passageira nos comandos de voo.
66. O R. perdeu os sentidos e permaneceu no interior da aeronave inconsciente.
67. Como consequência do acidente o R. sofreu:
- Traumatismo torácico, com fratura da 4, 5, 6, 7, 8 e 9 costela direitas e hemo pneumotorax bilateral, que foi drenado, tendo removido os drenos a 8 e 9 de Janeiro em Lisboa;
- TCE, sem perda de conhecimento, GCS 15, sem sinais focais;
- Fractura estável do sacro e asa do ilíaco direito e fracturas dos ramos ísquio e ílio esquerdos;
- Queimaduras do 2.º grau;
- Derrame na base pulmonar direita.
68. No dia do acidente o R. foi transferido do Hospital de Beja para o Hospital de S. José, em Lisboa, onde permaneceu internado até 09.01.2015.
69. Daquele hospital foi transferido novamente para o serviço de ortopedia da do Hospital de Beja, onde permaneceu até ao dia 24.01.2015, dali passando a ser seguido em consultas externas de ortopedia.
70. Sentiu dores durante mais de 30 dias, e ainda as sente.
71. O R. sentiu sofrimento, tristeza, medo e anseio pela sua condição física.
72. Sentiu preocupação com o estado de saúde da A. (…).
73. Nos momentos imediatamente anteriores à queda da aeronave receou pela sua vida e pela da (…) e sentiu que iriam morrer.
74. O R. despendeu as seguintes importâncias:
a) Episódio de Urgência de 1 de Janeiro de 2015, no valor de € 85,91;
b) Pagamento das taxas moderadoras relativas ao episódio de urgência, no valor de € 50,00;
c) Pagamento relativo ao transporte pelos bombeiros – € 257,34;
d) Internamento na ULSBA de 09/01 a 24/01 e Exames – € 6.433,46;
e) Aquisição de Cinta Lombar, no valor de € 71,55.
75. Aquando do embate no solo a aeronave incendiou-se e ficou totalmente destruída.
76. À data do acidente a aeronave tinha um valor não apurado.
*
Factos não provados
a) Que tenha sido efectuada à menor uma breve explicação sobre os procedimentos a adoptar dentro da aeronave;
b) Quando o R. estava a efectuar a manobra de descolagem da aeronave e a mesma já tinha abandonado o solo, encontrando-se numa posição inclinada de subida, o R. começou a apontar na direcção do “manche” em frente à A. (…), fazendo-lhe sinais e gesticulando para que segurasse a mesma, com um ar transtornado;
c) Subitamente, e quando iniciava a descolagem, o ora R. desmaiou, perdendo o controlo da aeronave;
d) A aeronave realizou um looping, posto o que caiu a pique, na pista;
e) O R. já se encontrava inanimado no momento em que a aeronave embateu no solo;
f) Caso o R. tivesse informado a A. (…) que a manche era o comando de voo e que em hipóteses alguma lhe poderia mexer, esta teria cumprido a instrução que lhe tivesse sido dada;
g) A A. (…) diz que nunca mais voltará a entrar num avião;
h) Em deslocações aos hospitais durante o período de internamento da (…) gastaram os AA. quantia nunca inferior a € 1.804,20;
i) Os AA. viram-se obrigados a solicitar os serviços de advogados, para os assistir e acompanhar nas diligências que se desenrolaram junto do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves, no que despenderam a quantia de € 1.230,00, a título de honorários;
j) Com a compra de uma cadeira adaptada os AA. gastaram € 37,99;
k) No total a A. deixou de auferir a quantia total de € 2.400,00;
l) À data do acidente a aeronave pertencente ao R., tivesse um valor entre € 25.000,00 e € 30.000,00.
m) Os réus deviam saber que a menor não possuía a capacidade e maturidade para ter um baptismo de voo.
*
De Direito
i. Da responsabilidade do R piloto e proprietário da aeronave
Está em causa nos presentes autos um acidente envolvendo uma aeronave pertença do R. (…), que a tripulava, e a autora (…), então menor de 14 anos de idade, que nela seguia como passageira, do qual resultaram severas lesões para ambos, com os consequentes danos de natureza patrimonial e não patrimonial.
