Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
276/15.9GBABF-B.E1
Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO
Descritores: DECLARAÇÃO DE CONTUMÁCIA
APENSAÇÃO DE PROCESSOS
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 07/06/2018
Votação: DECISÃO DO RELATOR
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUÍDA A COMPETÊNCIA
Sumário:
I - Existindo uma situação de conexão de processos, um dos quais correu à revelia do arguido, que ali veio a ser declarado contumaz, não deve operar-se a apensação a este de processo abreviado no qual essa declaração de contumácia não teve lugar.
Decisão Texto Integral:
1 - No âmbito do processo n.º ---/17.0GBABF, que foi distribuído ao Juízo Local Criminal de Albufeira – Juiz 1, o Ministério Público, fazendo uso do art. 16.º n.º2 e 391-A, n.º1 e 2, ambos do CPP, requereu o julgamento, em processo abreviado e perante o tribunal singular, do arguido BB a quem imputou a prática, em autoria material e em concurso efetivo, de dois crimes de furto simples, p. e p. pelo artigo 203.º, um crime de furto qualificado, p. e p. pela al. f) do n.º1 do art.204.º, dois crimes de violação de domicílio, p. e p. pelo n.º1 e 3 do art.190.º, dois crimes de injúria agravada, p. e p. pelos art. 181.º, n.º1 e 184.º, e ainda um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo n.º2 do artigo 348.º, todos do Código Penal.

1.1 - A acusação foi recebida, por despacho de 9 de Outubro de 2017, vindo a ser designada data para julgamento do arguido, que veio a ser adiado para o dia 22-01-2018, por não constar dos autos o comprovativo da notificação do arguido.

1.2 - Por despacho de 8 de Janeiro de 2018, a Meritíssima Juíza do Juízo Local Criminal de Albufeira, após ter apurado, por consulta do Citius, que estava pendente contra o mesmo arguido no Juízo Central Criminal de Portimão – Juiz 2, em fase de julgamento, o processo comum coletivo n.º ----/15.9GBABF, no qual o arguido está acusado da prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º2, al. e), por referência à al. e) do art. 202.º do Código Penal, declarou-se incompetente para a realização do julgamento, dando sem efeito a data designada, e determinou a remessa dos autos ao referido Juízo Central Criminal de Portimão, para apensação e julgamento conjunto dos crimes em causa, por entender existir conexão de processos e ser aplicável ao caso o disposto nos artigos 25.º, 27.º e 29.º, todos do CPP.

1.3 - No processo ---/15.9GBABF não se logrou a notificação do arguido para a realização do julgamento que esteve designado para o dia 13-10-2016, vindo o arguido a ser declarado contumaz por despacho de 16 de Março de 2017, ou seja, por despacho proferido em data anterior à remessa do processo n.º---/17.0GBABF para efeitos de apensação.

1.4 - Por despacho proferido em 16 de Abril de 2018 no processo ---/15.9GBABF, a Meritíssima Juíza do referido Juízo Central Criminal de Portimão, da comarca de Faro, convocando o disposto nos artigos 24.º, 25.º, 27.º, 32.º, 34.º, 35.º e 335.º, n.º3 e 4 do CPP e jurisprudência deste Tribunal da Relação de Évora no sentido de que a declaração de contumácia em apenas um dos processos constitui um obstáculo à apensação, julgou aquele Juízo Central Criminal incompetente para o julgamento do processo que lhe foi enviado, atribuindo a competência ao Juízo Local Criminal de Albufeira.

1.5 - Com o trânsito em julgado dos despachos referidos em 1.2 e 1.4, certificados nos autos foi suscitado o conflito negativo de competência.

Neste Tribunal, foi cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º1, do CPP.

