Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1144/17.5PBSTB.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS E PORNOGRAFIA DE MENORES
CONCURSO EFETIVO DE CRIMES
Data do Acordão: 09/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Praticando o agente atos integradores de crimes de abuso sexual de crianças e do crime de pornografia de menores haverá concurso efetivo de crimes.

II. A lei penal arreda expressamente a unificação de tais condutas através da figura do crime continuado, em razão na natureza eminentemente pessoal do bem jurídico violado. Não acomodando o princípio da legalidade igualmente a unificação de tais atuações através das figuras do crime de trato sucessivo ou do crime exaurido.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

a) No 1.º Juízo (1) Central Criminal de Setúbal, do Tribunal Judicial da comarca de Setúbal, procedeu-se a julgamento em processo comum e competência do tribunal coletivo de OSML, nascido a …, solteiro, …, com o 12.º ano de escolaridade, residente na Rua …, em …, a quem foi imputada a prática, como autor, dos seguintes ilícitos penais:

- 44 crimes de abuso sexual de crianças, previstos no artigo 171.º, § 1.º e 2.º do Código Penal (CP);

- 1 crime de pornografia de menores perpetrado sobre a menor Sara Sebastião, previsto no artigo 176.º, § 1.º, al. b) e agravado nos termos do artigo 177.º, § 6.º CP, e;

- 2 crimes de pornografia de menores (partilha por duas vezes, a duas pessoas distintas, das fotografias enviadas pela menor), previstos no artigo 176.º, § 1.º, al. d) e 177.º, § 6.ºCP.

O arguido não apresentou contestação.

A final o tribunal proferiu acórdão, no qual, requalificando juridicamente os factos, condenou o arguido pela prática, como autor, em concurso real, de:

- 2 crimes de abuso sexual de crianças, previstos no artigo 171.º, § 1.º e 2.º CP, na pena de 4 anos de prisão por cada um dos ilícitos;

- 4 crimes de atos sexuais com adolescentes, previstos no artigo 173.º, § 1.º e 2.º CP, na pena de 1 ano de prisão por cada um dos ilícitos;

- e pela prática de 1 crime de pornografia de menores, previsto no artigo 176.º, § 1.º, al. b) CP, agravado nos termos do artigo 177.º, § 6.º CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão.

Fixando-se a pena única do concurso de crimes em 7 anos e 6 meses de prisão.

Absolvendo o arguido do demais de que vinha acusado (nomeadamente da prática de 44 crimes de abuso sexual de crianças; e 2 crimes de pornografia de menores agravado).

b) Inconformado com a decisão o arguido recorreu, finalizando a sua motivação com as seguintes (e desnecessariamente extensas (2) ) conclusões (transcrição):

«1) Após produção de prova em Audiência de Julgamento, entendeu o Tribunal «a quo» que «apurados os factos que se circunscrevem, não na matriz do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171º, nºs 1 e 2, ambos do Código Penal, por cuja prática (44 crimes), o arguido vinha acusado, mas à luz do preceituado pelo art. 173º, nº1 e 2, do mesmo compendio normativo, ou seja, pela prática de crime de abuso sexual com adolescente.»

2) Decorre do artigo 178º, nº3, que o procedimento criminal pelo crime previsto no artigo 173º depende de queixa.

3) Compulsados os autos, constata-se que 19/09/2017, a mãe da menor apresentou denúncia, designadamente por «ter acedido à página do Facebook da sua filha S e ter constatado que que um individuo de nome SL efetuou diversas conversas e enviou imagens de teor sexual para a sua filha, e o mesmo convenceu a sua filha a enviar-lhe fotografias e vídeos da própria em trajes menores e nua».

4) Do auto de denúncia não se retira que a denunciante manifeste o desejo de procedimento criminal.

5) Tratando-se de crime semipúblico, é condição do procedimento criminal a tempestiva manifestação de vontade de instauração do procedimento criminal, por parte do ofendido, definindo-se este como o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação - art.º 113.º, n.º 1, do CP.

6) A atividade desenvolvida pelo Ministério Público quando não dispõe de legitimidade para o exercício da ação penal, nos termos do artigo 48.º do Código Penal, equivale à falta de promoção do processo quando lhe assiste a legitimidade, à face do mesmo preceito legal.

7) No caso presente, carecendo o Ministério Público de legitimidade para perseguir criminalmente o arguido quanto aos factos que consubstanciam a prática do crime previsto e punido pelo art. 173º do CP, forçoso é concluir que foi cometida uma nulidade insanável, que pode ser invocada, o que aqui se faz, e conhecida oficiosamente a todo o tempo até ao trânsito em julgado da decisão final.

8) As provas valoradas em audiência de julgamento e constantes da gravação nele realizada, impunham ao Tribunal «a quo» decisão diversa no que concerne à matéria de facto dada como provada.

9) O arguido considera que foram julgados de forma incorreta, os seguintes pontos da Matéria de Facto provada:

(4.) Com vista a aproximar-se da menor SS, o arguido pediu à mãe desta para que a deixasse ir para sua casa aos fins de semana para tomar conta das suas filhas menores de idade, justificando tal pedido com a “necessidade de ajuda” em tal desiderato, e com o “mau momento financeiro” que atravessava.

(7). De seguida, no sofá, o arguido e SS despiram-se.

(8). Após o arguido deitou-se sobre a SS, introduziu o seu pénis erecto na vagina desta e, fazendo vários movimentos para cima e para baixo, ejaculou.

(9). Previamente à relação sexual, SS informou o arguido que era virgem, nunca tendo qualquer contacto sexual com outra pessoa.

(16). O arguido sabia perfeitamente que, a 5 de setembro de 2016, altura em que iniciou as relações sexuais com SS, esta tinha apenas 13 anos de idade.

(17). O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado, sendo maior de idade, praticar actos sexuais de relevo, nomeadamente de cópula, com SS, à data com 13 anos de idade, satisfazendo, dessa forma, os seus desejos libidinosos.

(18). O arguido de forma livre, deliberada e consciente o propósito alcançado de aliciar a menor SS a tirar fotos pornográficas, como efetivamente ocorreu, bem sabendo se tratava de uma menor de 14, ou 15 anos

(g)) Sabia o arguido que quando praticou os factos referidos na alínea b) a SS tinha 13 anos de idade.

(h)) Sabia ainda o arguido, aquando da prática dos actos referidos nas alienas c), d) e), que a SS tinha 14, ou 15 anos de idade.

(i)) O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado, sendo maior de idade, praticar actos sexuais de relevo, nomeadamente cópula, coito anal e coito oral, com SS, quando esta tinha 14, ou 15 anos de idade, satisfazendo, dessa forma, os seus desejos libidinosos.

10) Os meios de provas que impunham decisão diversa são as declarações de SCFS, prestadas em audiência de julgamento de 12-01-2021, cujo depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 10 horas e 29 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 47 minutos e da testemunha APMFS, depoimento prestado em audiência de julgamento de 12-01-2021, e gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 16 horas e 04 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 42 minutos.

11) Se atendermos as declarações da testemunha SS e AP, teremos que concluir forçosamente que o arguido desconhecia a idade da menor.

12) Não ficou provado que o arguido utilizou o argumento da necessidade de ajuda com as filhas, para ardilosamente, se aproximar da S.

13) Deveria o Tribunal «a quo» dar como não provados da decisão sobre a matéria de facto, o seguinte:

Facto (4.) Com vista a aproximar-se da menor SS, o arguido pediu à mãe desta para que a deixasse ir para sua casa aos fins de semana para tomar conta das suas filhas menores de idade, justificando tal pedido com a “necessidade de ajuda” em tal desiderato, e com o “mau momento financeiro” que atravessava.

Facto (7). De seguida, no sofá, o arguido e SS despiram-se.

Facto (8). Após o arguido deitou-se sobre a SS, introduziu o seu pénis erecto na vagina desta e, fazendo vários movimentos para cima e para baixo, ejaculou.

Facto (9). Previamente à relação sexual, SS informou o arguido que era virgem, nunca tendo qualquer contacto sexual com outra pessoa.

Facto (16). O arguido sabia perfeitamente que, a 5 de setembro de 2016, altura em que iniciou as relações sexuais com SS, esta tinha apenas 13 anos de idade.

Facto (17). O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado, sendo maior de idade, praticar actos sexuais de relevo, nomeadamente de cópula, com SS, à data com 13 anos de idade, satisfazendo, dessa forma, os seus desejos libidinosos.

Facto (18). O arguido de forma livre, deliberada e consciente o propósito alcançado de aliciar a menor SS a tirar fotos pornográficas, como efetivamente ocorreu, bem sabendo se tratava de uma menor de 14, ou 15 anos

Facto (g)) Sabia o arguido que quando praticou os factos referidos na alínea b) a SS tinha 13 anos de idade.

Facto (h)) Sabia ainda o arguido, aquando da prática dos actos referidos nas alienas c), d) e), que a SS tinha 14, ou 15 anos de idade.

Facto (i)) O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado, sendo maior de idade, praticar actos sexuais de relevo, nomeadamente cópula, coito anal e coito oral, com SS, quando esta tinha 14, ou 15 anos de idade, satisfazendo, dessa forma, os seus desejos libidinosos.

14) O Tribunal «a quo» deveria dar como provado que:

A) o arguido desconhecia a idade da menor;

B) que arguido e SS tiveram relações sexuais, por decisão conjunta, na sequência de um relacionamento amoroso que iniciaram por estarem apaixonados um pelo outro, o que ainda hoje se mantém e pensam em casar-se quando SS perfazer os 18 anos de idade;

C) SS teve a iniciativa e consentiu em todos os atos de cariz sexual;

15) O Tribunal «a quo» valorou erroneamente a prova produzida incorreu em erro notório na valoração da prova.

16) O erro sobre a valoração da prova é patente e notório e não se pode confundir com o princípio da livre apreciação da prova.

17) A livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador.

18) O douto acórdão recorrido violou manifestamente o vertido no art. 127º C.P.P., bem como o princípio constitucional “In dubio pro reo”.

19) As relações sentimentais, afetivas, íntimas e tendencialmente estáveis ou duradouras, que ultrapassam a mera amizade ou relações fortuitas, não se exige um projeto futuro de vida em comum, na medida em que as relações de namoro não têm, em princípio, a pretensão de preencher todas as características associadas à conjugalidade, como seja o futuro de vida em comum.

20) No caso em apreço, estamos perante a existência de duas pessoas numa relação de namoro, com a aceitação e vontade real de participação e permanência num vínculo sentimental e afetivo.

21) Estamos perante uma relação consentida.

22) Nos crimes sexuais contra adolescentes, o consentimento da pessoa adolescente passa a ter relevância jurídica.

23) A liberdade sexual é um bem jurídico pessoal, por isso, em face de crimes cuja proteção se reconduza a este bem jurídico, o acordo traduz a adequação social da conduta do agente e, assim, a subtração do caso concreto do âmbito de tutela em abstrato da norma.

24) O grau de maturidade ou capacidade adquiridos pelo menor no momento da prática do facto não são os únicos fatores que influenciam o discernimento para o acordo e para o consentimento, associam-se igualmente as circunstâncias externas que podem viciar a formação da vontade.

25) Na atualidade, os limites de idade impostos pela lei são meramente indicadores, isto porque não poderemos dizer, ao certo, quando é que o menor atinge o discernimento necessário ou a maturidade sexual exigida para a prática de tais atos.

26) Pelo que se pode observar pela desenvoltura apresentada pela menor S e pela sua aparência física, podemos concluir que a mesma possuía uma personalidade madura e maturidade.

27) A vítima foi reiterou o amor que nutria pelo arguido, que apelidou de namorado e marido.

28) O facto de um adolescente se apaixonar por um adulto não é algo fora do comum.

29) É patente o sentimento que a S nutre pelo arguido e que ambos tiveram um relacionamento amoroso, norteado por uma paixão que ambos viveram, com concordância de ambos e respeito mútuo.

30) O consentimento e acordo por parte de SS deveria ser relevado para efeitos de exclusão da ilicitude, nomeadamente quanto aos quatros crimes de atos sexuais com adolescente, e, como tal, deveria o arguido ser absolvido da prática deste ilícito criminal.

31 Constitui pressuposto da continuação criminosa a existência de uma relação que, e de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de acordo com o direito.

32) Em qualquer dos atos criminosos que lhe são imputados, existe um denominador comum que facilitou a reiteração criminosa.

33) O crime de abuso sexual de crianças, dentro da ilicitude própria deste crime e da gravidade que reveste sempre o atentado à autodeterminação sexual de uma criança, não têm contornos de uma ilicitude especialmente intensa, atenta o contexto em que os mesmos ocorrerem.

