Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
633/22.4T8PTM.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
DENÚNCIA DO ARRENDAMENTO PELO SENHORIO
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Vigorando entre as partes um contrato de arrendamento para habitação de duração indeterminada celebrado no âmbito do RAU, em face da evolução legislativa introduzida no regime do arrendamento urbano pela Lei n.º 6/2006, de 27-07 e pela Lei n.º 31/2012, de 14-08, não pode ser denunciado pelos senhorios se os arrendatários, à data em que os senhorios pretendem opor-se à renovação, já tiverem atingido os 65 anos.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
AA, por si e na qualidade de cabeça de casal da Herança Indivisa aberta por óbito de DD, e demais herdeiros, DD, casada com EE, DD, FF, casado com GG, DD, HH, casado com II, JJ, intentaram ação declarativa comum, nos termos do artigo 14º da Lei n.º 6/2006 de 27/02 (que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), na redação dada pela Lei n.º 43/2017 de 14/06, e Lei nº 13/2019 de 12/02, com a atual redação dada pela Lei nº 2/2020 de 31/03 e 1083º do Código Civil) contra BB e mulher, CC, pedindo a resolução do contrato de arrendamento identificado na petição inicial e, consequentemente, a restituição da posse do imóvel e, ainda, que os sejam Réus condenados ao pagamento a título de danos patrimoniais, ao valor não inferior a €24.000,00, tendo sido calculada uma renda mensal no valor de €600,00, multiplicando-se a renda pelos meses que os Réus ocupam indevidamente o imóvel que até à data perfazem 40 meses e respetivos juros de mora vincendos calculados à taxa legal; bem como a condenação dos Réus ao pagamento a título de danos não patrimoniais, nunca inferior a €6.000,00 e respetivos juros de mora vincendos calculados à taxa legal, e a uma quantia não inferior a €1.000,00, por cada mês em que dure a ocupação indevida, desde a data da citação da presente acção até à efectiva desocupação do imóvel e sua entrega, devoluta de pessoas e bens, aos Autores.

Para tanto alegaram, em síntese, que são herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de DD, sendo por esse facto contitulares, sem determinação de parte ou direito, do direito de propriedade incidente sobre a fração autónoma, destinada a habitação, designada pela letra ”G”, correspondente ao primeiro andar direito, do prédio urbano designado por lote n.º ...0, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., freguesia e concelho de Portimão, inscrito sob o artigo matricial nº ...70 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o nº ...02, da freguesia de Portimão.
Através de documento particular, datado de 01-11-2003, o coautor AA e a sua falecida mulher, DD, cederam aos réus o uso e fruição daquele imóvel pelo período de um ano, com início a 01-11-2003 e termo a 31-10-2004, considerando-se o contrato automaticamente renovado, por períodos iguais e sucessivos, mediante o pagamento pelos Réus de uma contraprestação financeira anual, fixada em €600,00, paga em duodécimos de €50,00, até ao primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito e atualizável de acordo com aplicação dos coeficientes aprovados pelo governo.
Mais alegaram que o contrato em causa tinha, por força da lei, a duração de cinco anos, tendo-se renovado em novembro de 2008 e após essa data foi objeto de uma nova renovação em novembro de 2013.
Através de carta registada com aviso de receção, datada de 27-11-2017, e, bem assim através de notificação judicial avulsa de 19-02-2018, foram os Réus notificados da oposição à renovação do contrato de arrendamento para fins habitacionais, a qual ocorreria após 31-10-2018.
Os Réus após essa data não entregaram o imóvel, o que causou aos Autores os danos que peticionam.

Contestaram os Réus por exceção (ineptidão da petição inicial e abuso de direito) e por impugnação alegando, em suma, que o contrato de arrendamento foi celebrado ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU).
Em meados de 2014, após a publicação da Lei nº 6/2006, de 27-02, o cabeça de casal da herança aberta por óbito de DD tentou proceder ao aumento da renda para €270,67 invocando que o contrato havia sido celebrado antes da entrada em vigor da RAU.
Os Réus responderam não aceitando o valor da renda proposta.
A renda atual é de €70,00 mensais e o contrato é de duração ilimitada.
