Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4741/11.9YIPRT-A.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 12/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - O acordo no pagamento em prestações da dívida exequenda traduz o reconhecimento, por parte do executado, desta dívida como sua, cujo pagamento fracionado no tempo anui realizar;
2 - A posterior dedução de oposição a essa execução mediante embargos de executado (o que tem lugar à luz do regime processual anterior ao do NCPC), sendo certo que nem sequer é invocada qualquer circunstância concreta no sentido de a justificar, configura uma conduta abusiva do direito de embargar.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Embargado: (…) – Instituição Financeira de Crédito, SA

Recorrida / Embargante: (…) Ribatejano, Unipessoal, Lda.

O presente processo consiste em oposição à execução, mediante embargos de executado, visando a extinção daquela instância invocando a embargante, para tanto, que o cheque dado à execução não foi por si assinado, pelo que não tem validade enquanto título executivo.
Ao que se opõe a embargada, impugnando a factualidade invocada pela embargante, mais invocando que esta age em manifesto abuso de direito e litiga de má-fé, já que se apresenta a contestar uma dívida após a ter confessado em sede da execução, ao firmar acordo de pagamento para pagamento da quantia exequenda.


II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a oposição à execução totalmente procedente, declarando extinta a execução.

Inconformada, a Embargada apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da sentença recorrida, a substituir por outra que julgue totalmente improcedente a oposição à execução, devendo esta prosseguir os seus regulares termos. Concluiu a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«Salvo o devido respeito, que muito e sincero é, entende a Recorrente que a sentença proferida pelo Tribunal a quo enferma de nulidade, padecendo, ainda, de erro de julgamento (por equivocada interpretação e aplicação da Lei) e encontra-se deficientemente fundamentada, pois que (i) não se pronunciou sobre a questão relativa ao abuso do direito suscitada pela Exequente na contestação à oposição à execução, (ii) não teve em devida e merecida conta toda a factualidade que resultou provada nos presentes autos, (iii) nem sequer a Jurisprudência dos Tribunais Superiores, ou a doutrina largamente maioritária, assim incorrendo, como se disse, em manifesto error in iudicando (sobretudo, quanto ao disposto nos artigos 334.º, 349.º, 351.º, 358.º, n.ºs 1 e 2, 374.º e 376.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).
B) - DO CASO SUB IUDICE
II. No dia 24/01/2012, no decurso da diligência relativa à citação – e antes de a Executada ter apresentado a oposição à execução –, o representante legal da Executada propôs à Exequente o pagamento em prestações da dívida exequenda do presente processo (no total de € 5072,19) e de um outro no qual ele é, em nome próprio, Executado, o que, de boa-fé e na legítima expectativa de que o acordo viesse a ser cumprido, foi aceite pela Exequente/Recorrente, tendo sido celebrado o respetivo acordo de pagamento, que consta do auto de tal diligência, auto esse que foi assinado pelo representante legal da Executada/Recorrida perante o Senhor Agente de Execução.
III. Nos termos desse acordo, o Executado entregou, nesse mesmo dia, 4 cheques ao Agente de Execução, os três primeiros com vencimento em 20/02/2012, 20/03/2012 e 20/04/2012, respetivamente, e um último sem data de vencimento, que se destinava a servir de garantia e seria posteriormente substituído por um conjunto de cheques de valor global idêntico. No entanto, apresentado a pagamento o primeiro desses cheques, o mesmo veio devolvido com a indicação “ch. rev. extraviado”.
IV. Posteriormente, em Fevereiro de 2012, a Executada apresentou a oposição à execução, na qual alegou que não preencheu nem assinou o cheque dado à execução, considerando-o (erradamente) inexequível.
V. A Exequente/Recorrente apresentou contestação à oposição à execução, alegando, no essencial, que (i) o representante legal da opoente assinou o cheque dado à execução;
(ii) a assinatura do supra referido auto de diligência, no qual se encontra plasmado o acordo de pagamento da quantia exequenda celebrado, constitui, por parte da Executado, o reconhecimento da existência da dívida exequenda e da sua qualidade como devedora da mesma; (iii) a apresentação de oposição à execução após ter celebrado um acordo de pagamento e reconhecido ser devedora da quantia exequenda nos termos referidos, constitui manifesto abuso do direito.
C) - QUESTÃO PRÉVIA: DA NULIDADE DA SENTENÇA RECORRIDA POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
