Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2557/11.1TBSTR.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: ACIDENTE CAUSADO POR VEÍCULO
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 06/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I- O art.º 14º, nº 1, e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 291/2007 tem como pressuposto a culpa do condutor.
II- As infracções ao Cód. da Estrada e legislação anexa têm de ser causais do acidente, não sendo suficiente a sua objectiva ocorrência.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

BB, CC, DD e EE, todos com os demais sinais dos autos, intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra «M... - Companhia de Seguros, S.A.», com sede na (...) Lisboa, pedindo a condenação desta a pagar-lhes a quantia global de € 348.852,49 (trezentos e quarenta e oito mil oitocentos e cinquenta e dois euros e quarenta e nove cêntimos), assim discriminada:
a) €125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros) a título de indemnização a todos os autores;
b) €133.852,49 (cento e trinta e três mil oitocentos e cinquenta e dois euros e quarenta e nove cêntimos) a título de indemnização à primeira autora;
c) € 30.000,00 (trinta mil euros) a título de indemnização ao segundo autor;
d) € 30.000,00 (trinta mil euros) a título de indemnização à terceira autora; e
e) € 30.000,00 (trinta mil euros) a título de indemnização ao quarto autor;
tudo acrescido de juros à taxa legal em vigor, desde a data da citação da ré até efectivo e integral pagamento, e ainda da sanção pecuniária prevista no artigo 829.º-A, n.º 4 do Código Civil, desde a data do trânsito em julgado da decisão até efectivo e integral pagamento.
Invocaram, para o efeito e em síntese, serem os únicos e universais herdeiros — enquanto, respectivamente, cônjuge sobrevivo e filhos — de FF, falecido em 30-10-2008 em consequência de acidente de viação ocorrido nessa mesma data.
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A R. contestou, por excepção e impugnação, defendendo a improcedência da acção.
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O processo seguiu os seus termos e, depois de realizado o julgamento, foi proferida sentença cuja parte decisória é a seguinte:
A) Julgar não verificada a excepção peremptória arguida pela ré nos artigos 16.º a 21.º da contestação que ofereceu nos autos (exclusão a que se refere o art.º 14.º, n.º 1, al. e), Decreto-Lei n.º 291/2007;
B) Condenar a ré «M... - Companhia de Seguros, S.A.» a pagar aos autores BB, CC, DD e EE, a título de danos não patrimoniais, as seguintes quantias, a que acrescerão juros de mora contados à taxa legal de 4%, desde a presente data de prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento:
B.1) Pelo dano sofrido pela própria vítima FF antes de morrer, a quantia de €17.500,00 (dezassete mil e quinhentos euros);
B.2) Pela perda do direito à vida do falecido FF, a quantia de €65.000,00 (sessenta e cinco mil euros), sendo €16.250,00 (dezasseis mil duzentos e cinquenta euros) relativamente a cada um dos autores;
B.3) Pelo dano sofrido pela autora BB enquanto esposa da vítima com a sua morte, a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros); e
B.4) Pelo dano sofrido pelos autores CC, DD e EE enquanto filhos da vítima com a sua morte, a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros) relativamente a cada um deles;
C) Condenar a ré «M... - Companhia de Seguros, S.A.» a pagar à autora BB, a título de dano patrimonial futuro decorrente da perda do rendimento que o falecido marido aportava para o casal, a quantia de €85.000,00 (oitenta e cinco mil euros), neste caso acrescida de juros de mora contados à taxa legal de 4%, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;
D) Condenar a ré «M... - Companhia de Seguros, S.A.» na sanção pecuniária prevista no artigo 829.º-A, n.º 4 do Código Civil, desde a data do trânsito em julgado da presente sentença até efectivo e integral pagamento; e
E) Absolver a ré «M... - Companhia de Seguros, S.A.» de tudo o mais peticionado pelos autores BB, CC, DD e EE.
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Desta sentença recorre a R. invocando uma nulidade da sentença, impugnando a matéria de facto bem como a solução de direito.
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Foram colhidos os vistos.
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Quanto à primeira questão, alega que os fundamentos aduzidos na sentença não são suficientes para justificar a decisão e estão em oposição com a decisão, nos termos do art.º 615.º, nº 1, als. b) e c) do CPCivil.
Mas só aparentemente se trata de uma nulidade.
O que se passa é que a recorrente discorda da solução achada na sentença, seja quanto à dinâmica do acidente, seja quanto à solução de direito.