Os Réus têm mais de 65 anos, pelo que, nos termos do artigo 36.º da Lei nº 31/2012 de 14-08, o contrato de arrendamento só estaria submetido ao NRAU, mediante acordo entre as partes, o que os Réus não aceitam.
Também não foram invocados os fundamentos de denúncia do contrato de arrendamento pelo senhorio, previstos no artigo 69.º do RAU, pelo que também por este motivo a ação deve improceder em toda a linha e, em consequência, serem absolvidos do pedido.

Foi dispensada a realização de audiência prévia e em sede de saneador foi julgada improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial.
De seguida, foi conhecido do mérito da causa, com a prolação de saneador-sentença que julgou a ação totalmente improcedente.

Inconformados, apelaram os Autores, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«I. Vieram os recorrentes intentar ação Declarativa de Despejo sob a Forma de Processo Comum, alegando a produção de efeitos jurídicos da oposição à renovação e a não desocupação dos réus do locado.
II. O Tribunal a quo proferiu decisão no sentido de improceder totalmente a ação, absolvendo os réus de todo o peticionado.
III. A douta Sentença padece de vários erros de julgamento, fazendo por isso uma incorreta interpretação e aplicação do direito.
IV. Entende o tribunal a quo que estamos perante um contrato de duração indeterminada celebrado na vigência do NRAU e que porventura o contrato de arrendamento não caducou na sequência das comunicações que foram efetuadas pelos autores, entendendo em último que existe uma ocupação legal dos réus.
V. Foi celebrado entre as partes um contrato de arrendamento urbano para fins habitacionais com prazo certo, pelo prazo de um ano, com início em 1 de novembro de 2003 e o mesmo veio a renovar-se, por iguais períodos sucessivos.
VI. De acordo com a anterior redação do artigo 1096.º do Código Civil (Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro), o mesmo veio a renovar-se em 31.10.2008, renovando-se sucessivamente, até à concretização da oposição à renovação pelos autores, atempadamente, em 19.02.2018, por via de notificação judicial avulsa.
VII. Regulando o artigo 98º, as partes podem estipular um prazo para a duração efectiva dos arrendamentos urbanos para habitação desde que a respectiva cláusula seja inserida no texto escrito do contrato (que é o caso – 1 ano), assinado pelas partes, sendo que o prazo referido não pode, contudo, ser inferior a cinco anos.
VIII. Tendo as partes estipulado um prazo de um ano, tal prazo não poderia prevalecer, porquanto por força da lei o prazo seria de 5 anos, teremos de concluir que estamos perante um contrato de arrendamento de duração limitada, em que as partes estipularam um prazo de duração de contrato, os seus termos e suas renovações.
IX. O contrato de arrendamento em apreço foi sucessivamente renovado, tendo os autores de forma legítima e atempada, por via de notificação judicial avulsa, exercido o seu direito de oposição à renovação.
X. Ambas as partes quiseram-se vincular à duração do contrato, tanto que das missivas em resposta, os réus sempre assumiram a natureza de duração limitada do contrato de arrendamento.
XI. É manifesto que a notificação judicial avulsa produz os seus efeitos jurídicos, por estarmos em primeira via perante um contrato de duração limitada, e segundo, por estar dentro do prazo legalmente admissível para operar a oposição à renovação, sendo a mesma admissível.
Nestes Termos e nos mais de Direito, deverá a sentença do tribunal a quo ser revogada e consequentemente ser substituída por outra em que se determine a procedência da ação declarativa, ordenando a prossecução dos presentes autos e os seus ulteriores termos até final (…).»

Não foi apresentada resposta ao recurso.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar da duração do contrato de arrendamento e da oposição à renovação do contrato pelos Réus.

B- De Facto
A 1.ª instância deu como provada a seguinte matéria de facto com base no acordo das partes e prova documental junta aos autos:
«1) Através de documento particular, datado de 01/11/2003, epigrafado de “Contrato de Arrendamento para Habitação” o coautor AA e sua esposa DD, cederam aos réus o uso e fruição da fração autónoma, destinada a habitação, designada pela letra ”G”, correspondente ao primeiro andar direito, do prédio urbano designado por lote n.º ...0, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ... freguesia e concelho de Portimão, inscrito sob o artigo matricial nº ...70 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o nº ...02, da freguesia de Portimão – cfr. cláusulas segunda e quarta.