VI. A Exequente/Recorrente alegou, nos artigos 12.º a 34.º da sua contestação, que a atuação da Executada/Recorrida nos presentes autos e nos autos principais de execução, traduzida em celebrar um acordo de pagamento na totalidade da quantia exequenda, reconhecendo que a deve e, posteriormente, sem que nada o fizesse prever, incumprir o acordo de pagamento e apresentar oposição à execução, constitui um manifesto abuso de direito, devendo também, por esse motivo, ser julgada improcedente a oposição à execução.
VII. Na douta sentença recorrida o Tribunal a quo não se pronunciou sobre essa questão relativa ao abuso do direito da Executada/Recorrida em apresentar oposição à execução, pelo que houve evidente omissão de pronúncia quanto ao conhecimento de uma das questões e motivos de improcedência da oposição à execução suscitadas pela Exequente/Recorrente, o que configura a violação do princípio da proibição de non liquet, consagrado no n.º 1 do artigo 8.º do Código Civil e no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, e consequentemente, torna a sentença de que ora se recorre nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, devendo por isso, a mesma ser declarada nula e substituída por outra que conheça a referida questão do abuso de direito e considere tal fundamento da contestação à oposição à execução procedente, ao abrigo dos disposto no artigo 665.º, n.º 1, do CPC.
D) - DA IMPUGNAÇÃO E MODIFICAÇÃO DA DECISÃO RELATIVA À MATÉRIA DE FACTO
VIII. A factualidade subjacente ao facto 1) da base instrutória foi demonstrada nos autos, mas não integrou, como devia, a factualidade julgada provada (antes tendo, equivocadamente, sido enunciada, na decisão sobre a matéria de facto proferida em 29/10/2015, como não provada), requerendo-se, portanto, a modificação da decisão sobre a matéria de facto nos termos e ao abrigo no disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil.
IX. Com efeito, a prova pericial realizada não demonstra que o cheque não foi assinado pelo representante legal da Executada; o resulta da perícia apenas significa que tal facto não foi demonstrado por tal meio de prova, o que não impede, evidentemente, que se possa considerar provado através de outros que resultam dos autos.
X. Na verdade, quer por força do disposto nos artigos 374.º, 376.º, nºs 1 e 2, quer por força do disposto nos artigos 356.º, n.º 1 e 358.º, n.º 1 ou n.º 2, todos do Código Civil, encontra-se plenamente provado nos presentes autos que a Executada/Recorrida, no decurso da diligência de citação para a execução, propôs e celebrou com a Exequente/Recorrente um acordo de pagamento em prestações que abarca a totalidade da quantia exequenda, tendo entregue ao Agente de Execução quatro cheques para cumprimento de tal acordo, assim reconhecendo e confessando que deve à Exequente/Recorrente a quantia inscrita no título executivo subjacente à execução, pelo que dúvidas não existem que resulta provado nos presentes autos que a Executada/Recorrida deve tal quantia à Exequente/Recorrente, acrescida dos respetivos juros de mora.
XI. Tendo em conta todos os factos demonstrados nos presentes autos, deveria o douto Tribunal a quo ter retirado a ilação de que o cheque dado à execução foi assinado pelo representante legal da Executada/Recorrida, considerando tal facto provado, ao abrigo do disposto nos artigos 349.º e 351.º do Código Civil, pelo que, ao não ter decidido desse modo, incorreu em erro de julgamento.
XII. Com efeito, após a Executada celebrar um acordo de pagamento em prestações da quantia exequenda, por si proposto de livre iniciativa, e entregar ao Agente de Execução cheques para cumprimento de tal acordo, reconhecendo dever à Exequente a exata e concreta quantia que consta do cheque dado à execução, a única conclusão lógica que se pode extrair de tais factos é que a Executada deve tal quantia e que assinou tal cheque – sendo que o próprio Tribunal a quo, na decisão da matéria de facto, admite que esses factos constituem um indício de tal conclusão -, pois dizem-nos as regras da experiência que ninguém propõe e celebra um acordo de pagamento de uma quantia inscrita num cheque que não preencheu nem assinou.
XIII. A Executada/Recorrida não apresenta na oposição à execução qualquer explicação para a celebração do acordo de pagamento da dívida exequenda e consequente entrega de novos cheques já na pendência da execução, fingindo que tal nunca aconteceu e limitando-se a alegar que não assinou o cheque dado à execução e que não deve à Exequente/Recorrente a quantia nele inscrita, em clara contradição face ao anterior reconhecimento e confissão de tal dívida.