Mas lida a sentença, constata-se claramente que, depois de definir os factos provados e os factos não provados, enuncia os temas jurídicos a tratar e decide-os. E, neste último caso, por entender que o condutor do veículo acidentado não agiu com culpa, afastou a aplicação do art.º 505.º, Cód. Civil, e condenou a seguradora a pagar as indemnizações pedidas.
Como é que se pode afirmar que a sentença não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão?
Como é que se pode afirmar que na sentença os seus fundamentos estão em oposição com a decisão?
A recorrente discorda do decidido, muito naturalmente, mas daí a acusar a sentença de ser nula vai um passo grande demais e sem acolhimento no citado art.º 615.º, n.º 1, Cód. Proc. Civil.
Assim, improcede a arguição.
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Em relação à impugnação da matéria de facto, convém fazer um resumo do acidente, mesmo que tosco.
O veículo, que trazia um atrelado, seguia por uma estrada com ligeira inclinação e a certa altura as rodas começaram a patinar, o veículo parou com uma roda traseira num buraco. O sinistrado veio tentar resolver o problema, colocou-se atrás do carro e este deslocou-se na sua direcção, atropelando-o.
Não interessa agora que este resumo seja rigoroso; apenas se pretende dar um retrato do acidente para melhor se compreender a tese da recorrente.
Os factos cuja resposta ela impugna são os seguintes:
(…)
Por estes motivos não se altera a matéria de facto.
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Ela é a seguinte:
1. FF, então com 48 anos de idade, faleceu em 30-10-2008, na freguesia de Santarém (São Nicolau), no estado de casado com BB, então com 45 anos de idade, sem deixar testamento ou disposição de última vontade.
2. CC, nascido em 06-02-1981, DD, nascida em 04-02-1983, e EE, nascido em 11-08-1989, estão registados como filhos de FF e de BB.
3. Os aqui autores não têm com quem eles concorra à sucessão de FF.
4. Em 30-10-2008, GG, afilhado do falecido FF, pediu a este que se deslocasse à Quinta do C..., sita em Fontainhas, Santarém, a fim de ir buscar três animais de raça canina que lhe haviam sido oferecidos, ao que FF acedeu.
5. GG disse então a FF para utilizar o veículo da marca «Ford», modelo «Transit», de matrícula 00-00-LH, de sua propriedade, acompanhado de um atrelado próprio para transporte de animais, tendo em vista a recolha dos referidos canídeos.
6. GG, que decidia sobre o modo e finalidade de utilização do LH, disse de igual modo a FF para, após a recolha dos animais na referida Quinta do C..., trazê-las para a sua residência, sita em C..., Almoster, onde deveria igualmente deixar o veículo e o atrelado.
7. Seguindo tais instruções, FF dirigiu-se à Quinta do C..., em Fontainhas, cerca das 14H45 daquele mesmo dia 30-10-2008, acompanhado da sua esposa e aqui autora BB.
8. Ao chegar ao local, FF carregou os animais no atrelado e iniciou, cerca das 15H15, o trajecto de regresso para C....
9. Ao aproximar-se do portão de saída da Quinta do C..., num local de subida com ligeira inclinação, o veículo começou a “patinar” no pavimento molhado, acabando por se imobilizar.
10. A autora BB saiu então do veículo com o propósito de averiguar as causas da sua imobilização, verificando que a roda traseira do lado direito havia entrado num buraco no qual não tinha tracção.
11. Desse facto deu de imediato conhecimento ao marido, que engrenou a primeira velocidade, acionou o travão de mão e desligou o motor do LH, após o que saiu também do veículo para observar o que se passava e tentar solucionar o problema.
12. FF deslocou-se então para junto da traseira do veículo e, enquanto verificava o problema existente com a roda traseira do lado direito, depois de ter tirado o reboque, o mesmo começou repentinamente a mover-se para trás, atropelando-o e projectando-o de imediato contra o solo.
13. Na sua marcha à retaguarda, o veículo passou por cima de FF e continuou a descair ao longo de cerca de 5 a 10 metros, até se imobilizar contra um silvado existente no local. [resposta positiva ao artigo 16.º da base instrutória]
14. FF, que se encontrava por debaixo do veículo, foi sendo arrastado pelas partes mecânicas deste, que o prendiam e pressionavam contra o solo.
15. Quando o veículo se imobilizou, FF encontrava-se por baixo do eixo dianteiro daquele, com a caixa torácica “prensada” pela barra de estabilização e pela caixa de velocidades.