34) O arguido e a vítima iniciaram uma relação de namoro e mantiveram relações sexuais de cópula completa «querida» por ambos.

35) São circunstâncias típicas que diminuem consideravelmente o grau de culpa do agente a circunstância de:

- Ter criado uma certa relação de acordo entre os sujeitos,

- Voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime que já foi aproveitada;

- Perduração do meio apto para executar o delito;

- Verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da atividade criminosa.

36) Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

37) O circunstancialismo concreto dos autos, designadamente, atento o facto da S e do arguido se terem conhecido e iniciado um relação de namoro, as relações sexuais entre ambos terem no seio dessa relacionamento amoroso prolongando-se tais relações no tempo, e, apenas, no contexto desse namoro, pode entender-se, na sequência dos ensinamentos do Professor Figueiredo Dias (in Direito Penal Parte Geral, Tomo I, pág., 1165 e 1186) estar-se perante «uma conexão espácio-temporal das realizações típicas (…) uma unidade de contexto espácio- temporal que sugere vivamente, ou, na maioria dos casos, mesmo impõe a unidade de sentido do ilícito do comportamento total (…)» e, consequentemente, perante um mero concurso aparente.

38) Deve-se concluir pela não verificação de dois crimes de abuso sexual de crianças, mas de um crime de abuso sexual, na forma continuada por se encontrarem preenchidos os pressupostos previstos no nº 2 e 3 do artº 30º do Código Penal.

39) Deve-se concluir pela não verificação de 4(quatro) crimes de atos sexuais com adolescente, mas sim um crime de atos sexuais com adolescente, na forma continuada, por se encontrarem preenchidos os pressupostos previstos no nº 2 e 3 do artº 30º do Código Penal.

40) Com o crime de pornografia de menores pune-se “a conduta daquele que utiliza (ou alicia para esse fim) menor em espetáculo pornográfico, fotografia, filme ou gravação pornográfica, independentemente do seu suporte, a daquele que produzir, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio, material pornográfico em que utilize menor, e ainda a daquele que adquira esse material com o propósito de o distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder”.

41) Para que haja preenchimento do tipo do ilícito o art. 176º C.P exige uma utilização do menor nessas atividades, o que pressupõe uma determinada integração ativa da conduta do agente, de modo a levar o menor a participar nessas atividades, em interligação com a definição do que sejam atividades pornográficas.

42) A mera representação do corpo humano, ainda que fotográfica, só por si, pode ser erótica ou estética e só será pornográfica se acompanhada da prática de ato sexual, de um qualquer enredo dessa natureza ou se se traduzir numa exposição lasciva dos órgãos sexuais.

43) A obtenção de fotografias ou imagens filmadas, em que se traduziu a troca de imagens do corpo desnudado da menor (e do arguido) através da aplicação Facebook ou da videochamada em smartphone, porque se trata de mera exposição corporal, de cunho não pornográfico, não consubstancia a prática do crime de pornografia de menores.

44) Não estarem preenchidos os pressupostos objetivos do crime pelo qual o arguido foi condenado.

45) A pena aplicada parece-nos desmedida e desproporcional, pecando por excesso, a medida da pena de prisão aplicada a cada crime e o mesmo se diga quanto à própria pena única, operada por cúmulo jurídico, de 7 anos e 6 meses de prisão.

46) A Douta Decisão Recorrida é insuficiente para a determinação da pena, pois consigna como único facto provado as condenações constantes do certificado do registo criminal do arguido, nada mais tendo sido apurado quanto às condições pessoais do arguido e à sua situação económica, fatores de determinação da pena que, entre outros, constam do elenco não taxativo previsto no art.71º nº2 do CP, como elementos relevantes a ponderar na determinação da pena.

45) O Tribunal «a quo» tem o poder-dever de, oficiosamente, socorrer-se do disposto no art. 340º do CPP para investigar os factos sujeitos a julgamento, procedendo, autonomamente, às diligências que, na perfectiva objetiva, possam ser razoavelmente consideradas necessárias, de modo a se habilitar a proferir uma decisão justa, não lhe sendo consentido remeter-se a uma atitude passiva e meramente dependente da iniciativa probatória dos sujeitos processuais.

46) Afigura-se-nos, pois, que o Acórdão recorrido carece de elementos que habilitassem o Tribunal a conscienciosamente levar a bom termo o procedimento de determinalizaçao individualizada da pena, dentro dos parâmetros legais, para o que releva o conhecimento de que é, a final, o arguido, quais as suas condições pessoais (o que faz-situação profissional-situação familiar) e a sua condição económica.

47) Não tendo o Tribunal procedido à indagação necessária à determinação pessoal, económica e social do arguido, o Acórdão recorrido enferma de vicio de insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto provada.

48) O recorrente não tem antecedentes criminais de idêntica natureza.

49) O recorrente encontrava-se social, familiar e profissionalmente inserido.

50) A pena visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, em caso algum podendo ultrapassar a medida da culpa do agente, nos termos do art. 40º nºs 1 e 2 CP.

51) A pena dentro dos limites estabelecidos na lei, é a função da culpa do agente e das necessidades de prevenção, ganhando relevo aquelas circunstâncias que não fazendo parte do tipo legal, atenuam ou agravam a responsabilidade criminal do agente, art. 71º, nº1 e 2 do CP.

52) A pena em concreto aplicada ao arguido -7 anos e 6 meses de prisão efetiva- é exagerada, não tem em conta os fatores de escolha e graduação da respetiva pena concreta que estão previstos nos art.°s 70. ° e 71.º do C. Penal.

53) O Tribunal «a quo» ao optar por uma pena privativa da liberdade de sete anos e seis meses de prisão, não teve em atenção o art. 40º, 50º, 70º e 71º, todos do Código Penal e as circunstâncias que militam a favor e contra o arguido, a sua reintegração social, facto está inserido social, familiar e profissionalmente e bem assim o circunstancialismo em que ocorreram os factos.

54) O Tribunal Coletivo não devia ter condenado o arguido na pena de prisão efetiva de 7 (sete) anos e 6(seis) meses de prisão, mas sim, tendo em atenção os artigos supracitados do Código Penal a uma pena suspensa na sua execução, por esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e da reintegração social do condenado.

55) O Douto Acórdão Recorrido violou, assim, o disposto no art. 30º, nº e 3, art.171º, 173º do Código Penal e artigos art. 40º, 50º, 70º e 71º, todos do Código Penal.»

c) Admitido o recurso o Ministério Público respondeu pugnando pela sua improcedência, concluindo do seguinte modo:

«1. À vítima ou ao seu representante legal (como é o caso), cabe apenas dirigir-se às autoridades, informando dos factos que são merecedores de procedimento criminal, devendo aquelas dar-lhes seguimento, abrindo inquérito e procedendo às diligências relativas à investigação que o caso requer.

2. Deve concluir-se, pois, que se um cidadão vai a uma unidade policial apresentar denúncia contra outro cidadão, pelos factos ali narrados e vem embora sem lhe exigirem outras formalidades, concretamente que ali conste que pretende procedimento criminal contra o denunciado, nem sequer é posteriormente chamado ao processo para o efeito, tem que, fundadamente, confiar que a denúncia está devidamente apresentada.

3. O Estado, através do tribunal, no caso, não pode, posteriormente, dizer que sem tal pressuposto (constar da denúncia a intenção de proceder criminalmente contra o denunciado), está extinto o procedimento criminal, por ilegitimidade do Ministério Público para promover a ação penal.

4. Quanto à errada valoração da prova, como se pode constatar da doutrina e jurisprudência citadas, a livre convicção tem que ser objetiva e motivada, de modo a permitir um controlo pelos destinatários da mesma, pela sociedade e pelos tribunais de recurso, mas, verificada tal motivação, a mesma só nos casos excecionais legalmente previstos ou situações de arbitrariedade ou juízos puramente subjetivos e imotiváveis, é possível de ser sindicada por um tribunal de recurso.

5. Esta sindicação deverá ser efetuada nas situações de prova legal não considerada, situações de arbitrariedade, juízos subjetivos, imotivados e nas situações em que, segundo as regras de experiencia de um homem médio, da prova produzida não seja possível extrair a prova do facto dado por assente.

6 – Fica, pois, o recorrente restringido à matéria de direito, sem prejuízo de poder conhecer de facto mas restrito aos vícios elencados no art.º 410º, nº 2, do CPP, a saber:

a) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) erro notório na apreciação da prova.

7 - Aliás, o arguido, em sede de conclusões e mesma na motivação, refere- -se ao vício de erro na apreciação da prova, previstos no artº art.º 410º, nº 2, do CPP.

8 - Tais vícios, como dispõe o art.º 410º, nº 2, do CPP, têm, no entanto, de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

9 - Erro notório na apreciação da prova é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta. Tal vício nada tem a ver com a opinião sobre o que devia ter sido, ou não, como provado.

10 - Do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não resulta que a mesma se encontre afetada de qualquer um destes vícios.

11 - “In casu”, o tribunal “a quo”, fundamentou a sua decisão quanto aos factos provados, com base nas declarações prestadas por SS e APF (para além do mais), que lhe mereceram credibilidade, no relatório da perícia médico-legal e demais prova documental, junta dos autos, decidindo, assim, segundo a sua convicção íntima, isto é, segundo o conjunto dos motivos que levaram a que a decisão sobre os factos se formasse num certo sentido, o que, atento o princípio da livre apreciação da prova, é insindicável em sede de recurso (neste sentido, Ac. STJ, de 27 de Janeiro de 1999).

12 - O princípio “ in dubio pro reo”, como regra da decisão da prova dotada de efetividade jurídica, à solução que resulta de um conjunto de fatores em “verificação cumulativa”, mas que em súmula, se resume à possibilidade do surgimento de dúvidas – “resistentes” à prova e impeditivas de tal convicção – na verificação dos enunciados factuais abrangidos pelo objeto do processo, resultando a convicção de que o Estado não deve exercer o seu ius puniendi quando não tiver a certeza de o fazer legitimamente.

13 – Face aos factos dados como provados, resultantes da prova supra elencada, ao Tribunal não surgiram dúvidas quanto à condenação, pelo que nunca poderia ser aplicado aquele princípio.

14 - Entre 2016 e 2018, o arguido, pelo menos 6 vezes, manteve com a menor SS, relações de cópula vaginal, oral e anal.

15 – Nos termos legais são pressupostos cumulativos da continuação criminosa, a realização plúrima do mesmo tipo legal, a homogeneidade na sua forma de execução, a lesão do mesmo bem jurídico, no quadro de uma situação exterior ao agente do crime que diminua de forma considerável a sua culpa – nº 2 do art.º 30º do Código Penal.

16 - Segundo a jurisprudência do STJ, quando os factos revelem que a reiteração criminosa resulta, antes, de uma predisposição do agente para a prática de sucessivos crimes, ou que estes resultam de oportunidades que ele próprio cria, está evidentemente afastada a possibilidade de subsumir os factos ao crime continuado − ainda que demonstrada a repetição do mesmo crime e a utilização de um procedimento idêntico, num quadro temporal bastante circunscrito−, porque se trata então de uma situação de culpa agravada e não atenuada; a renovação da conduta do agente tem de ser facilitada por uma situação exterior e não ser devida a condições que ele próprio criou.

17 - Por isso se não subscreve o ponto de vista sufragado pelo arguido, repercutindo, antes, à face da lei penal, os factos, à prática de 6 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art.º 171º, nº2 do CP, sendo quatro deles convolados para atos sexuais com adolescentes (para além do crime de pornografia de menores).

18 - O bem jurídico em tutela é o da liberdade de autodeterminação sexual, que a criança, menor de 14 anos, a lei presume “juris et de jure “não possuir, ainda que consinta na prática do ato sexual de relevo, previsto no tipo legal.

19 - In casu, em lugar de proteger a menor, sua “empregada”(como se de uma filha se tratasse), de qualquer agressão sexual, lhe dedicar afeto e respeito, até pela idade e proximidade afetiva, o arguido abusa dela sexualmente, obrigando-a, pelo menos – de certo que o Coletivo não pode levar mais longe a materialização das vezes em que tal sucedeu, ao longo dos anos de 2016 a 2018, 6 vezes, a manter com o mesmo, relações de cópula completa, trazendo ao ato em causa, uma pesada carga de reprovabilidade e de censurabilidade social, tanto à face da lei penal como no plano moral e ético .

20 - Ora, o grau de ilicitude ou de culpa terá neste caso, de se aferir a partir da concreta situação da vítima (antes e depois do crime) dos danos por ela sofridos, bem como das suas relações com o delinquente; No caso concreto, a menor tinha entre 13 a 15 anos de idade e vivia com a mãe, o que revela um elevado grau de violação de deveres impostos ao arguido.

21 – Quanto ao dolo é intenso, porque preenche a modalidade mais gravosa – direto.