O Exmo. Senhor Procurador-geral adjunto tomou posição no sentido de que a declaração de contumácia é facto impeditivo de manter as apensações de processos já realizadas por efeitos de conexão processual, por maioria de razão, também é facto impeditivo de efetuar novas apensações, pelo que o Juízo Local Criminal de Albufeira – Juiz 1, é o competente para realizar o julgamento dos factos constantes do processo n.º--/17.0GBABF, que deverá ser desapensado do Processo n.º ---/15.9GBABF, a correr termos no Juízo Central Criminal de Portimão – Juiz 2, da comarca de Faro.

Os autos encontram-se devidamente instruídos, sendo que não se recorta, em nosso entender, a necessidade de recolha de mais provas para além do material probatório existente nos autos.

2 - Entrando no conhecimento do mérito, impõe-se dizer que o pressuposto essencial da emergência efetiva de um qualquer conflito de competência, é, em qualquer caso, a certeza de que uma das entidades conflituantes disponha da competência que enjeita (no caso de conflito negativo), ou dela não disponha, quando a ela se arroga (no de conflito positivo).

Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 34.º do C.P.P., há conflito negativo de competência quando, em qualquer estado do processo, dois ou mais tribunais, de diferente ou da mesma espécie, se consideram incompetentes para conhecer dos mesmos crimes imputados ao mesmo arguido. E é precisamente o que sucede no caso em apreciação.

Como o ora relator já referiu no âmbito da decisão de conflito negativo, proferida em 14-07-2015 no âmbito do processo n.º 95/15.2YREVR, acessível in www.dgsi.pt, citado no despacho proferido pela Meritíssima Juíza do Juízo Central Criminal de Portimão, a competência por conexão que está na génese deste conflito pode definir-se como a competência para o processamento conjunto de uma pluralidade de crimes conexos. Não há, pois, um processamento conjunto válido sem competência por conexão ou sem aplicação de regras de competência por conexão.

Ao instituto da competência por conexão são apontadas, como principais razões de ser, a economia processual (evitando a multiplicação de atos e diligências semelhantes), o mais completo esclarecimento dos factos, a harmonia dos julgados e melhor aplicação da regra da punição do concurso de crimes.

Reportam-se ambos os processos a crimes vários, alguns da mesma natureza (furtos simples e qualificados) imputados ao mesmo agente e que ocorreram na área alargada da comarca de Faro, tendo os processos corrido em separado até à fase de julgamento em que ambos se encontram, sem embargo do que adiante se dirá.

E, de facto, no caso vertente, afigura-se-nos inequívoca a conexão entre os processos em análise, tanto quanto é certo verificar-se, relativamente aos mesmos, uma unidade de agente (conexão subjetiva), a exigida identidade de competência territorial do tribunal cf. artigo 25.º do CPP –, a mesma fase processual (a do julgamento), sendo competente para conhecer de todos o tribunal com sede na mesma comarca de espécie mais elevada, no caso o Juízo Central Criminal de Portimão, da comarca de Faro, onde foi distribuído um dos processos, que funciona como tribunal coletivo – art.27.º do CPP - não sendo de aplicar aqui os critérios do artigo 28.º, que são manifestamente de aplicação subsidiária, tendo como pressuposto a não aplicação das regras estabelecidas nos artigos anteriores.

Além da verificação dos pressupostos positivos de que depende, o estabelecimento da conexão só pode ser levado avante se no caso se não verificarem os obstáculos legalmente previstos à sua realização.

Reconhecida a conexão de processos, por verificação dos pressupostos positivos de que depende, procede-se à apensação daqueles que foram instaurados separadamente ao processo determinante da competência por conexão – artigo 29.º, n.º2 do CPP – a menos que exista alguma norma especial que consagre a exclusão dessa conexão, ditada por razões de celeridade ou de outra natureza, como acontece no artigo 26.º do CPP, e em outros domínios específicos [vide artigo 42.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho - crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos -, 46.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho - Regime Geral das Infrações Tributárias - e art. 113.º do Código de Justiça Militar], o que se nos afigura não ocorrer. [1]

A partir do momento da apensação dos processos a continuidade processual e os atos de sequência passam a ser praticados num só processo, que é então o processo principal, isto é, no processo que determinou a competência por conexão [Henriques Gaspar, Anotação ao artigo 29.º do Código de Processo Penal Comentado].