2) A cedência referida em 1) foi feita pelo período de um ano, com início a 01 de novembro de 2003 e termo a 31 de outubro de 2004, considerando-se o contrato automaticamente renovado, por períodos iguais e sucessivos – cláusula segunda, ponto 2.
3) Como contrapartida do uso e fruição do imóvel identificado em 1), os réus obrigaram-se ao pagamento, aos seus senhorios, de uma contraprestação financeira anual, fixada em €600,00 (seiscentos euros), a qual seria paga em duodécimos de €50,00, até ao primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito, sendo tal contraprestação atualizável de acordo com aplicação dos coeficientes aprovados pelo governo- cláusula quarta.
4) DD faleceu no dia .../.../2013.
5) Através de carta datada de 27 de outubro de 2017, o coautor AA, na qualidade de viúvo e de cabeça de casal da herança aberta por óbito do seu cônjuge, declarou opor-se à terceira renovação, que ocorreria a 31 de outubro de 2018, do contrato referido em 1), ao qual atribuiu a duração inicial de cinco anos.
6) Os réus foram notificados, em 23.02.2018, através de notificação judicial avulsa, a que coube o n.º 507/18.3T8PTM deste juízo, J2 - e, na qual consta como requerente o co-autor AA - de que o contrato celebrado entre as partes tinha, por imposição legal, a duração de cinco anos, tendo-se renovado em 01 de setembro 2008 e em 01 de novembro de 2013 e de que o requerente se opunha à terceira renovação, findando, assim, tal contrato a 31.10.2018, motivo pelo qual deveriam os notificandos, ora réus, proceder, após a superveniência da referida data, à entrega do locado devoluto de pessoas e bens e em bom estado de conservação e limpeza.
7) A ré CC nasceu em .../.../1949.
8) O réu BB nasceu em .../.../1944.»

C- De Direito
Vejamos, então, a questão colocada no recurso relativa à duração do contrato de arrendamento e oposição à renovação pelos Réus.
Em face dos factos provados sob os n.ºs 1, 2 e 3, está em causa nos autos um contrato de arrendamento para fins habitacionais (cfr. noção do artigo 1023.º do Código Civil) celebrado em 01-11-2003, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15-10, e alterações posteriores (RAU).
Entendem os Autores que o contrato em causa é de duração limitada sendo passível de denúncia dentro dos prazos legais, que dizem ter cumprido.
Já a sentença recorrida considerou que o contrato de arrendamento não pode ser juridicamente qualificado como sendo de duração limitada ou como estando sujeito a prazo certo e final, não sendo, por essa razão, legítimo aos Autores exercerem o direito de oposição à renovação do contrato, nos termos do artigo 1097.º do Código Civil.
Ademais, no caso, refere a sentença, tendo os Réus já atingido a idade de 65 anos à data da oposição à renovação, não é possível o exercício do direito de denúncia (não justificada) pelos senhorios, atento o disposto no artigo 26.º, n.º 4, do NRAU e artigo 1101.º, alínea c), do Código Civil.
Vejamos, então.
Como se refere no Acórdão da Relação de Guimarães prolatado em 21-02-2019[1], numa situação com contornos muito semelhantes à dos presentes autos (e que iremos seguir, com a devida vénia), a questão a resolver passa pela análise da sucessão das leis do arrendamento uma vez que o contrato de arrendamento foi celebrado no âmbito da vigência do RAU e subsistiu após as subsequentes alterações legislativas ao regime do arrendamento urbano, bem como pela interpretação das normas transitórias insertas nos dois diplomas que se lhe seguiram denominados de Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, e alteração introduzida pela Lei n.º 31/2014, de 14-08.
De acordo com o n.º 2 da cláusula segunda aposta no referido contrato:
«O arrendamento é celebrado pelo prazo de um ano com início em 1 de Novembro do ano dois mil e três e com termino em 31 de Outubro de 2004, considerando-se automaticamente renovado por períodos iguais e sucessivos, nos termos da lei.»