22 - Por outro lado, são fortes as exigências de prevenção geral, sendo de aplicar a este caso e semelhantes, penas concretas bem acima dos níveis mínimos da penalidade, a fim de se sensibilizar a comunidade para este tipo de ilícitos, na medida do possível, mas também uma crescente necessidade de proteção dos jovens, em relação a estes atos, tendo em conta as consequências de tais condutas no sentimento de segurança das crianças e da sociedade.

23 - Quanto às necessidades de prevenção especial, não se mostram muito elevadas, uma vez que o arguido se divorciou da mãe da menor, tendo esta e a mãe, a partir da queixa, vivido separadas daquele, o que diminui a necessidade de prevenção especial.

24 - Em contraponto das circunstâncias que depõem contra o arguido, temos apenas o facto de o mesmo se encontrar inserido social e profissionalmente, o que não tem qualquer relação com o facto, não diminuindo a culpa ou a ilicitude.

25 - Assim sendo, existindo manifesta superioridade de agravantes, em relação às atenuantes, a medida concreta da pena teria de ser superior ao meio da abstrata, pelo que se considera adequada a aplicação de uma pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão para os crimes de abuso sexual de criança, atos sexuais com adolescente e pornografia de menores.

26 - Não se mostram violadas quaisquer normas jurídicas.

27- A decisão recorrida não merece reparo e deve ser mantida.»

d) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

e) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, apresentou-se o recorrente a «requerer a junção aos autos de assento de casamento, o qual comprova que o arguido casou civilmente.»

O processo foi aos vistos legais e teve lugar a conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (3) .

As questões a examinar são as seguintes:

a) Legitimidade procedimental relativamente ao crime de abuso sexual de adolescente;

b) Erro de julgamento da questão de facto;

c) Vícios da decisão em matéria de facto e in dubio pro reo;

d) Erro de julgamento de direito na subsunção jurídica dos factos relativamente ao crime de pornografia com menores;

e) Erro de julgamento de direito sobre a unidade criminosa (crime continuado) ou o concurso aparente de crimes;

f) Erro de julgamento de direito na dosimetria da pena única.

2. No acórdão recorrido o tribunal a quo deu como provado e não provado o seguinte acervo factual, que motivou deste modo:

«II – FACTOS PROVADOS

1.º Em data não concretamente apurada, anterior a maio de 2016 o arguido, nascido em …/1977, conheceu e manteve, durante aproximadamente um mês, um relacionamento amoroso com APMFS.

2.º Durante este curto relacionamento, o arguido conheceu a filha daquela, SCFS, nascida em … de 2003.

3.º Apesar de terem terminado o relacionamento amoroso, o arguido e APS mantiveram-se amigos.

4.º Com vista a aproximar-se da menor SS, o arguido pediu à mãe desta para que a deixasse ir para sua casa aos fins de semana para tomar conta das suas duas filhas menores de idade, justificando tal pedido com a “necessidade de ajuda” em tal desiderato, e com o “mau momento financeiro” que atravessava.

5.º Depois de falar com a sua filha, APS permitiu que esta tomasse conta das filhas do arguido; assim aconteceu a partir do mês de maio de 2016.

6.º Em 5 de Setembro de 2016, à noite, quando SS se encontrava em casa do arguido, sita em …, deu-lhe um beijo na boca, tendo sido correspondida.

7.º De seguida, no sofá da sala, o arguido e SS despiram-se.

8.º Após, o arguido deitou-se sobre SS, introduziu o seu pénis ereto na vagina desta e, fazendo vários movimentos para cima e para baixo, ejaculou.

9.º Previamente à relação sexual, SS informou o arguido que era virgem, nunca tendo qualquer contacto sexual com outra pessoa.

10.º O relacionamento amoroso entre o arguido e SS manteve-se assim, até 20.9.2018.

11.º Em data não concretamente apurada, por volta de março de 2017, a mãe de SS, APS apercebeu-se do que se estava a passar, e não permitiu que aquela fosse mais para a casa do arguido, em ….

12.º A partir dessa altura, o arguido manteve também o relacionamento amoroso com a menor à distância, através de mensagens escritas, e videochamadas, até 18 de setembro de 2018.

13.º Por solicitação do arguido, e também por iniciativa própria, SS tirou várias fotografias a partes do seu corpo completamente nuas e enviou-lhas.

14.º Noutras, a pedido do arguido, e também por iniciativa própria, SS colocava-se em posições lascivas, como por exemplo, com as pernas abertas para cima a abrir a sua própria vagina, ou virada para baixo com as pernas abertas em flexão, a fim de mostrar a sua vagina e o seu ânus, ou de pé com as pernas juntas a puxar com as suas mãos a pele dos lábios vaginais, ou introduzindo os seus próprios dedos ou objetos na vagina.

15.º O arguido, entre os meses de maio de 2016 e 18 de setembro de 2018, aliciou SS a tirar fotografias em poses lascivas e a partilha-las consigo para se satisfazer sexualmente.

16.º O arguido sabia perfeitamente que, a 5 de setembro de 2016, altura em que iniciou as relações sexuais com SS, esta tinha apenas 13 anos de idade.

17.º O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado, sendo maior de idade, praticar atos sexuais de relevo, nomeadamente de cópula, com SS, à data com 13 anos de idade, satisfazendo, dessa forma, os seus desejos libidinosos.

18.º Agiu de forma livre, deliberada e consciente com o propósito alcançado de aliciar a menor SS a tirar fotos pornográficas, como efetivamente ocorreu, bem sabendo se tratava de uma menor de 14, ou 15 anos

19.º O arguido agiu ainda de forma deliberada, livre e consciente com o propósito concretizado de obter as fotografias em poses lascivas enviados pela menor.

20.º O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei.

Mais se provou:

a) Que a ejaculação mencionada no artigo 8º dos factos provados, foi realizada para o exterior.

b) Que em data não concretamente apurada, nas férias escolares de Natal de 2016, quando SS se encontrava em casa do arguido, sita em …, este introduziu o seu pénis ereto na vagina se SS e, fazendo vários movimentos para cima e para baixo, ejaculou para o exterior.

c) Depois da primeira vez, e daquela que se descreveu na alínea anterior, o arguido, noutras ocasiões, em datas não concretamente apuradas, introduziu o seu pénis ereto no ânus de SS e fez movimentos para a frente e para trás até ejacular para o exterior.

d) Depois da primeira vez, e daquela que se descreveu na alínea b), em datas não concretamente apuradas, SS usou a sua boca em movimentos rápidos ascendentes e descendentes, estimulando o pénis do arguido até este ejacular para o exterior

e) Os factos mencionados nas alíneas c) e d) aconteceram pelo menos em 4 ocasiões distintas, até ao dia 20.9.2018, tinha SS 14, ou 15 anos de idade.

f) A partir da data referida no artigo 11º dos factos provados, a para além do referido nas alíneas c), d) e e), o arguido manteve também o relacionamento amoroso com SS à distância, através de mensagens escritas, até 18 de setembro de 2018.

g) Sabia o arguido que quando praticou os factos referidos na alínea b), SS tinha 13 anos de idade.

h) Sabia ainda o arguido, aquando da prática dos atos referidos nas alíneas c), d) e e), que SS tinha 14, ou 15 anos de idade.

i) O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado, sendo maior de idade, praticar atos sexuais de relevo, nomeadamente cópula, coito anal e coito oral, com SS, quando esta tinha 14, ou 15 anos de idade, satisfazendo, dessa forma, os seus desejos libidinosos.

j) Do CRC do arguido, junto aos autos a fls. 535, mostra-se averbada a sua condenação, pela prática a 14.5.2013, de um crime de falsificação de boletins, atas ou documentos, na pena de 100 dias de multa, por sentença transitada em julgado a 14.1.2019.

Não se provou:

Que o arguido tenha conhecido e mantido com a mãe de SB, em data anterior à mencionada no artigo 1º dos factos provados (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que o arguido tenha justificado o pedido mencionado no artigo 4º dos factos provados, com o facto de ter de trabalhar, não poder perder o emprego e não ter ninguém com quem as deixar (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que em todos os fins de semana em que SS pernoitou em casa do arguido, tenham mantido, pelo menos, um relacionamento sexual (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que por diversas vezes, SS com o uso das suas mãos em movimentos rápidos ascendentes e descendentes, tenha estimulado o pénis ereto do arguido até este ejacular (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que o referido no artigo 8º dos factos provados, e nas alíneas c), d) e e) daqueles que mais se provaram, tenha acontecido, pelo menos, 44 (quarenta e quatro vezes), até SS perfazer 14 anos (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que em data não concretamente apurada, mas seguramente em abril ou maio de 2017, as filhas do arguido tenham deixado de ir para casa deste por imposição da progenitora (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que tenha sido por qualquer outra razão, que não a mencionada no artigo 11º dos factos provados, que a mãe de SS, não tenha permitido que esta fosse mais para a casa do arguido, em … (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que durante este período, muitas vezes por solicitação do arguido, SS gravasse vários vídeos enviando-lhos através da aplicação WhatsApp, nos quais ela própria se masturbasse, friccionando o seu dedo no clitóris (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que, no decurso das conversas que tinham, o arguido exigisse à menor que estivesse nua ou só com as cuecas vestidas (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que o arguido, através da aplicação WhatsApp também tenha enviado várias fotografias de pénis à menor (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que no dia 27/08/2018, o arguido tenha enviado através da aplicação Messenger uma fotografia do seu pénis ereto a SS (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que em data não concretamente apurada, o arguido tenha criado um perfil de facebook falso e, fazendo-se passar uma rapariga de 16, tenha trocado mensagens com uma pessoa, supostamente mulher, que apresentava o perfil CP das L (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que o arguido tenha enviado a outra pessoa fotografias com o corpo de SS, e tenha obtido dessa pessoa fotografias onde se encontrava nua e em poses lascivas (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que o arguido, enviando fotografias do corpo e do rosto de SS, em 9 e 10 de setembro de 2018, tenha obtido fotografias de uma mulher, que se apresentava com o perfil titulado L, em poses sensuais e com o corpo desnudado (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que o arguido tenha aliciado SS a fazer gravações pornográficas e tenha cedido gravações e fotografias daquela a outras pessoas com quem conversava através de chats de conversação disponíveis na internet, para receber em troca materiais idênticos dessas pessoas (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que o arguido tenha praticado atos de coito anal e coito oral, com SS, quando esta tinha 13 anos de idade (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

Que o arguido tenha divulgado e cedido vídeos e fotografias de SS pelo menos, duas vezes com outras raparigas de diferente orientação sexual, obtendo destas também, fotografias e vídeos pornográficos (resposta a segmento da acusação, ali alegado de forma não articulada).

III - FUNDAMENTAÇÃO

Em julgamento, o arguido exerceu o seu direito a não prestar declarações.

Nesse contexto, a prova produzida em julgamento fundou-se essencialmente nos depoimentos produzidos, e no cotejo destes com as declarações prestadas para memória futura por SCFS, transcritas a fls. 381 e ss., e lidas em audiência, e com os documentos que “infra” serão referidos.

E assim, inquirida SCFS, com 17 anos de idade, a 2 meses de perfazer 18, que apesar de não notificada compareceu em juízo, com o propósito de prestar depoimento, referiu conhecer o arguido do qual se afastou por causa do processo vertente, e com o qual irá casar em março, logo que atingir a maioridade (algo que, segundo disse, não fez antes, por falta de localização do seu progenitor, que não lhe permitiu obter o legal consentimento para tal efeito).

Ama o arguido, que conheceu através da sua mãe. Apaixonou-se por ele e ele por ela, quando esta tinha 13 anos. Contudo, nessa idade, aparentava ter 17 anos, tendo dito ao arguido ser essa a sua idade, e este não sabia que a mesma tinha, de facto, 13 anos. Foi a testemunha quem “meteu conversa” com ele, e andou “atrás dele”. Nessa altura, criaram uma relação, que iniciaram através do “Facebook”, sendo que no perfil da testemunha não havia menção à sua idade.

Tal relação foi potenciada, quando a testemunha passou a trabalhar como “baby-sitter” das duas filhas pequenas do arguido, na casa deste, onde se beijaram na boca pela primeira vez, tendo dito reciprocamente que gostavam um do outro. Segundo afirmou, nessa ocasião já tinha 14 anos.

Nessa sequência passaram a trocar toques e carícias, ainda que não de natureza sexual. Nas suas palavras, “foram com calma”. Cerca de 1 mês e meio depois desse beijo, tiveram (de novo na sua expressão), uma “mini relação sexual”, vaginal, em que o arguido introduziu o pénis ereto dentro da vagina da testemunha, movimentando-o e ejaculando para o exterior.