A controvérsia coloca-se em relação ao “timing” da apensação.

Estamos perante dois processos em fase de julgamento e apenas num deles (no processo n.º ---/15.0GBABF) o arguido foi declarado contumaz, com as consequências jurídicas daí decorrentes, nomeadamente da interrupção e suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal – cf. artigo 120.º, n.º1, al, c) e 3 e 121.º, n.º1, al. c), do Código Penal.

No processo remetido para apensação essa situação ainda não ocorreu e não há elementos que permitam concluir que se possa avançar nesse sentido, pois não se questionando a validade do TIR prestado, o processo poderá avançar para julgamento, sendo o arguido julgado ainda que não compareça.

De acordo com o artigo 335.º, n.º 3 do CPP a declaração de contumácia implica a suspensão dos termos do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo da realização de atos urgentes nos termos do artigo 320.º - cf., quanto aos atos urgentes, o disposto no art.103-º, n.º2 do CPP.

Isto significa, salvo melhor opinião, que podem ser praticados atos que visem a apresentação e/ou a detenção do arguido, mormente os que tenham a ver com a sua localização e que visem por termo à situação de contumácia, ou que se aprecie uma eventual extinção do procedimento criminal, como questão que poderá obstar ao conhecimento do mérito da causa, mas não outros quaisquer para lá dos urgentes, excetuando o prevenido no n.º5 do art.335.º do CPP.

Por conseguinte, crê-se que, enquanto não operar a caducidade da declaração de contumácia, não poderá ocorrer nesse processo a marcação de data para julgamento conjunto de todos os crimes imputados ao arguido.

Com efeito, se o procedimento que conduz à declaração de contumácia se iniciou quando se constatou a impossibilidade de notificar o arguido do despacho que designou dia para a audiência e se essa declaração implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, não pode ser designada nova data para a audiência sem que interceda um desses dois factos: apresentação ou detenção do arguido no âmbito desse processo.

A manter-se a apensação do processo ---/17.0GAABF ao processo onde o arguido já foi declarado contumaz, ela poderá representar um risco para a pretensão punitiva do Estado, pois, não se estendendo os efeitos da declaração de contumácia ao processo onde ela não foi declarada, a menos que o arguido venha também a ser declarado contumaz em relação aos crimes objeto desse processo, o que não se revela poder acontecer, existirá um sério risco de que venha a prescrever o procedimento criminal relativamente a alguns dos crimes imputados ao arguido no processo que foi apensado, frustrando-se ainda as razões que estiveram na base da criação do processo abreviado, introduzido no ordenamento jurídico português pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.

E tais circunstâncias constituem, de per si, causa suficiente para motivar a separação de processos que hajam sido apensados - art.30.º, n.º1, al. b) do CPP.

Para além disso, a declaração de contumácia tem como efeitos, em caso de conexão de processos, a separação daqueles em que tiver sido proferida (artigo 335.º, n.º4 do CPP), ou seja, constitui causa de cessação da conexão.

Por outro lado, importa considerar que um processo contra arguido ainda não declarado contumaz e um processo contra arguido já contumaz não estarão, para o efeito do disposto no n.º2 do artigo 24.º do CPP, na mesma situação/fase.

A partir da declaração de contumácia em todos os processos em conexão, nada impedirá a apensação de todos eles, porquanto, estando todos na mesma situação, fará todo o sentido concentrar a procura do arguido num tribunal único, que afinal será o competente para o julgamento conjunto, do que dispersá-la por vários tribunais, com grande dispêndio desnecessário de recursos e de esforços.[2] E podendo até dar-se o caso, assim não se procedendo, de se conseguir julgar o arguido nuns processos, continuando a considerá-lo contumaz nos outros. O que não faria sentido e ficaria incompreendido num sistema de justiça teoricamente uno, frustrando os objetivos que estão pressupostos pelo legislador na competência por conexão.