Os AA – pais da menor, por si e em representação desta – dizem ser o R. (…) responsável pela reparação dos danos que sofreram, convocando a responsabilidade objectiva consagrada no art.º 40.º do DL 238/2004, de 13 de Agosto ou, quando assim se não entenda, por prevalecer a presunção de culpa estatuída no art.º 493.º, n.º 2, do Código Civil[1].
O R. (…), por seu turno, defende ser o acidente de imputar em exclusivo à menor (…), sendo esta e seus pais responsáveis pelo ressarcimento dos danos que também sofreu, assentando a responsabilidade dos progenitores no art.º 491.º do CC.
Assim delineados os contornos do litígio, cumpre começar por clarificar, secundando o juízo feito na sentença apelada, que os factos apurados do piloto não ter certificado médico válido à data e o certificado de voo se encontrar caducado, constituindo matéria com eventual relevância contra-ordenacional, nenhuma interferência teve no sinistro dos autos, revelando-se tais circunstâncias completamente alheias ao processo causal que conduziu à queda da aeronave, pelo que não terão de ser aqui consideradas. A igual conclusão se chega quanto à ausência do seguro obrigatório de responsabilidade civil, cuja consequência é fazer recair sobre o próprio R. indemnização a que eventualmente haja lugar.
Os AA imputaram ainda ao R. a violação de normas de protecção de terceiro, designadamente a constante do art.º 54.º, n.º 3, al. f), do Regulamento 146/2001, que atribui ao piloto comandante a responsabilidade pela preparação do voo, por cujos termos deverá assegurar-se previamente que “f) o acompanhante do piloto comandante i. usa adequadamente o cinto de segurança e está apto a manobrar a sua abertura e fecho quando necessário, e ii. conhece o procedimento para abertura e fecho das portas, se existentes, bem como do respectivo mecanismo de abertura de emergência, se aplicável”.
Quanto ao cumprimento da assinalada norma, não resultando do acervo factual apurado que o R. (…) se tenha assegurado de que a menor dominava tais aspectos – até porque foi o 1.º A., pai da menor, quem a acompanhou até à aeronave, certificando-se de que colocava os auscultadores e o cinto de segurança (vide facto provado 7.), de algum modo assumindo ele a gestão do risco decorrente de eventual desconhecimento da filha – a verdade é que a (…) estava inequivocamente apta a manobrar os cintos, pois deles se libertou (facto 21.) e a porta foi prontamente aberta pela testemunha (…). Deste modo, mesmo a admitir que a menor não soubesse proceder à sua abertura – o que em todo o caso não está demonstrado – tal facto, nem interferiu no processo causal que conduziu à queda da aeronave, nem teve qualquer influência nos danos sofridos, sendo portanto irrelevante neste contexto.
Isto dito, resulta evidente da factualidade apurada que, em termos de causalidade, foi a interferência da menor nos comandos de voo que provocou a queda da aeronave e que foi a manobra salvadora do R. (…) a evitar que daí resultassem, com elevada probabilidade, consequências mais gravosas para ambos os ocupantes.
A Mm.ª juíza afastou a aplicação do regime consagrado no citado art.º 40.º com fundamento no facto de o acidente ter ocorrido por causa em exclusivo imputável à menor, nada podendo ter feito o R. (…) para o evitar. Recusou igualmente a aplicação do regime consagrado no art.º 493.º, n.º 2, do CC, por entender que uma aeronave é um meio de transporte que, quanto à sua perigosidade, não se distingue de um veículo automóvel, condução automóvel há muito subtraída ao elenco das actividades perigosas, argumentos que os recorrentes refutam e agora cabe sindicar.
O DL n.º 238/2004, de 18 de Dezembro, regula a utilização de aeronaves civis de voo livre e ultra leves, dispondo no seu art.º 40.º, epigrafado de “Responsabilidade por danos a terceiros”, que “1 - Os proprietários dos ultraleves e os pilotos das aeronaves de voo livre abrangidos pelo presente diploma são responsáveis, independentemente de culpa, pelo ressarcimento dos danos causados a terceiros pela aeronave, salvo se o acidente se tiver ficado a dever a culpa exclusiva do lesado.