Instada a explicitar o significado de “mini relação sexual”, disse que a descrevia assim, por o respetivo ato ter sido pouco demorado.

Confrontada com a data mencionada nos autos (5.9.2016), e tendo sido recordada da circunstância de ter prestado declarações para memória futura, na qual mencionou a aludida data, referiu que nesse dia foi quando “assumiram a relação”, ou seja, quando deram o primeiro beijo na boca (inferindo-se assim da sua data de nascimento, que a testemunha tinha 13 anos, como o havia aliás referido, naquelas declarações).

A dita “mini relação” aconteceu, então, mais à frente (ou seja, a fazer fé no teor do depoimento prestado, segundo o qual terá ocorrido cerca de 1 mês e meio depois daquela data, conclui-se que esta sucedeu numa ocasião em que a testemunha tinha 13 anos de idade, e não catorze, como inicialmente referiu, assim nos tendo deparado com a primeira contradição deste depoimento).

“Muito mais à frente”, tiveram outras relações sexuais (vaginais e anais), que aconteciam não ao fim de semana, mas durante a semana, quando a testemunha se encontrava como “baby-sitter” na casa do arguido, e ficava ali até mais tarde, assim se encontrando com aquele, que estava “sempre a trabalhar” (não se entendendo bem como, a ser assim, a testemunha conciliaria essa permanência durante a semana na casa do arguido, com as suas atividades escolares).

O mesmo aconteceu nas férias da testemunha, sendo que essas relações aconteceram quando a testemunha já tinha 14 anos (a insistência nesta idade patenteava-se, já neste momento do depoimento, como uma constante).

Eram relações de cópula completa, mas sempre com ejaculação exterior.

Também praticavam coito anal e oral, tendo a testemunha (sem qualquer indagação a esse propósito) esclarecido de imediato ser ela que, com a sua boca, procurava o pénis do arguido. Também neste caso, a ejaculação era feita no exterior.

Segundo referiu, havia semanas em que não praticavam tais atos, e quando os praticavam, faziam-no uma vez por semana. Num fim de semana em que foi para casa do arguido, também tiveram relações sexuais.

Esteve como “baby-sitter” na casa do arguido entre os 13 e os 15 anos, altura em que a mãe soube do que se estava a passar (apercebeu-se de tal, ao surpreender uma conversa entre a testemunha e o arguido) e passou a vê-lo menos vezes (2 vezes por mês, segundo disse).

Passaram então a contactar por chamada e através do “Facebook”, e trocavam fotografias, tendo-se a testemunha apressado a dizer (de novo, sem indagação a tal propósito), que ela tirava “nudes” (dos seios e da sua vagina), de “livre vontade”, e enviava-as ao arguido, sem que este lhe pedisse que o fizesse.

Confrontada com as mensagens transcritas a fls. 38 e ss. dos autos (de cuja leitura resulta à evidência que o arguido lhe pede para que esta lhe envie esse tipo de fotografia, instruindo-a até, sobre o modo como deve introduzir partes do seu corpo na vagina ou no ânus), confirma o seu teor, dizendo tratarem-se de mensagens trocadas entre ambos, logo acrescentando tratarem-se de “brincadeiras” suas, em que ambos assumiam outras personalidades (sendo efetivamente que o teor dessas conversas entre ambos, exterioriza fantasias com terceiros).

Ante a reprodução das fotografias de fls. 207 a 226, confirma o seu teor, afirmando tratarem-se de fotografias suas, que enviou para o arguido.

Quanto às fotografias de fls. 259 e ss., refere serem fotografias que enviaram para o seu perfil de “facebook”, sendo comum (disse), enviarem-lhe fotos para o messenger com pénis, de pessoas a “meterem conversa” com ela, a dizerem-lhe que é “gira”, e que partilhava essas fotos com o arguido.

Quanto à fotografia de fls. 269 e 272 (nas quais se pode observar um “close up” de uma vagina de alguém de raça negra), sem embargo do princípio da imediação nos ter possibilitado divisar-lhe um momento de surpresa no olhar, de pronto de recompôs, tendo dito ter sido a própria quem arranjou aquela fotografia, de uma “mulata” que conheceu no “Badoo”, tendo-a enviado para o arguido. Tendo sido instada sobre a razão pela qual estaria a partilhar fotografias íntimas de outra mulher com o arguido, referiu ser hábito na sua relação com o arguido, “provocarem-se um ao outro”.

Acrescentou que aquando da primeira relação vaginal ocorrida com o arguido, não era “virgem”, apenas lhe tendo dito que o era.

Confrontada com as contradições entre as declarações prestadas para memória futura, e o depoimento, designadamente quanto à idade que tinha quando tais relações sexuais ocorreram, acabou por reconhecer que a dita “mini relação sexual” havida com o arguido ocorreu no dia 5.9.2016, e ter tido relações sexuais vaginais de cópula completa com o arguido uma vez, no decurso das férias do Natal de 2016.

Segundo recorda, não teve relações sexuais com o arguido nas férias da Páscoa de 2017, mas nas férias de Verão desse ano (numa ocasião em que já tinham relações vaginais, anais e orais), tiveram-nas “duas vezes, no máximo”.

No Natal de 2017, tiveram uma relação vaginal e outra oral, que ocorreram no mesmo dia.

Em 2018, quando deixou de ser “baby-sitter”, terá tido relações sexuais com o arguido cerca de 6 vezes. Umas vezes, relações apenas orais, e noutras, misturavam as relações orais com as vaginais e anais.

Após, ante a pergunta quanto ao número de vezes aproximado, em que terá tido relações sexuais (orais, vaginais e anais) com o arguido, retifica o teor do depoimento prestado, dizendo que na totalidade, desde a primeira vez, terá tido relações sexuais com arguido em número que não superior a seis vezes.

Ainda, mercê do confronto entre as contradições existentes entre as declarações para memória futura e o teor do depoimento prestado, acabou por admitir que a verdade se encontra nas primeiras, exceto na parte delas em que referiu que o arguido sabia que tinha 13 anos, quando os atos sexuais se iniciaram, declaração na qual insistiu veementemente (e contra toda a evidência que resultou clara para o tribunal, de que o depoimento prestado se destinou essencialmente a “emendar” o que havia sido dito de juridicamente mais comprometedor do arguido naquelas primeiras), ainda que nessa fase de uma forma deveras atrapalhada, muito distinta da segurança que pretendeu demonstrar aquando do início do seu depoimento.

Atrapalhamento muito visível, na própria resposta dada à razão pela qual teria faltado à verdade nessas primeiras declarações, onde afirmou que o arguido sabia a idade que tinha, que num ensaio justificativo, referiu em julgamento tê-lo feito por “vingança” (não se descortinando qual a razão dessa “vingança”, mais a mais quando, a todas as luzes, dessas declarações resulta evidente, nos antípodas de qualquer putativa vingança, o encantamento da testemunha com o arguido, a quem se referiu em julgamento como o seu “marido” – atestado pelo sentimento de amor que já naqueles declarações afirmava, e na ilusão quanto a um futuro casamento entre ambos).

Com efeito, e em síntese, ficou o tribunal convicto de que a veracidade do declarado reside nas declarações para memória futura (o que nos permitiu concluir que a primeira vez em que o arguido teve uma relação de cópula vaginal completa com a menor, foi a 5.9.2016), tendo tido o depoimento prestado em julgamento, a virtualidade de nos permitir concluir ter sido em 6 vezes (e decerto, tal sucedeu em muitas outras, mas como aquele número foi o único que se logrou concretizar, tudo o demais que se afirmasse a tal propósito seria do foro conjetural e não factual), que tais relações sexuais de cópula completa (vaginal, anal e oral) ocorreram.

Tendo resultado seguro da conjugação das declarações prestadas para memória futura, em que se indica o dia 5.9.2016, como a data de ocorrência da primeira relação de sexual vaginal com cópula completa e do depoimento em análise, em que a jovem afirma que após a primeira vez (que acabou por reconhecer ter sucedido, efetivamente, naquela data) voltou a ter relações sexuais vaginais de cópula completa com o arguido, no decurso das férias do Natal de 2016 (portanto, numa e noutra ocasião, em datas nas quais a testemunha tinha ainda 13 anos de idade).

Quanto às demais 4 vezes em que ocorreram as preditas relações sexuais (vaginais, anais e orais), na impossibilidade de se aferir a concreta data das mesmas, “in dúbio”, o tribunal considerou terem sucedido entre os 14 e os 15 anos da testemunha, numa altura em que esta já não era “baby sitter” na casa do arguido.

Com efeito, a data de apresentação da denúncia por banda da mãe da testemunha (a 19.9.2017, como resulta da leitura do auto de fls. 2 – sendo certo que esta soube do que se passava cerca de 6 meses antes de apresentar essa denúncia, como resulta do depoimento que prestou, e em seguida será referido), infirmando embora a veracidade da declaração de SS, na parte dela em que afirmou que o seu trabalho como “baby sitter” terminou quando tinha 15 anos, pois que da data daquele auto e do depoimento da mãe da testemunha resulta que essa função de “baby sitter” terá findado por volta de Março de 2017 (ou seja, numa altura em que a menor teria, de acordo com a sua data de nascimento, 13, prestes a fazer 14 anos de idade, ou já mesmo, 14 anos), não infirma a realidade da sua declaração, segundo a qual os seus encontros com o arguido perduraram até 2018 (na medida em que mesmo com a colocação do “travão” pela mãe, quando soube do que se estaria a passar, e a cessação dos serviços de “baby sitter”, naquela altura, não custa a crer que ambos tenham arranjado forma de se encontrarem em momento posterior, mais do que uma vez – e em 4 delas, tenham tido esse tipo de relação).

De igual modo se considerou, quanto às fotografias de carácter sexual de SB, que o arguido detinha no seu telemóvel, que aquela teria 14, ou 15 anos (já que estas constavam no dito aparelho em momento anterior ao da sua apreensão, datada de 20.9.2018 – como consta de fls. 179/180 – tinha SS, desde o dia 8.3 desse ano, 15 anos de idade -, ainda que se desconheça, por falta de elaboração da respetiva perícia informática, a data desde a qual o arguido tinha tais fotos no seu telemóvel, e desse modo, qual a idade concreta de SS, quando retratada nessas fotografias, e nessa exata medida, a conclusão de que a menor teria 14 ou 15 anos nessas fotografias – e não 13 – fundou-se no princípio do “in dúbio”), mais se tendo, por identidade de razões, considerado essa data como o último momento em que SS enviou fotografias para o telemóvel do arguido (não se considerando deslocada em tal contexto, a data de 18.9.2018, afirmada na acusação, a propósito desse segmento).

O “términus” desse relacionamento sexual, colocou-o o tribunal nesse ano de 2018 (aos 15 anos de idade da testemunha), por referência à detenção do arguido (a 20.9.2018, como se extrai da leitura da certidão de fls. 248) e da sua sujeição a primeiro interrogatório judicial, na sequência do qual lhe foi imposta a medida coativa de proibição de contactos com a menor (tendo sido nesse contexto, com o inerente afastamento do arguido, que a testemunha terá por “vingança” -, segundo o que referiu em julgamento, sem tal segmento declarativo que tenha colhido, pelas razões que já se referiram, o mínimo de credibilidade junto do tribunal – dito nas declarações prestadas para memória futura, que o arguido sabia “ab initio” qual era a sua idade).

Tendo-se ficado convicto da bondade das declarações para memória futura prestadas, pelos motivos outrossim acima referidos, e nessa exata medida, que o arguido sabia qual a efetiva idade da jovem, a despeito dos esforços feitos por esta em julgamento, no sentido de afirmar que não, sugerindo como amparo dessa afirmação, que aos 13 anos de idade, aparentava ter 17 (sendo que, se nas fotos de fls. 207 e ss., a testemunha aparente ter, talvez, 15 anos de idade, ou mesmo, 17, basta olhar para a fotografia a preto e branco do cartão de cidadão da testemunha, junta aos autos a fls. 102, para se concluir, até da “redondez” do rosto, indiciadora da sua juventude, que a mesma não aparenta ali -, nem pouco mais ou menos - ter 17 anos).

Sendo que para a conclusão havida, de credibilização das declarações prestadas para memória futura, e salvo o devido respeito, o relatório de perícia médico-legal em psicologia, junto aos autos a fls. 462 e ss., em nada “atrasou ou adiantou” –, no sentido de que não nos forneceu qualquer dado relevante para o apuramento fáctico, que não tenhamos colhido em julgamento, mercê do princípio da imediação.

À qual não obstou a postura assumida em julgamento pela jovem, no qual (a dois meses de fazer 18 anos), se apresentou encarnando o papel de uma mulher adulta e “casada” (no seu dizer, e como de igual modo se referiu, o arguido é o “seu marido”), com uma naturalidade na abordagem da sua precoce vida sexual, como raras vezes presenciámos em mulheres adultas.