O RAU, na Secção VI sob a epígrafe «Da cessação do contrato», a na Subsecção I regulava os «contratos de duração limitada», prevendo o artigo 98.º a estipulação de «prazo efetivo», nos seguintes termos:
«1 - As partes podem estipular um prazo para a duração efectiva dos arrendamentos urbanos para habitação desde que a respectiva cláusula seja inserida no texto escrito do contrato, assinado pelas partes.
2 - O prazo referido no número anterior não pode, contudo, ser inferior a cinco anos.»
Por sua vez, o artigo 100.º do RAU, sob a epígrafe «Renovação automática, denúncia e revogação», estipulava do seguinte modo:
«1 - Os contratos de duração limitada celebrados nos termos do artigo 98.º renovam-se, automaticamente, no fim do prazo e por períodos mínimos de três anos, se outro não estiver especialmente previsto, quando não sejam denunciados por qualquer das partes.
2 - A denúncia referida no número anterior deve ser feita pelo senhorio mediante notificação judicial avulsa do inquilino, requerida com um ano de antecedência sobre o fim do prazo ou da sua renovação.
3 - A denúncia efectuada pelo senhorio nos termos desta disposição não confere ao arrendatário o direito a qualquer indemnização.
(…).»
No que concerne à qualificação da duração do contrato, o artigo 98.º do RAU utiliza a terminologia «duração limitada»[2], facultando aos contraentes, para o futuro, a possibilidade de estipularem no contrato um prazo para a duração do arrendamento desde que esse prazo não fosse inferior a cinco anos, afastando, assim, o princípio «vinculista».
Porém, ocorrendo uma situação como a dos autos em que as partes estipularam um prazo de um ano, prorrogável por iguais e sucessivos períodos de tempo, como se refere no citado aresto:
«Em tal situação, tem sido pacificamente entendido o de considerar estes contratos de duração indeterminada. Primeiro, porque o artigo 98º do RAU prevê uma cláusula inequívoca de duração do contrato que tem que ser escrita e não pode ser inferior a cinco anos. Depois, as partes não referiram no contrato que o mesmo tinha duração limitada. Para além disso, o prazo de um ano, prorrogável por iguais e sucessivos períodos dá a entender que de facto as partes pretenderam celebrar um contrato de duração indeterminada, sendo aliás aquele que é habitualmente estabelecido.»[3]
Aduz-se, ainda, em benefício desta interpretação que sendo o contrato de arrendamento de natureza formal, a indicação do prazo é uma formulação habitual nos contratos de duração indeterminada e, em muitos casos, como o presente, nem sequer o prazo se ajusta ao mínimo legal que era de cinco anos.
Por outro lado, a convenção escrita das partes inserida no contrato no sentido da renovação do contrato de arrendamento urbano por iguais período, indica que o contrato se encontra sujeito ao regime geral e não ao regime dos arrendamentos de duração limitada (cfr. artigo 1054.º, n.º 2, do Código Civil e artigo 100.º, n.º 1, do RAU), pois no regime de arrendamento de duração limitada, as renovações são, no mínimo, trienais.[4]
Se outra fosse a interpretação, como se faz notar no Acórdão da Relação do Porto, 26-06-2017[5], «(…) a quase totalidade dos contratos seria de duração limitada, transformando-se um regime especial aplicável num regime regra e impondo a adoção de formulação muito exigente para que o regime aplicável fosse vinculístico, assim se invertendo a exigência legal quanto à forma por que se deve manifestar a cláusula relativa ao estabelecimento de um prazo efetivo (…).»
Entende-se, assim, que o que releva na aferição da vontade das partes quanto à sujeição do contrato a regime dos contratos de duração limitada é que decorra do contrato a vontade clara e inequívoca que as partes o quiseram sujeitar a esse regime.
Neste sentido, lê-se no sumário deste mesmo aresto da Relação do Porto:
«III - No que respeita ao arrendamento urbano para habitação, o nº 1, do artigo 98º do Regime do Arrendamento Urbano, inserido na subsecção I relativa ao contratos de duração limitada, da secção VI, do Capítulo II, previa que as partes podiam estipular um prazo para a duração efetiva do arrendamento urbano para habitação, desde que a respetiva cláusula fosse inserida no texto escrito do contrato, assinado pelas partes.