2. A responsabilidade estabelecida no número anterior, quando não haja culpa do proprietário ou piloto, tem por limite máximo o montante estabelecido na legislação em vigor para o sector da aviação civil”.
O n.º 1 do preceito consagra a responsabilidade objectiva do piloto, a qual é, todavia, excluída quando o acidente se tenha ficado a dever a culpa exclusiva do lesado. Considerando a alusão à “culpa do lesado” afigura-se que, diferentemente do que ocorre com o art.º 505.º do CC, não está em causa, naquele outro preceito, apenas uma questão de causalidade; por outras palavras, enquanto no regime do art.º 505.º, sendo os danos verificados no acidente (em exclusivo) uma consequência do facto praticado pela vítima ou por terceiro, tanto basta para que resulte afastada a responsabilidade daquele que detém a direcção efectiva do veículo, o art.º 40.º exige e pressupõe a culpa do lesado, isto é, que a sua conduta seja passível de um juízo de censura, para operar esse mesmo efeito.
Sendo o referido o entendimento que se tem por correcto, afigura-se que o acervo factual apurado não permite que se conclua pela culpa, para mais exclusiva, da menor. Reconhecendo-se embora que o acidente é de imputar objectivamente à acção da (…), que foi assim causal da queda da aeronave e dos danos daí decorrentes, e pese embora não se trate de menor inimputável, pois contava 14 anos de idade à data do evento danoso (cf. n.º 2 do art.º 488.º “a contrario sensu”), a verdade é que são desconhecidas as razões que a levaram a agarrar o manche (ou alavanca de comando) e puxá-lo para si de forma inopinada. Acresce que, tendo resultado demonstrado que desconhecia qual a função daquela alavanca, ou seja, não sabia que interferia no controlo da aeronave – ao invés do que o R. parece entender, temos muitas dúvidas em considerar que uma criança de 14 anos intuísse que se tratava de um segundo “volante” operacional – não pode concluir-se que actuou de forma culposa, ainda que de culpa leve se tratasse.
Arredado que a ocorrência do acidente possa ser imputada em exclusivo e a título culposo à menor, subsistia a responsabilidade objectiva do R. (…) nos termos do aludido art.º 40.º.
Mas ainda quando assim não fosse entendido, afigura-se – divergindo, também aqui, do entendimento perfilhado na sentença recorrida – que a actividade de tripular uma aeronave de voo livre deverá ser qualificada de perigosa, atenta a sua natureza, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 493.º, isto tendo em consideração não só a frequência com que ocorrem acidentes, mas sobretudo pela sua potencial danosidade (reconhecimento da perigosidade que, de resto, fundamentará a responsabilidade objectiva do piloto e do proprietário consagrada no art.º 40.º DL n.º 238/2004). Em todo o caso, sempre assim seria de considerar no caso específico daquela aeronave, que dispunha de duplo comando, propiciando a intervenção não autorizada e inopinada do passageiro, decorrendo assim a especial perigosidade da natureza do meio empregue, preenchendo a previsão normativa do preceito em análise.
Da análise do n.º 2 do art.º 493.º, e no que respeita à repartição do encargo probatório, resulta que ao lesado caberá a prova de que o resultado danoso resultou da concretização do perigo ou perigos que justificam a qualificação daquela concreta actividade como perigosa, ao passo que o lesante, para afastar a sua responsabilidade, terá de demonstrar que “empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos”, irrelevando desde logo a demonstração da inoperância do comportamento lícito alternativo[2].
Reconhecendo que ao onerado não será possível a demonstração de que empregou todas as providências exigidas – mesmo numa perspectiva ex-ante, uma vez que “a posteriori” será fácil identificar a precaução omitida que poderia ter evitado o evento danoso –, o afastamento da presunção vincularia à prova de que o evento lesivo teve a sua causa real num facto alheio ao complexo de meios que consubstancia a actividade perigosa, tendo ficado a dever-se, nomeadamente, à culpa do lesado, de terceiro ou caso fortuito, sentido em que foi desenvolvido o esforço probatório do R, cremos todavia que sem êxito.