Mas se é certo que se num primeiro momento, tentou “ajeitar” o depoimento prestado, de sorte a “emendar” o que à luz das declarações prestadas para memória futura, mais prejudicava o arguido (referimo-nos à tentativa de fazer crer em que o primeiro relacionamento sexual de cópula completa havia ocorrido quando já tinha 14 anos, tendo resultado de forma muito óbvia para o tribunal, que no entretanto terá vindo ao seu conhecimento a enorme diferença de molduras penais, quanto ao abuso sexual de crianças, praticado com menores de 14 anos, e ao ato sexual com adolescentes, praticado com menores entre os 14 e os 16 anos -, e a muito maior severidade da punição do primeiro – e à declaração segundo a qual o arguido não saberia da sua verdadeira idade), a realidade é que sujeita a interrogatório que não pôde deixar de ser feito de forma dura, e implacável, quanto às contradições em que entrou, a sua escassa maturidade (alias, expectável, tendo em conta a sua idade), não lhe permitiu grande elaboração nas razões que aduziu para tais contradições, culminando o seu depoimento no reconhecimento de que havia dito a verdade nas declarações prestadas para memória futura, exceto quanto ao desconhecimento da sua idade pelo arguido, que persistiu em afirmar em julgamento (contra toda a evidência do que decorria daquelas declarações), aduzindo a dita “vingança” (totalmente inconsistente, repita-se), como razão para ter “faltado à verdade” naquelas.

Sendo que toda a idiossincrasia que perpassou da postura e das declarações da menor, que tivemos ocasião de atestar através do inestimável princípio da imediação, nos permitiu inferir o que acima se referiu, tendo resultado como indubitável que a mesma faltou à verdade em julgamento, com o intuito já referido de “proteger” o arguido, que “ama”, com o qual “vai casar”, revelando encontrar-se num estado de total ilusão, quanto ao relacionamento que o arguido lhe fez crer que existia, quer através dos atos de carácter sexual que praticou com a mesma, quer do incitamento da menor à prática sexual, que decorre do teor das mensagens trocadas, cuja transcrição a fls. 38 e ss., aqui se dá como inteiramente reproduzido, para todos os legais efeitos, quer das palavras com as quais sedimentou tal ilusão, designadamente, quando lhe pergunta (como resulta das declarações prestadas para memória futura, transcritas em folhas já referidas), aquando da primeira relação sexual, no dia 5.9.2016 -, transcrição a fls. 396 - “ se era mesmo isso que queria, se tinha a certeza, e se não se ia arrepender” (assim tratando a testemunha, com 13 anos de idade, como se fosse uma mulher “adulta”, capaz de manifestar a sua vontade em matéria sexual, criando-lhe a imagem de “mulher feita”, que quis perpassar em julgamento).

Aliás, não podemos deixar de anotar a atitude do arguido em julgamento, em que vendo a jovem expor-se no seu mais íntimo, quer na descrição dos atos sexuais praticados com aquele, quer nos sentimentos de amor que por ele nutre, quer no seu projeto de casamento, quer na firmeza de interrogatório a que foi sujeita, mercê das contradições em que entrou, para o beneficiar, se tenha mantido seráfico, em momento algum fazendo um gesto, intervindo, ou dando-lhe um sinal que a demovesse de tal exposição, e ilusão.

O que pese embora o silêncio a que se remeteu, permitiu que no grito que de tal atitude emergiu, se patenteasse a personalidade de um homem adulto que a todos os níveis de aproveitou da jovem testemunha. Quer a nível sexual (objetificando-a), quer a nível emocional (alimentando com a sua inacção, os sentimentos, e a ilusão desta), e reusando-a no que pensou ser-lhe benéfico (ao não ter tentado colocar cobro ao depoimento que com as assinaladas características aquela, embevecida e imatura, prestou).

Comportamento esse, que deve ser adequadamente ponderado, no momento próprio.

Inquirida APMF, com 39 anos de idade, atualmente desempregada, mãe de SS, que conhece o arguido com o qual está aborrecida, por causa da situação a que se reportam os autos (o que, todavia, não a impede de dizer a verdade), referiu tê-lo conhecido em 2014/2015, em razão da profissão do mesmo (fez-lhe um contrato da “Meo”), tendo tido ambos um “pequeno affair”, na sequência do qual ficaram amigos.

O arguido estava a passar por um “mau momento”, tendo-lhe pedido ajuda, e mais concretamente, que a filha S fosse ajudá-lo em casa a tratar das filhas pequenas, pedido ao qual a testemunha anuiu. Tal sucedeu já após o “affair” de ambos, e a S teria 13/14 anos, não recorda bem.

O arguido não tinha conhecimento certo da idade da filha, embora soubesse que tinha menos de 18 anos -, disse num primeiro momento.

A testemunha residia em …, e o arguido em …, sendo que a filha apanhava o comboio para se dirigir à residência do arguido, na qual começou a fazer de “babysitter”. Isto, porque esta estava habituada a ajudar com as irmãs, à data com um ano e “tal” e quatro anos e “tal” de idade, mudando-lhes as fraldas e fazendo tarefas afins, e também porque o “bom coração” da testemunha a fez anuir ao pedido que nesse sentido lhe foi endereçado. A filha sempre aparentou mais idade do que a que tinha, e quando conheceu o arguido parecia ter 15/16 anos de idade, talvez.

Não desconfiou de nada, já que quando a filha ia para casa do arguido (o que acontecia dois fins de semana por mês, de sexta a Domingo, e também nas férias escolares da S, na mesma cadência – ainda que nas férias esta permanecesse na casa do arguido durante mais dias), faziam videochamadas, e a filha aparentava estar bem.

A S tratava o arguido por “papi”, não tendo a testemunha atribuído importância a toda a descrita dinâmica, porque a filha lhe dizia que eram só “amigos”. Só quando a S se começou a isolar é que a testemunha ficou mais atenta (nessa altura, a S ainda era “baby-sitter”), tendo-se apercebido um dia de uma troca de mensagens e de fotos entre a filha e o arguido, com conteúdo sexual (a S teria 15 anos).

Nessa altura é que “travou aquilo”, confrontando arguido e filha com aquela situação, obrigando-a a bloqueá-lo no “Facebook”, algo que deixou a S (que diz a toda a agente que quer, e vai casar com o arguido), muito revoltada.

Contudo, antes disso (tinha a S 13/14 anos), já havia dito ao arguido “acho que a minha filha se está a apaixonar por ti”, tendo-lhe aquele respondido que não era nada, e que não “metesse coisas” na cabeça, ao que a testemunha lhe retorquiu dizendo “vê lá, porque ela é menor. A miúda é uma adolescente, vais ter problemas com isso!”. Não obstante (insistiu), nem nessa conversa transmitiu ao arguido a idade da S.

Apresentou queixa somente 6 meses após ter surpreendido a mensagem/foto de cariz sexual, mais por causa da fotografia e proposta que viu na mensagem, porque na sua expressão “um casal que se ama não faz propostas assim”, do que da diferença de idades entre a filha e o arguido, pois que entre a testemunha e o marido também existem 15 anos de diferença (algo que a S mencionou no depoimento prestado, referindo quanto à situação objeto dos autos, que a mãe também não podia falar muito, porque a própria “também tinha feito porcaria”, já que tinha uma grande diferença de idade do marido).

Mas essencialmente apresentou queixa, porque sentiu receio, como se fosse cúmplice daquela situação, e tendo-se aconselhado com uma técnica da assistência social, esta a aconselhou a fazê-lo.

Sendo que, como resulta do auto de denúncia de fls. 2, esta é feita a 18.9.2017 (tendo a S 14, e não 15 anos de idade), e nos termos do próprio depoimento, a testemunha terá sabido do que se passava cerca de 6 meses antes (ou seja, aproximadamente, em março de 2017).

Contudo, a própria testemunha referiu no decurso do julgamento, ter dificuldade em lembrar-se de datas, e nesse exato contexto, o facto de dizer que a filha tinha 15, e não 14 anos de idade, quando soube do que se passava, não retirou credibilidade ao teor do respetivo depoimento.

Ante a sua insistência na afirmação segundo a qual nunca terá dito a idade da filha ao arguido, não obstante tê-la autorizado a, com 13 anos, ir fazer de “baby-sitter” para a casa daquele (o que à luz das regras da experiência comum leva qualquer pessoa a concluir que tal responsabilidade, só por si, justificaria a transmissão dessa informação), bem como aquando do “affair” havido entre a testemunha e o arguido, em que ambos (como nos disse a testemunha), mostraram as fotos dos filhos um ao outro, sendo que a normalidade das coisas nos leva a perspetivar que quando se mostra a fotografia de um filho a um parceiro, se partilhe a informação sobre a idade do primeiro (e tanto assim é, que a testemunha demonstrou saber a idade das filhas do arguido), instada sobre a aparente dissonância do seu comportamento, com aquelas regras da experiência comum, acabou por admitir poder ter referido ao arguido (que segundo a própria, dava os parabéns à S, quando esta fazia anos) a idade da sua filha, quando no início se conheceram, reconhecendo (embora não se recorde de tê-lo feito), que a transmissão desse dado seja o normal, e que possa tê-lo feito.

Ou seja, extrai-se da análise do depoimento ora em apreço, que a testemunha terá omitido no respetivo relato, a mais do que provável partilha da informação respeitante à idade da S. Bem se compreendendo, quer em termos de sentimentos de culpa (que se patenteiam no que referiu, a propósito de se sentir como se fosse cúmplice da situação), quer por ter filhos menores a cargo, quer pelo receio que possa eventualmente sentir, sobre uma eventual reação institucional, conexa com o caso em apreço, quais as razões pelas quais persistiu nessa omissão.

E porque assim é, tal não invalidou o contributo deste depoimento para o apuramento da verdade fáctica, pois que em tudo o que daquela omissão extrapola, o mesmo se nos ofereceu como objetivo e convincente.

Quanto aos depoimentos prestados pelas testemunhas BSAG, com 17 anos de idade, amiga da S, qualidade na qual identificou o arguido como namorado desta, e DMCG, com 19 anos de idade, que foi namorado da S há um ano atrás, e não conhece o arguido, o seu contributo para o apuramento da verdade foi nulo, uma vez que não revelaram ter qualquer conhecimento direto sobre os factos objeto dos autos.

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No que respeita aos segmentos atinentes à posse do arguido, no seu telemóvel, de fotografias de SS, nos moldes apurados, o tribunal fundou a sua convicção na análise das mesmas, juntas aos autos nas folhas acima referidas, confirmadas no seu teor pela própria SS, sendo que tal junção emerge da apreensão daquele objeto (na sequência do auto de busca e apreensão que faz fls. 179/180), e do relatório junto a fls. 209 e ss., denominado como “perícia informática”, mas de cuja leitura se infere tratar-se não de qualquer perícia, e antes, de mera extração e localização de ficheiros, nos quais se incluem as ditas fotos.

Quanto à circunstância de o arguido ter aliciado SS a enviar-lhe tais fotos, a despeito do depoimento desta, em que se apressou a dizer, sem que tenha sido questionada nesse sentido, que o envio dessas fotos se fundou em iniciativa própria e não em solicitação do arguido (assim demonstrando, de novo, que a motivação do depoimento prestado em julgamento, ao qual compareceu – repita-se – voluntariamente, sem qualquer convocação para tal, foi a proteção do arguido, mais se patenteando na precipitação com que afirmou o sobredito, estar ciente dos termos da acusação), basta a leitura das mensagens enviadas pelo arguido, transcritas a fls. 38 e ss. dos autos para inferir que assim foi, a despeito da tentativa da menor em fazer crer o tribunal no contrário.

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Quanto à data de nascimento de SS e do arguido, o tribunal fundou a sua convicção no teor dos seus assentos de nascimento, junto aos autos, respetivamente, a fls. 123/ 124 e 416 (tendo sido de igual modo na análise do primeiro, que se fundou a nossa convicção, quanto à relação de filiação de SS, com APMFS).

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Quanto ao passado criminal do arguido, o tribunal fundou a sua convicção na análise do seu CRC, junto aos autos em folhas “supra” já referidas.

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Quanto aos factos não apurados:

No que tange ao envio de vídeos através do WhatsApp pela SS ao arguido, com atos de masturbação daquela, ao envio de fotos do pénis do arguido, e à alegada criação por este, de um falso perfil de Facebook, e do envio para terceiro através desse perfil, de fotos com o corpo de SS, não obstante o teor do relatório da nominada perícia informática e do relatório suplementar que faz fls. 251 e ss. (e que, de novo, mais não consubstancia senão mera extração e localização de ficheiros, nos quais se incluem fotos e imagens estáticas de vídeos, juntas a fls. 253 e ss. – e não o tratamento pericial dos dados, por referência a elementos identificadores do arguido, e das outras pessoas com as quais, alegadamente, terá partilhado os ditos dados, nem à identificação cabal destas, e dos aparelhos por estas usados), os mesmos não revelaram aptidão suficiente para nos levar a concluir no sentido que foi vertido no acusatório, tendo-se dado como não apurados, os factos que se sustentavam em tal elemento probatório.