XIV. A inferência lógica acima referida, no sentido de o representante legal da Executada/Recorrida ter assinado o cheque dado à execução, por num ato processual dos presentes autos ter reconhecido dever a exata e concreta quantia nele inscrita e respetivos juros de mora à Exequente/Recorrente, é ainda reforçada pelo facto de as assinaturas de tal sujeito que constam do referido auto de diligência e dos cheques no mesmo entregues apresentarem semelhanças à que consta do título executivo - como bem refere o douto Tribunal a quo na decisão da matéria de facto -, bem como pelo facto de o cheque dado à execução ter sido impresso pelo banco emitente com o nome/firma da sociedade comercial Executada nos pressentes autos.
XV. Num caso muito semelhante aos presentes autos, em que os aí executados assinaram um documento no qual se fazia menção e reconheciam ser devedores da quantia exequenda, mas alegaram que não assinaram o título executivo (uma livrança), não tendo a prova pericial às assinaturas sido conclusiva, o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 24/10/2013 (Processo n.º 904/10.2TBTMR-A.L1-2) decidiu precisamente no sentido defendido pela Exequente/Recorrente nos presentes autos, ou seja, que, através da conjugação com outros documentos assinados pelos Executados relativos à dívida exequenda, é possível concluir, por presunção judicial, que os Executados assinaram um título de crédito no exato montante da dívida exequenda.
XVI. Tendo em conta o exposto, a decisão da matéria de facto deve ser revogada e substituída por uma outra na qual seja considerado provado o facto segundo o qual o representante legal da Executada assinou o cheque dado à execução, devendo o mesmo conter, tendo em conta o ponto 1) da base instrutória, a seguinte redação: “A assinatura constante do cheque referido em A) da matéria assente foi aposta pelo punho do legal representante da executada, (…)”.
E) - RECURSO SOBRE MATÉRIA DE DIREITO: (i) DA EXISTÊNCIA E
EXIQUIBILIDADE DE TÍTULO EXECUTIVO
a) Da assinatura do cheque dado à execução por parte do representante legal da Executada/Recorrida
XVII. Tendo em conta que a matéria de facto deverá ser alterada, dela passando a constar como facto provado que o representante legal da Executada assinou o cheque dado à execução, constata-se que nenhuma causa de inexistência ou inexequibilidade do título executivo existe, pelo que deve ser reconhecida a sua plena existência, validade e exequibilidade, e, consequentemente, julgar-se totalmente improcedente a oposição à execução, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra nesse sentido, sendo de referir que, ao ter decidido em sentido inverso, o douto Tribunal a quo, salvo o devido respeito, incorreu em erro de julgamento, assim incumprindo o disposto nos artigos 45.º e 46.º do CPC na versão aplicável aos presentes autos quanto à matéria do título executivo, ou seja, a versão anterior à originada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho (cfr. artigo 6.º, n.º 3, desse diploma).
Sem prescindir,
b) Da existência e exequibilidade do título executivo como título executivo complexo
XVIII. Ainda que se entenda que não existe prova nos presentes autos que permita concluir que o cheque dado à execução foi assinado pelo representante legal da Executada (no que não se concede), uma vez que também não se encontra demonstrado que esse sujeito não assinou tal cheque, conjugado com o acordo de pagamento e reconhecimento da dívida exequenda exarado no auto de diligência de citação e com os quatro cheques entregues pela Executada para cumprimento desse acordo – que também constituem títulos executivos, nos termos do disposto nos artigos 45.º e 46.º, n.º 1, als. c) e d) do CPC na versão aplicável –, integra um acervo documental composto por todos esses documentos que permite concluir pela indubitável existência da dívida exequenda e que o seu devedor é a Executada, constituindo, por isso, na senda da jurisprudência dos nossos tribunais superiores (veja-se, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/05/2011, Processo n.º 5652/9.3TBBRG.P1.S1), um título executivo complexo, perfeitamente existente e exequível.
XIX. De facto, ambas as partes no processo acordaram, no âmbito desta ação executiva, qual o montante da dívida exequenda e a forma de a pagar, deixando, portanto, a partir desse momento, de poder ser invocada pela Executada a não existência da dívida ou de título e ficando, assim, prejudicados todos os argumentos aduzidos pela Executada na sua oposição à execução.
XX. Ora, de acordo com a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, o título executivo serve para demonstrar a existência de uma determinada obrigação, para que o Agente de Execução e o Tribunal a façam cumprir coercivamente (veja-se, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/07/2010, Processo n.º 4986/09.1TCLRS.L1-6).