Está provado que o R. (…), tendo genericamente advertido a menor que não mexesse em nada, absteve-se no entanto de a esclarecer quanto aos perigos de mexer no comando manche que se encontrava acessível, designadamente porque interferia com o controlo da aeronave, sendo como que um segundo “volante”. Pese embora não haja norma que o imponha no âmbito dos voos de lazer privado, a verdade é que se trata de diligência que o R. poderia ter levado a cabo e à qual haverá que reconhecer potencial aptidão para obstar à conduta do menor. Com efeito, e conforme refere Rui Mascarenhas Ataíde, denunciando o entendimento que vem sendo seguido a propósito deste n.º 2 do art.º 493.º[3], “Quanto ao facto de terceiro ou do lesado que concorram para a produção do dano, não se considera igualmente suficiente para impedir a responsabilidade que o prejuízo seja ocasionado por intromissões não consentidas na esfera do agente, sendo indispensável a prova de se ter adotado todas as medidas oportunas e suficientes para evitar essa interferência ou, pelo menos, para avisar terceiros sobre a existência do perigo, de modo que o efeito liberatório só é admitido quando o facto do terceiro ou do lesado excluem com segurança a ligação causal entre o exercício da actividade perigosa e os danos”. Deste modo, e em conclusão, ao omitir a advertência que devia e podia ter feito à menor (…) no sentido de não mexer no manche ou segundo comando, que se encontrava perfeitamente acessível à passageira, esclarecendo-a a respeito da sua função e perigos que resultariam de tal conduta o R. (…) não adoptou todas as medidas exigidas perlas circunstâncias em ordem a prevenir o dano, subsistindo portanto a presunção de culpa consagrada no n.º 2 do art.º 493.º e tornando-o responsável pela reparação dos verificados.
*
Da responsabilidade da menor e dos vigilantes
O R. (…), no entanto, e conforme se deixou referido, não se limitou a recusar qualquer responsabilidade pela ocorrência do acidente, antes imputando tal responsabilidade à menor e seus pais, pedindo a condenação de todos na reparação dos danos que também sofreu (sendo certo ainda que nos termos da parte final do art.º 572.º, a verificar-se culpa do lesado ou, por força da equiparação feita pelo artigo precedente, dos seus representantes legais, o tribunal dela deveria conhecer).
Já se deixou referido que a menor (…), tendo à data 14 anos, não é inimputável para efeitos do disposto nos art.ºs 488.º, n.ºs 1 e 2 e 489.º. Sendo imputável, a menor responderia, em abstracto, com todos os seus bens nos termos gerais da responsabilidade civil, exigindo-se portanto que tenha actuado com culpa. Por assim ser, considerando a ausência de aptidão para avaliar os riscos e programar a sua actuação de acordo com essa avaliação, que é afinal o que caracteriza o incapaz natural não inimputável, tal terá forçosamente de se repercutir no juízo de censura que haja de recair sobre a actuação negligente causadora do dano, “porquanto a censura fundada na infracção de deveres no tráfego se baseia justamente na reprovação do agente/omitente por ter descurado os cuidados necessários para impedir a lesão dos bens jurídicos”[4]. Assim, o menor lesante só responderá – trata-se de uma responsabilidade subjectiva pessoal, distinta daquela que eventualmente recaia sobre os vigilantes – se o seu comportamento, avaliado à luz dos padrões de cuidado aplicáveis ao sector de tráfego em que se insere, ficar aquém do que é capaz e, por isso, lhe é exigível.
No caso vertente, e conforme se deixara já intuir, afigura-se, à luz da factualidade assente, que não detendo a menor (…) nem o conhecimento nem a experiência que lhe permitissem avaliar com correcção o risco que representava o voo numa aeronave de duplo comando, de modo a evitar condutas perigosas, estando assim numa situação de incapacidade natural (o que nos isenta de discutir se a menoridade – para lá dos 7 anos de idade – a faz presumir), e desconhecendo-se o que a motivou a manobrar o manche, a sua conduta não é susceptível de um juízo de censura capaz de fundamentar a obrigação de indemnizar os lesados, sendo portanto de manter a sua absolvição.