Aliás, a omissão dessa perícia, não nos permitiu tampouco valorar o teor das mensagens e fotos juntas a fls. 64 e ss., na medida em que, embora havendo referência ao nome S, nas mensagens ali escritas pelo arguido, a interlocutora das mesmas é alguém em cujo perfil consta o nome “SC”, o que não nos permite concluir da mera examinação desses elementos, tratar-se de SS.

Quanto aos demais factos não apurados, o nosso juízo fundou-se na circunstância de não ter sido realizada em julgamento qualquer prova demonstrativa dos mesmos, e de os elementos juntos aos autos não serem suficientes “de per se”, ou na sua conjugação com outros, para nos levar a concluir em sentido distinto.

Outrossim nada se apurou quanto à situação pessoal e condição económica do arguido, por falta de comparência do mesmo junto dos serviços da DGRSP, com vista à elaboração do relatório social que havia sido determinada, sendo que também quanto a este conspecto, o arguido optou por exercer o seu direito de não prestar declarações.»

3. Apreciando

3.1. Da legitimidade processual quanto aos crimes de atos sexuais com adolescentes

Conforme se evidencia na decisão recorrida, atentas as datas provadas respeitantes às relações sexuais do arguido com a menor SS quando esta tinha menos de 14 anos de idade, só em duas ocasiões tal sucedeu (5set2016 e nas férias de Natal de 2016).

Outras relações do mesmo género ocorreram posteriormente, pelo menos quatro ocasiões distintas, altura em que a menor já tinha 14 ou 15 anos de idade.

Relativamente a estas a qualificação jurídica feita pelo tribunal a quo, e muito bem, foi a de as considerar integradoras do ilícito previsto no artigo 173.º, § 1.º e 2.º CP, o qual tem natureza semipública, conforme indicado no artigo 178.º, § 3.º CP.

Isto é, quanto a tais ilícitos o Estado só está legitimado a persegui-los se o titular do respetivo direito de queixa a apresentar dentro dos prazos previstos na lei. É o que resulta da conjugação do disposto no artigo 113.º CP, com o preceituado nos artigos 49.º, § 1.º e 52.º, § 2.º ex vi 48.º CPP.

Na circunstância o titular do direito de queixa era o representante legal de SS, dado que no espaço temporal relevante a mesma era menor.

Os autos evidenciam que a mãe da menor formalizou junto de entidade policial queixa contra o arguido, especificando nessa ocasião que acedeu à pagina do Facebook da sua filha S e [ali tendo] «constatado que um indivíduo de nome SL efetuou diversas conversas e enviou imagens de teor sexual para a sua filha, e o mesmo convenceu a sua filha a enviar-lhe fotografias e vídeos da própria em trajes menores e nua».

Sustenta o recorrente que do auto de denúncia não se retira que a denunciante tenha manifestado desejo de procedimento criminal!

Será caso para perguntar: então a denúncia serve para quê?

E a resposta é singela: para dar notícia às entidades competentes para a investigação criminal da verificação de um crime público, semipúblico ou particular.

Formalizar queixa é fazer o que fez a mãe da menor: apresentou-se na entidade policial e na sua qualidade de representante da sua filha menor, deu conta (apresentou queixa) do que descobriu, relativamente à solicitação do arguido à sua filha para esta lhe enviar fotografias suas nua e de partes íntimas do seu corpo.

Tem razão o Ministério Público na sua resposta ao recurso quando afirma não ser necessário constar expressamente da denúncia a intenção de proceder criminalmente contra o denunciado.

Mas dizer apenas isso é insuficiente porque há realmente um problema com a denúncia (como se verá), mas não é o de no respetivo auto não constar textualmente ser sua vontade que se procedesse criminalmente.

O verdadeiro problema é que os factos denunciados nada têm que ver com o crime de que agora curamos. E quanto a estes não há, realmente, nos autos qualquer denúncia.

Efetivamente, na sequência da investigação encetada pela aludida denúncia, o Ministério Público veio a deparar-se com uma realidade muito mais abrangente do que aquela para a qual tinha obtido legitimidade. Daí que, sequentemente, deveria ter diligenciado conforme a lei preceitua no § 2.º do artigo 52.º CPP, convidando o titular do direito de queixa a manifestar vontade de procedimento também quanto aos novos factos, pois só neste caso subsistiria a sua legitimidade para o procedimento criminal.

No caso dos crimes que dependem de queixa, como é aqui manifestamente o caso, esta constitui um pressuposto positivo da punição. Daí que, ao não ter diligenciado junto do titular do direito de queixa para legitimar a sua atuação, o Ministério Público perdeu legitimidade para perseguir esse crime, circunstância esta que impede adiante o tribunal de sobre o mesmo se pronunciar.

Razão pela qual nesta parte o recurso deverá proceder.

3.2. Do erro de julgamento da questão de facto

Sustenta o recorrente que os factos constantes nos pontos 4., 7.º, 8.º, 9.º, 16.º, 17.º, g), h) e i) do acervo factológico provado foram incorretamente julgados, por no uso do princípio da livre apreciação o tribunal de julgamento não valorou devidamente os depoimentos das testemunhas SS (a menor ofendida) e AS, mãe daquela, prestados na audiência de julgamento.

Nos casos de impugnação ampla da matéria de facto o recorrente tem o ónus de indicar, como se faz neste caso, a decisão de facto alternativa à que consta da decisão recorrida, justificando em relação a cada facto alternativo aquele que propõe e a razão pela qual deveria o Tribunal recorrido ter decidido desse modo.

O impugnante tem também o ónus de indicar as concretas passagens, excertos, trechos ou segmentos da prova produzida e documentada em audiência de julgamento que impõem decisão de facto diversa da recorrida (4). Neste caso aponta apenas os depoimentos de SS e de AS prestados na audiência.

Ora, desses depoimentos nada resulta que evidencie erro de julgamento, desde logo porque não é pelo simples facto de uma testemunha (SS) fazer na audiência declarações díspares das que prestou anteriormente perante juiz para memória futura, que se tem de atender às mesmas.

Importa, desde logo, claro, como fez o tribunal recorrido, contextualiza-las: esta testemunha não fora convocada para audiência em razão de ter prestado anteriormente declarações para memória futura. Mas ali compareceu com o objetivo de prestar declarações!

O tribunal a quo explicou de modo claro, preciso e lógico a decisão que tomou, firmando-se na valoração crítica da prova (do conjunto da prova), com o natural contributo das máximas da experiência comum e as vantagens da imediação (5), que permitiram nomeadamente questionar a razão das divergências e das discrepâncias e avaliar as respostas dadas.

A decisão recorrida mostra-se muito bem fundamentada, tendo o tribunal motivado, em preclaro fio de raciocínio, o modo como formou a sua convicção quanto aos factos relevantes, incluindo os ora impugnados, evidenciando a razão pela qual as novas declarações da menor (prestadas na audiência) se integram numa estratégia de defesa visando ilibar o arguido, procurando fragilizar pontos essenciais (factos essenciais) no seu arrimo probatório, designadamente na prova declaratória.

Contrariamente ao alegado pelo recorrente a livre apreciação da prova, prevista no artigo 127.º CPP, não consiste num exercício de arbitrariedade. Do que se trata é de um esforço para alcançar a verdade material, que de outro modo se tornaria praticamente impossível. De um exercício intelectual, para o qual se mobilizam as regras da experiência comum e a avaliação da personalidade dos depoentes, das suas perceções e ligação aos acontecimentos.

Não se trata de livre arbítrio nem de valoração puramente subjetiva (de mera impressão), conforme perpassa das alegações do recorrente. Constitui antes uma tensão de objetividade, na medida em que se sustenta em critérios lógicos e objetivos que determinam a formação de uma convicção racional, objetivável e motivável.

Isso não significa que seja totalmente ou maioritariamente objetiva. Não é esse o seu objetivo. Pois que se sustenta na credibilidade que ressalta dos meios de prova e da sua racional conjugação, de acordo com a experiência comum, podendo naquela até intervirem elementos emocionais (6). Estando, a mais disso, naturalmente, a cargo de quem tem a preparação necessária e o distanciamento que é pressuposto da imparcialidade.

A propósito da livre convicção do juiz ensinava José Alberto dos Reis (7), que «o que está na base do conceito é o princípio da libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, no entanto, se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas (….) O sistema da prova livre não exclui, e antes pressupõe, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica» (8).

No contexto de um processo equitativo, como preconizado pela Constituição da República (artigo 20.º, § 4.º) e pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 6.º), a livre convicção dos juízes tem que ser objetivada e motivada, não apenas para legitimar a sua decisão, mas também de molde a permitir o controlo pelos seus destinatários, pela sociedade e pelos tribunais de recurso.

Neste caso o tribunal a quo explica de que modo a decisão que tomou é aquela que a prova (o conjunto da prova) criticamente avaliada revela, através do modo e com os estribos que com o contributo das máximas da experiência comum e as vantagens da imediação (9) identifica.

Em suma: as declarações prestadas em audiência pelas testemunhas indicadas pelo recorrente em nada abalam (sequer beliscam) o juízo feito pelo tribunal coletivo, que conheceu, valorou e explicou as apontadas divergências, motivando as razões que justificam o seu juízo, em termos que não suscitam nenhuma reserva, muito menos evidenciam qualquer erro de julgamento.

A preconizada junção pelo recorrente de documento na fase de pronúncia sobre o parecer do Ministério Público junto deste tribunal de recurso (artigo 417.º, § 2.º CPP), à margem das regras do direito, apenas confirma as linhas da dita «estratégia».

A «missão do tribunal de recurso é a de apreciar se uma questão decidida pelo tribunal de que se recorre foi bem ou mal decidida e extrair daí as consequências atinentes. Daqui decorre que o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questão nova, salvo se isso for cometido oficiosamente pela lei» (10).

Isto é, o recurso serve para corrigir erros de julgamento (in judicando - por violação de normas de direito substantivo, ou in procedendo cometidos pelo tribunal a quo). Não constitui uma nova oportunidade para um «novo julgamento» da matéria de facto (11).

No cotejo da decisão recorrida e das provas valoradas pelo tribunal não se surpreende nenhuma razão que sustente o alegado erro de julgamento da matéria de facto: seja porque nenhuma racionalidade o indicia; seja ainda (muito menos) porque nenhuma prova o impõe (artigo 412.º, § 3.º, al. b) CPP). Sendo que o documento cuja junção se ensaiou será devolvido à procedência.

3.3. Vícios da decisão e in dubio pro reo

No ponto 15. das suas conclusões o recorrente faz uma alusão repentina ao que crismou «erro notório na valoração da prova»!

Pela sequência do que depois afirma no ponto 16. «o erro sobre a valoração da prova é patente e notório e não se pode confundir com o princípio da livre apreciação da prova», confirma-se, como bem assinala o Ministério Público na sua resposta, que o recorrente confunde erro na valoração da prova (127.º e 412.º, § 3.º CPP) com o vício da decisão consistente em erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º CPP).

Com efeito, os vícios a que se alude no § 2.º do artigo 410.º do CPP reportam-se à lógica jurídica ao nível da matéria de facto, isto é, a circunstâncias que inviabilizam uma decisão logicamente correta e em conformidade com a lei. E não já à impugnação de factos concretos (a que se reporta o artigo 412.º, § 3.º CPP).

No respeitante ao vício do erro notório na apreciação da prova, a que se refere a al. c) do § 2.º do artigo 410.º CPP, o mesmo assenta numa deficiência no apuramento da matéria de facto, que prescinde da prova concretamente produzida no caso para se ater à conexão lógica do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, porquanto ele tem de resultar da própria decisão recorrida.

Este «erro» constitui um vício da decisão, sendo necessário para a sua verificação que nele confluam os seguintes requisitos: a notoriedade do erro; e que este resulte do texto da decisão recorrida (por si só ou conjugado com as regras da experiência comum).

«Notório» significa patente, ostensivo, percetível pelo comum dos observadores; identificável pela generalidade das pessoas, de tal modo que não sobra motivo para duvidar da sua ocorrência. Ocorre nos casos de erro sobre facto históricos ou incontroversos que são do conhecimento geral; ou há desconformidade com as leis da natureza; ou atropelo elementar às regras da lógica; ou a ofensa aos conhecimentos científicos, criminológicos ou vitimológicos adquiridos (12). Ou quando as provas revelem claramente um sentido contrário ao que se firmou na decisão recorrida; por este ser logicamente impossível; por se ter incluído ou excluído da matéria de facto provada algum facto essencial; ou quando determinado facto provado (positivo ou negativo) se mostra incompatível com outro também provado.