Porém, não há sequer a certeza de que venha a ter lugar um único julgamento quanto aos factos dos dois processos pela simples razão de que pode o arguido, após a caducidade da declaração de contumácia, “forçar” uma desapensação mediante a apresentação de requerimento para abertura de instrução por exemplo relativamente ao processo comum coletivo (pois o processo abreviado, sendo um processo especial, não comporta a fase de instrução - art.286.º, n.º3 do CPP). Isto porque não se tendo considerado como validamente prestado o TIR e tendo o processo prosseguido após o encerramento do inquérito, sem a notificação pessoal da acusação, o arguido contumaz tem a faculdade de, quando se apresentar em juízo, requerer a abertura de instrução, de acordo com o art. 336.º nº 3 do CPP, fazendo regressar o processo a uma fase anterior à do julgamento sem a certeza de que venha a regressar a essa mesma fase pois pode naturalmente haver uma decisão de não pronúncia. O que tornaria inútil a decisão de apensação. E actos inúteis são proibidos de acordo com o princípio geral de direito processual bastas vezes esquecido e que está consagrado no art. 130.º do CPC, aplicável ex vi art. 4.º do CPP.

Acresce ainda que os atos relativos aos processos abreviados até à sentença em 1.ª instância são havidos como urgentes (art.103.º, n.º2, al. c) do CPP), pelo que da apensação só resulta prejuízo para a celeridade processual visada pelo legislador.

Assim, no caso sub judice, a melhor solução, que tem apoio na letra e no espirito da lei, passa pela tramitação autónoma dos processos. Só deve operar-se a apensação se e quando no processo n.º ---/17.0GBABF o arguido for declarado contumaz e se cumprirem os termos subsequentes à eficácia dessa declaração, ou após a declaração de caducidade da contumácia no processo comum coletivo n.º ---/15.9GBABF, se ainda houver justificação para tal.

3 – Em face do exposto decide-se dirimir o presente conflito atribuindo a competência para o julgamento do processo abreviado n.º ---/17.0GBABF, à Meritíssima juíza 1, do Juízo Local Criminal de Albufeira, da comarca de Faro.

Cumpra-se o n.º 3 do artigo 36.º do CPP, comunicando-se a decisão ao Exmo. Senhor Juiz Presidente da Comarca de Faro.

(Processado por computador e revisto pelo relator que assina)

Évora, 05 de Julho de 2018

Fernando Ribeiro Cardoso (Presidente da Secção Criminal)

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[1] - Na Relação do Porto, na decisão do conflito de competência proferida em 04-07-2014, pelo Exmo. Juiz Desembargador Francisco Marcolino, no âmbito do processo n.º 589/12.1GAVNF-B.P1, foi entendido que “A unidade do sistema jurídico processual-penal e razões ligadas à teologia dos processos especiais impedem a apensação de um processo especial [no caso, processo abreviado] ao processo comum”, solução que não nos repugna de todo aceitar, atenta a natureza do processo e o escopo visado pelo legislador que os casos de pequena e média gravidade sejam submetidos a julgamento o mais rapidamente possível, o que contribui não só para a celeridade da justiça como para o reforço do sentimento de eficácia na sua aplicação, razões que sairiam frustradas caso a apensação tivesse lugar.

[2] - Além disso, o n.º4 do artigo 335.º do CPP, que determina a separação de processos em que tiver sido proferida a declaração de contumácia, tem como pressuposto a existência de outros processos conexos que hajam de prosseguir, não impedindo, por conseguinte, que se mantenham apensados processos conexos referentes ao mesmo agente quando em todos eles tiver sido declarada a contumácia do mesmo, ou que, posteriormente, venham a ser-lhe apensados processos referentes ao mesmo agente e que se encontrem na mesma situação.