IV - Não é exigível o recurso a uma qualquer fórmula sacramental para que se entenda que as partes pretenderam sujeitar um certo contrato de arrendamento urbano ao regime dos contratos de duração limitada, exigindo-se contudo que do texto contratual decorra que as partes, direta ou indiretamente, quiseram submeter o contrato ao regime da duração limitada.»
Interpretação que também é acolhida pelo STJ, como decorre, por exemplo, do recente Acórdão de 10-01-2023[6], lendo-se no seu sumário:
«I. O contrato de arrendamento urbano celebrado no domínio do Regime do Arrendamento Urbano é formal e esta natureza formal determina que a declaração nele constante não possa valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238º, nº 1, do Código Civil).
II. No que respeita ao arrendamento urbano para habitação, o nº 1, do artigo 98º do Regime do Arrendamento Urbano, inserido na subsecção I relativa aos contratos de duração limitada, da secção VI, do Capítulo II, previa que as partes podiam estipular um prazo para a duração efetiva do arrendamento urbano para habitação, desde que a respetiva cláusula fosse inserida no texto escrito do contrato, assinado pelas partes.
III. Não é exigível o recurso a uma qualquer fórmula convencional para que se entenda que as partes pretenderam sujeitar um certo contrato de arrendamento urbano ao regime dos contratos de duração limitada, exigindo-se contudo que do texto contratual decorra que as partes, direta ou indiretamente, quiseram submeter o contrato ao regime da duração limitada.»
Concluindo o STJ neste mesmo Acórdão que «(…) na falta de indicação no texto contratual de qualquer acordo das partes no sentido do mesmo poder ser livremente denunciado pelo senhorio findo certo prazo, ou de se poder opor livremente à renovação do contrato, há que concluir (…) que o contrato ajuizado é vinculístico, sendo-lhe na atualidade aplicável o regime dos contratos de duração indeterminada, com algumas especialidades, como resulta do disposto no artigo 26º, nº 4, da Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro.»
Concordando-se com a interpretação que vem sendo referida, no caso dos autos, o contrato em apreço tem de ser qualificado como um contrato de arrendamento sem duração limitada, também denominado vinculístico.
Sucede que a Lei n.º 6/2006, de 27-02, aprovou um Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU) e revogou o RAU.[7]
Por força do artigo 59.º do NRAU (aplicação no tempo), «O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.» (n.º 1).
As normas transitórias encontram-se nos artigos 26.º a 28.º do NRAU que ressalvaram algumas matérias, nelas se incluindo o regime de denúncia pelo senhorio, estipulando, no que ora releva, a alínea c) do n.º 4 do artigo 26.º: «Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades:
(…)
c) Não se aplica a alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil.»
Assim, apesar do NRAU estabelecer no referente ao regime de denúncia consignado no artigo 1101º do Código Civil, que o senhorio podia denunciar o contrato de arrendamento de duração indeterminada em três situações, prevendo na alínea c) a denúncia mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretenda a cessação, a norma transitória, todavia, por aplicação daquela alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil, em relação aos contratos celebrados ao abrigo do RAU, impedia a denúncia discricionária ou ad nutum, com a consequência de que o arrendamento mantinha-se na órbita do vinculismo a não ser que se extinguisse por outra causa.
Todavia, a Lei n.º 31/2012, de 14-08, veio introduzir alterações ao NRAU, inclusivamente nas matérias respeitantes às normas transitórias.
E alterou, neste particular, o regime contido na alínea c) do artigo 26.º, n.º 4, que passou a ter a seguinte redação:
«4 - Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades:
(…)
c) O disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil não se aplica se o arrendatário tiver idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.»
A partir de então, quanto aos arrendamentos celebrados na vigência do RAU, passa a ser aplicável o disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil (denúncia pelo senhorio), salvo se o arrendatário tiver idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
Fora destes casos, o senhorio poderá exercer a denúncia livre mediante o cumprimento do prazo de pré-aviso de 2 anos (atualmente de 5 anos – redação dada pela Lei n.º 13/2019) sobre a data em que pretenda a cessação do contrato.