16. O veículo imobilizou-se num ligeiro declive, ficando a sua toda dianteira direita praticamente sem apoio, pelo que qualquer movimentação brusca do mesmo poderia fazê-lo cair e esmagar FF.
17. Por esse motivo, e também por receio de que, caso ligasse o motor, o seu marido, no local em que se encontrava, pudesse ser despedaçado pelas partes mecânicas móveis da transmissão, BB não mexeu no veículo e, por via telefónica, chamou de imediato uma ambulância, que chegou ao local cerca de dez minutos depois, para que de uma forma segura o marido pudesse ser retirado e socorrido.
18. Enquanto esperava pela assistência pedida pela esposa, FF tinha grande dificuldade em respirar e soltava gritos de dor.
19. Pouco depois, chegou também ao local a autora DD, que entretanto fora avisada do sucedido.
20. Face à posição em que o veículo e FF se encontravam, os bombeiros estabilizaram o veículo e levantaram-no com um macaco hidráulico, de modo a poderem retirar aquele com segurança.
21. Após ser retirado de baixo do veículo, FF, já inconsciente, foi colocado na ambulância que se deslocara ao local e aí sujeito a manobras de reanimação até à chegada da viatura médica de emergência, tendo a médica de serviço do I.N.E.M. certificado o óbito daquele pelas 15H35.
22. Informada de imediato por aquela médica do óbito de seu marido, a autora BB ficou em estado de choque e seguiu para o Hospital Distrital de Santarém, onde recebeu tratamento.
23. Entre o momento da produção do acidente e o da ocorrência do óbito de FF mediaram cerca de 20 minutos, período em que o mesmo esteve consciente cerca de 15 minutos antes de perder os sentidos em virtude das lesões que sofreu e das dores delas resultantes
24. FF passou esses momentos em dor e foi sendo progressivamente asfixiado devido a lesões traumáticas cardio-torácicas e pélvicas graves, produzidas pelos factos descritos em 12 a 15 e que lhe determinaram a morte, tendo na autópsia médico-legal ao seu cadáver sido verificadas, em particular, as seguintes:
- Equimose na região frontal direita acima da sobrancelha;
- Feridas com pele apergaminhada na região frontal direita e esquerda;
- Feridas escoriativas na base, ponta e asa direita do nariz;
- Feridas abrasivas na face externa do antebraço esquerdo e na face dorsal e dedos da mão esquerda;
- Feridas escoriativas do flanco esquerdo à região coxo-femoral esquerda e do flanco direito à região coxo-femoral direita;
- Sangue nos orifícios nasais, face e antebraço e mão esquerda;
- Infiltração sanguínea no tecido celular sub-cutâneo na região rontal da cabeça;
- Edema cerebral;
- Fracturas dos arcos costais anteriores (3.º e 4.º direitos, 4.º, 7.º e 8.º esquerdos), com infiltração sanguínea circundante;
- Fracturas dos ossos púbicos da bacia, com separação dos topos ósseos;
- Laceração do saco pericárdio, contendo coágulos sanguíneos;
- Lacerações na aurícula e ventrículo esquerdo;
- Ventrículo direito com sangue coagulado;
- Ventrículo esquerdo com sangue líquido e coágulos;
- Pulmão direito congestionado, saindo secreções sanguinelentas à compressão manual;
- Pulmão esquerdo congestionado, saindo secreções sanguinelentas à compressão manual; e
- Infiltração sanguínea na fossa ilíaca direita e na região da bacia, com maior intensidade na região púbica.
25. Ainda durante aqueles momentos, FF antecipou a própria morte, completamente imobilizado e impotente para tentar salvar-se, vergado por dores e assistindo à aflição e desespero da sua esposa, que se encontrava a poucos metros do veículo e a tudo assistiu impotente
26. No exame toxicológico efectuado a FF, o mesmo acusou uma taxa de álcool no sangue de 0,80g/l.
27. FF era muito ligado à família, sendo o seu agregado familiar composto pelo próprio e pela esposa, BB. [respostas positivas aos artigos 40.º e 54.º da base instrutória]
28. O falecido FF exercia funções de carpinteiro de cofragens, executando serviços dessa especialidade em obras de diversos empreiteiros de construção civil e na qualidade de funcionário de empresa individual titulada pela sua esposa.