XXI. Relacionando a genuinidade e força probatória de todos os documentos acima referidos, que constituem todos eles documentos a que a lei atribui a qualidade de títulos executivos, com o cheque dado à execução, constata-se que são todos eles coincidentes na obrigação exequenda e no seu montante, pelo que todo esse acervo documental, composto por diversos títulos executivos, insista-se, e na senda da figura do título executivo complexo construída pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, demonstra a existência e exigibilidade do direito exequendo, não faltando por isso tal requisito à ação executiva previsto nos artigos 45.º e 46.º do CPC na versão aplicável, não se verificando assim o fundamento de oposição à execução previsto no artigo 814.º, n.º 1, al. a), do CPC nessa mesma versão.
XXII. Por isso, a oposição à execução deverá ser julgada improcedente, sendo que, ao não o ter feito, o douto Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, por errada interpretação e aplicação de todas as normas acima referidas no presente capítulo, pelo que, também por este motivo, deverá a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por uma outra que julgue improcedente a oposição à execução.
Sem prescindir,
G) RECURSO SOBRE MATÉRIA DE DIREITO (CONT.): (ii) DO ABUSO DO DIREITO POR PARTE DA EXECUTADA AO APRESENTAR OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
XXIII. Caso não se atenda a nenhum dos argumentos anteriormente aduzidos no sentido da procedência da oposição à execução (o que não se concede e apenas se concebe por mero dever de patrocínio), sempre a mesma deveria improceder por ter sido apresentada em manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, tendo em conta toda a matéria factual que se expôs no capítulo D) supra das alegações (e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os devidos e legais efeitos).
XXIV. Na verdade, o primeiro conjunto de comportamentos adotado pela Executada/Recorrida nos autos principais de execução, relativo à proposta e celebração de um acordo de pagamento em prestações, bem como à entrega de quatro cheques para o cumprir, criou na Exequente/Recorrente, objetivamente, a confiança e a legítima expectativa de que a Executada/Recorrida iria cumprir o acordo de pagamento celebrado e, sobretudo, que não iria contestar a existência da dívida e a sua qualidade de devedora da mesma nem questionar os pressupostos da ação executiva na qual tal acordo foi celebrado – o que não veio a suceder, em virtude do comportamento contraditório posteriormente adotado pela Executada/Recorrida através da apresentação da oposição à execução –, pois qualquer homem médio colocado na posição concreta da Exequente/Recorrente acreditaria que, celebrado um acordo de pagamento com uma Executada, por esta proposto, a mesma não iria, posteriormente, defender em juízo que não é devedora da quantia que anteriormente reconheceu dever nesse acordo de pagamento.
XXV. De facto, ambas as partes no processo acordaram, no âmbito desta ação executiva, qual o montante da dívida exequenda e a forma de a pagar, deixando, portanto, a partir desse momento, de poder ser invocada pela Executada a não existência da dívida ou de título e ficando, assim, prejudicados todos os argumentos aduzidos pela Executada na sua oposição à execução.
XXVI. Em face dessa confiança e legítima expectativa criada na Exequente/Recorrente com base no primeiro conjunto de comportamentos da Executada/Recorrida, existiu, por parte da primeira, um correspondente investimento traduzido na adoção de certas condutas e escolha de determinadas opções, investimento esse que a adoção do segundo conjunto de comportamentos da Executada/Recorrida, contraditórios face ao primeiro, é apto a gorar totalmente, implicando gravosos prejuízos para a Exequente/Recorrente.
XXVII. Com efeito, com base na proposta da celebração de um acordo de pagamento em prestações da dívida exequenda por parte da Executada/Recorrida, que seria cumprido através da entrega de cheques, que assim serviriam também para garantir esse cumprimento, atentas as conhecidas concretas características dos títulos cambiários, a Exequente/Recorrente – de boa-fé e na legítima convicção que a Executada/Recorrida não iria posteriormente apresentar oposição à execução e contestar a sua qualidade de devedora da dívida exequenda - optou por aceitar tal proposta e, assim, celebrar tal acordo de pagamento.