Já no que se reporta à responsabilidade dos vigilantes seus pais se entende que a solução deve ser outra, o que se antecipa.
Nos termos do disposto no art.º 491.º “As pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por virtude da incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas causem a terceiro, salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido”.
A presunção de culpa estabelecida no preceito vindo de transcrever só se desencadeia quando o lesado faça prova do facto indiciário que a suporta, a saber, a prática do acto danoso pelo incapaz natural e a existência de um dever de vigilância. Feita esta prova, o vigilante liberta-se do ónus mediante a prova de que cumpriu com o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivesse cumprido. Conforme se sintetizou no aresto do TRC de 5/12/2006, processo, 2000/03.0TBVIS.C1, em www.dgsi.pt “I. Está em causa não uma responsabilidade objectiva ou por facto de outrem, mas por facto próprio, baseada na presunção ilidível de um dever de vigilância (culpa in vigilando); II. A presunção de culpa contém simultaneamente uma presunção de causalidade; III. Ao lesado apenas compete provar a existência do dever de vigilância e do dano causado pelo acto antijurídico da pessoa a vigiar”.
Ao vigilante compete instruir, vigiar – o que não implica uma vigilância obsessiva e permanente, impondo-se que seja deixado o espaço necessário ao desenvolvimento do menor – e proibir condutas aptas à causação de danos, meios de intervenção que deve exercitar.
A propósito da densificação deste dever, considerou-se, a nosso ver correctamente, no acórdão do TRP de 4/12/2008 (processo n.º 0835295, acessível em www.dgsi.pt), que “I. O dever de vigilância tem duas componentes: uma, mais ampla e genérica, que corresponde à adequada formação da personalidade do menor, através da sua educação, e outra, mais restrita, que corresponde aos cuidados e cautelas que, em concreto, devem ser adoptados em cada momento e em cada situação. II - A culpa in vigilando exprime um juízo de censura pela omissão do dever de vigilância reportado a um acto concreto e que se traduz na inobservância dos cuidados e cautelas que eram idóneos para evitar a prática daquele concreto acto danoso e que um bom pai de família adoptaria naquelas circunstâncias concretas, em função da idade da pessoa a vigiar e em função da sua personalidade, sentido de responsabilidade e educação recebida”.
No caso em apreciação, os autos revelam que o pai da menor tinha acabado de fazer uma viagem na aeronave, tripulada pelo R., que durou 45 minutos – conhecia, portanto, as características da aeronave, designadamente a circunstância de se encontrar dotada de um duplo comando perfeitamente acessível ao passageiro, sabia das deficiências de funcionamento dos auscultadores e devia conhecer o grau de maturidade da menor sua filha, em ordem a avaliar que instruções concretas se revelavam necessárias naquelas concretas circunstâncias para minimizar uma situação de risco e obstar que os perigos imanentes se concretizassem em danos, quer para a menor, quer para terceiros. Não obstante ter acompanhado a filha à aeronave, tendo-lhe colocado os auscultadores e os cintos – assim assumindo de algum modo tarefas que de outro modo competiriam ao R. (…) – os AA, designadamente o autor-marido, nenhum esclarecimento prestaram à menor, designadamente quanto à função do comando e sensações que iria enfrentar na descolagem (muito diferentes das percepcionadas num avião comercial, nos quias a menor já viajara), nenhuma instrução lhe deram e, sobretudo, não a proibiram de forma expressa, como se impunha, de mexer no comando manche ou nos pedais que pelo menos o progenitor bem sabia que se encontravam ao seu alcance.