29. Pelo desempenho dessa sua actividade, FF auferia retribuição mensal líquida no montante de €561,46 (quinhentos e sessenta e um euros e quarenta e seis cêntimos), o que representava um rendimento anual de € 7.860,44 (sete mil oitocentos e sessenta euros e quarenta e quatro cêntimos).
30. FF era um homem competente e realizado na sua profissão, cultivando amizades no meio da construção civil, onde encontrava ainda espaço de convívio social que muito apreciava.
31. A autora BB não pretende refazer a sua vida sentimental.
32. A perda do seu marido provocou-lhe e provoca-lhe enorme desgosto e tristeza, vivendo ainda hoje amargurada pelo sucedido, sentimento agravado pelo carácter violento e repentino da morte daquele e pelo facto de a tudo ter assistido, revivendo constantemente as imagens e os sons daqueles momentos.
33. O falecido afectava o seu rendimento de trabalho ao sustento do agregado, com ele custeando as suas despesas básicas, como habitação, alimentação, medicamentos, higiene, vestuário e transportes e assim assegurando a subsistência de si próprio e da esposa.
34. Em virtude do falecimento do seu marido, que assegurava o conhecimento técnico e a execução efectiva dos serviços de carpintaria de cofragens, BB teve que encerrar a empresa individual referida em 28, sendo que não exerce qualquer actividade profissional nem possui quaisquer rendimentos de natureza não laboral.
35. O Instituto Nacional de Estatística apurou que, no período compreendido entre 2005 e 2008, a esperança média de vida à nascença para os indivíduos de sexo masculino e para os indivíduos de sexo feminino se cifrava, respectivamente, em 75 e 81 anos.
36. A perda do pai provocou e provoca em CC, DD e EE profundo desgosto e tristeza, sentimento agravado pelo carácter violento e repentino da sua morte.
37. Em 30-10-2008, o veículo de matrícula 00-00-LH não tinha inspecção periódica obrigatória actualizada, a qual deveria ter sido levada a cabo até 18-06-2008.
38. O proprietário do veículo de matrícula 00-00-LH transferiu a sua responsabilidade civil pelos danos causados pelo mesmo para a aqui ré (então sob a denominação social «Companhia de Seguros S..., S.A.»), através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 90.402737, conforme instrumento de fls. 63 a 104, cujo teor se considera integralmente reproduzido.
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Na parte jurídica do seu recurso, a recorrente indica os seguintes temas nas conclusões das suas alegações:
I - DO ÓNUS DA PROVA
II - DO DIREITO SUBJECTIVO APLICÁVEL
III - DO QUANTUM INDEMNIZATÓRIO
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Quanto ao primeiro alega que o FF no momento do acidente não era o condutor do veículo, pois este estava imobilizado e travado o que significa que na altura não existia qualquer ligação comitente / comissário, pelo que também nesta sede o ónus da prova caberá aos AA..
A sentença começa por definir que, «considerando a factualidade alegada pelos autores, os presentes autos versam sobre a responsabilidade civil extracontratual baseada no risco, o que de imediato traz à liça o disposto no artigo 503.º, n.º 1 do Código Civil».
Baseia-se, pois, no facto de o sinistrado estar a conduzir o carro de outra pessoa e no interesse desta.
Do argumento acima transcrito, conclui-se que a recorrente defende que não há responsabilidade pelo risco da circulação automóvel com base em que a vítima não estava a conduzir.
Cremos que o texto do citado art.º 503.º, n,º 1, parte final, é suficiente para afastar tal ideia. Com efeito, é indiferente para este tipo de responsabilidade que o veículo esteja a circular ou não; a responsabilidade existe «mesmo que este não se encontre em circulação» (trecho este, aliás, sublinhado na sentença). Ou seja, o facto de o veículo estar parado e o condutor ter saído dele não interrompe a relação de comissão que o liga ao detentor da sua direcção efectiva.
Estando no âmbito da responsabilidade objectiva, o lesado apenas tem que provar que ocorreu um acidente que lhe causou danos e que o veículo causador do acidente está sob a direcção efectiva de alguém (no caso, de um segurado da R.). Caberá ao responsável alegar e provar a previsão do art.º 505.º.
Mas ainda no que ao ónus da prova diz respeito, e em termos gerais, temos de ter em conta que, perante os factos provados, o problema não se coloca. Queremos dizer com isto que não há falta de factos que obriguem a decidir contra a parte a quem ele aproveitaria (art.º 414.º, Cód. Proc. Civil).