XXVIII. A suspensão que resultou da celebração do acordo de pagamento – cfr. o disposto no artigo 882.º, n.º 1, do CPC vigente à data e a “Atualização Estatístca (AE)” de 30/01/2012 (ref.ª citius n.º 2887329) a fls… dos autos principais deste apenso –, aliada ao efeito suspensivo e à eventual procedência da oposição à execução posteriormente apresentada, impediu e continuaria a impedir que os bens já penhorados nos autos, dois veículos (cfr. auto de penhora de 06/12/2011, ref.ª citius n.º 2769505, a fls.. dos autos principais), fossem vendidos no processo executivo, sendo o produto entregue à Exequente/Recorrente para satisfação da quantia exequenda, bem como que a fase da penhora prosseguisse e fossem eventualmente penhorados e vendidos outros bens e quantias da Executada/Recorrida, para que o seu produto fosse igualmente afetado à satisfação da quantia exequenda.
XXIX. Assim, com a adoção do segundo conjunto de comportamentos da Executada/Recorrida, contraditório face ao primeiro, a Exequente/Recorrente ficou sem as vantagens inerentes à manutenção e sequência lógica da conduta refletida no primeiro conjunto de comportamentos (ou seja, o cumprimento do acordo de pagamento e a não contestação judicial do direito exequendo, através de oposição à execução, no qual legitimamente confiou e investiu), bem como sem as vantagens referidas na conclusão anterior que para si resultariam se a Executada/Recorrida não tivesse adotado o primeiro conjunto de comportamentos, levando-a legitimamente a confiar e a investir na continuação dessa conduta por parte da Executada/Recorrida (o que, infelizmente e de forma absolutamente desleal, não ocorreu).
XXX. Para além da factualidade subjacente aos presentes autos se subsumir na modalidade de venire contra factum proprium do abuso do direito, é também evidente (salvo o devido respeito por melhor opinião) que o exercício do direito de apresentar oposição à execução nas circunstâncias em causa se afigura manifestamente desleal, excedendo assim os limites da boa fé e dos bons costumes, bem como o fim social e económico de tal direito, uma vez que a oposição à execução consiste num meio de defesa judicial instituído para que os Executados se oponham à execução de obrigações por cujo pagamento não se consideram responsáveis, e não para se oporem à execução de quantias exequendas que, no próprio âmbito da ação executiva em causa, reconhecem dever e se comprometem a pagar, pelo que se encontra preenchida a previsão da norma do artigo 334.º do Código Civil.
XXXI. Num caso praticamente idêntico ao que está subjacente aos presentes autos, em que o Executado e a Exequente também celebraram um acordo de pagamento já no âmbito da ação executiva e, posteriormente, o Executado apresentou oposição à execução na qual também alegou a inexistência e inexequibilidade do título executivo (no caso, a prescrição de um título de crédito), o Tribunal da Relação de Guimarães, no recente acórdão de 25/09/2014 (Processo n.º 917/10.4TBGMR-A.G1) decidiu que, com a celebração do referido acordo de pagamento, ficaram definitivamente definidos os limites da obrigação exequenda, pelo que o Executado deixou de poder apresentar oposição à execução atacando a existência e exequibilidade do título executivo, considerando também que tal configura um manifesto abuso do direito.
XXXII. Tendo em conta tudo quanto foi exposto, conclui-se que, na hipótese de se considerar que a oposição à execução não é improcedente devido aos argumentos aduzidos nos capítulos anteriores (no que não se concede), deverá ser considerado que a mesma não pode ser exercida nem proceder, por a sua apresentação constituir um manifesto ilegítimo exercício de um direito, ou seja, um manifesto abuso do direito, revogando-se a douta sentença recorrida e substituindo-a por uma decisão no sentido apontado.
XXXIII. De acordo com todos os argumentos referidos nas alegações e nas presentes conclusões, conclui-se que a sentença recorrida violou, por errónea interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 8.º, 334.º, 349.º, 351.º, 358.º, n.ºs 1 e 2, 374.º e 376.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, 45.º, 46.º e 814.º, n.º 1, al. a), do CPC na versão anterior à originada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, e 608.º, n.º 2, do CPC na versão atual, devendo, tais normas, ser interpretadas e aplicadas nos termos das conclusões antecedentes.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Assim, em face das conclusões da alegação da Recorrente, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[1], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso[2] e sendo certo que apenas cabe apreciar as questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso[3], são as seguintes as questões a decidir, salvo prejudicialidade decorrente do anteriormente apreciado:
- da nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
- do abuso do direito processual de deduzir oposição à execução por parte da embargante;
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- da invalidade do título executivo.