E é justamente por isso que este vício, como os demais a que se reporta a citada norma legal, é de conhecimento oficioso, mesmo quando o recurso esteja limitado à matéria de direito. Por assim ser, resultando do texto da sentença recorrida um erro notório na apreciação da prova o tribunal ad quem deverá sempre dele conhecer, ainda que não tenha sido suscitado.

A jurisprudência dos tribunais superiores é abundante na apreciação e caracterização deste vício, convergindo nos parâmetros citados (13).

Perscrutando o texto da decisão recorrida constata-se que a conexão lógica existente entre a factualidade que o tribunal recorrido julgou provada, os meios de prova em que se baseou e a valoração que fez de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º CPP), não evidenciam qualquer erro (muito menos notório) na apreciação da prova, nem nenhum dos demais a que se reporta o artigo 410.º, § 2.º do CPP.

Finalmente, para encerrar a parte relativa à impugnação factológica, importa fazer breve referência a outra vaga alusão feita pelo recorrente (ponto 18. das conclusões), desta feita sobre pretensa vulneração do princípio in dubio pro reo, se bem que nenhuma espécie de explicitação tenha sobre tal elaborado: sobre o quê, nem o quando e nem o como!

Façamos-lhe, contudo, uma breve referência.

O princípio in dubio pro reo constitui uma decorrência da garantia fundamental da presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, § 2.º da Constituição) (14), constituindo um comando relativo à avaliação da prova por banda do tribunal, do qual deriva que não poderão considerar-se provados os factos que, em decorrência da prova produzida se suscite, sem que se arrede, qualquer «dúvida razoável» (ao tribunal).

Isto é, impõe ao tribunal que quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa se pronuncie de forma favorável ao arguido.

Pressupõe, pois, a existência de um impasse probatório no final do percurso de apreciação da prova e a formação de uma convicção positiva sem suporte probatório bastante.

Pois bem. Conforme claramente decorre da motivação do acórdão recorrido, tal impasse não ocorreu quanto a qual um dos factos julgados provados. Nem ressalta da decisão impugnada, nem o recorrente (sequer) alega que o tribunal a quo haja resolvido qualquer non liquet contra si!

Pelo que não se verifica qualquer vulneração do princípio in dubio pro reo.

3.4. Do crime de pornografia com menores

Considera o recorrente que contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, os factos provados não são integradores do crime de pornografia com menores, previsto no artigo 176.º, § 1.º, al. b) CP.

Vejamos, então.

À dada da prática dos factos relevantes (entre maio de 2016 a setembro de 2018 – cf. 15. dos factos provados) este artigo tinha a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, com início de vigência a 23 de setembro de 2015. E, se bem que ocorreu alteração posterior – designadamente com a Lei n.º 40/2020, de 18 de agosto - com início de vigência a 1 de setembro de 2020 – tal não afetou o segmento normativo típico aqui em causa.

Preceitua, então, este retábulo que:

«1 - Quem:

(…)

b) Utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciar para esse fim; é punido com pena de prisão de um a cinco anos.»

A objeção apontada pelo recorrente é a de que só com uma conduta ativa «do agente, de molde a levar o menor a participar nessas atividades, em interligação com a definição do que sejam atividades pornográficas»… se poderão considerar pornográficas [as fotografias] apenas quando «acompanhadas da prática de ato sexual, de um qualquer enredo dessa natureza ou se se traduzir numa exposição lasciva dos órgãos sexuais.»

O recorrente, adiante-se, não tem razão.

Consta dos factos provados (pontos 13. a 20.), que:

Entre os meses de maio de 2016 e 18 de setembro de 2018, a solicitação do arguido, mas também por iniciativa própria, SS tirou várias fotografias a partes do seu corpo completamente nuas e enviou-lhas para satisfação sexual dele. Nessas fotografias surge SS em posições lascivas (com as pernas abertas para cima a abrir a sua própria vagina, ou virada para baixo com as pernas abertas em flexão, a fim de mostrar a sua vagina e o seu ânus, ou de pé com as pernas juntas a puxar com as suas mãos a pele dos lábios vaginais, ou introduzindo os seus próprios dedos ou objetos na vagina) – pontos 13. a 15. factos provados.

Não há dúvida, pois, que a captação de tais fotografias e seu envio pela menor ao arguido surgem em sequência de aliciamento por este, que agiu intencionalmente visando a sua satisfação sexual e com conhecimento do caráter ilícito da sua conduta.

O caráter pornográfico das fotografias afere-se, quanto à interpretação do que como tal assim deva considerar-se, das orientações constantes do 2.º Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança, de 25/5/2000; e do teor do artigo 1.º, al. b) da Decisão-Quadro2004/68/JAI (15). Ora essa característica, nas circunstâncias do caso sub judice, decorre do contexto da sua realização. Designadamente por as mesmas serem suscetíveis de excitar sexualmente a vítima, dado o seu caráter lascivo, desse modo violando os limites exigíveis ao livre desenvolvimento da vida sexual dos menores, que constitui o bem jurídico tutelado pela respetiva incriminação.

Sustenta ainda o recorrente uma tese, que se crismará de «sociológica», mas sem nenhum arrimo normativo. Aduz que todas as condutas imputadas ao arguido não constituem crime, porquanto o consentimento expresso da menor o não permite! Acrescentando que «na atualidade os limites de idade impostos por lei são meramente indicadores»! E, tanto assim, que que o consenso («acordo») entre a vítima e o agressor traduz a adequação social da conduta!

Entendamo-nos. É a sociedade politicamente organizada quem no respetivo «contrato social» estabelece os valores que a constituem, deles se extraindo os bens jurídicos cuja violação vem a constituir crime, como tal assim se configurando na lei penal.

Breve: o bem jurídico tutelado nos crimes sexuais contra menores de 14 anos é a sua autodeterminação sexual, proibindo-se a punindo-se as condutas que prejudiquem gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, designadamente na esfera sexual. De tal sorte que, até o menor atingir 16 anos de idade, neste contexto, nenhum «acordo» é juridicamente atendível, conforme estabelece o artigo 38.º CP.

Sobram dúvidas se com a referência à alegada e pretensa «adequação social», pretenderá o recorrente referir-se à conhecida teoria de Hans Welzel (16), na base da qual não se consideram típicas as condutas que integram totalmente o padrão da «normalidade da vida» num dado contexto histórico-social. Isto é, fenece a ilicitude quando uma dada conduta se mostra socialmente adequada, tal sucedendo quando a comunidade considera aceitáveis certos atos da vida social que à primeira vista integrariam ilícitos relativos a bens jurídicos de segunda linha.

O modo dubitativo como vem colocada a questão talvez se compreenda, em razão de ser (pelo menos) estranho chamar à colação tal teoria para crimes da gravidade dos que aqui se cura!

Arredados estes escolhos restará concluir, sem sombra de dúvida (como igualmente a não teve o tribunal recorrido), que se mostram verificados os elementos objetivos e subjetivo constitutivos do aludido ilícito, praticado pelo arguido. O mesmo sucedendo relativamente à agravante qualificativa prevista no artigo agravado 177.º, § 6.º CP, por naquele intervalo temporal a menor ter menos de 16 anos de idade.

3.5. Concurso aparente de crimes e crime continuado

3.5.1 Concurso aparente de crimes

Sustenta o recorrente que o concurso que se verifica entre os crimes de abuso sexual de crianças e de pornografia de menores é meramente aparente e não efetivo.

O concurso de crimes vem previsto no § 1.º do artigo 30.º CP, onde se dispõe que «o número de crimes determina-se pelo número de crimes efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.»

Sucede que por vezes o preenchimento plúrimo de tipos de ilícito não constitui um concurso efetivo de crimes, mas um concurso meramente aparente de crimes. Na verdade, um mero concurso de normas.

O concurso aparente de crimes surge quando os factos praticados, ainda que preenchendo formalmente uma pluralidade de tipos criminais, a punição por apenas um deles se mostra suficiente para a punição do complexo factual a que todos se reportam. O que sucede quando há entre as normas respetivas uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consunção (17).

A especialidade surge quando duas normas partilham os mesmos elementos típicos, mas uma delas tem ainda outros que a distinguem ou especializam (norma dominante lex specialis derrogat legi generali).

A subsidiariedade, por seu turno, mostra as normas em termos de grau, integrando a norma dominante uma forma mais grave de violação do bem jurídico.

E na consunção o que se verifica é que um dado ilícito típico integra outro ilícito, integrando a punição do primeiro o desvalor dos dois ilícitos. E é isto mesmo o que sucede quando um dos ilícitos constitui crime-meio e o outro o crime-fim, integrando-se neste na descrição típica e a estatuição da pena daquele. «De tal modo que valorá-los na sua integralidade significaria violação da proibição de dupla valoração (18).»

Não se surpreende no presente caso nenhuma relação de especialidade, de consunção ou de subsidiariedade, pelo que o preenchimento plúrimo de tipos de ilícito corresponde a um concurso efetivo de crimes.

3.5.2 Crime continuado

Mais alega o recorrente, com referência à figura do crime continuado (artigo 30.º, § 2.º CP) que a existência de «uma relação» entre o arguido e a vítima «facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de acordo com o direito.»

Também aqui lhe falece a razão. Vejamos porquê.

A figura jurídica do crime continuado, de génese jurisprudencial, colmatou uma lacuna que a teoria geral do crime anteriormente não previa expressamente.

À luz do citado normativo, para que se verifique crime continuado é suposta uma reiteração de propósitos, na realização plúrima do mesmo crime ou de crimes que protejam essencialmente o mesmo bem jurídico, mas devida tal reiteração a um estado de coisas, exterior ao agente, de força criminógena, o qual, nessa medida lhe diminua a culpa. Essencial é que o agente haja sido influenciado por circunstâncias exteriores que facilitem a repetição dos atos criminosos.

São, assim, seus pressupostos:

- a realização plural do mesmo tipo de crime, ou de vários tipos que tutelem fundamentalmente o mesmo bem jurídico;

a homogeneidade na forma de execução, tradutora de unidade no injusto objetivo da ação desenvolvida;

- a lesão do mesmo bem jurídico ou ofensa de um mesmo valor;

- a unidade de dolo, inculcadora de unidade no injusto pessoal da ação, ou seja, significando que as diversas resoluções se devem manter adentro de uma linha psicológica continuada;

- a persistência de uma dada situação exógena que propicie uma mais fácil execução;

- a existência de uma certa conexão temporal, donde se presuma uma menor ou menos elaborada reflexão sobre a ação delituosa anterior, favorecedora de um repetido sucumbir.

Considera-se, porém que se for o próprio agente a determinar o cenário, que objetivamente visionado, serviria à perfetibilização do crime continuado, as plúrimas resoluções criminosas que, afinal, expressam a «repetição da sucumbência» fundada esta num conjunto de fatores exteriores que a explicam e que, explicando-a, podem levar a concluir por uma culpa menor, não são passíveis de consentirem tal tratamento jurídico menos gravoso.

Para que haja uma atenuação da sua culpa e consequente enfraquecimento do juízo de censura, o agente deve ser vencido por vetores externos. Isto é, se o agente atuou sucessivamente superando obstáculos e resistências ao longo do iter criminis, isto é, aperfeiçoando a realidade exterior aos seus desígnios e propósitos, sendo ele a dominá-la, e não esta a dominá-lo, não se verifica a considerável diminuição da sua culpa (19).

Hans-Heinrich Jeschek e Thomas Weigend (20) assinalam que o comportamento humano consiste numa série continuada de ações e omissões. Daqui emergindo a questão dos critérios que deverão definir a forma como tais ações se deverão dividir. Certo sendo que uma divisão meticulosa em fragmentos mínimos, de acordo com o número de ações musculares (unidade de ação fisiológica), careceria de sentido, porquanto segundo a teoria do concurso, numa única ação têm de se apreciar várias ações e tal só pode ser feito se se tiver em conta um determinado critério jurídico.

Atualmente a jurisprudência e a doutrina arrancam da conceção natural da vida para determinar o conceito de ação na teoria do concurso.

Uma pluralidade de componentes de uma determinada ação física, externamente separáveis, devem formar uma ação unitária quando os diversos atos parciais corresponderem a uma única resolução volitiva e se encontrarem tão vinculados no tempo e no espaço que um observador não interveniente os sinta como uma unidade.

Mas a junção de uma pluralidade de atos individuais numa única unidade de ação, através da interpretação do tipo, só existe dentro de limites relativamente estreitos.