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No que respeita ao segundo tema (e cremos que se trata do direito objectivo aplicável), a recorrente alega que o veículo só se deslocou porque o piso estava escorregadio. Deste modo não pode ser assacada à R. a responsabilidade por o piso estar escorregadio (dentro de um propriedade privada) ao ponto de ter provocado o acidente.
Cremos haver aqui alguma confusão.
A recorrente não é responsável pelas condições do piso; é-o sim pelas consequências que resultem de um acidente que pode ter tido a sua origem no piso escorregadio.
Nesta rubrica, ainda faz referência ao facto de o acidente se ter verificado numa propriedade privada mas o art.º 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007 tira-lhe qualquer relevância («Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um titulo especifico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei»).
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Ainda neste âmbito, a recorrente alega como segue:
«O Artº 14º, nº 1, al. e) do DL 291/2007, de 21/08 diz que “Excluem-se da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles.”
«Isto é, se o condutor não for responsável estão a coberto os danos corporais e os decorrentes destes (danos morais, cfr. Ac. R. Guimarães de 18.04.13, Proc. 13/11.7TBCMN.G1), mas nunca quaisquer danos materiais, pois estes estão especificados e literalmente excluídos pelo nº 2 do Artº 14º, nº 1, al. e) do DL 291/2007, de 21/08».
Não concordamos.
O citado preceito legal estabelece duas exclusões da garantia do seguro: (1.ª) os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles; e (2.ª) quaisquer danos materiais causados ao cônjuge ou descendentes do condutor do veículo responsável pelo acidente.
A sentença recorrida entende que o teor da al. a) do n.º 2 (ao referir o condutor do veículo responsável pelo acidente) tem como «evidente e necessário pressuposto» a culpa do condutor.
(Esta questão apenas diz respeito à A., mulher do sinistrado, pois que é quem pede indemnização por danos patrimoniais.)
Entendendo a sentença, pois, que o condutor não foi responsável pelo acidente, não se verifica a segunda exclusão.
Concordamos com isto uma vez que a expressão constante da al. a) do n.º 2 tem de corresponder à utilizada no n.º 1 do mesmo art.º 14.º. Existindo na lei duas expressões iguais, elas têm de ser entendidas com o mesmo sentido, com o mesmo significado.
Por outro lado, a lei fala em «condutor» e não, como o poderia fazer caso quisesse alargar o leque, em proprietário do veículo ou mesmo detentor da direcção efectiva sobre o mesmo de forma a englobar as situações de risco puro e simples.
E quando, especificamente, a lei refere «condutor responsável» está a querer dizer o condutor que, por culpa sua, causou o acidente.
Concluímos, assim, que a exclusão dos danos patrimoniais apenas opera quando haja culpa do condutor — tem sido isto, aliás, que vem sendo discutido na jurisprudência, colocando-se a questão apenas quando haja culpa (cfr. acs. do STJ, de 24 de Fevereiro de 2011, 10 de Julho de 2012 e 14 de Fevereiro de 2013, bem como o da Relação de Guimarães, de 18 de Junho de 2013).
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Isto implica saber se há culpa do condutor, questão esta que a recorrente também levanta nas suas alegações.
E fundamenta tal culpa na TAS de 0,8 g/l e no facto de o veículo não estar com a inspecção obrigatória realizada.
A este respeito a sentença considerou o seguinte:
«(...) estamos em crer que, perante estes factos e no concreto contexto em que os mesmos ocorreram, FF tomou todas as precauções que na altura lhe eram exigíveis, porquanto, tratando-se de uma subida com ligeira inclinação, ainda que com o pavimento molhado, não seria certamente previsível que, com a primeira velocidade engrenada, o travão de mão accionado e o motor desligado, o veículo começasse repentinamente a mover-se para trás, tal como efectivamente viria a suceder, sendo ainda certo que, em contraponto com o alegado pela ré, não se provou que fossem más as condições de segurança dos órgãos do veículo.
«Em segundo lugar, e não olvidando que os factos provados em 26 e 37 demonstram, respectivamente, que no exame toxicológico efectuado a FF o mesmo acusou uma taxa de álcool no sangue de 0,80g/l, e que em 30-10-2008 o veículo de matrícula 00-00-LH não tinha inspecção periódica obrigatória actualizada, a qual deveria ter sido levada a cabo até 18-06-2008, estamos também em crer que, tendo mais uma vez em conta os sobreditos factos em 9 a 12 e as concretas circunstâncias em que os mesmos ocorreram, esses dois aspectos não foram minimamente causais do acidente».