III – Fundamentos

A – Os factos provados em 1.ª instância

1. A exequente apresentou como título executivo na ação principal o cheque n.º (…), pertencente à entidade bancária (…), no valor de € 4.909,70 à ordem de (…) e (…), Lda., datado de 31/01/2011 com assinatura ilegível conforme consta dos autos principais.

2. Em 7 de Outubro de 2000 foi celebrado entre (…), SA e (…) e (…), Lda. um contrato identificado como contrato de factoring n.º (…), conforme consta dos autos principais.

3. O executado fez participação à PSP de Santarém no dia 4 de Novembro de 2010 referindo o extravio de 12 cheques conforme documento de fls. 6 e 7 dos presentes autos.

4. Em 24/01/2012 foi elaborado auto de diligencia onde, para além do mais, consta “(…) propõe o executado e foi aceite pelo ilustre mandatário do exequente proceder ao pagamento (…) em prestações mensais (doze) de € 1.000,00 cada uma das onze primeiras e a ultima pelo valor que se mostrar em divida nesse processo.(…)” conforme consta dos autos principais.

Outros dados processuais a considerar:
- o cheque referido no ponto 1 foi emitido pelo (…) sobre conta bancária da executada (…) Ribatejano – Bebidas, Unipessoal, Lda. – doc. de fls. 98;
- a participação mencionada no n.º 3 foi prestada por (…), que “compareceu na Esquadra a comunicar o extravio dos cheques supra, em parte incerta e em seu nome” – doc. de fls. 6 e 7;
- entre esses cheques, encontra-se listado o cheque n.º (…) emitido pelo (…) – doc. de fls. 6 e 7;
- a oposição à execução mediante embargos foi apresentada em juízo a 20/02/2012 – doc. fls. 2 a 10;
- inexiste nessa oposição qualquer referência ao motivo pelo qual a mesma é apresentada após ter sido firmado acordo para pagamento da quantia exequenda em prestações mediante a entrega de 3 cheques;
- inexiste qualquer referência ao motivo pelo qual teve lugar a devolução de um desses cheques entregues pela Executada ao agente de execução com fundamento em revogação por extravio;
- no decurso da fase da penhora em bens da executada e citação desta, (…), em representação da mesma executada, subscreveu, a 24/01/2012, acordo para pagamento da quantia exequenda em prestações com vista á suspensão da instância nos termos do disposto no art. 882.º do CPC, entregando ao agente de execução 3 cheques sacados sobre o (…) – cfr. autos principais, certidão junta a 30/01/2012;
- verificou-se a devolução do primeiro dos cheques entregues pessoalmente ao agente de execução pelo legal representante da Executada no decurso da diligência concretizada no dia 24 de Janeiro de 2012 e da qual resultou um acordo global de pagamento em prestações, com fundamento em "revogação por extravio", conforme se vê do verso do referido cheque – cfr. documentação junta aos autos principais pelo agente de execução a 11/03/2012.