É certo, dir-se-á, que desconhecendo-se a razão pela qual a menor actuou como descrito – se tomada de pânico provocado pela trepidação da aeronave ao descolar, se por qualquer outro motivo – não poderá afirmar-se que, ainda a terem sido tomadas as descritas medidas cautelares, o dano não se teria verificado. Sucede, porém, que tal não é suficiente para desonerar os vigilantes da presunção que sobre eles impende, exigindo a lei, inversamente, a prova de que o dano ocorreria mesmo que tivessem cumprido com o dever de vigilância nas apontadas vertentes, demonstração que não lograram fazer; pelo contrário, argumentando os próprios AA que, dada a maturidade da (…), a ter-lhe sido explicada a função do comando manche, a menor não lhe teria mexido, parece que a adequada supervisão nas apontadas modalidades era adequada à evitação da conduta lesiva.
Tendo em consideração quanto vem de se dizer conclui-se que para o evento danoso contribuíram as condutas culposas concorrentes dos AA e do R. (…), termos em que, não se vendo razão para distinguir o peso relativo da culpa de cada um, se fixam em igual medida.
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Da indemnização pelos danos reclamados pelos AA
Os AA (…) e (…) reclamaram a condenação do R. no pagamento da quantia de € 7.946,51 a título de danos patrimoniais, acrescida dos juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento e € 25.000,00 para reparação dos danos de natureza não patrimonial.
Conforme a este respeito se ponderou no acórdão do STJ de 9 de Julho de 2014 (processo n.º 686/05.0 TBPNI.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt), sendo, em nosso entender, de caracterizar os prejuízos sofrido pelos recorrentes como danos próprios, ainda que reflexo dos sofridos pela vítima directa, neste caso a sua filha menor, a primeira nota que se impõe é a de que “repugna, à luz dos princípios da responsabilidade civil (…) que o causador culposo do facto gerador da responsabilidade não responda pela totalidade dos danos resultantes do evento danoso”.
Por outro lado, não se vê fundamento para excluir do círculo de aplicação do n.º 2 do art.º 495.º do CC, ainda que por força de interpretação extensiva ou analogia, o progenitor que suporta prejuízos em razão da assistência prestada ao filho, por não lhe ser exigível que suporte tais sacrifícios na sua esfera jurídica em benefício do obrigado à reparação (cfr., neste mesmo sentido, o aresto citado, remetendo para a declaração de voto no AUJ n.º 5/97, de 14/01/97, in DR,I-A, de 27/a 3/97, pg. 1364[5], e ainda o Ac. do STJ de 01-03-2007, processo 4025/06).
Demonstrado nos autos (cf. pontos 50. a 55.) que os AA apelantes se viram obrigados a realizar despesas e que, não fora o sinistro dos autos, não lhe seriam impostas, têm direito a ser indemnizados nos termos prevenidos no n.º 2 do art.º 495.º, que temos por extensivamente aplicável[6].
No que se refere ao montante da indemnização, preside ao seu cálculo a teoria da diferença (566.º, n.º 2), devendo o obrigado à reparação reconstituir a situação que existiria se não tivesse sido o evento danoso.
Tratando-se, como é o caso, de indemnização em dinheiro, haverá que atender ainda a quanto dispõe o art.º 566.º pelo que, tendo-se apurado que despenderam € 2.454,05, é o R. (…) responsável por 50% do apurado dispêndio, acrescido de 50% do que os AA vierem a despender em consultas e tratamentos médicos cuja necessidade seja determinada pro sequelas resultantes do acidente dos autos (dano futuro previsível). Anota-se que pese embora tenha resultado demonstrado que a autora (…) esteve de baixa durante 2 meses para assistir a menor sua filha, já não resultaram provadas as perdas salariais (matéria de resto não impugnada), pelo que nenhum montante reparatório haverá a este respeito que fixar.
No que respeita aos danos de natureza não patrimonial reclamados, sendo a gravidade do dano a única condição de ressarcibilidade, afigura-se evidente que os AA passaram momentos de aflição extrema ao darem conta de que a aeronave onde a filha seguia como passageira se despenhara e incendiara de seguida, sendo igualmente mais que compreensível a preocupação que sentiram e se prolongou durante meses, atentos à evolução da recuperação da (…). Não há, pois, como negar a indiscutível gravidade do dano que sofreram, idóneo portanto a beneficiar da tutela conferida pelo art.º 496.º.