Em face da sucessão de lei sobre o regime de arrendamento mencionadas, conclui-se o seguinte:
- Antes da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, todos os arrendamentos para habitação, celebrados antes da vigência da Lei 6/2006, ao abrigo do regime vinculístico estavam protegidos contra a livre denúncia do senhorio[8];
- A partir deste diploma é atribuído ao senhorio a faculdade de denunciar livremente o contrato;
- O legislador reconhece que pretendeu introduzir alterações significativas no que respeita aos contratos de arrendamento celebrados antes do NRAU, referindo expressamente no preâmbulo da Lei n.º 31/2012:
«Na linha da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, entendeu-se adequado manter a distinção entre, por um lado, as normas transitórias aplicáveis aos contratos habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, e aos contratos não habitacionais celebrados depois do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, e, por outro, as aplicáveis aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU e aos contratos não habitacionais celebrados antes do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro. Volvidos mais de cinco anos sobre a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, afigura-se justificada uma aproximação do regime de tais contratos antigos ao regime aprovado por aquela lei para os novos contratos.
Nesta medida quanto aos contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU e aos contratos não habitacionais celebrados depois do Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro, passa a prever-se a possibilidade de livre denúncia pelo senhorio, dos contratos celebrados por duração indeterminada nos mesmos termos aplicáveis aos novos contratos. Esta regra apenas é excepcionada quando o arrendatário tenha idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, em consonância com idêntica protecção já conferida e que se mantém, relativamente à denúncia para habitação do senhorio”.
Como se refere no Acórdão da Relação de Guimarães de 21-02-2019 supra mencionado:
«A Lei 31/2012 ao alterar significativamente o regime de arrendamento urbano, e sobretudo ao alterar o regime transitório aplicável aos contratos de arrendamento antigos, coloca a questão da retroatividade das normas. As normas em causa vêem estabelecer efeitos jurídicos sobre relações de arrendamento já constituídas, protegidas por um regime vinculístico e pela limitação às possibilidades de denúncia do senhorio.
Por isso mesmo, confrontados com uma sucessão de leis no tempo, a questão da sua aplicabilidade às relações já constituídas deve ser resolvida, de forma sucessiva e sequencial, através de normas de direito transitório especial (ou seja, normas da própria lei nova que disciplinem a sua aplicação no tempo), depois pelas normas de direito transitório sectorial (ou seja, que regulem na aplicação no tempo das leis sobre certa matéria), e finalmente por normas de direito transitório geral (ou seja, que definam o modo de aplicação no tempo da generalidade das leis, independentemente da matéria sobre que versam) (7)[9].
Seguindo tal exegese, o artigo 59º do NRAU, normativo que, conforme resulta expressamente da sua epígrafe, se destina a regular a sua aplicação no tempo, dispõe no seu nº1 que “o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”.
As normas transitórias a que se refere aquele dispositivo legal são as constantes dos artigos 26º a 28º. A norma para o que agora importa é a do artigo 26º, nº 4, que relativamente aos contratos sem duração limitada, determina que os mesmos “regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades: c) O disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil não se aplica se o arrendatário tiver idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.”
Por sua vez, o art. 12º, nº 2 do Código Civil dispõe que “quando a lei dispuser sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo-se dos factos que deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
Concluindo, tendo as relações arrendatícias efeitos duradouros, que se prolongam enquanto as mesmas subsistirem, a nova lei do arrendamento é aplicável aos contratos daquela natureza - não obstante ter a sua celebração ocorrido antes da sua entrada em vigor - cujos efeitos se estendem para além do início da sua vigência (8)[10].
Estamos perante uma retroatividade mínima admissível “porque apenas tolhe os efeitos jurídicos dos contratos de arrendamento, certamente celebrados no passado, mas que se prolongam para o futuro, a partir de certo momento beneficiando de um regime diferenciado”, como escreve Jorge Bacelar Gouveia (9)[11].
Efetivamente, como explica o autor, “quanto mais longa for a vigência do contrato menos é de supor a permanência da lei aplicável, por força da mudança das condições sociais, às quais o poder legislativo deve responder, sob pena de total ineficácia.” (10)[12].