B – O Direito

Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia

A Recorrente sustenta que a sentença enferma de nulidade por omissão de pronúncia, já que não conhece da questão colocada em sede de contestação dos embargos de executado, questão essa atinente à conduta abusiva da embargante, que se apresenta a atacar a execução, negando que seja devedora da quantia exequenda, depois de a ter confessado.

Nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. É que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras;» – art. 608.º, n.º 2, do CPC.

No que respeita a saber quais sejam as questões a apreciar, importa atentar na configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a causa de pedir, o pedido e as exceções invocadas pelo réu. Assim, as questões serão apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão que se visa obter. Não serão os argumentos, as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções.[4]

Compulsados os autos, constata-se que a Recorrente, nos arts. 12.º a 34.º da contestação, invoca factos e matéria de direito que a levam a concluir que a “Executada, ao apresentar a oposição que ora se contesta, age em manifesto abuso de direito (…)”.[5] Analisada toda a sentença recorrida, constata-se que inexiste pronúncia sobre a referida exceção do abuso de direito.

Assim, a sentença enferma de nulidade por omissão de pronúncia.

Por via do regime inserto no art. 665.º do CPC, passar-se-á de seguida a conhecer da matéria atinente a tal questão.

Do abuso do direito processual de deduzir oposição à execução por parte da embargante

O instituto do abuso do direito está consagrado no art. 334.º do CC. Nos termos daquele preceito, “É ilegítimo o exercício do direito quando exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

A toda a conduta é inerente a responsabilidade e a expectativa de que cada um atue com retidão e autenticidade. Por conseguinte, o princípio da boa-fé ou, até mesmo, o princípio da confiança, é um princípio ético-jurídico fundamental que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar e preservar. Como manifestação da teoria do abuso do direito, no segmento conexo com os limites impostos pela boa-fé, tem-se desenvolvido o princípio da proibição do venire contra factum proprium, princípio que tutela em primeira linha a confiança interpessoal, bem como a expectativa que se tem relativamente ao comportamento alheio devido à convicção que, de algum modo, foi criada pelo sujeito do mesmo comportamento. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo por ilegítimo. Nas palavras de Vaz Serra[6], o princípio da proibição do venire contra factum proprium impede “que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado”. É a consagração da responsabilidade pela confiança.

No caso em apreço, o direito que a Recorrida exerceu foi o direito processual de deduzir oposição à execução mediante embargos, a coberto do disposto no art. 728.º do CPC, invocando a invalidade do cheque dado à execução por não ser sua a assinatura nele aposta. Ao que procedeu após ter firmado com a Exequente, no âmbito da execução, acordo para pagamento em prestações da dívida exequenda, mediante a entrega de 3 cheques sacados sobre conta sua no (…) ao agente de execução. O 1.º deles tinha vencimento para o dia 20 de Fevereiro de 2012; apresentado a pagamento o referido cheque, que tinha sido entregue pela Executada ao agente de execução, foi devolvido com menção “ch. rev. extraviado”.

Ora, desde logo não subsistem dúvidas que o ato da Executada de dar como extraviado o cheque que o seu representante legal entregou ao Agente de Execução quando foi firmado o acordo para pagamento da quantia exequenda consubstancia uma conduta que reclama de um juízo de censura por parte da ordem jurídica. Porém, não é este ato que está aqui em causa. Antes importa apreciar a relevância do acordo firmado no âmbito do processo executivo de modo a aferir se tal acordo condiciona, se é que condiciona, o direito de posteriormente deduzir oposição a essa mesma execução mediante embargos nos quais se invoca a inexistência da obrigação exequenda.

O acordo para pagamento em prestações da dívida exequenda encontra-se previsto no art. 806.º do CPC, conforme segue:
«1 - O exequente e o executado podem acordar no pagamento em prestações da dívida exequenda, definindo um plano de pagamento e comunicando tal acordo ao agente de execução.
2 - A comunicação prevista no número anterior pode ser apresentada até à transmissão do bem penhorado ou, no caso de venda mediante proposta em carta fechada, até à aceitação de proposta apresentada e determina a extinção da execução.»