A questão da ressarcibilidade dos danos desta natureza, normalmente qualificados como reflexos ou indirectos, foi extensamente versada no acórdão uniformizador n.º 6/2014, Diário da República n.º 98/2014, Série I de 2014-05-22, que fixou a jurisprudência nos seguintes termos: “Os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1, do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave”. Apesar da referência ao cônjuge, parece não sofrer contestação que nada obsta à extensão da doutrina fixada de modo a abranger outros familiares próximos do lesado atingidos, designadamente, conforme é o caso dos autos, aos progenitores, dano a valorizar autonomamente (neste preciso sentido, o acórdão do TRP de 7/2/2017, no processo 1896/13.1TBPVZ.P1, em www.dgsi.pt).
Não poderá todavia perder-se de vista que, conforme profusamente se adverte no identificado acórdão uniformizador, a extensão compensatória nele admitida servirá apenas para os casos de particular gravidade. Ali se afirmou, para reforçar tal carácter excepcional das situações abrangidas, que “A interpretação atualista arrasta consigo, limitando-a, a sua própria justificação. Que inexiste no caso em que as lesões não são graves e/ou o chegado ao lesado não tem sofrimento intenso. Repare-se que lesões ligeiras, demandando, por regra, compensação por danos não patrimoniais, demandam também, principalmente no caso de crianças ou outros dependentes, danos não patrimoniais aos ligados afetivamente àqueles. Por isso, não podemos interpretar o artigo 496.º, n.º 1, equiparando a vítima ao que lhe está afetivamente ligado. Passaria a ser regra a "pulverização" indemnizatória, em dessintonia com o princípio-base de que é àquela que assiste o direito à compensação.
Temos de ter sempre presente que estamos a abrir uma brecha na dogmática geral de que é a vítima, se sobreviver, a pessoa a indemnizar. Não podemos interpretar o preceito acabado de referir como se dissesse "Na fixação das indemnizações ...".
Por isso, entendemos dever reservar a extensão compensatória apenas para os casos de particular gravidade”.
De regresso ao caso dos autos, e pese embora a menor (…) tenha saído da aeronave pelo seu pé, o que com certeza representou um imediato alívio para os AA, tal não os poupou ao horror daqueles momentos iniciais, nem tão pouco à preocupação que concerteza os dominou pelo menos até que a menor foi capaz de retomar os seus estudos em regime de quase normalidade. Deste modo, e cientes embora da particular parcimónia que deverá presidir ao reconhecimento do direito a indemnização no caso dos denominados danos reflexos, afigura-se que no caso em concreto será de atribuir, fixando-se em juízo de equidade no valor de € 4.000,00, já actualizado, sendo o R. (…) responsável por metade.
No que se refere ao montante indemnizatório a atribuir à menor (…) pelos danos de natureza não patrimonial sofridos, considerando os factos descritos de 25. a 29., 32. e 34. a 44. e atendendo ao grau de culpa do R. (…), cuja actuação foi no sentido de minorar as consequências, que poderiam ter sido fatais para ambos, fixa-se o montante indemnizatório em € 10.000,00, também já objecto de actualização, pelo qual respondeu os AA e o aquele R. em regime de solidariedade, podendo este vir a exercer direito de regresso pelo montante pago, acolhendo-se aqui a solução que resulta do disposto no art.º 497.º, com afastamento do regime dos art.ºs 570.º e 571.º (cfr., neste sentido, Maria da Graça Trigo, “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação”, 2015, Direito e Justiça, Estudos dedicados ao Prof. Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, vol. II, pág. 493 e segs., citada no ac. do STJ de 1/6/2017, processo n.º 112/15.1T8VCT.G1.S1, em www.dgsi.pt).
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Da indemnização pelos danos reclamada pelo R. (…)
O apelante (…), réu reconvinte, reclamou dos autores indemnização no valor global de € 54.398,26, sendo € 34.398,26 a título de danos de natureza patrimonial e € 20.000,00 para compensação dos danos de natureza patrimonial, tudo acrescido de juros contados da data da notificação dos reconvindos.