Concordamos inteiramente.
Além da TAS, mesmo que superior à legalmente permitida, não ser excessiva, não se vê da matéria de facto que ela tenha tido qualquer influência no desenrolar do acidente, não se vê que o sinistrado tenha agido influenciado pela debilitação da sua atenção que o álcool provoca. Mesmo o facto de estar situado atrás do veículo não tem a relevância que a recorrente lhe pretende dar neste tema. Na verdade, e como acima se transcreveu da sentença, estando o carro travado e engatado, havia todas as razões para confiar que ele não se deslocaria. Não se pode afirmar, então, que tenha sido a eventual diminuição de cuidado e atenção que o álcool potencia (e a TAS era pouco mais elevada que o limite permitido) que levou o sinistrado a situar-se atrás do veículo. A confiança decorrente do facto de o carro estar travado e engatado levaria qualquer pessoa a agir da mesma maneira, sendo certo que era uma roda traseira que ele pretendia calçar.
Em relação à inspecção, apenas se sabe que o veículo não tinha sido sujeito à inspecção obrigatória que deveria ter tido lugar 4 meses antes. E, como também se escreve na sentença recorrida, a «ré não logrou demonstrar minimamente esse facto, sendo de salientar que nenhuma das testemunhas inquiridas verificou aquelas condições, designadamente a testemunha J... — que como já se disse procedeu, a pedido da ré, à averiguação extra-judicial das causas do acidente —, a qual, inopinadamente, mas sem qualquer rebuço, admitiu não ter feito qualquer avaliação às condições de segurança do veículo, que apenas analisou por fora e, mesmo assim, não conseguindo sequer recordar-se se verificou ou não o estado dos respectivos pneumáticos, dizendo apenas que o veículo se apresentava exteriormente em estado aparentemente normal».
Embora verificadas as duas infracções, objectivamente, não há nenhuns elementos que permitam afirmar que a sua prática foi causal do acidente.
Por último, e em termos gerais, consideramos que o art.º 505.º, Cód. Civil, não estabelece necessariamente um confronto mutuamente excludente entre culpa e risco, podendo diversos factores ocorrerem (designadamente, comportamentos) sem que a responsabilidade pelo risco seja afastada. A culpa, neste preceito legal (tal como acontece há muito na legislação sobre acidentes de trabalho) não pode ser entendida como uma culpa leve, uma qualquer negligência, sem prejuízo de se vir a aplicar o art.º 570.º (cfr. Brandão Proença A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de imputação do Dano Extracontratual, Coimbra, Almedina, 1997, pp. 266 e segs e, principalmente, pp. 819 e segs.).
Concluímos, assim, que não houve culpa do condutor; e que não a houve em termos tais que qualquer presunção decorrente da verificação das infracções está ilidida.
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Voltando ao ponto antecedente, temos que a 1.ª A. tem direito a ser indemnizada pelos danos patrimoniais por si sofridos .uma vez que o seu marido, o condutor, não foi o responsável pelo acidente
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Resta a questão dos montantes indemnizatórios fixados na sentença.
A recorrente defende o seguinte:
Tendo em conta a Jurisprudência será adequado:
- Pelo direito à vida a verba de 55.000,00 €;
- Direitos morais do cônjuge a verba de 25.000,00 €;
- Direitos morais dos filhos maiores a verba de 15.000,00 € para cada (não ficou provado que viviam em comunhão de mesa e habitação).
Baseia-se, para tal no ac. do STJ de 28.11.13, Proc. 177/11.0TBPCR.S1, pretendendo, parece, que se apliquem aqui os mesmos valores que o acórdão definiu para o caso que julgou.
As indemnizações não são taxadas, fixadas a forfai pelo nada obriga a que um dado montante seja atribuído em todos os casos semelhantes.
E se bem virmos os termos da decisão (dano da vítima antes de morrer: €17.500; perda do direito à vida: €65.000; dano da viúva: €30.000; dano moral de cada filho: €20.000), os valores apurados não se afastam muito daqueles outros. Não vemos razões de ordem nenhuma para os alterar.
Alega ainda que, relativamente aos danos patrimoniais (85.000,00 €), uma vez que a verba a receber será percebida de uma única vez deverá ser retirado 1/6, como manda a Jurisprudência.
Não descortinamos motivo para tal.
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Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação.
Évora, 11 de Junho de 2015
Paulo Amaral
Rosa Barroso
Francisco Xavier