Em primeiro lugar exige-se objetivamente a homogeneidade das formas de ação traduzidas na violação repetida da mesma norma ou de normas similares, pressupondo a homogeneidade da forma de ação também uma certa conexão temporal e espacial.

Em segundo lugar exige-se a violação do mesmo bem jurídico.

E em terceiro lugar exige-se a homogeneidade do dolo, que deve abarcar o resultado total do facto nos seus traços essenciais conforme o lugar, o tempo, a pessoa do lesado e a forma de comissão do facto, no sentido de que os atos individuais só representam a realização sucessiva de um todo, querido unitariamente.

Acresce que o aditamento de um § 3.º ao artigo 30.º CP pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro arredou irremediavelmente a possibilidade de aplicação da figura do crime continuado aos casos de crimes contra bens eminentemente pessoais. A dessintonia jurisprudencial que se verificou na imediata sequência da vigência daquela Lei deixou se verificar com a precisão feita posteriormente, através da Lei n.º 40/2010, de 3 de setembro.

Nesta nova redação, dispondo expressamente: «o disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais», arredou definitivamente que nos casos de concurso efetivo de infrações (de violação plúrima do mesmo bem jurídico), tratando-se de bens eminentemente pessoais, ainda que sobre a mesma pessoa, se possa punir o agente por via da figura do crime continuado.

Está igualmente arredada a possibilidade de em tais situações se poder mobilizar a figura do crime de trato sucessivo, como esclarece o Supremo Tribunal de Justiça (21). Pois nestes casos, contrariamente ao que sucede no crime continuado, não se verifica qualquer diminuição de culpa, antes mera reiteração criminosa, reveladora de uma persistente resolução criminosa, mas que encerra uma culpa agravada, medida de acordo com o número de condutas realizadas e respetiva ilicitude.

No essencial as razões que ditam o afastamento da unificação criminosa através da figura do trato sucessivo, nos casos de condutas reiteradas de abuso sexual de crianças, radicam na desproporcionalidade das punições face aos critérios legais vigentes. O que não é pouco, na medida em que entendimento contrário constituiria um inconstitucional atropelo ao princípio constitucional respetivo.

A dogmática jurídica também não permite arrimo à categoria do crime exaurido, posto que este matricialmente se caracteriza pela circunstância de «o primeiro passo dado pelo agente na senda do iter criminis já constituir preenchimento do tipo». (22)

Em suma: a unificação jurisprudencial de várias condutas integradoras de tipos legais de cariz sexual num único crime constituirá sempre violação do princípio da legalidade, donde, os diversos crimes de abuso sexual de criança e de atos sexuais com adolescentes terão de ser punidos em concurso efetivo de crimes. (23)

Foi neste sentido, justamente, que se pronunciou o Ministério Público na sua resposta ao recurso.

Não estão, pois, reunidos os pressupostos do alegado crime continuado.

3.6. Da medida concreta das penas e da pena única

O recorrente considera que cada uma das penas concretas e igualmente a pena única são exageradas. Mais considera que não se reuniram nos autos as informações relevantes para aferir das circunstâncias pessoais do arguido.

Importará começar por referir quanto a este último aspeto que os autos contêm a informação mínima necessária, como deflui do próprio acórdão.

Claro está que o arguido poderia ele próprio ter aportado mais informação ou ter requerido diligências para ela ser ampliada, o que não terá feito por razões que só a si respeitam.

Mas dos autos consta a sua data de nascimento, o local onde reside, com quem reside, que habilitações literárias tem, que profissão exerce, que antecedentes criminais regista e ainda que é pai de duas filhas menores. É suficiente.

Importará também recordar que a intervenção que o tribunal ad quem pode fazer sobre a medida das penas não abrange a fiscalização do quantum exato de pena, decorrendo esta, antes, da verificação da correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, e se a mesma ainda se revele proporcionada. (24)

O programa político-criminal vigente traduz-se no seguinte (artigo 40.º e 71.º CP): a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, sendo a pena concreta limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. E dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais. (25)

Para os crimes de abuso sexual de criança, previstos no artigo 171.º, § 1.º e 2.º, a lei estabelece uma pena de 3 a 10 anos de prisão. E para o crime agravado de pornografia de menores, previsto no artigo 176.º, § 1.º, al. b), com referência ao artigo 177.º, § 6.º CP, a lei estabelece uma pena de 1 ano e 4 meses até a 6 anos e 8 meses de prisão.

Donde, as penas de 4 anos de prisão por cada um dos crimes de abuso sexual de crianças e de 1 ano e 6 meses de prisão pelo crime agravado de pornografia de menores, em todos os casos pouco acima do limite mínimo abstrato das penas, ponderadas as circunstâncias relevantes (modalidade e intensidade do dolo, elevado grau de ilicitude - em razão do ardil que permitiu levar a menor para casa do agressor -, da circunstância de ter tido uma relação anterior com a mãe da menor, bem assim como as suas características pessoais (tinha idade para ser pai da menor), formação (12.º ano de escolaridade), residência em ambiente urbano, empresário e já ter antecedentes criminais (se bem que em diferentes áreas da criminalidade) as penas concretas mostram-se ajustadas às atuações ilícitas, não excedendo a respetiva medida à correspetiva culpa, satisfazendo em todos os casos os mínimos impostos pelas exigências de prevenção geral (assegurando a manutenção da confiança da comunidade na validade da norma de proibição) e ajustando-se às necessidades de prevenção especial – com vista à sua reinserção social.

Nada havendo, pois, a censurar às penas parcelares aplicadas.

A punição do concurso de crimes suscita a reformulação do cúmulo efetuado na 1.ª instância, em razão de o número de crimes ser agora inferior (por força da exclusão dos crimes de atos sexuais com adolescentes – cf. ponto 3.1. deste acórdão).

Ao recorrente foram aplicadas as seguintes penas

O arguido encontra-se punido em duas penas de 4 anos de prisão, uma por cada um dos crimes de abuso sexual de crianças; e numa pena de 1 ano e 6 meses de prisão pelo crime agravado de pornografia de menores.

No âmbito do princípio da unidade da pena, exige-se que alguém que tenha praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única (artigo 77.º, § 1.º CP).

Tudo deverá passar-se «como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisivo para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências especiais de socialização).» (26)

Considerando as penas parcelares relativas a cada um dos crimes integrados no concurso (4 anos de prisão por um crime de abuso sexual de crianças; 4 anos de prisão por outro crime de abuso sexual de crianças; e 1 ano e 6 meses de prisão por um crime agravado de pornografia de menores), a moldura do concurso é de 4 anos de prisão a 9 anos e 6 meses de prisão.

Tendo em consideração a gravidade do conjunto dos factos praticados (nomeadamente o tempo durante o qual manteve as condutas criminosas, a personalidade evidenciada, sua formação, inserção social, antecedentes criminais e a ausência de quaisquer atenuantes), daí decorrendo a gravidade do ilícito global perpetrado (nos termos do artigo 77.º, § 1.º e 2.º CP), deverá a pena única fixar-se em 6 anos de prisão.

III – Decisão

Destarte e por todo o exposto, na parcial procedência do recurso, decide-se:

a) absolver o arguido/recorrente da prática de 4 crimes atos sexuais com adolescentes, previsto no artigo 173.º, § 1.º e 2.º CP;

b) condenar o arguido na pena única de 6 anos de prisão, correspondente ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas relativas aos crimes de abuso sexual de crianças e de pornografia de menores agravado, previstos respetivamente no artigo 171.º, § 1.º e 2.º e nos artigos 176.º, § 1.º, a. b) e 177.º, § 6.º CP;

c) manter no demais o acórdão recorrido.

d) Devolva-se ao apresentante o documento junto por ocasião do contraditório do artigo 417.º, § 2.º CPP.

e) Sem custas (artigo 513.º, § 1.º a contrario).

Évora, 21 de setembro de 2021

J. F. Moreira das Neves (relator)

José Proença da Costa

1. A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2.As conclusões, pela sua própria natureza, não devem ser uma reprodução - ou uma quase reprodução (como é aqui o caso) - do teor da motivação; mas antes uma síntese dos fundamentos do recurso. Neste sentido ensina Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 1136, nota 14. em comentário ao artigo 412.º que as conclusões devem ser um resumo das questões discutidas na motivação. Também Germano Marques da Silva (Direito Processual Penal Português, vol. III, Do Procedimento (Marcha do Processo), Universidade Católica Editora, 2014, pp. 335, ensina que «as conclusões devem ser concisas, precisas e claras (…) As conclusões resumem a motivação.»

3. Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

4. Cf., por todos, Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 3/2012, de 8mar2012, publicado no DR, I-A, de 18/4/2012.

5. Sobre a relevância da imediação cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, Universidade Católica Editora, pp. 43.

6. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, reimpressão de 204, pp. 205.

7. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anot., vol. III, ed. 1981, pp. 245.

8.Neste mesmo sentido pode ver-se Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. II, ed. 1981, pp. 297 ss.); e também Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, ed. 1993, pp. 111 ss.). O mesmo tem vindo a ser sublinhado pela jurisprudência (cf. acórdão STJ, de 18/1/2001, proc. 3105/00 – www.dgsi.pt).

9.Sobre a relevância da imediação cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, Universidade Católica Editora, pp. 43.

10. Cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8set2010, proferido no proc. 87/02.1TAACN.C2; bem assim, acórdão do mesmo Tribunal, de 30abr2014, proc. 2317/07.4TAAVR.C1; também acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22out2008, proc. 08P2832; e acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 22out2013, proc. 221/12.3TBTMR-A.C1 , todos disponíveis em www.dgsi.pt

11. Cf. Germano Marques da Silva, Registo da prova em Processo Penal, Tribunal Coletivo e Recurso, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, 2001, Coimbra.

12. Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Portuguesa Editora, 2007, pp. 1101-1102.

13. Cf. Acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ-STJ, ano IX, 3.º, pp.182) e acórdão da Rel. Porto de 27-9-95 (CJ, ano XX, 4.º, pp. 231). Por todos cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 21/5/2019, no proc. 61/15.8EAEVR.E1 (Des. Proença da Costa), no qual se refere que o erro notório na apreciação da prova ocorre quando «… as provas revelam claramente num sentido e a decisão recorrida extrai ilações contrárias, logicamente impossível, incluindo na matéria de facto ou excluindo dela algum elemento. Trata-se, assim, de uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se passou, provou ou não provou. Existe um tal erro quando um homem médio, perante o que consta da decisão recorrida, por si ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis. Não se podendo incluir no erro notório na apreciação da prova sindicância que os recorrentes possam pretender fazer/efetuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no art.º 127.º, do CPP. Ou dito de outro modo, o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao vício do erro notório sobre matéria de facto.»

14. A que aludem igualmente os artigos 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 6.º, § 2.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos e Liberdades Fundamentais; e 14.º, § 2.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

15. Cf. Jorge de Figueiredo Dias e Maria João Antunes / Cláudia Santos, Comentário Conimbricence ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª Ed., Coimbra Editora, 2012, pp. 838 e 881/882; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Portuguesa Editora, 2008, pp. 487.

16. Hans Welzel, Estudios de Derecho Penal, Buenos Aires: BdeF, 2007, pp. 15/35.

17.De modo bastante claro e esquemático cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2008, Universidade Católica Editora, pp. 133/134 (anotação ao artigo 30.º).

18. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 3.ª ed., 2019, Gestlegal, pp. 1164.

19. Neste exato sentido cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15jun2000, proc. 176/2000, Cons. Oliveira Guimarães.

20. Tratado de Derecho Penal, Parte General, 5.ª Ed., Editorial Comares, Granada, 2002, pp. 769 ss.

21. Cf., entre outros, acórdão do STJ de 12set2009, proc 2745/09.0TDLSB-L1.S1, Cons. Raúl Borges; e acórdão STJ de 17set2014, proc. 595/12.6TSLV.E1.S1, Cons. Pires da Graça.

22. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9out2003, proc. 03P2851; e acórdão do mesmo Tribunal, de 17set2014, proc 595/12.6TASLV.E1.S1, Cons. Pires da Graça.

23. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4mai2017, proc. 110/14.7JASTB.E1.S1, Cons. Helena Moniz.

24. Nestes exatos termos cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pp. 197. Na jurisprudência, por todos, DSum. TRE, 20/2/2019, Ana Brito, proc. 1862/17.8PAPTM.E1; Ac. TRÉvora, de 16jun2015, proc. 25/14.9GAAVS.E1, Des. Clemente Lima; e Ac. TRCoimbra, de 5abr2017, proc. 47/5.2IDLRA.

25. Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – Sobre os Fundamentos da Doutrina Penal Sobre a Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2001, pp. 110/111.

26.Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pp. 291.