Provou-se que em consequência do acidente o reconvinte sofreu as extensas lesões discriminadas no ponto 67., tendo sofrido 23 dias de internamento, sentiu dores, que persistem, sofrimento, tristeza, medo e anseio pela sua condição física e estado de saúde da menor. Tendo obviamente percepcionado a gravidade da situação logo que ocorreu, temeu pela sua vida e da (…), sofrimento físico e psíquico que reveste a gravidade pressuposta pelo art.º 496.º, sendo portanto titular de direito a indemnização para compensação dos mesmos. Ponderando a gravidade do dano e grau de culpa dos lesantes, fixa-se a indemnização no valor de € 7.500,00, também já objecto de actualização, sendo os AA (…) e (…) responsáveis pelo pagamento de 50%.
No que respeita aos danos de natureza patrimonial, respondem por 50% das despesas efectuadas, no valor apurado de € 6.898,26 e ainda metade do valor que se vier a apurar que tinha a aeronave acidentada, até ao máximo de € 27.500,00.
Procedem assim parcialmente, nos termos expostos, os recursos interpostos por AA e R.
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III. Decisão
Acordam os juízes que constituem a 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedentes as apelações interpostas pelos AA e pelo R e, em consequência, na parcial procedência da acção e da reconvenção:
a) condenam o R. (…) a pagar aos AA. (…) e (…) a quantia de € 1.227,03, acrescida de juros de mora vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, contados à taxa supletiva legal, e ainda 50% do que os AA vierem a despender em consultas e tratamentos médicos cuja necessidade seja determinada por sequelas resultantes do acidente dos autos;
b) condenam o R. (…) a pagar aos AA. (…) e (…) € 2.000,00 (dois mil euros), para compensação dos danos de natureza não patrimonial sofridos, acrescidos de juros de mora desde a data da presente decisão e até integral pagamento;
c) condenam o R. (…) a pagar à autora (…) a quantia de € 10.000,00, acrescida dos juros que se vierem a vencer à taxa supletiva legal desde a data da presente decisão e até integral pagamento;
d) condenam os AA. (…) e (…) a pagar ao reconvinte (…) a quantia de € 3.750,00 a título de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial, acrescida de juros de mora contados da presente decisão até integral pagamento;
e) condenam os AA a pagar ao R o montante de € 3.449,13, acrescido de juros desde a data da notificação para contestar o pedido reconvencional e vincendos até integral pagamento e 50% do montante que se vier a apurar em posterior liquidação corresponder ao valor venal da aeronave acidentada à data do acidente, até ao máximo de € 27.500,00, mantendo-se quanto ao mais a sentença recorrida.
Custas da acção nesta e na 1.ª instância a cargo de AA e R. na proporção dos seus decaimentos; custas da reconvenção, nesta e na 1.ª instância, a cargo do reconvinte e dos AA na proporção dos seus decaimentos no que respeita ao valor de € 26.878,26, suportando-as em partes iguais no que respeita ao montante de € 27.500,00, procedendo-se a rateio após a liquidação.
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Évora, 12 de Junho de 2019
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho
José Manuel Barata
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[1] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser mencionadas sem menção da sua origem.
[2] Seguido de perto, Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, “Responsabilidade Civil por Violação de Deveres no Tráfego”, págs. 500-501.
[3] Rui Ataíde, “Responsabilidade civil…”, pág. 515.
[4] Autor e ob. cit., pág. 550.
[5] No acórdão proferido em 17/9/2009, revista 292/1999-S1, acessível também em www.dgsi.pt, o STJ decidiu indemnizar o cônjuge do lesado pela perda de salários durante o tempo em que deixou de trabalhar para lhe prestar assistência, pese embora tenha feito vencimento (tangencialmente, contando-se 2 votos de vencido) a posição mais restritiva no que respeita à ressarcibilidade dos danos reflexos.
[6] Podendo ainda ser convocado, em nosso entender, o instituto da sub-rogação.