É, por consequência, nas relações jurídicas duradoras como é o caso da relação jurídica do arrendamento urbano que se torna essencial que juntamente com uma nova ordenamentação jurídica legislativa seja previsto um regime transitório.
A alteração operada com a Lei 31/2012 surgiu no âmbito de um esforço propositado do legislador no sentido de alterar o regime transitório aplicável aos contratos celebrados na vigência do RAU e antes da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (11)[13], pelo que sob pena de manifesta inutilidade e incoerência legislativa, se terá de aplicar a redação atualizada da norma transitória aos contratos já existentes à data da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006.»
No caso em apreço e como supra referido, o contrato de arrendamento em causa foi celebrado ao abrigo do RAU e atendendo ao ali estipulado quanto à sua duração não é tido como um contrato de duração limitada (prazo certo), mas antes de duração indeterminada.
Resultando do artigo 26.º, n.º 4, alínea c), do NRAU, na redação dada pela Lei n.º 31/2014, de 14-09, que: «O disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil não se aplica se o arrendatário tiver idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.», tendo os Réus atingido os 65 anos, respetivamente, em 15-03-2010 e 03-03-2014, encontram-se abrangidos pela parte final daquele normativo, considerando que a oposição à renovação data de 2017 e 2018 (cfr. pontos 5 e 6 dos factos provados).
Em conclusão, o contrato de arrendamento em causa nos autos não é suscetível de ser denunciado pelos senhorios e, consequentemente, não assiste aos mesmos a faculdade de se oporem à sua renovação.
Nestes termos improcede a apelação.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo dos Apelantes (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 30-03-2023
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)

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[1] Proc. n.º 313/18.5T8AVV.G1 (Conceição Sampaio), disponível em www.dgsi.pt
[2] Atualmente o NRAU utiliza a terminologia «prazo certo», sem prejuízo das partes convencionaram, após a primeira renovação, a «duração indeterminada» do contrato – cfr. artigos 1094.º, n.º 1, e 2, e 1095.º do Código Civil.
[3] Veja-se, assim, a jurisprudência também citada no referido acórdão proferida no Acórdão da Relação de Guimarães de 04-06-2013, processo nº 7099/11.2TBBRG-A.G1 (Paulo Duarte Barreto) e o Acórdão da Relação do Porto de 26-06-2017, processo nº 3974/16.6YLPRT.P1 (Carlos GIL), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] Veja-se, assim, MANUEL JANUÁRIO DA COSTA GOMES in Arrendamentos para Habitação, 2ª ed., Almedina 1996, pp 216 a 217. Em sentido oposto, vide ANTÓNIO PAIS DE SOUSA, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), 4ª ed., at., Rei dos Livros, p. 271 (1).
[5] Processo n.º 3974/16.6YLPRT.P1 (Carlos Gil), em www.dgsi.pt
[6] Processo n.º 2857/19.2T8OER.L1.S1 (Manuel Capelo), em www.dgsi.pt
[7] O artigo 60.º, n.º1 do NRAU revogou o RAU mantendo-se apenas as matérias ressalvadas nos artigos 26.º e 28.º.
[8] Menciona o aresto nesta nota: «Neste sentido, MARIA OLINDA GARCIA, Arrendamento Urbano Anotado – Regime Substantivo e Processual (Alterações Introduzidas pela Lei nº 31/2012), 1ª Edição, Coimbra Editora, 2012, p.128.»
[9] Menciona nesta nota o referido aresto: «Acórdão da Relação de Coimbra, 15.02.2011, processo nº 121/09.4T2ILH.C1, www.dgsi.pt.»
[10] Menciona o aresto nesta nota: «Acórdão da Relação de Coimbra, 27.02.2014, processo nº 6028/11.8TBVNG.P1, www.dgsi.pt.»
[11] Menciona o aresto nesta nota: «JORGE BACELAR GOUVEIA, Ob Cit. pag. 53.».
[12] Menciona o aresto nesta nota: «JORGE BACELAR GOUVEIA, Ob Cit. pag. 53.»
[13] Menciona o aresto: «Cfr. artigo 1º, al. b) da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto.»