À data em que foi firmado o acordo no processo executivo, estava em vigor a versão anterior à introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, cujo art. 882.º estipulava:
«1 - É admitido o pagamento em prestações da dívida exequenda, se exequente e executado, de comum acordo, requererem, ao agente de execução, a suspensão da execução.
2 - O requerimento para pagamento em prestações é subscrito por exequente e executado, devendo conter o plano de pagamento acordado e podendo ser apresentado até à transmissão do bem penhorado ou, no caso de venda mediante propostas em carta fechada, até à aceitação de proposta apresentada.»


Atento o regime atualmente vigente, o acordo de pagamento, determinando a extinção da execução, assume a natureza de um contrato de transação (art. 277.º, al. d), do CPC), embora o seu âmbito sui generis (art. 284.º do CPC) permita que a causa possa não cessar irreversivelmente (art. 808.º, n.º 1, do CPC). Porém, a circunstância de a instância extinta poder ser renovada não afasta esta qualificação.[7]

À data em que Exequente propôs à Executada o acordo para pagamento em prestações da quantia exequenda, e esta o aceitou, este contrato tinha a virtualidade de implicar na suspensão da execução, e não já na sua extinção. Contudo, ao subscrever um requerimento para pagamento em prestações, contendo o plano de pagamento da quantia exequenda acordado entre as partes, a Executada declarou confessada a dívida correspondente a essa mesma quantia exequenda.[8] Na verdade, no âmbito do referido acordo, a Executada admitiu ser devedora da Exequente da quantia ali plasmada, com força obrigatória plena, assumindo a responsabilidade do respetivo pagamento faseado no tempo, mediante a entrega de cheques ao agente de execução. O que, à luz do regime inserto nos arts. 352.º, 353.º, n.º 1, 356.º, n.º 1 e 358.º, n.º 1, do CC, cujo teor aqui nos dispensamos de reproduzir, configura a confissão de que é devedora daquela quantia junto da Exequente. «O acordo referido constitui uma confissão de dívida no âmbito do processo executivo e torna exigível a obrigação nos termos aí acordados entre as partes.»[9]

Ora, tendo firmado acordo para pagamento da quantia exequenda, a dedução de oposição à execução para discutir a dívida que reconheceu como sua, cujo pagamento fracionado no tempo anuiu realizar, configura uma conduta abusiva do direito de embargar.[10] Até por que nenhuma circunstância concreta é invocada no sentido de a justificar.

Procede, pois, a exceção perentória do abuso do direito, o que implica na extinção dos embargos de executado, sem necessidade de se tomar conhecimento das demais questões suscitadas.

As custas recaem sobre a Recorrida – artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CC.

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, julgando-se procedente a exceção perentória do abuso do direito, absolvendo-se a Recorrente do pedido deduzido nos presentes embargos de executado, determinando-se o prosseguimento da execução nos seus precisos termos.

Custas pela Recorrida.
Évora, 21 de Dezembro de 2017
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos

__________________________________________________
[1] Cfr. arts. 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[2] Cfr. art. 608.º do CPC, aplicável ex vi art. 663.º, n.º 2, do CPC.
[3] À luz do regime inserto no art. 130.º do CPC – cfr. Ac. TRL de 30/04/1992 (Pires Salpico); Ac. STJ de 17/05/2017 (Fernanda Isabel Pereira).
[4] Acs. STJ de 07/04/2005 (Salvador da Costa) e de 14/04/2005 (Ferreira de Sousa).
[5] Cfr. fls. 24.
[6] RLJ ano 105.º, p. 28.
[7] Cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. II, 2014, p. 340 e 341.
[8] Cfr., entre muitos outros, Ac. TRP de 11/12/2006 (Fernandes do Vale), Ac. TRG de 25/09/2014 (Moisés Silva), embora não se trate de entendimento unânime; assim, em sentido contrário, entre outros, Ac. TRP de 05/02/2004 (João Vaz).
[9] Cfr. Ac. do TRG supra citado.
[10] Neste sentido, Ac. TRG supra citado.